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Perspectivas históricas e econômicas sobre a saúde na China no século XXI

Resumo

O artigo analisa as perspectivas históricas das reformas implementadas nos sistemas dos cuidados de saúde na China, desde Deng Xiaoping até Hu Jintao, com base em pesquisa bibliográfica e descritiva. Como resultado das decisões políticas e econômicas, uma série de reformas em saúde foi implementada a partir de 1980, com a introdução do mercado. Como resultado, houve alterações no acesso, na cobertura, na organização e no financiamento da saúde na China. Se nos governos de Deng e Jiang houve a diminuição da cobertura, do acesso e financiamento, Hu Jintao, ao entrar no século XXI, realiza tentativas de expandir a cobertura do seguro saúde visando à universalidade; aumentar o gasto com a saúde pública; reformar o mercado farmacêutico e os hospitais públicos.

assistência à saúde; reforma da saúde; sistemas de saúde

Abstract

The historical precursors of the reforms made to the healthcare systems in China from Deng Xiaoping to Hu Jintao are presented, based on a literature review and descriptive research. A series of healthcare reforms were introduced as of the 1980s in response to different political and economic policy decisions and the introduction of market forces. Accordingly, access to healthcare, and its coverage, organization, and financing underwent changes. While under Deng and Jiang, coverage, access, and funding were reduced, under Hu Jintao, at the turn of the twenty-first century, attempts were made to expand health insurance coverage with a view to making it universal, while spending on public health was increased and reforms were made to the pharmaceutical market and public hospitals.

healthcare; health reform; health systems

No primeiro ano do século XXI, a China ingressa na Organização Mundial do Comércio (OMC) após 15 anos de negociação, de reformas políticas e econômicas. Trata-se de um marco histórico para um país de aproximadamente 1,4 bilhão de habitantes, cujo desenvolvimento científico, tecnológico e industrial o faz ocupar desde 2014 a primeira posição no ranking de economia mundial, com o maior Produto Interno Bruto (PIB), medido em paridade de poder de compra.

A China, assim, passa a ser objeto de várias indagações e pesquisas, como, por exemplo, a China atual é um país capitalista ou socialista? Quais os instrumentos de controle e construção de sua nova fase econômica e política? É possível analisar a China a partir dos critérios e indicadores de avaliação para o desempenho de economias capitalistas? E como essas mudanças impactam as redes de proteção social tradicionais, entre elas, em particular a assistência à saúde?

Nesse sentido, a pesquisa consistiu em compreender as mudanças nos cuidados de saúde na era das reformas políticas e econômicas na China de Deng Xiaoping e Jiang Zemin (1980-2002), suas consequências e desafios para o século XXI e a necessidade da implantação de novas reformas à assistência à saúde sob a liderança de Hu Jintao (2003-2013).

Para tal estudo realizou-se uma pesquisa bibliográfica, de caráter exploratório e descritivo, sobre a perspectiva histórica e econômica da evolução, da cobertura, da organização e do financiamento da saúde chinesa diante das mudanças implementadas na ordem econômica, iniciadas por Deng Xiaoping, em 1978, com os programas de reforma e processo de abertura ao comércio exterior, até o fim do governo de Hu Jintao, em 2013. Também foram realizadas interlocuções e interações por meio de missões de trabalhos com professores da China, em especial, o doutor Wen Tiejun, e as doutoras Kin Chi e Sit Tsui. Essas missões foram essenciais para a diretriz e a elaboração da pesquisa. Contatos foram realizados ainda com gestores da saúde chinesa, os quais indicaram material bibliográfico como fontes secundárias de dados a respeito dos sistemas e sua organização.

As mudanças nos cuidados de saúde na era das reformas na China de Deng Xiaoping e Jiang Zemin (1980-2002): desafios para o século XXI

De acordo com David Blumenthal e William Hsiao (2005), essas reformas, no início de 1980, criaram mudanças significativas à assistência à saúde, em especial nas áreas rurais, uma vez que, desde 1981, o programa de assistência mútua médica financiado pelas cooperativas entrou em colapso. Em seu auge, o sistema cobria cerca de 90% da população, porém, em 1985, estimou-se que apenas 5,4% das comunidades rurais estavam mantendo o Sistema Médico Cooperativo, financiado coletivamente. Nas demais, os membros da comunidade arcavam com suas despesas com os cuidados de saúde (Hsiao, 1995HSIAO, William C.L. The Chinese health care system: lessons for other nations. Social Science and Medicine, v.41, n.8, p.1047-1055. 1995.; Liu, Hsiao, Eggleston, 1999). Sem o Sistema Médico Cooperativo, os camponeses não tinham como reunir fundos para as despesas referentes aos riscos de saúde, e novecentos milhões de cidadãos rurais, da noite para o dia, não dispunham de seguro médico (Blumenthal, Hsiao, 2005).

