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Especialistas em 'bem morrer': causa mortis, rituais e hierarquias em um mosteiro do Rio de Janeiro colonial

Experts in 'dying well': causa mortis, rituals, and hierarchies at a monastery in colonial Rio de Janeiro

Resumos

Instalados na América portuguesa desde o final do século XVI, os monges beneditinos tinham como lema ter a morte sempre à vista. Neste artigo, são apresentados os diversos desdobramentos em torno da morte em um mosteiro no Rio de Janeiro setecentista. Com ênfase nas atuações performáticas, e fazendo uso de documentação depositada no próprio mosteiro, são analisadas as hierarquizações envolvidas, as formas de representação do tema e a sociabilidade gerada nas ocasiões de sepultamentos. Com enfoque nas relações estabelecidas, incluindo as reciprocidades inventadas e reinventadas ao longo dos rituais, demonstra-se que tais ocasiões forneciam subsídios para a distinção dos eclesiásticos em uma sociedade regida, em parte, por lógicas do Antigo Regime.

causa mortis; rituais; hierarquias; beneditinos; Rio de Janeiro colonial


Benedictine monks, who settled in Portuguese America in the late sixteenth century, made it their tenet to always have death in mind. The article describes diverse aspects of the Benedictine approach towards death as displayed at an eighteenth-century monastery in Rio de Janeiro. Relying on documentation stored at the monastery and highlighting performance-like activities, the article analyzes hierarchical arrangements, the ways death was represented, and the forms of sociability manifested at the time of burials. Focusing on the relations that were established, including the reciprocities that were invented and re-invented throughout the rituals, it is demonstrated that these events provided a basis for the distinction earned by clerics in a society ruled in part by the logics of the Ancién Regime.

causa mortis; rituals; hierarchies; Benedictines; colonial Rio de Janeiro


Uma representação é recorrente na iconografia beneditina - o morto acompanhado, como o do painel A morte de são Jócio, atribuído ao pintor frei Ricardo do Pilar e que reveste parte do forro da capela-mor da igreja do Mosteiro de São Bento do Rio de Janeiro. O corpo de são Jócio está cercado de monges da abadia de Saint-Bertin. No ambiente monástico, essa idealização da morte assistida transformou-se em tópica, principalmente a partir da hagiografia do santo patriarca da ordem beneditina, pois, de acordo com Gregório Magno, são Bento foi cercado por seus discípulos em seus últimos instantes. É dessa maneira, recebendo a última comunhão, que um pintor anônimo do século XVIII o representou no coro da citada igreja.

A 'boa morte' em um mosteiro era sobretudo aquela que ocorria entre os irmãos. Como destacou Georges Duby (1990a, p.65) em relação aos monges da Idade Média, "ninguém morria só: o trespasse era um ato menos privado que quase todos os outros". Esse é aspecto presente no dietário dos monges, cuja principal função era perpetuar a memória dos membros da comunidade, tecendo elogios. O dietário faz parte de um gênero de escrita de longa data, com sua gênese na Idade Média associado aos liber vitae ou liber memoriales do período carolíngio (Lauwers, 1996). Nesses textos, os nomes dos mortos tinham que ser arrolados em longas listas para que suas almas fossem lembradas nas celebrações, como na prática do frei João do Rosário, que "todos os dias orava pelas almas daqueles sujeitos de quem foi amigo, ou lhes devia algum favor; e porque eram muitos, se regulava por um catálogo aonde tinha assentados os seus nomes para que nenhum ficasse prejudicado" (Dietário, 1927, p.178). Na documentação beneditina existem diversas expressões demonstrativas da importância de se morrer acompanhado e com os devidos sacramentos. O dietário de frei Veríssimo do Rosário, natural do Porto e administrador das fazendas de Maricá, Cabo Frio e Campos, registra que "dispensado já do trabalho pelos seus anos, e moléstias se recolheu ao Mosteiro para morrer entre os religiosos", em 1771 (Dietário, 1927, p.187).

A segunda parte do Dietário - "Das vidas e mortes dos monges" - é um tributo aos mortos e um alerta aos vivos no sentido de que estivessem sempre preparados para a morte. A ilustração de sua capa, feita a bico de pena pelo escravo Antônio Teles em 1773, enfa-tiza a finalidade. É uma vanitas, como indicam seus símbolos mais comuns - uma caveira, uma ampulheta, uma vela apagada e uma corda partida. A palavra latina vanitas tomou o sentido de 'brevidade da vida', principalmente por causa de uma passagem bíblica - Vanitas vaniatum, et omnia vanitas(Vaidade das vaidades, tudo é vaidade. Eclesiastes 1:2). O monge, mais do que todos, se deveria preparar permanentemente para ter uma 'boa morte'. No entanto, a vida do religioso em geral não era tão breve.

No século XVIII a expectativa de vida dos monges do Mosteiro de São Bento do Rio de Janeiro era alta se comparada ao restante da sociedade da América portuguesa (Nadalin, 2003). Mais de 50% dos monges morriam depois dos setenta anos. É provável que essa taxa resultasse do fácil acesso aos recursos, a alimentação incluída, somado a vida 'protegida' e 'atendimento médico' na própria comunidade, posto haver ali botica e enfermaria à disposição. Leila Mezan Algranti (1993, p.184-187) também encontrou, no período de 1750 a 1822, alta taxa de longevidade referente a mulheres que habitavam três instituições religiosas. A expectativa média de vida, segundo a historiadora, chegava a mais de setenta anos. O ambiente das instituições religiosas era favorável à longevidade de seus habitantes. Todavia, mesmo com as devidas precauções, a morte rondava o mosteiro de todas as formas possíveis, levando dolorosamente os provectos e surpreendendo os noviços. Os sofrimentos físicos eram muitos.

As fontes monásticas apresentam um conjunto de doentes padecendo dos mais diversos males. Os mais comuns se referiam às vias respiratórias e aparecem sob as denominações pleuris, tísica ou simplesmente ataque de tosses, como o que sofreu o irmão corista Antônio da Vitória, que "com uma violenta moléstia no peito morreu tossindo afogado em seu próprio sangue", em 1798 (Dietário, 1927, p.212). Outras doenças eram extremamente recorrentes na América portuguesa, como a varíola que, por causar deformações no rosto, era conhecida como mal de bexigas. Foi o que sofreu o músico frei Joaquim de Jesus Maria que, "tomado de bexigas", faleceu em 1732 (p.157).

