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HIV/Aids,1 1 Apesar de a Unaids (6 abr. 2018) desaconselhar o uso da expressão HIV/Aids, certamente um passo importante para se desvincular dois elementos que são de fato distintos – a infecção pelo vírus e uma síndrome –, mantivemos a expressão no texto porque defendemos que, quando analisada em perspectiva histórica e sociológica, a infecção mobiliza percepções e respostas às quais as duas dimensões estão atreladas. Inclusive é essa imbricação que faz com que preconceitos e estigmas persistam mesmo quando a disponibilidade de terapêuticas eficientes tenha alterado de forma radical os efeitos da presença do vírus no organismo. Do ponto de vista histórico, portanto, falar em HIV significa falar ao mesmo tempo na epidemia à qual ele é associado, não por razões de ordem biológica, mas de ordem social e cultural. Onde julgamos possível dissociar as duas palavras, assim o fizemos. os estigmas e a história

Em abril de 2018, em meio às brumas em que mergulha o Brasil, do arbítrio, da intolerância, do sectarismo, preconceito e autoritarismo, vem a lume mais um número de História, Ciências, Saúde – Manguinhos, com conjunto de trabalhos que mostra o dinamismo da pesquisa em história da medicina e das ciências da vida nos últimos anos. A expressão “vir a lume” ganha conotação sugestiva por insinuar o papel que a divulgação do conhecimento pode e deve assumir na discussão dos rumos da sociedade que queremos ser, com perspectivas de futuro fomentadas por escolhas do presente, feitas a partir de uma administração consciente do passado. Manter o vigor da pesquisa acadêmica é um ato de resistência para um debate claro, aberto e democrático de ideias.

Em meio a tantos retrocessos recentes, o Brasil deu um passo à frente na política de prevenção do HIV com a adoção da chamada PrEP (Profilaxia pré-Exposição), que desde dezembro de 2017 está presente em 36 centros de tratamento de 11 estados brasileiros. É indicada pela Organização Mundial de Saúde desde 2012 a populações mais expostas à infecção, como homens que fazem sexo com homens, população trans e trabalhadores do sexo. A PrEP baseia-se no uso de medicamento antirretroviral, neste caso o Truvada – sozinho ou associado a outros –, por pessoas não infectadas que compõem os segmentos mencionados. Embora esse seja um motivo para se comemorar, não pode nos deixar desatentos com as ameaças que pairam sobre o sistema de tratamento universal e gratuito, como as notícias de problemas na distribuição de medicamentos. A sustentabilidade dos programas de prevenção e a retomada das alianças com a sociedade civil são pontos que merecem atenção em momento de defesa do contingenciamento de recursos e de alinhamento com pautas conservadoras.

A recepção e a divulgação da nova estratégia preventiva evidenciaram, no entanto, a persistência de velhas “metáforas” estigmatizantes que se associaram ao HIV e à Aids desde o seu surgimento, quando ganhou a conotação de “peste gay” (Sontag, 2007SONTAG, Susan. A doença como metáfora: Aids e suas metáforas. São Paulo: Companhia de Bolso. 2007.). Associar a infecção aos gays, caracterizando-os como inclinados à promiscuidade, é o que fez a recente reportagem “A outra pílula azul” publicada na revista Época (Thomaz, 2 abr. 2018THOMAZ, Danilo. A outra pílula azul: o novo medicamento que está fazendo os gays abandonar o uso da camisinha. Época, n.1031, p.34-42. 2 abr. 2018.), ignorando vários resultados acumulados sobre a PrEP, no Brasil e no exterior. O artigo prestou desserviço, ao sugerir que somente os gays deveriam estar atentos à prevenção do HIV e não ressaltar que a PrEP faz parte de uma estratégia preventiva integrada que comporta outras abordagens. Encorajou, com isso, o estigma contra aqueles que contraíram o vírus. O uso da expressão “grupo de risco”, abandonada desde os anos 1990, denota desconhecimento e também preconceito contra a comunidade gay, que luta para se livrar do estigma de “vetor” do vírus.

O subtítulo da matéria da revista Época – “O novo medicamento que está fazendo os gays abandonar [sic] a segurança da camisinha” – já evidencia equívoco e desinformação, uma vez que não existem dados que sustentem essa afirmação. Com base nisso, afirma que os gays estão contribuindo para o aumento de outras infecções sexualmente transmissíveis. A matéria ainda ignora os níveis de segurança relacionados à PrEP (de 99%) e atribui a esta a responsabilidade pelo aumento nos níveis de infectados, quando a adoção muito recente da abordagem não autoriza essa inferência.