O maior impacto ocorreu nas comunidades rurais da China, como, por exemplo, o desmonte do Programa Médicos Descalços, iniciativa que contribuiu para a inserção da China na Organização Mundial da Saúde (OMS), em 1976, como uma experiência exitosa que deveria ser exportada a outros países, considerando suas particularidades. Consequentemente, esses médicos técnicos ficaram desempregados e foram forçados a se tornar profissionais particulares de saúde (Blumenthal, Hsiao, 2005; McConnell, 1993MCCONNELL, John. Barefoot no more. The Lancet, v.341, n.8855, p.1275. 1993.).

Em suma, de 1979 a 1999 a participação do governo central na despesa nacional de saúde caiu de 32% para 15%. Ao mesmo tempo, grande parte do financiamento desses serviços foi transferida para os governos das províncias e locais, cuja receita seria angariada por tributação local. O efeito imediato foi o favorecimento das províncias costeiras mais abastadas em detrimento das províncias rurais menos ricas, constituindo as bases para as crescentes disparidades entre os investimentos em cuidados médicos urbanos e rurais. Com esse processo de descentralização, o governo central reduziu sua capacidade e seu compromisso de redistribuir recursos de saúde de áreas ricas para as áreas mais desprovidas, onde vivia a maioria de sua população (Blumenthal, Hsiao, 2005).

Outro efeito decorreu do esforço de introduzir mecanismos de mercado no setor de saúde. Nos hospitais públicos, a intenção foi de tornar os usuários “cooperantes” com o governo no que se refere aos encargos financeiros. Nesse sentido, o governo reduziu pouco a pouco seus orçamentos para hospitais públicos, cobrindo apenas as despesas com os salários básicos de pessoal e os novos investimentos de capital, totalizando aproximadamente 25-30% das despesas hospitalares. Em troca, esses hospitais receberam liberdade quase ilimitada para captar fundos por meio de operações de cobrança de taxas de utilização dos serviços pelos usuários. Uma prática comum dos hospitais foi “maximizar” as contas médicas dos pacientes, com a prescrição de medicamentos (drogas) e testes de diagnóstico (Liu, Emsley, Dunn, 2013; Diep, 28 set. 2008).

Na opinião de David Blumenthal e William Hsiao (2005), o governo de Deng sancionou informalmente uma privatização parcial de hospitais e clínicas de saúde, ao autorizar que essas organizações funcionassem como entidades com fins lucrativos, com a venda de serviços de saúde no mercado. Entre 1990 e 2002, o financiamento público como proporção das receitas de saúde pública locais caiu de cerca de 60% para 42% (Blumenthal, Hsiao, 2005).

Entretanto, nem todos os serviços poderiam ser livremente mercantilizados pelas instituições de saúde. Os serviços básicos de saúde tinham os preços regulados pelo governo da República Popular da China (RPC), com a intenção de garantir o acesso de grande parte da população. Assim, havia o controle rígido sobre o montante que os hospitais e as clínicas poderiam cobrar para visitas e serviços de rotina, como cirurgias, exames de diagnósticos e produtos farmacêuticos de rotina. Essas instituições poderiam ganhar com novos medicamentos, novos testes e tecnologia com margem de 15% ou mais de lucro (Blumenthal, Hsiao, 2005). Os gastos nominais de saúde per capita aumentaram mais de oito vezes nas áreas urbanas e quase sete vezes nas áreas rurais entre 1990 e 2002. As despesas em saúde, como percentagem do PIB, aumentaram de 3,17%, em 1980, para 5,65%, em 2003 (Liu, Hsiao, 1996). Esses aumentos nos gastos em saúde refletem o aumento dos rendimentos e uma carga de trabalho mais complexa, devido à transição epidemiológica, com menos ocorrências de doenças infecciosas e mais doenças crônicas, que também demandam gastos com a rápida adoção de novas tecnologias (Diep, 28 set. 2008). Também refletem a nova condição dos hospitais e das clínicas em buscar receitas para as suas despesas e da procura da classe dos novos-ricos chineses que buscam o atendimento de saúde no estilo ocidental, ou seja, o cuidado à saúde de forma high-tech (Blumenthal, Hsiao, 2005).

As reformas econômicas mudaram não só os sistemas de saúde, mas a condição de saúde de sua população, pois, devido ao crescimento econômico e à rápida urbanização, os estilos de vida ficaram mais sedentários, e a dieta mais desequilibrada, alterando também o padrão epidemiológico na China (Yuanyuan et al., abr. 2012). As doenças infecciosas deram lugar às doenças crônico-degenerativas, aumentando a demanda de leitos em hospitais, infraestrutura de diagnósticos e cuidados de longa duração. Entre elas podem-se citar: doenças cardiovasculares, pulmonares, hipertensão, diabetes, câncer etc. (Chen, Godfrey, 1991).

De acordo com Yuanli Liu, William Hsiao e Karen Eggleston (1999), o estado geral da saúde da população melhorou ao longo da reforma econômica, embora de maneira mais lenta do que na era maoísta. A taxa de mortalidade infantil caiu de 49/1.000, em 1971-1980, para aproximadamente 42/1.000, em 1995.