Padecimento terrível teve frei Sebastião de Jesus, sacristão-mor, mestre de juniores e mordomo, que em 1713 faleceu com "intoleráveis dores e lastimosos estragos de um monstruoso cancro no nariz" (Dietário, 1927, p.145). Urrando de dor ainda encontrou forças para segurar um crucifixo e dizer que era merecedor de tais tormentos. Maior intensidade de dor deve ter sentido frei José dos Santos, que viveu cerca de nove anos com um "formidável cancro no rosto que lhe reduziu a uma lastimosa figura", também afirmando merecer tal desgraça. Seu rosto ficou tão deformado, que nos últimos momentos de sua vida "teve que apontar os lugares onde estiveram os olhos e outras partes para serem ungidas". Na manhã do dia 5 de janeiro de 1747, seu tormento cessou. Frei José, que tanto sofreu com o cancro, em sua juventude tinha sido de "gênio resoluto" e "não sabia perdoar injúrias", aspectos que fez questão de destacar, em tom moralizante, o monge que registrou seu tormento (p.167). A agonia física era considerada pela comunidade forma de purgação, característica evidenciada no dietário de frei André dos Santos que,

anos bastantes da sua morte padeceu várias moléstias, sendo as mais graves a falta de vista, e as chagas de uma mão, e de uma perna que o faziam entrevado de sorte que se não movia sem ser carregado por outro. Sofrendo compacientemente o seu purgatório faleceu em uma madrugada pelas duas horas do dia 3 de setembro de 1747 (Dietário, 1927, p.168).

O 'purgatório particular' também aparece no dietário de frei Luís de Santa Gertrudes, que morreu em 1740, com 79 anos de idade e 59 de hábito. Frei Luís trabalhou na comunidade como mestre de noviços e secretário, porém interrompeu suas atividades, "impedido de uma cegueira que com a admirável paciência sofreu por espaço de dezesseis anos, nos quais com mais clara luz interior se deu a purificar o espírito" (Dietário, 1927, p.164). Nesse caso, o purgatório do monge 'sofredor' não é o local inventado no século XII por frades mendicantes, cujo exemplo iconográfico mais antigo é um salvamento de almas do Breviário de Filipe, o Belo, datado de 1253-1296.1 1 Sobre a invenção do purgatório, ver Le Goff (2001).

A temida 'morte súbita' também fazia suas vítimas no mosteiro. Como destacou Philippe Ariès (1989, p.12-14), um sentimento de horror a respeito da morte imprevista - considerada infamante e desonrosa - perpassou os séculos, chegando ao XVIII. O temor de ter tal fim era causado sobretudo pela ausência de preparo para se obter uma 'boa morte'. Frei Bernardino de Santo Antônio teve esse trágico destino. Na manhã do dia 10 de janeiro de 1722, quando se preparava para celebrar o ofício, caiu morto, sem explicação aparente, em frente à cela de um monge vizinho. Não tinha chegado aos trinta anos de idade. O redator do ocorrido aproveitou a oportunidade para lançar uma sentença moral: "queira Deus que este sucesso sirva de despertador aos que o ouvirem, para que em nenhum instante da vida nos falte a preparação para a morte" (Dietário, 1927, p.152-153). A morte de frei Bernardino serviu, pedagogicamente, para exemplificar a necessidade da atitude de permanente vigília - que, aliás, ia ao encontro de trechos da regra beneditina "Correi enquanto tiverdes a luz da vida, para que as trevas da morte não vos envolvam" (Bento, 2003, p.17) -, como sugere o Dietário (1927, p.21): "fugindo das penas do inferno, queremos chegar à vida eterna, enquanto é tempo, e ainda estamos neste corpo e é possível realizar todas essas coisas no decorrer desta vida de luz, cumpre-nos correr e agir agora, de forma que nos seja proveitoso para sempre".

Em torno dos sepultamentos

Em oração fúnebre proferida por frei Mateus da Encarnação Pina podemos notar com grande riqueza de detalhes os principais elementos que deveriam estar presentes na 'boa morte' de um beneditino e, provavelmente, dos religiosos em geral: a confirmação do amor em Deus, a presença de diversos símbolos católicos, o fortalecimento pelos últimos sacramentos e a confirmação da fuga do mundo. A oração foi pronunciada no mosteiro da Bahia, em 10 de abril de 1714, em homenagem a seu mestre frei José da Natividade. Frei Matheus abriu essa oração mostrando quão "universal é o decreto da morte, e que rigorosa a execução dele!" (Sermam..., 1719, f.34). Frei José faleceu com os primeiros raios de sol, circunstância que frei Matheus atribuiu ao autocontrole do velho monge, que "conservou a vida até que a luz afugentasse as sombras, não querendo entre os horrores da noite infaustar seu nascimento para o céu" (f.34). Frei Matheus narra, então, os últimos momentos de seu mentor.

Com também augurados presságios repetindo atos de contrição e amor de Deus; fortalecido com os sacramentos; como conhecesse que muito se lhe avizinhava a morte, sustentando-se em seu leito em que a enfermidade o pusera, sustentando em uma mão uma vela, na qual se simbolizava a fé com que morria ... em outra mão um crucifixo; nele fixou os olhos até que lhos fechou a morte, sem muita queixa, sem agravo considerável. Que muito que a morte lhe cerrasse os olhos, se em vida os não abriu para o mundo? (Sermam..., 1719, f.34).

Nessa sociedade, como muito bem salientou a historiadora Cláudia Rodrigues (2005), havia toda uma 'pedagogia do bem morrer' que contava, aliás, com instruções detalhadas em publicações especializadas. A fonte utilizada a seguir não é um desses instrumentos; nela, todavia, há preceitos específicos quanto aos comportamentos em um enterro. Através do Cerimonial da congregação dos monges negros (Ascensão, Menezes, 1647) e de trechos do Dietário, é possível reconstituir o final da trajetória do próprio frei Matheus, e assim analisar melhor como eram os rituais em torno da morte de um monge.