O teor sensacionalista do texto e tais equívocos foram devidamente denunciados por indivíduos e instituições comprometidos com o controle do HIV e com a defesa dos direitos LGBT. Além das informações e concepções equivocadas, foi criticado o tom moralista e preconceituoso por meio do qual o texto retratou os homossexuais. Não passou despercebida a afinidade desse tipo de discurso com o avanço do conservadorismo e do fundamentalismo que ocorre no Brasil recente (Abia, 3 abr. 2018ABIA. Associação Brasileira Interdisciplinar de Aids. Matéria “A outra pílula azul” da revista Época é preconceituosa e peca na fundamentação. Disponível em: http://abiaids.org.br/31417/31417. Acesso em: 6 abr. 2018. 3 abr. 2018.
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; Anaids, 2 abr. 2018ANAIDS. Articulação Nacional de Luta contra a Aids. Nota Pública Anaids – Reportagem PrEP, Revista Época. Disponível em: http://www.aids.gov.br/sites/default/files/noticia/2018/65476/nota_revista_epoca_anaids.pdf. Acesso em: 6 abr. 2018. 2 abr. 2018.
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; Brasil, 2 abr. 2018BRASIL. Ministério da Saúde. Departamento de Vigilância, Prevenção e Controle das IST, do HIV/Aids e das Hepatites Virais. À revista Época. Nota de repúdio. Disponível em: http://www.aids.gov.br/pt-br/noticias/revista-epoca. Acesso em 6: abr. 2018. 2 abr. 2018.
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; CRT DST/Aids-SP, 2 abr. 2018CRT DST/AIDS SP. Centro de Referência de Tratamento de DST/Aids-São Paulo. Nota conjunta sobre a reportagem da revista Época sobre PrEP. Disponível em: https://www.facebook.com/notes/crt-dstaids-sp-centro-de-refer%C3%AAncia-e-treinamento-dstaids-sp/nota-conjunta-sobre-a-reportagem-da-revista-%C3%A9poca-sobre-prep/1625077424212219/?fref=mentions. Acesso em: 6 abr. 2018. 2 abr. 2018.
https://www.facebook.com/notes/crt-dstai...
; Foaesp, 2 abr. 2018FOAESP. Fórum das ONGS/Aids do Estado de São Paulo. Nota sobre a reportagem da revista Época. Disponível em: https://www.facebook.com/notes/f%C3%B3rum-das-ongaids-do-estado-de-s%C3%A3o-paulo-foaesp/nota-sobre-a-reportagem-da-revista-%C3%A9poca/971767556317941/?fref=mentions. Acesso em: 6 abr. 2018. 2 abr. 2018.
https://www.facebook.com/notes/f%C3%B3ru...
; INI, 2 abr. 2018INI. Instituto Nacional de Infectologia Evandro Chagas. Nota de repúdio. Disponível em: https://www.ini.fiocruz.br/nota-de-rep%C3%BAdio. Acesso em: 6 abr. 2018. 2 abr. 2018.
https://www.ini.fiocruz.br/nota-de-rep%C...
; Super Indetectável, 2 abr. 2018SUPER INDETECTÁVEL. A Rede Mundial de Pessoas Vivendo e Convivendo com HIV... Disponível em: https://www.facebook.com/SuperIndetectavel/posts/2007015349513437. Acesso em: 6 abr. 2018. 2 abr. 2018.
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; Vasconcelos, 31 mar. 2018VASCONCELOS, Rico. Eu me arrependi de ter dado entrevista à revista Época. Disponível em: https://www.facebook.com/photo.php?fbid=10155426848921444&set=a.110300541443.97182.558291443&type=3&theater. Acesso em: 6 abr. 2018. 31 mar. 2018.
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; Wyllys, 3 abr. 2018WYLLYS, Jean. O desserviço da revista Época para o debate sobre HIV/Aids. Disponível em: https://www.facebook.com/jean.wyllys/photos/a.543112092403469.1073741832.163566147024734/1756683274379672/?type=3&theater. Acesso em: 6 abr. 2018. 3 abr. 2018.
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).

A polêmica suscitada pela PrEP e a reportagem da revista Época nos diz tanto sobre a sociedade em que vivemos atualmente quanto sobre as percepções e os imaginários que o HIV/Aids aciona. Mesmo tendo passado por modificações significativas em sua “configuração” na curta trajetória histórica – de sentença de morte à doença crônica –, ainda permanece responsável por alto índice de óbitos em nível global, por razões como políticas públicas insuficientes, fatores culturais, instabilidade política e pobreza em áreas nas quais a infecção grassa em grandes proporções. Conforme advertiu a Associação Brasileira Interdisciplinar de Aids (Abia, 3 abr. 2018ABIA. Associação Brasileira Interdisciplinar de Aids. Matéria “A outra pílula azul” da revista Época é preconceituosa e peca na fundamentação. Disponível em: http://abiaids.org.br/31417/31417. Acesso em: 6 abr. 2018. 3 abr. 2018.
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), uma política de prevenção eficaz requer estratégias bem elaboradas tanto quanto um ambiente sociocultural favorável, o que significa livre de estigmas, moralismo e desinformação. A adesão ao tratamento, o bem-estar físico e mental dos diagnosticados e sua inserção social ficam mais comprometidos com o reforço do estigma. Isso torna evidente que as doenças, morbidades e infecções não se restringem a investigações laboratoriais, ensaios clínicos, protocolos de diagnóstico, inovações terapêuticas e estudos epidemiológicos restritivos. Quando adquirem um nome e assumem significados, as doenças desdobram signos e percepções culturais arraigadas, manifestando-se nas vidas particulares de indivíduos, que, diagnosticados, adquirem uma outra “cidadania” (Sontag, 2007SONTAG, Susan. A doença como metáfora: Aids e suas metáforas. São Paulo: Companhia de Bolso. 2007.). Comportamentos e identidades são enquadrados e formulados a partir desses atos de definição, dando sequência a processos intrincados e complexos de negociação entre os diversos segmentos direta ou indiretamente associados à doença em questão. Isso levou o eminente historiador da medicina Charles Rosenberg (1992)ROSENBERG, Charles. Framing disease: illness, society and history. In: Rosenberg, Charles. Explaining epidemics and other studies in the history of medicine. Cambridge: Cambridge University Press. p.305-317. 1992. a qualificar as doenças como “atores sociais”, na medida em que, nomeadas e definidas, passam a atuar como fatores estruturantes de circunstâncias sociais. Como mostra a polêmica recente, o processo de negociação não é pacífico, como o termo sugere, mas envolve disputas de sentido, conflitos e oposição de interesses dos vários coletivos que competem por autoridade e legitimidade no discurso sobre a doença.

