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O poder da história

The power of history

BOUCHERON, Patrick. Ce que peut l'histoire. Paris: Fayard, 2016. 72p.

Paris. 28 de novembro de 1985. Collège de France.

Ouvintes entusiasmados aguardam apreensivos a chegada de Georges Duby para a segunda sessão de seu seminário solene. A primeira sessão ocorrera na quinta-feira anterior, no dia 21. A Idade Média era seu objeto e abundante assunto. Historiadores ou não reputavam o professor Duby como a encarnação e síntese do que havia de melhor da Escola dos Annales. Suas habilidades de orador impressionavam. Seus dotes literários também. A sala estava cheia naquele dia 28. O mestre de cerimônias, costumeiro no Collège de France, anunciou a sua chegada. Entretanto, inabitualmente, ele tardou a entrar. Quando apareceu, parecia absorto. Distante. E não nos séculos de sua predileção - o XII, XIII e mesmo o XIV. Menos ainda em cavaleiros, armaduras, monges ou santos. Num repente, ele começou a revelar o que tanto o desconsertava. Hesitante e macambúzio, o autor de Guilherme Marechal confiaria aos seus auditores que acabara de saber que Fernand Braudel (1902-1985) morrera no dia anterior.

Patrick Boucheron presenciou a cena. Era um dos seguidores daquele seminário do mestre Duby. Tinha vinte anos de idade. Vinha de ingressar, em primeiro lugar, na prestigiada École Normale Supérieure de Saint-Cloud. Aspirava ao ofício de historiador. E, diante daquela revelação de Georges Duby, começou a imaginar que talvez já fosse tarde para abraçar o métier. Como os demais historiadores, antigos e recentes ou aspirantes, pouco a pouco, ele foi se descobrindo órfão do mestre maior da historiografia francesa daquela quadra de século. Mas aos poucos Boucheron repensou a circunstância. Sopesou a situação. Seguiu seu caminho. Ingressou, no ano seguinte, 1986, na Université Paris 1 Panthéon-Sorbonne. Em 1994 sairia doutorado especializado em história medieval. Seu nicho de interesse ganhou a Itália. Mais precisamente ao norte, as ruas e praças de Milão. Sempre com o foco no poder, na política, no sistema. Maquiavel e seus contemporâneos viraram seu objeto de obsessão. Nos anos seguintes ele começaria a ganhar notabilidade - discreta, mas progressiva - pela agudeza de suas abordagens e pelo prolífero de suas publicações. O público especializado foi sucumbindo à sua excelência. Le pouvoir de bâtir: urbanisme et politique édilitaire à Milan, XIVe-XVe siècles (Boucheron, 1998BOUCHERON, Patrick. Le pouvoir de bâtir: urbanisme et politique édilitaire à Milan, XIVe-XVe siècles. Roma: École Française de Rome. 1998.) não passou sem se notar. Religion et société urbaine au Moyen Âge: études offertes à Jean-Louis Biget par ses élèves (Boucheron, 2000BOUCHERON, Patrick. Religion et société urbaine au Moyen Âge: études offertes à Jean-Louis Biget par ses élèves. Paris: Publications de la Sorbonne. 2000.) e Léonard et Machiavel (Boucheron, 2008BOUCHERON, Patrick. Léonard et Machiavel. Lagrasse: Verdier. 2008.), para ficar apenas em alguns, também não. Mas foi certamente Histoire du monde au XVe siècle (Boucheron, 2009BOUCHERON, Patrick. Histoire du monde au XVe siècle. Paris: Fayard. 2009.) que ampliaria a recepção de Patrick Boucheron dentro e fora dos meios especializados. Histoire mondiale du monde (Boucheron, 2017BOUCHERON, Patrick. Histoire mondiale du monde. Paris: Seuil. 2017.), que reúne mais de cem historiadores na desmitificação da história de seu país, virou um verdadeiro bestseller, com aproximados cem mil exemplares vendidos em poucos meses.

Vinte anos após o início hesitante e desesperançado em 1985, Patrick Boucheron deviera, portanto, um historiador respeitado e consagrado. A mais alta mostra de sua consagração seria a sua indicação para o Collège de France. Dessa indicação emergiu uma demanda imediata de manifestação inaugural. O resultado dessa manifestação consistiu no ensaio Ce que peut l'histoire. Apresentado como leçon inaugurale, no dia 17 de dezembro de 2015 - cuja cerimônia completa pode ser consultada no sítio do Collège de France1 1 Disponível em: http://www.college-de-france.fr/site/patrick-boucheron/inaugural-lecture-2015-12-17-18h00.htm. -, o texto acaba de ser transformado em livro. E, por certo, não deve tardar a ganhar uma versão em língua portuguesa e demais idiomas. E as razões são vastas.

O núcleo da mensagem de Ce que peut l'histoire reconhece na história instrumentos de combate para resistir ao momento triste e sombrio que nos toca viver neste início de século XXI. Tudo começa no título: Ce que peut l'histoire (O que pode a história).