Frei Matheus da Encarnação Pina faleceu no mosteiro em 18 de dezembro de 1764, aos 77 anos, de uma 'debilidade do estômago'. Momentos antes, quando deu sinais de que sua vida se estava esvaindo, foi assistido por seus irmãos de hábito, que lhe administraram a derradeira eucaristia - o viático.2 2 Viaticum em latim significa a provisão para a última viagem. O maior sino da torre soou cinco vezes, avisando aos monges que frei Matheus estava morrendo. Os ministros que o fariam receber a última eucaristia se prepararam. Um sacerdote vestiu a alva, estola, capa branca e colocou um véu sobre os ombros. Um diácono vestido com dalmática portou uma cruz em haste. Três acólitos3 3 Acólito é o nome que se dá ao colaborador que porta as velas e transporta a água e o vinho nos ofícios. se paramentaram com sobrepelizes - dois seguravam tocheiras, o outro, um turíbulo. Em silêncio e com os capuzes cobrindo-lhes a cabeça, seguiram em procissão pelos corredores escuros do mosteiro até a cela em que estava frei Matheus. O sacerdote, então, ministrou-lhe os últimos sacramentos e proferiu as sagradas palavras. Frei Matheus estava pronto para morrer. Sua alma havia sido encomendada.

Quando deu seu último suspiro, aproximadamente às sete horas da noite, seus irmãos o acompanhavam. Vestiram-lhe, então, uma camisa, ceroulas, túnica breve, escapulário, cogula e colocaram-lhe meias e sapatos. Os braços e mangas da cogula ficaram em forma de cruz, e seu rosto estava descoberto quando lhe fizeram o ofício da caridade. O sino grande deu mais cinco repiques. Os ministros se prepararam novamente.

O sacerdote era ninguém menos que o próprio abade, frei Gaspar da Madre de Deus. Todos os monges se juntaram na capela-mor e saíram em procissão para o local em que estava o defunto; o subdiácono à frente, portando uma cruz. Chegando ao corpo de frei Matheus, o diá-cono tomou a posição da cabeceira junto com os ceroferários, que acenderam suas velas. Dois monges juniores acenderam as velas do restante do grupo. Levantou-se, então, a entoada Ana si iniquitates e em seguida cantou-se o Kýrie eléison, logo depois todo o mosteiro respondeu em coro o Christe eléison, Kýrie eléison.4 4 O Kýrie Eléison é oração de origem grega muito antiga e significa, grosso modo, "Senhor tende piedade de nós". Aspergiu-se o defunto com água benta, três vezes pela direita e três pela esquerda. Do mesmo modo, seu corpo foi incensado. As velas acesas iluminaram os corredores. Todos abandonaram a cela, retornando à igreja com o esquife.

Na igreja, o monge foi colocado no meio da capela-mor sobre um pano preto. Em seguida, diante de toda a comunidade, que portava velas acesas pelos monges juniores, foi feito um ofício solene com nove lições.5 5 'Lição' é um trecho da sagrada escritura lida no ofício ou na missa. Também podem ser usados trechos tirados dos textos dos padres da Igreja ou vidas de santos. A 'missa dos defuntos' foi celebrada, provavelmente mediante o texto que frei Marçal de São João copiou, entre 1711 e 1714, de um pergaminho, colocando nele sua assinatura abaixo de uma caveira. Após os ofícios, não foi necessário transladar o corpo de frei Matheus para o claustro. Por exigência de frei Gaspar, seu sepultamento foi feito na própria igreja - na capela de santa Gertrudes, de quem frei Matheus e frei Gaspar eram especialmente devotos fervorosos. Diante da sepultura, cantou-se a antífona In paradisus.6 6 "Que os anjos te recebam no paraíso; à tua chegada, que os mártires te acolham e te levem para a cidade Santa de Jerusalém. Quando Israel saiu do Egito, a casa de Jacó deixou um povo bárbaro". Mais água benta e incenso foram espalhados sobre o defunto, cujo rosto foi coberto com um lenço enquanto os irmãos cantavam a antífona A porta inseri seguida da oração Memento mei Deus.7 7 "Lembra-se de mim, ó Deus, porque minha vida não passa de um sopro. E o olhar dos homens nem sequer me percebe. Do fundo do abismo, clamo a ti, Senhor, Senhor, ou meu apelo".

O abade "para conservar a memória de tão respeitável padre o mandou retratar depois de morto colocando-se na sala principal o seu quadro como exemplar digno" da imitação dos demais monges (Dietário, 1927, p.183). A função de um quadro, entre outras, era a de repositório de exemplos e virtudes a copiar, ainda mais se o retrato fosse de um monge que tivera 'boa morte'.

Findara o sepultamento, mas não os ritos em torno do morto. Os sufrágios aos monges defuntos duravam nove dias seguidos depois do enterro. Os monges iam para a sepultura e, diante dela, diziam o responso cantado depois da missa de terça, seguido de outro das vésperas e ao fim diziam o oficio De defuncti. Na documentação, sobressai uma ritualização hierarquizada, em que cada participante ocupava seu papel nos enterramentos dos irmãos. Os rituais, com todas as suas pompas e circunstâncias, e acompanhados pelas autoridades civis e eclesiásticas da cidade, entre outras finalidades, serviam para reforçar a reputação dos beneditinos como especialistas em enterramentos.

O sepultamento de frei Matheus foi, durante a segunda metade do século XVIII, uma das exceções de enterramentos dos monges do Rio de Janeiro no interior da igreja do mosteiro. A maioria foi enterrada no chão do claustro. Espaço importante em um mosteiro, o claustro é o local que o "abre para dentro" (Duby, 1990b, p.97). Segundo Georges Duby (1990b, p.102), o claustro é simbolicamente um paraíso reconstruído. Sua própria geometria é referência aos elementos paradisíacos: "o edifício é quadrado como a cidade de Deus, e essa quadratura evoca para o espírito meditativo simultaneamente os quatro rios do jardim do Éden, as quatro fontes que são os Evangelhos, as quatro virtudes cardeais, enfim, a quaternidade primordial que reside no ser mesmo de Deus".

O bispo Guillaume Durand, falecido em 1296, expressou em seu Rationale divinorum officiorum que o claustro era lugar propício para a espera de um futuro melhor (Delumeau, 2003, p.139). Local ideal para se ser enterrado, o claustro serve para ensinar. Como uma vanitas de pedra, estimula o monge a meditar sobre a finitude de sua existência. No claustro, caminhando em silêncio sobre os túmulos dos irmãos, o monge cumpre o que estabelece o capítulo quatro da regra de são Bento (2003, p.35): "ter diariamente diante dos olhos a morte a surpreendê-lo". Esse comportamento foi reforçado nos meios monásticos ao longo de toda a Idade Média e pode ser muito bem apreciado nas palavras do beneditino Robert de Deutz que no início do século XII registrou em sua Meditação sobre a morte que qualquer pessoa deveria ir aos sepulcros dos mortos para aprender com os cadáveres e apreciar o cheiro da putrefação (Delumeau, 2003, p.83).

