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A história das ciências e o Qualis Periódicos

Os novos critérios que deverão ser utilizados para o ranking dos periódicos brasileiros – conhecido como Qualis Periódicos – são bastante preocupantes. Especialmente para áreas como a história das ciências. Outras “áreas-irmãs” desta revista, como saúde coletiva – na qual o Brasil é um exemplo e uma inspiração para toda a América Latina – também estão em perigo (Dias, 22 ago. 2019DIAS, Bruno C. Saúde Coletiva manifesta-se sobre nova classificação do Qualis Periódicos. Abrasco. Disponível em: <https://www.abrasco.org.br/site/outrasnoticias/institucional/abrasco-discute-criterios-nova-proposta-do-qualis-periodicos/42166/>. Acesso em: 18 out. 2019. 22 ago. 2019.
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). A Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes), do Ministério da Educação, que dita esses critérios, deverá avaliar as revistas a partir da filiação institucional dos autores e irá considerar apenas uma única área de conhecimento, chamada de “área-mãe”. Ou seja, se um autor escrever um artigo de história, mas fizer parte de um programa de história de uma faculdade de medicina, seu trabalho será considerado automaticamente como sendo de medicina (diferentemente dos critérios menos rígidos anteriores, pelos quais um artigo podia pertencer a várias áreas de conhecimento). É como se vivêssemos em um mundo acadêmico de categorias estanques em que pesquisadores de disciplinas diferentes não se comunicassem e no qual os profissionais pudessem decidir onde vão encontrar trabalho. Tudo isso é o resultado desastroso da persistente falta de vontade do poder público em debater democraticamente os critérios de avaliação das publicações científicas.

Ao utilizar a plataforma Sucupira como base para avaliação das revistas científicas, a agência de fomento federal insiste em ignorar os estrangeiros que nelas publicam, considerando apenas os autores brasileiros para definir a área-mãe. Dessa maneira, estão lesando o suposto objetivo de internacionalizar a ciência brasileira. Com esses critérios, muitos periódicos brasileiros descerão no ranking do Qualis Periódicos e terão menos possibilidades de solicitar recursos para a continuidade do trabalho. Não há nada sobre conteúdo ou circulação dos artigos. Nada sobre novos indicadores, como os altmétricos, que medem a presença e o uso de artigos científicos nas mídias digitais. Pior ainda, a avaliação não levará em conta indexadores importantes como a Scielo, cujo trabalho tem sido decisivo para a visibilidade da produção científica da América Latina e do Caribe.

Dessa maneira, paira no horizonte a possibilidade absurda de História, Ciências, Saúde – Manguinhos não pertencer à área de história nos próximos anos. Uma incoerência que ignora o fato de a história das ciências ter sido – e continuar sendo – uma área desenvolvida desde o início do século XX por pesquisadores formados em uma das ciências biológicas e físicas que buscaram ao longo da história construir pontes entre as humanidades e as ciências em geral. Que desconhece que, mesmo nos dias hoje, revistas internacionais de história das ciências publicam artigos de historiadores, cientistas, médicos e outros profissionais. É uma contradição com a decisão do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPQ) de alguns anos atrás que incorporou a história das ciências (que inclui a história da medicina e da saúde) ao campo da história. Descarta a infinidade de cientistas premiados no exterior por trabalhos inovadores, precisamente pelo caráter transdisciplinar e transnacional. E, finalmente, é um absurdo que menospreza os muitos esforços locais que tornaram possível o Brasil sediar, em 2017, o 25º Congresso Internacional de História das Ciências, o evento acadêmico mundial mais importante da área.

As intenções equivocadas da Capes com o novo Qualis demonstram desconhecimento e falta de visão em relação ao desenvolvimento científico do país. Pior ainda. Sugerem que os objetivos são, na verdade, reduzir a ciência brasileira à sua expressão mínima e desvalorizar seus periódicos. Objetivos esses que são compatíveis com governantes autoritários que assumem abertamente que o desenvolvimento do país passa por menos universidades públicas, menos professores e estudantes universitários e menos comunicação científica. E que supõem de forma equivocada que países em desenvolvimento como o Brasil não precisam de pesquisa científica (quando é exatamente o contrário).

Tudo isso nos faz esperar o pior desse modelo. As conquistas alcançadas pelas comunidades científicas brasileiras nas últimas décadas correm sério risco. Como Kenneth Camargo Jr. nos adverte, o “Qualis único” – como está sendo chamada a nociva proposta de classificação de periódicos – é um claro retrocesso (Dias, 16 set. 2019DIAS, Bruno C. Qualis único é retrocesso, avalia o editor Kenneth Camargo. Abrasco. Disponível em: <https://www.abrasco.org.br/site/forumdeeditoresdesaudecoletiva/qualis-unico-e-retrocesso-avalia-o-editor-kenneth-camargo/128>. Acesso em: 18 out. 2019. 16 set. 2019.
https://www.abrasco.org.br/site/forumdee...
).1 1 Para mais críticas, ver o editorial publicado em Cadernos de Saúde de Pública assinado por essa publicação, além de História, Ciências, Saúde – Manguinhos; Memórias do Instituto Oswaldo Cruz; Revista Eletrônica de Comunicação, Informação e Inovação em Saúde; Revista Fitos; Trabalho, Educação e Saúde; e Vigilância Sanitária em Debate: Sociedade, Ciência & Tecnologia (Cadernos de Saúde Pública et al., 7 out. 2019). Pedimos aos nossos leitores e colaboradores que fiquem atentos, que defendam a identidade e os fóruns diversificados da nossa revista, e nos ajudem a resistir a essas más intenções.

REFERÊNCIAS

NOTA

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    Para mais críticas, ver o editorial publicado em Cadernos de Saúde de Pública assinado por essa publicação, além de História, Ciências, Saúde – Manguinhos; Memórias do Instituto Oswaldo Cruz; Revista Eletrônica de Comunicação, Informação e Inovação em Saúde; Revista Fitos; Trabalho, Educação e Saúde; e Vigilância Sanitária em Debate: Sociedade, Ciência & Tecnologia (Cadernos de Saúde Pública et al., 7 out. 2019CADERNOS DE SAÚDE PÚBLICA ET AL. Contribuições ao debate sobre a avaliação da produção científica no Brasil. Cadernos de Saúde Pública, v.35, n.10, e00173219. Disponível em: <http://dx.doi.org/10.1590/0102-311x00173219>. Acesso em: 21 out. 2019. 7 out. 2019.
    http://dx.doi.org/10.1590/0102-311x00173...
    ).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    28 Nov 2019
  • Data do Fascículo
    Oct-Dec 2019
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