A controvérsia evidencia as complexas e muitas vezes difíceis interações entre os diversos tipos de conhecimento e demandas acerca do HIV. A “tradução” do conhecimento “autorizado” para o público leigo, ou públicos, visto a heterogeneidade das audiências implicadas nesse discurso, não é uma via linear. Pelo contrário, desde seu surgimento dramático na esfera pública, o HIV e a Aids trouxeram inflexões significativas no modo como os “pacientes” e ativistas participam de definições e enunciados. O discurso científico não foi acolhido de forma passiva. Os componentes morais nele presentes foram explicitados e denunciados por grupos avessos à circunscrição de seus comportamentos pelo dispositivo médico. O caso recente guarda semelhanças com o histórico das epidemias tradicionais, como febre amarela, cólera e peste bubônica, quando em diversos contextos a imprensa contribuiu para acentuar o pânico social e veicular discursos morais acerca da saúde.

A formulação e recepção de medidas de saúde reafirmam atitudes culturais e valores sociais. No caso do HIV/Aids e da PrEP, observa-se a persistência de preconceitos arraigados no imaginário social, a sanha de segmentos sociais hegemônicos por punir grupos e padrões taxados como “anormais”, a responsabilização de comportamentos individuais. As modificações na abordagem da infecção e nas campanhas educativas ainda não promoveram mudanças substantivas nesse sentido. É uma das muitas áreas em que a luta contra a doença deve continuar, enriquecida por decisões positivas como tornar a PrEP acessível no Brasil.

Nas páginas de História, Ciência, Saúde – Manguinhos, os leitores encontram trabalhos que ajudam a pensar sobre o estigma entre os indivíduos diagnosticados com certas patologias, possibilitando aproximações com o HIV/Aids. Também há artigos que refletem sobre o lugar do discurso médico no enquadramento de comportamentos e identidades, incluindo aqueles referidos a sexualidade e papéis de gênero. Nosso periódico também já publicou estudos sobre o lugar do discurso midiático no debate público sobre ciências, doenças e terapêuticas. Não é de hoje que jornais e revistas de grande circulação influenciam as discussões e percepções sobre os dramas sociais, entre os quais as doenças costumam ganhar destaque. Convido-os a visitarem nossas edições de maneira a se municiarem de instrumental crítico para exame dos eventos e processos que nos atingem. É dessa forma que História, Ciências, Saúde – Manguinhos pode cumprir a função de veículo vivo de conhecimento, em vez de acúmulo de escritos cuja visita valeria apenas por interesses estritos de pesquisa. Por ingênua ou datada que possa soar a crença no poder transformador do conhecimento, vale reafirmar a convicção de que ele representa componente seguro para entrevermos na penumbra.

REFERÊNCIAS

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    Apesar de a Unaids (6 abr. 2018)UNAIDS. Terminologia. Disponível em: https://unaids.org.br/terminologia/. Acesso em: 6 abr. 2018.
    https://unaids.org.br/terminologia/...
    desaconselhar o uso da expressão HIV/Aids, certamente um passo importante para se desvincular dois elementos que são de fato distintos – a infecção pelo vírus e uma síndrome –, mantivemos a expressão no texto porque defendemos que, quando analisada em perspectiva histórica e sociológica, a infecção mobiliza percepções e respostas às quais as duas dimensões estão atreladas. Inclusive é essa imbricação que faz com que preconceitos e estigmas persistam mesmo quando a disponibilidade de terapêuticas eficientes tenha alterado de forma radical os efeitos da presença do vírus no organismo. Do ponto de vista histórico, portanto, falar em HIV significa falar ao mesmo tempo na epidemia à qual ele é associado, não por razões de ordem biológica, mas de ordem social e cultural. Onde julgamos possível dissociar as duas palavras, assim o fizemos.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Apr-Jun 2018
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