No claustro, que servia de cemitério, o religioso podia concretizar as determinações expostas por Robert de Deutz, monge cuja representação está pintada no altar-mor da igreja do mosteiro do Rio de Janeiro. O claustro desse mosteiro foi totalmente concluído entre 1754 e 1757. Nele existem três fileiras de dez sepulturas com três lápides cada uma. As fileiras estão dispostas nos quatro lados do claustro, e a distribuição dos túmulos é desigual, com alta concentração no lado contíguo à igreja - 59%. Teriam os monges predileção por ser enterrados ao lado da 'oficina maior'? Os testamentos não fazem nenhuma menção a essa preferência. Os mais antigos apenas aludem ao claustro, demonstrando que ali os enterros aconteceram antes mesmo do término das obras, como se pode notar no de frei Antônio do Rosário, falecido em 1669, três dias depois de ter adquirido o hábito beneditino. "Declaro que meu corpo será sepultado no claustro do mosteiro entre os mais religiosos, amortalhado no hábito da mesma ordem, levado no esquife à sepultura, em que os mais se enterram" (Testamento..., 1669).

Em comunidade de hierarquia bem marcada, nem mesmo nas representações tumulares todos eram tratados igualmente. No claustro, as lajes ossuárias dos monges medem 50 x 100cm, são lavradas em granito ou gnaisse cinzento-escuro sem desenhos ornamentais e com inscrições de cava. Entre 1777 e 1781, o abade do mosteiro mandou colocar uma pedra tumular de mármore na sepultura de dom Antonio do Desterro. Ornamentada com as armas da família e com inscrições em latim, a campa de dom Antonio, vinda de Lisboa, cobre o espaço de três lápides comuns, ou seja, mede 150 x 100cm, fato que não passou despercebido de Clarival do Prado Valladares (1972, p.125), para quem na "ordem beneditina do Rio de Janeiro ocorreu curiosa diferenciação na sepultura do claustro".

Quando faleceu, em 1773, com a idade de 79 anos, o beneditino dom Antonio do Desterro Malheiro, então bispo do Rio de Janeiro, recebeu todas as pompas fúnebres no mosteiro. O bispo morreu coberto de erisipelas no dia 5 de dezembro, domingo, às sete horas da manhã. No mesmo dia, à tarde, seu corpo foi embalsamado e depositado em uma das salas de seu palácio. O coro dos meninos órfãos cantou os responsos, e na segunda-feira pela manhã iniciaram-se as missas de corpo presente na mesma sala. Os franciscanos oficiaram as 'vésperas dos defuntos' juntamente com o 'primeiro noturno', e os beneditinos concluíram os ofícios. À noite, o corpo foi transladado para a igreja do mosteiro. No terceiro dia, foram oficiadas mais missas, dirigidas pelo cônego chantre.8 8 Chantre é o cônego, monge ou outro responsável pelo canto em um mosteiro ou catedral. Toda a cerimônia foi assistida pelo vice-rei marquês do Lavradio e demais autoridades. Dom Antonio foi sepultado no claustro com todas as honras de monge, mesmo não tendo vivido seus últimos dias dentro de uma abadia. O tratamento diferenciado foi ressaltado na distinção da sepultura e faz parte de longa tradição das práticas monásticas medievais, em que abades e bispos não eram considerados simples religiosos.

O fato de ter celebrado as exéquias de tão eminente personalidade da sociedade foi excelente oportunidade para a comunidade beneditina estreitar seus laços com as autoridades presentes. Além disso, foi um bom momento para demonstrar que seus membros eram 'especialistas' no cuidado com os defuntos, pois desde a época carolíngia, as abadias são os lugares por excelência para a celebração dos mortos e manutenção da memória funerária. Segundo Philippe Ariès (1989, p.169), "a vontade que isolou o Memento dos mortos para fazer dele uma oração de intercessão provém da sensibilidade dos clérigos e dos monges, numa época em que estes se tinham separado dos leigos e se organizado numa sociedade à parte". Para ressaltar a ligação entre o culto aos mortos e a vida monacal, basta lembrarmos que no calendário cristão o dia 2 de novembro - dedicado a finados - foi fixado, por volta do ano 1000, pelo abade beneditino Odilon de Cluny (Schmitt, 1999, p.194-197).

A morte de um velho monge atraía a atenção das principais autoridades da cidade. Conhecido como grande orador, frei Antônio da Madre de Deus, natural do Porto, foi duas vezes abade em São Paulo. Morreu com fortes dores de cabeça, em 1747, aos 62 anos de idade, como abade do mosteiro do Rio de Janeiro, cargo para o qual tinha sido eleito no ano anterior. Seu corpo foi embalsamado e colocado em um salão da parte norte do mosteiro. Cantaram-se as vésperas e os noturnos, e, no terceiro dia, lhe deram sepultura na capela-mor da igreja. O bispo de Areopoli, dom Seixas da Fonseca Borges, celebrou a missa de corpo presente "com a assistência de todas as comunidades religiosas e da principal nobreza da cidade" (Dietário, 1927, p.168).

Em 5 de março de 1758, faleceu o próprio bispo de Areopoli. Suas exéquias foram preparadas pelo abade, frei Francisco de São José, que fez questão de muita pompa. O corpo do bispo foi embalsamado e colocado em uma sala do mosteiro. No segundo dia à tarde, os monges oficiaram as vésperas com o primeiro e o segundo noturno. Os carmelitas cantaram o segundo, finalizando com os responsos dos vigários das quatro freguesias e o coro dos meninos órfãos. O escritor do dietário destacou:

Concorreram nestes dois dias todas as religiões [isto é, todos os representantes da Igreja Católica no Rio de Janeiro] a celebrar neste Mosteiro missas pela sua alma, penetrados de um justo sentimento pela falta que haviam de experimentar de um bispo a quem sempre acharam pronto para conferir as ordens a todos os seus indivíduos (Dietário, 1927, p.175).

