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Olhares sobre Alexandre Koyré, historiador e filósofo do pensamento científico

Perspectives on Alexandre Koyré, historian and philosopher of scientific thought

Alexandre Koyré:. história e filosofia das ciências. SALOMON, Marlon. CONDÉ. Mauro Lúcio Leitão. . Belo Horizonte: Fino Traço, 2015. 292p.

Quando as vicissitudes do tempo permitem uma vida relativamente longa de um autor singular e enérgico, quando o devir não é absolutamente adverso à sua obra e nela o interesse não se perde, as datas comemorativas se tornam uma conveniente ocasião para revisitá-la. Em 2014, completaram-se 50 anos desde que Alexandre Koyré cessou de trabalhar e também de viver. Foi aproveitando o momento para discutir não o término, mas a vitalidade de um pensamento peculiar, que foram realizados dois eventos, naquele mesmo ano, o terceiro Colóquio de História e Filosofia da Ciência [Alexandre Koyré], na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), e o Colóquio Koyré, na Universidade Federal de Goiás (UFG). Como fruto desse esforço, eis que, um ano depois, apresenta-se a nós o livro organizado por Marlon Salomon e Mauro Lúcio Leitão Condé.

Embora seja certo que a obra de Koyré não se resume à reflexão acerca do pensamento científico e sua história, alerta ali frequentemente dado ao leitor, a coletânea de textos sobre o autor francês de origem russa assenta-se principalmente sobre o domínio pelo qual ele se tornou leitura obrigatória. Ela reúne trabalhos a respeito de diferentes elementos da obra koyreana referente à história do pensamento científico, trabalhos pelos quais é possível ver a complexidade e profundidade de sua perspectiva e, assim, a pertinência de estudos que a tomem como objeto.

No entanto, antes das análises historiográficas, no primeiro capítulo do livro, o leitor tem o privilégio de se deparar com uma tradução de “Copérnico,” texto do próprio Koyré, publicado em 1934. O lugar ocupado na coletânea, de fato, é bastante apropriado. O texto em questão marca o início dos estudos de Alexandre Koyré voltados preferencialmente para a história do pensamento científico. Nele já se torna possível entrever traços característicos do autor em questão, alguns dos quais são abordados nos capítulos posteriores, como a exigência teórica e metodológica de analisar as teorias científicas do passado à luz de sua própria estrutura conceitual, a concepção da unidade do pensamento humano1 1 Para Koyré, as “formas mais elevadas” do pensamento humano - filosofia, ciência e teologia - se entrecruzam. Não se pode separá-las “em compartimentos estanques” (Koyré, 1973, p.12). Copérnico, Kepler, Galileu e Descartes, por exemplo, não lidavam com questões apenas científicas, mas metafísicas e religiosas. e o período a que, a partir da década de 1930, direcionou seus estudos majoritariamente: os séculos XVI e XVII, momento da “revolução científica” iniciada por Copérnico.2 2 Para Koyré, a dita “revolução” foi preparada por um “longo e penoso trabalho do espírito” (Koyré, 1992, p.203), ou seja, não foi feita de uma só vez.

Apesar de os dez capítulos que se seguem não contemplarem um mesmo ponto de vista e aspecto dos trabalhos koyreanos, o que dificulta uma apresentação acurada, poderíamos separá-los em quatro grupos.

O primeiro grupo de autores oferece ao leitor uma análise direcionada específicamente ao trabalho de Alexandre Koyré, destacando seus traços de novidade essencial, apontando preceitos e implicações. Marlon Salomon analisa a novidade teórica e metodológica de sua concepção de história, sublinhada por muitos autores, embora pouco aprofundada. Por meio da precisão das ideias de “presente” e “atualidade” em Koyré, e seus papéis no trabalho desse autor, é possível entender a importância e originalidade atribuída por Pietro Redondi ao método historiográfico koyreano. Gérard Jorland completa a análise dos traços marcantes daquele autor, discorrendo sobre o conceito de “revolução científica” e a empatia fenomenológica. Ao leitor é exposta a tese do livro que se tornou referência indispensável nos estudos sobre Koyré.3 3 Referimo-nos ao livro La science dans la philosophie, publicado em 1981.

O segundo grupo discorre sobre certas propostas e conceitos atribuídos a Koyré, tendo em vista sua aplicação em seu próprio trabalho. Verônica Calazans retoma a supracitada metodologia historiográfica, analisando-a em sua interpretação acerca das relações entre as teorias de Newton e Descartes. Patrícia Kauark-Leite discorre sobre a postura filosófica de Koyré, entre os conceitos clássicos de “realismo” e “historicismo”, asseverando sua admissão ao que poderíamos denominar “realismo historicista”, à maneira de Bas van Fraassen.