Ce que peut l'histoire é uma afirmação, e o argumento do livro é propositivo. Seu questionamento - que envolve todo o texto - aduz à reflexão sobre o poder e os limites da disciplina história diante da globalização agudizada após o fim da tensão Leste-Oeste, do terrorismo global explicitado pelos incidentes do 11 de setembro de 2001 nos EUA e mundializado pela guerra ao terror do presidente Bush, da crise financeira mundial de 2008 que segue soterrando pactos sociais e de sociabilidade, das crises ambientais que açambarcam o planeta, das crises humanitárias, políticas e morais que varrem todos os continentes.

O que pode a história (e o historiador) nesse cenário, segundo Patrick Boucheron, é ofertar seu método. Nada mais. Embora o método, em história, seja, como lembra o autor, tudo. Um método que envolve essencialmente erudição e precisão. Erudição e precisão na hierarquização do fluxo da vida. Erudição e precisão que permitem ao historiador e à história tentar pautar o debate público e forjar encorajamento diante das agruras do presente. Erudição e precisão que impõem ao historiador humildade diante da complexidade incomensurável da história e da vida. Erudição e precisão que demandam espírito sempre crítico e engajado contra a injustiça e a dominação.

Essa demanda de engajamento não é recente na história. Mas, por vez, desaparece diante de modismos e momentos de hiperespecialização da disciplina. Na contracorrente, Patrick Boucheron procura avivar certa responsabilidade política da prática do historiador.

No caso francês, em meados do século XIX, Jules Michelet (1798-1874) reconhecia que a história e o historiador deveriam reforçar e legitimar o romance nacional. Em meados do século XX, Fernand Braudel, após vivenciar as guerras totais e o holocausto, julgava imperativo da história e do historiador a recordação permanente da noção de trágico na história. Boucheron, por seu turno, reconhece o trágico, mas acredita que o global venceu o nacional. E, portanto, para ele, o romance nacional dos tempos de Michelet deu lugar à análise do local a partir da perspectiva mundial.

Essa nova perspectiva denota, no entender de Boucheron, a necessidade do retorno à reflexão do método em história, posto que o conjunto das humanidades e ciências humanas e sociais vem se debruçando sobre o estudo do mundial e do global sem, muita vez, explicitar a sua especificidade.

Dito de outra maneira, o retorno ao método é uma forma de se precisar a contribuição da história à análise da complexidade dos objetos históricos contemporâneos e presentes. E, desse modo, somente esse retorno ao método possibilitaria à história e ao historiador manter a sua identidade diante das demais disciplinas e atividades intelectuais - entre elas, o jornalismo e a literatura - que também intentam compreender, reconstituir e explicar a história do tempo presente que nos toca viver.

Esse método, para Boucheron, é envolto, inicialmente, em erudição e precisão. Mas, além disso, ele demanda estratégias de comunicação. Nesse sentido, Boucheron valoriza a narrativa.

Segundo ele, só a narrativa pode moldar e amoldar a sociedade, a memória, os espíritos para resistir aos sentimentos de declínio e desesperança que nos assola neste início de século. Sem o pudor de seus antecessores historiadores no Collège de France, Boucheron admite que a narração da história deve ultrapassar os muros universitários e historiográficos. Deve ser agradável e acessível. E deve chegar ao grande público. Mesmo que para isso utilize instrumentos de linguagem jornalísticos e literários.

Este trinomio - erudição, precisão e narrativa - vai de par com as noções de ética e responsabilidade. Para Boucheron, a história e o historiador precisam estar constantemente engajados na luta contra a injustiça. O poder da história reside justamente em sua capacidade de modificar ou, ao menos, desestabilizar as narrativas que justificam a dominação e a hegemonia do statu quo.

O conjunto dessa discussão política, teórica e metodológica acompanhada de imensa precisão, erudição e gracejo narrativo consta desse magnífico Ce que peut l'histoire. Que, no fundo, representa uma grande provocação. Um grande convite à reflexão sobre história e sobre o tempo presente que nos toca viver.

REFERÊNCIAS

  • BOUCHERON, Patrick. Histoire mondiale du monde. Paris: Seuil. 2017.
  • BOUCHERON, Patrick. Histoire du monde au XVe siècle. Paris: Fayard. 2009.
  • BOUCHERON, Patrick. Léonard et Machiavel. Lagrasse: Verdier. 2008.
  • BOUCHERON, Patrick. Religion et société urbaine au Moyen Âge: études offertes à Jean-Louis Biget par ses élèves. Paris: Publications de la Sorbonne. 2000.
  • BOUCHERON, Patrick. Le pouvoir de bâtir: urbanisme et politique édilitaire à Milan, XIVe-XVe siècles. Roma: École Française de Rome. 1998.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jan-Mar 2018
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