Distinção e sepultamentos andavam de braços dados. No mosteiro, os ritos fúnebres serviam para manutenção das relações entre os beneditinos e outros representantes do clero e dos 'principais da terra', sobretudo quando o morto possuía status considerado mais elevado dentro da ordem, pois isso atraía mais gente, trazendo mais prestígio para a comunidade.

Crenças no além

O ponto culminante de uma narrativa hagiográfica é a aceitação do santo nos céus. Sua alma, segundo os relatos, adentra o paraíso antes mesmo da chegada do Juízo Final. As actas sanctorum estão repletas de descrições da crença nas elevações das almas dos santos que são recebidas por toda a corte celeste com grande pompa. Na hagiografia de são Bento não é diferente, pois, além de ter tido fim almejado por todo cristão, como fazem questão de destacar os monges, teve também pelo menos duas visões a respeito desse tema. Na primeira, Bento de Núrsia teria visto a alma de sua irmã, santa Escolástica, "desprendida de seu corpo, penetrar em forma de pomba nas regiões celestiais" (Gregório Magno, 2003, p.113). Na segunda, teria presenciado a alma de Germano, bispo de Cápua, sendo levada por anjos em uma enorme bola de fogo (p.115). Essas duas passagens da vida do patriarca foram contadas e lidas nas comunidades monásticas durante séculos e representadas de diversas formas pictóricas. No próprio mosteiro do Rio de Janeiro existe uma pintura representando a elevação da alma de santa Escolástica. Quantos monges não tiveram a possibilidade de refletir sobre a ascensão aos céus ao observá-la? Talvez tenham refletido também ao observar as pinturas que frei Ricardo do Pilar fez para o forro da capela-mor. Além do já citado painel sobre a morte de são Jócio, frei Ricardo pintou, em 1684, a elevação de duas santas beneditinas: santa Mectildes e santa Gertrudes. Ambas são mostradas aos céus amparadas por Cristo e por Nossa Senhora, e rodeadas por anjos.

Segundo nossa interpretação, metade dos quadros pintados no forro servia à passagem da regra que exorta o monge a ter a morte sempre por perto. A mais importante representação pictórica da elevação de um santo é, contudo, a do próprio são Bento - patriarca da ordem.

No mosteiro em questão, existem pelo menos dois painéis que mostram o passamento de são Bento. Num deles, o mais detalhado, que fica no coro, são Bento está rodeado por seus discípulos, recebendo a extrema-unção, enquanto sua alma se desprende do corpo em forma de um pequeno homem que sobe em um feixe de luz. Essa pintura, datada do século XVIII, foi inspirada em uma passagem dos Diálogos de Gregório Magno (2003, p.120) - "e apoiando seus enfraquecidos membros nos braços dos discípulos, permaneceu de pé com as mãos erguidas para o céu, e exalou o último suspiro entre as palavras da oração" -, que completa sua narrativa informando que no mesmo dia dois discípulos de Bento, um no monastério, o outro longe, tiveram a visão de um caminho enfeitado de tapetes que levava ao céu. Perplexos, os religiosos ficaram sabendo por intermédio de um personagem divino que "este é o caminho pelo qual Bento, o amado do Senhor, subiu ao Céu" (p.121). Lendo ou ouvindo histórias como essas e contemplando painéis, os monges criavam expectativas de alcançar o além, assim como fizeram os santos, seus modelos de vida.

A preocupação com o destino da alma foi extremamente acentuada nas determinações tridentinas. Vivendo em uma instituição que, em sua regra, tinha exortações à reflexão sobre a morte, o monge deveria ter, mais do que todos na sociedade, o pensamento voltado para seu último suspiro; ele, dita a regra, deve "desejar a vida eterna com toda cobiça espiritual" (Bento, 2003, p.35) e guardar bem sua alma, pois "quem tiver administrado bem, terá adquirido para si um bom lugar" (p.81). Em que, porém, consistia esse administrar bem?

Na vida bem administrada, segundo a regra, a preocupação com o outro vinha em primeiro lugar; tratava-se, portanto, de uma vida caridosa: "Cuide com toda solicitude dos enfermos, das crianças, dos hóspedes e dos pobres, sabendo, sem dúvida alguma, que deverá prestar contas de todos esses, no dia do juízo" (Bento, 2003, p.81). Exemplo dessa vida modelar vemos no dietário de frei Pascoal de Santo Estevão que era "caritativo com enfermos e escravos", por isso se "apartou do mundo de forma tranquila" em 1740, com oitenta anos de idade. O citado pintor frei Ricardo do Pilar aparece no Dietário (1927, p.142) como o ideal da ação caridosa e abnegada.

Nunca vestiu camisa; e o seu sustento nestes últimos anos não passava de uns mal guisados legumes; sustentando com sua ração um preso da cadeia com licença dos prelados; e com a mesma distribuía os seus provimentos pelos pobres, contentando-se com um velho e pobre hábito para lhe cobrir as carnes.

O grande administrador do mosteiro era o abade. Cabia-lhe, entre outras responsabilidades, cuidar das almas de suas ovelhas. A regra é bem direta quanto a isso.

E saiba que coisa difícil e árdua recebeu: reger as almas e servir aos temperamentos de muitos ... Antes de tudo, que não trate com mais solicitude das coisas transitórias, terrenas e caducas, negligenciando ou tendo em pouco a salvação das almas que lhe foram confiadas, mas pense sempre que recebeu almas a dirigir, das quais deverá também prestar contas (Dietário, 1927, p.29).

No Dietário, os grandes feitos dos abades estão associados mais aos engrandecimentos do patrimônio do mosteiro e de suas construções do que propriamente ao zelo pelas condutas dos governados. Apesar disso, os abades tinham suas devoções particulares e, ao promovê-las, acabavam por garantir, de certa forma, proteção para toda a comunidade.

A devoção aos santos era, antes de tudo, uma forma de garantir auxiliares divinos para a intercessão junto a Deus no momento da morte. Essa crença vem de longa tradição cristã ligada ao enterramento junto às relíquias dos primeiros mártires. Quanto a essa temática, Sofia Boesch Gajano (2002, p.452) destacou a importância da crença, "garantia de uma proteção sempre 'disponível' contra as calamidades, as doenças, os perigos que podem ameaçar os indivíduos ou a coletividade, e, ao mesmo tempo, uma garantia de salvação para as almas dos defuntos enterrados 'junto aos santos'".