O terceiro grupo oferece ao leitor a oportunidade de se inteirar sobre as interpretações recorrentes da obra koyreana, ao mesmo tempo que também chama a atenção para as classificações superficiais e os reducionismos. Francismary Silva, Eduardo Barra e Luiz Abrahão constroem suas análises a partir do que foi admitido como o legado koyreano, revisitando a célebre etiqueta de “internalista”,4 4 Trata-se da concepção, sintetizada por Condé, “de que a ciência encontra suas justificativas nela mesma, independente de influências de contextos sociais” (p.238). posta em Alexandre Koyré, e a tese da “dívida intelectual” de Thomas Kuhn e Paul Feyerabend, em relação a noções e posturas do historiador e filósofo francês.

O quarto grupo apresenta interessantes análises dos trabalhos de Koyré ao lado de alguns de seus contemporâneos como Hélène Metzger, Gaston Bachelard e Ludwig Wittgenstein. Ronei Mocellin expõe a possibilidade de um diálogo conceitual entre Metzger e Koyré, demonstrando semelhanças - como seus métodos historiográficos, a dedicação de ambos a uma história do pensamento - e também diferenças - como o modo de conceber a ideia de unidade do pensamento. Fábio Almeida, embora não deixando de frisar a individualidade dos autores, situa Bachelard e Koyré em um mesmo espaço, aquele inaugurado pela filosofia de Husserl na episteme moderna. A entrada da fenomenologia husserliana na França da década de 1930 significou a “entrada da ideia na história”, que, na hipótese de Almeida, “está na origem dos trabalhos de Bachelard, Koyré e outros” (p.194). Por fim, Mauro Lúcio Leitão Condé empreende uma análise de Koyré ao lado de um autor inusitado. Condé apresenta a possiblidade de reconsiderar o internalismo de Koyré a partir do segundo Wittgenstein, “superando os seus aspectos negativos e o requalificando para que ele possa ser entendido como a afirmação da autonomia da ciência e não o isolamento entre ciência e sociedade” (p.240).

Por vezes, ao término das muitas resenhas que elaborou, Koyré destacava a fragilidade de um empreendimento que propõe apresentar uma obra multifacetada sem dispensar o caráter da brevidade. De fato, ele tinha razão. Expor o resumo do conteúdo de Alexandre Koyré: história e filosofia das ciências não foi nossa pretensão, mas oferecer uma pequena amostra desse livro que, entre os escassos trabalhos publicados aqui no Brasil, aborda um autor cuja importância - reconhecida por Michel Foucault, Raymond Aron, Marshall Clagett, Georges Canguilhem, Thomas Kuhn e tantos outros - não se pode prescindir de reafirmar.

NOTAS

  • 1
    Para Koyré, as “formas mais elevadas” do pensamento humano - filosofia, ciência e teologia - se entrecruzam. Não se pode separá-las “em compartimentos estanques” (Koyré, 1973KOYRÉ, Alexandre. Orientation et projets de recherches. In: Koiré, Alexandre. Études d'histoire de la pensée scientifique. Paris: Gallimard. 1973., p.12). Copérnico, Kepler, Galileu e Descartes, por exemplo, não lidavam com questões apenas científicas, mas metafísicas e religiosas.
  • 2
    Para Koyré, a dita “revolução” foi preparada por um “longo e penoso trabalho do espírito” (Koyré, 1992KOYRÉ, Alexandre. Estudos galilaicos. Trad. Nuno Ferreira da Fonseca. Lisboa: Publicações Dom Quixote. 1992., p.203), ou seja, não foi feita de uma só vez.
  • 3
    Referimo-nos ao livro La science dans la philosophie, publicado em 1981.
  • 4
    Trata-se da concepção, sintetizada por Condé, “de que a ciência encontra suas justificativas nela mesma, independente de influências de contextos sociais” (p.238).

REFERÊNCIAS

  • KOYRÉ, Alexandre. Estudos galilaicos. Trad. Nuno Ferreira da Fonseca. Lisboa: Publicações Dom Quixote. 1992.
  • KOYRÉ, Alexandre. Orientation et projets de recherches. In: Koiré, Alexandre. Études d'histoire de la pensée scientifique. Paris: Gallimard. 1973.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jul-Sep 2017
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