Seguindo essa crença, os monges que não foram enterrados no claustro, foram colocados junto aos representantes de suas devoções particulares. Não que isso significasse ser enterrado próximo a uma relíquia, mas as capelas laterais da igreja cumpriam o papel de aproximar o morto do espaço do santo, como no caso de frei Mateus da Encarnação Pina, enterrado na capela de santa Gertrudes.

O mesmo ocorreu com frei Francisco de São José, falecido em 1771, com setenta anos de idade. Natural de Valença do Minho, região do Porto, era grande devoto de Nossa Senhora da Conceição, em cuja capela foi enterrado. É interessante notar que Nossa Senhora da Conceição era o antigo título do mosteiro, antes de ser substituído por Nossa Senhora de Monserrate. A devoção de frei Francisco a essa invocação da Virgem já deveria existir antes de sua vinda para o Brasil. Frei Francisco, quando foi abade do mosteiro do Rio de Janeiro, entre 1747 e 1748, ressaltou sua devoção ao mandar vir de Portugal "uma imagem nova da Senhora da Conceição feita e acabada no último primor, e outra mais pequena para as procissões, que uma e outra importaram em mais de duzentos e vinte mil réis" (Estados..., 1747, fl.190). Além disso, o monge dedicou-se a concluir os melhoramentos da capela a ela consagrada. Talvez, ele mesmo tenha pedido aos irmãos para ser enterrado ali.

Quando a data da morte de um monge coincidia com o dia da comemoração de uma devoção particular que o finado praticara ou quando era pelo menos próxima, isso era interpretado pela comunidade como bons augúrios para sua alma. Era, enfim, uma boa data para morrer. Podemos apontar esta passagem do dietário de frei Miguel dos Anjos, que "perdeu a vida no dia 7 de maio de 1752 na véspera da Aparição do Arcanjo São Miguel de que era particular devoto" (Dietário, 1927, p.172).

Exemplo mais claro dessas aproximações cronológicas como bom sinal, vemos na oração feita por frei Mateus da Encarnação Pina em memória de seu mestre frei José da Natividade, em 10 de abril de 1714:

Completou a vida no dia de ontem, que a Igreja consagra aos prazeres da Mãe de Deus. Seria acaso, mas é fausta felicidade, que o dia de morrer fosse dia de Prazeres. Como era devotíssimo da Mãe de Deus, quis a Senhora indicar, que para o fazer participante dos eternos gostos, o levara em dia de seus Prazeres. No mesmo dia celebrava a Igreja Católica a Encarnação do Filho de Deus nas entranhas puríssimas da Virgem Senhora Nossa: e que dia mais felizmente auspiciado para morrer que o consagrado à Encarnação do Verbo? (Sermam..., 1719, f.34).

Segundo a lógica de frei Matheus, o dia da morte de frei José era bom, sobretudo, porque era um dia em que não

só se abriram as portas do Céu para descer com toda sua pompa o Embaixador do Empíreo, mas também um dia, em que os mesmos Céus se romperam, para se abrirem maiores portas pelas quais coubesse a imensa majestade do Rei. Da glória que por elas saía, para descer ao mundo. Em nenhum dia se estiveram as portas do Céu tão abertas, nem por tão largo tempo ... Tão boa ocasião para entrar no Céu, quem a perderia? Em dia de tanta misericórdia, como faltaria o perdão? (Sermam..., 1719, f.34).

Essa ruptura dos céus descrita por frei Matheus está de acordo com todo um conjunto de crenças e descrições detalhadas, sobretudo pictóricas, que caracterizam o período que foi denominado barroco. Jean Delumeau (2003, p.33) captou muito bem essas características intitulando um capítulo de seu livro dedicado à crença no paraíso "As nuvens se rasgam". De acordo com os fieis, os céus se abrem e, às vezes, possuem uma escada celeste para ajudá-los a subir. Segundo Delumeau (p.354-370), o tema da escada celeste possui duas significações - uma moral e outra escatológica.

Ao tratar da virtude da humildade, são Bento (2003, p.43) exorta os irmãos a erguer uma escada pela ascensão dos atos e faz uma analogia com a escada que Jacó viu em sonho. A escada de são Bento possuía 12 degraus que correspondem aos graus de humildade que um monge deveria ter para subir aos céus. Séculos depois, são Bernardo recuperou a exortação de são Bento em seu De gradibus humilitatis (Os degraus da humildade).

Olhando para o forro da capela-mor da igreja beneditina do Rio de Janeiro, os monges podiam admirar as nuvens se rasgando e os seres celestes. Podiam ver também, na representação da aparição de Nossa Senhora a são Romualdo, a pintura de uma escada no estilo da de Jacó. Podiam, enfim, sonhar em subir aos céus.

Enterrando os outros

Em Casa-grande e senzala, Gilberto Freyre (2000, p.490) chamou a atenção para o costume colonial, sobretudo em áreas rurais, de enterrar os senhores e as pessoas da família praticamente dentro das casas, em capelas particulares contíguas à habitação patriarcal. Todavia, esse costume apontado por Freyre convivia com outro mais frequente em áreas urbanas - o de enterrar os 'principais da terra' nos mais destacados locais dos interiores das igrejas. Na igreja do Mosteiro de São Bento do Rio de Janeiro, foram enterrados muitos senhores da região. Como assinalou João José Reis (1991, p.171), acreditava-se que "a igreja era uma das portas de entrada do Paraíso". As Constituições primeiras do arcebispado da Bahia reforçaram a prática de os templos católicos serem locais ideais para os enterramentos, pois:

como são lugares a que todos os fiéis concorrem para ouvir e assistir a missas e Ofícios Divinos e Orações, tendo à vista as sepulturas se lembrarão de encomendar a Deus nosso Senhor as almas dos ditos defuntos, especialmente dos seus, para que mais cedo sejam livres das penas do Purgatório, e se não esquecerão da morte (Vide, 2007, p.295).

Como destaca Reis (1991, p.174), no interior da igreja existia diferenciação dos locais de sepultamento. No sentido de distinguir quem teria sepultura em lugar privilegiado dentro da igreja, a Primeira constituição da ordem de são Bento no Brasil é bem específica, ordenando "não deixar enterrar das grades para dentro senão pessoas graves, e que o mereçam" (Constitutiones..., 1629, cap.IV). Reis (1991, p.176) explica que "a expressão das grades para dentro significa além das grades que separam o corpo da igreja do espaço próximo ao altar .... Ser enterrado além das grades representava o privilégio de ficar mais perto dos santos de devoção ou mesmo de Cristo". No Livro de assentamentos de batizados, casamentos e sepultamentos do Mosteiro de São Bento, entre 1765 e 1813, do total de 1.109 enterramentos, contabilizamos 105 'das grades para dentro', asseverando, assim, a distinção de tal espaço.

Existia no mosteiro uma 'economia de dádivas' envolvendo os ritos fúnebres e as doações dos grandes senhores, prática que remonta à Idade Média. Doavam-se terras e bens em troca de um 'enterro decente' em um local sagrado. Na igreja do mosteiro destacam-se duas sepulturas na nave, ambas com lajes brasonadas. Suas inscrições explicitam essa prática: "Sepultura da doadora Da. Vitoria de Sá - Falleceo aos 26 de agosto de 1667" e "Sepultura do doador Diogo de Brito de Lacerda e seus herdeiros". A primeira, sobrinha de Estácio de Sá, foi responsável pela doação ao mosteiro das terras no limite do que hoje é o bairro de Jacarepaguá, e o segundo é ninguém menos do que o responsável pela doação do terreno em que está o mosteiro. Seus túmulos perpétuos fazem parte de uma cadeia de reciprocidades.

Os testamentos de doadores enfatizavam certas exigências de natureza performática, o que fica patente nas escrituras. Em 1746, Esméria Pereyra de Lemos, viúva de Domingos Ferreira Moniz, doou ao mosteiro "terras na ponta de São Gonçalo com casas, barcos, negros e benfeitorias". Doou ainda vários talheres de prata, um crucifixo e uma cruz de ouro cravejada com 16 diamantes, três pares de brincos e uma corrente também do nobre metal, além de 13 escravos, seis homens, seis mulheres e uma criança. Esméria afirmava que já dera um moleque barbeiro para frei Francisco de São José, que governava o mosteiro naquele período. Ela exigia que os monges envolvessem seu corpo com o hábito beneditino e lhe dessem sepultura perpétua em uma das capelas; queria também muitas missas. Para finalizar, pedia a repartição de 12$000 entre os pobres no dia de seu falecimento (Segundo livro..., 1981, p.165). A doadora esforçava-se por demonstrar ser 'boa cristã'. Filha de João Rodrigues de Andrade com a parda Maria Mendes, ela era cristã-nova e como tal foi presa no Rio de Janeiro, em 1714, pelo Tribunal do Santo Ofício da Inquisição de Lisboa, saindo em auto de fé no dia 20 de fevereiro de 1716 (Gorenstein, 2005, p.437). Como provavelmente outros doadores, Esméria tinha 'uma mácula'. Seu caso, não obstante alguma peculiaridade, indica a permanência de determinado comportamento dos vassalos em relação aos vínculos com o mosteiro.

Em 30 de janeiro de 1747, os religiosos se apossaram dos bens doados por Esméria. A mulher que saiu sentenciada em auto de fé, mas que doou metais preciosos, terras e escravos, foi enterrada na igreja do mosteiro, na capela de santo Amaro, em 11 de maio de 1751 - um enterro considerado honrado.

Na América portuguesa todos almejavam um bom passamento. Cláudia Rodrigues (2005), pesquisando o processo de secularização da morte no Rio de Janeiro entre os séculos XVIII e XIX, apontou na freguesia do Santíssimo Sacramento altos índices no cumprimento das determinações eclesiásticas a respeito da morte. Segundo a historiadora, os indivíduos buscavam os sacramentos, adotavam os ritos católicos e, sobretudo, testavam.

Os testamentos guardados no arquivo do mosteiro mostram as preocupações dos fiéis em organizar sua derradeira partida sob a égide do patriarca são Bento, entregando a responsabilidade do enterro aos especialistas no assunto - os monges. Em um dos mais antigos, de 1616, Francisco Jacome pede que seus parentes "mandem amortalhá-lo no hábito da dita ordem" e o "enterrem no dito mosteiro" (Testamento..., 1616). Às vezes, curiosas combinações de devoções aconteciam. Antônio Pimentel, testando em 1711, pedia que seu corpo fosse sepultado na igreja de são Bento, na capela da Irmandade de Nossa Senhora do Pilar, da qual era provedor; queria, no entanto, ser amortalhado no "hábito de Santo Antônio" (Testamento..., 1711). A crença era a de que múltiplas devoções podiam garantir múltiplas proteções no além. Isso explica a presença de diferentes intercessores nos testamentos.

Em 7 de maio de 1744, Francisco Viegas Leitão, filho do capitão Cristóvão de Leitão, homem influente no Rio de Janeiro e irmão do beneditino frei Cristóvão de Cristo, informava em seu testamento não querer muita pompa em seu enterro, por ser um grande pecador, mas, por isso mesmo, pedia que na igreja de são Bento rezassem por sua alma quatrocentas missas com responsos sobre sua sepultura e que não se esquecessem de rezar cinquenta missas pelas almas de seus escravos na freguesia de Iguaçu (Testamento..., 1744). Francisco exigia que seu corpo fosse sepultado na igreja do mosteiro, na capela de são Cristóvão, onde seus pais possuíam sepultura perpétua.

Os vínculos dos beneditinos com as autoridades leigas e religiosas eram expostos, principalmente, no enterro dessas autoridades. Enterros em que se faziam presente os indivíduos mais importantes da região fluminense, como o do governador do Rio de Janeiro, Gomes Freire de Andrade, conde de Bobadela. Quando morreu, no primeiro dia de 1763, os beneditinos foram a seu palácio, onde estava seu corpo, para cantar-lhe um responsório. Gomes Freire foi enterrado no Rio, na capela do convento de santa Teresa. As exéquias solenes foram feitas na igreja do mosteiro, no dia 22 do mesmo mês. Nessa ocasião, quem cantou a missa pontifical foi o abade, frei Antônio de Santa Catarina Costa, e a recitação da oração fúnebre ficou a cargo de frei Gaspar da Madre de Deus.

Mas não só membros da elite eram enterrados no mosteiro e seus arredores. Os escravos também tiveram seus espaços post mortem. Gilberto Freyre (2000) acusou, em Casa-grande e senzala, os padres e as misericórdias de não terem cumprido rigorosamente seu dever de enterrar os mortos. Usando exemplo tirado da viajante Maria Graham, que durante sua estada no Brasil viu corpos de negros boiando nas marés, Freyre (p.491) concluiu que "muitos negros foram enterrados na beira da praia: mas em sepulturas rasas, onde os cachorros quase sem esforço achavam o que roer e os urubus o que pinicar". Não teriam, portanto, um enterro nos moldes cristãos.

Mariza de Carvalho Soares (2000, p.144) informa que mesmo as irmandades de negros, para as quais dar enterro cristão a seus irmãos era um dos objetivos principais, abandonavam cadáveres quando não dispunham de recursos suficientes. Ao analisar o Livro de óbitos de escravos da freguesia da Candelária, entre 1724 e 1736, a autora encontrou apenas três enterramentos feitos no Mosteiro de São Bento. Acreditamos que o número de enterros tenha sido bem maior do que o contabilizado nesse documento, pois, além de se referir a um curto período, não deve ter levado em conta a contabilidade feita no próprio mosteiro. No já citado livro de assentamentos do arquivo do mosteiro, na parte que trata dos óbitos, existem divisões por localidade de sepultamento na igreja: 561 indivíduos foram enterrados 'das grades para fora', sendo 162 escravos. No pórtico, lugar ainda mais afastado dos altares, foram enterrados 523 indivíduos, sendo 460 escravos. Há, na distribuição das sepulturas, nítida hierarquia dos espaços distinguindo os ocupantes. O maior número de escravos se encontra sepultado no local mais afastado da capela-mor, de menor prestígio nas hierarquias espaciais.

No livro de assentamentos aparecem também enterros de escravos cujos corpos foram largados ao relento por seus donos. "Em 20 de abril de 1790 enterrou-se nesta sepultura um negro que já se achou morto na praia" (Livro..., 1765-1813, p.142). As fazendas pertencentes ao mosteiro também enviavam os corpos de seus escravos. "Em 25 de julho de 1768 se enterrou nesta sepultura uma mulatinha de nossa fazenda de Camorim chamada Anna" (p.75); "Em 18 de abril de 1777 foi sepultada a escrava Florinda de Camorim" (p.73). Os monges tentavam assim cumprir o que ditava a regra de são Bento, em seu quarto capítulo, que determina os instrumentos das boas obras, sendo o décimo sétimo deles sepultar os mortos (p.33). Analisando esse documento, porém, notamos que a maioria dos escravos defuntos era enviada por senhores da região. "Em 13 de janeiro de 1765 se enterrou nesta sepultura um escravo de D. Isabel chamado João" (p.132). Os senhores agiam assim principalmente por medo de excomunhão. De acordo com as Constituições primeiras do arcebispado da Bahia, os senhores incorreriam em penas graves se insistissem em "enterrar os seus escravos no campo, como se fossem brutos animais" (Vide, 2007, p.295-296). Reforçando essas determinações, o bispo do Rio de Janeiro, dom Antônio do Desterro, emitiu cartas pastorais em 1754 e 1765. Com relativo espaçamento temporal, tal iniciativa da autoridade eclesiástica mais importante da capitania demonstra que a prática dos senhores em relação a seus escravos se repetia. Em uma sociedade escravista que tinha preceitos católicos como pilares, a situação de cadáveres insepultos era inaceitável.

Considerações finais

Desdobramentos e interações em torno de doenças e mortes constituem instigante objeto para a história social. Nesse sentido, dois pontos merecem destaque. O primeiro é a percepção de que a longevidade dos monges pode expor uma questão não salientada nos estudos que abarcam as hierarquias na sociedade luso-brasileira do período analisado. Estudos que desconsideram as diferenciações por faixa etária. Há distinção no pertencimento a uma comunidade cujos membros comumente morriam em idade avançada em comparação com a expectativa de vida da população geral. 'Venerável', na cultura católica, diz respeito aos religiosos que morrem com 'opinião de santidade', mas concomitantemente é palavra empregada para designar os mais idosos de uma comunidade, constituindo uma qualidade. Os conventos e mosteiros na sociedade colonial concentravam os homens mais velhos das cidades. Eram, portanto, locais que se destacavam por valores como a antiguidade e a sapiência de seus membros, o que a documentação geralmente salienta de maneira individual.

O segundo ponto é a demonstração de que os ritos em torno dos sepultamentos, repetindo um comportamento medieval, ocupavam lugar fulcral nos ofícios dos monges. Esses ritos geravam oportunidades de manutenção dos vínculos dos religiosos com o restante da sociedade e possibilitavam a revitalização da coesão entre os membros da comunidade, assegurando importante reputação identitária para os beneditinos - o cuidar dos mortos. Mesmo em uma pequena comunidade, como a monástica, presente na cidade do Rio de Janeiro, a hie-rarquização regida por lógicas de Antigo Regime ganham vulto quando observamos as maneiras como se morria e como transcorriam os hábitos funerários que tinham como modelos práticas e representações centenárias oriundas de Portugal. No entanto, em uma sociedade escra-vista, como a do Brasil colônia, os monges enterraram também proprietários de engenhos e escravos, novos personagens em uma prática tradicional.

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  • VIDE, Dom Monteiro Sebastião da. Constituições primeiras do arcebispado da Bahia. Brasília: Edições do Senado Federal. 2007.
  • 1
    Sobre a invenção do purgatório, ver Le Goff (2001).
  • 2
    Viaticum em latim significa a provisão para a última viagem.
  • 3
    Acólito é o nome que se dá ao colaborador que porta as velas e transporta a água e o vinho nos ofícios.
  • 4
    O Kýrie Eléison é oração de origem grega muito antiga e significa, grosso modo, "Senhor tende piedade de nós".
  • 5
    'Lição' é um trecho da sagrada escritura lida no ofício ou na missa. Também podem ser usados trechos tirados dos textos dos padres da Igreja ou vidas de santos.
  • 6
    "Que os anjos te recebam no paraíso; à tua chegada, que os mártires te acolham e te levem para a cidade Santa de Jerusalém. Quando Israel saiu do Egito, a casa de Jacó deixou um povo bárbaro".
  • 7
    "Lembra-se de mim, ó Deus, porque minha vida não passa de um sopro. E o olhar dos homens nem sequer me percebe. Do fundo do abismo, clamo a ti, Senhor, Senhor, ou meu apelo".
  • 8
    Chantre é o cônego, monge ou outro responsável pelo canto em um mosteiro ou catedral.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    abr-jun 2013

Histórico

  • Recebido
    Jul 2011
  • Aceito
    Fev 2012
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