Entretanto, os serviços preventivos passam a ser financiados por meio de vários mecanismos: taxas de usuário, pré-pagamentos e contribuições de vários níveis de governos (Zhang, Unschuld, 2008; Liu, Hsiao, Eggleston, 1999; Feng et al., 1995FENG, Xueshan et al. Cooperative medical schemes in contemporary rural China. Social Science Medicine, v.41, n.8, p.1111-1118. 1995.; Duckett, 2011DUCKETT, Jane. Challenging the economic reform paradigm: policy and politics in the early 1980’s collapse of the Rural Cooperative Medical System. The China Quarterly, v.205, p.80-95. 2011.).

Dessa forma, os médicos descalços perderam seu apoio institucional e financeiro. Em janeiro de 1985, o título de médico descalço foi cancelado pelo Ministério da Saúde, e alguns deles se tornaram médicos de aldeia, outros deixaram o setor de saúde e foram trabalhar na agricultura em tempo integral. Os que se tornaram médicos de aldeia transformaram seus postos de saúde em práticas privadas (fee-for-service). O número total de médicos descalços diminuiu de 1,8 milhão para 1,3 milhão entre 1978 e 1985 (Hsiao et al., 1995HSIAO, William C.L. et al. Transformation of China’s rural health care financing. Social Science and Medicine, v.41, n.8, p.1085-1093. 1995.).

Em 1990, houve esforços na busca de experiências que pudessem substituir o Sistema Médico Cooperativo (CMS), porém, a maioria não obteve o desempenho desejado (Feng et al., 1995FENG, Xueshan et al. Cooperative medical schemes in contemporary rural China. Social Science Medicine, v.41, n.8, p.1111-1118. 1995.). Já os Sistemas de Saúde do Trabalho (LIS) e de Governo (GIS) passaram por duas etapas de reformas: a primeira entre 1980 a 1991, e a segunda a partir de 1992. Durante a primeira fase (1980-1991), o principal objetivo da reforma era a contenção de custos, já que os aumentos com os gastos em cuidados de saúde impactavam diretamente o orçamento do governo da RPC e das empresas estatais, dificultando o reembolso das contas de saúde dos seus segurados, como demonstram Winnie Yip e William Hsiao (1997, p.245):

Entre 1978 e 1986, os gastos com Sistemas de Saúde do Trabalho cresceram a uma taxa anual de 11% em termos reais e aumentaram para 13% entre 1986 e 1993, quando o PIB estava crescendo em 9,8% (1978-1993). Os gastos com Sistemas de Saúde do Governo cresceram ainda mais rapidamente, de 14% (1978-1986) para 16% (1986-1993). Em 1993, embora esses dois programas cobrissem apenas 14% da população total, eles representavam 36% do total de gastos em saúde e quase três quartos dos gastos públicos na área. Enquanto a despesa nacional em saúde per capita foi de 110 RMB yuan (US$ 1 equivale a aproximadamente 8 RMB yuan), em 1993, a despesa per capita em saúde para beneficiários de Sistema de Saúde do Governo e Sistemas de Saúde do Trabalho foi de 400 RMB yuan e 250 RMB yuan, respectivamente.1 1 Nessa e nas demais citações de textos publicados em outros idiomas, a tradução é livre.

Então, para minimizar a pressão financeira e as desigualdades das despesas de cuidados à saúde sobre as empresas ou unidades de trabalho do governo, os pacientes passaram a ser cooperantes no financiamento da saúde. Apesar dessa medida ter contribuído para a mitigação dos riscos à rápida elevação dos custos com a saúde na China, não foi suficiente para resolver a questão (Liu, 2002LIU, Yuanli. Reforming China’s urban health insurance system. Health Policy, v.60, n.2, p.133-150. 2002.).

Nesse sentido, a partir de 1992 o foco da reforma foi para além da contenção de gastos, aumentando o nível de “socialização” dos riscos (risk pooling). Essa mudança acompanhou as reformas para um sistema de seguridade social em prol das reformas econômicas implementadas durante o período (Liu, 2002LIU, Yuanli. Reforming China’s urban health insurance system. Health Policy, v.60, n.2, p.133-150. 2002.). Tratou-se de uma combinação de contas de poupanças individuais e fundos compartilhados de riscos sociais para financiar as despesas médicas (Liu, 2002LIU, Yuanli. Reforming China’s urban health insurance system. Health Policy, v.60, n.2, p.133-150. 2002.; Liu, Zhao, 2006).

As reformas tentaram corrigir a inadequação do risk pooling do autosseguro empresarial para uma rede de assistência mútua urbana dos riscos, ou seja, os sistemas GIS e LIS foram substituídos pelo Sistema de Seguro Básico (Basic Medical Insurance, BMI). As três principais mudanças consistiram em: (1) adesão obrigatória ao seguro para todos os funcionários urbanos, na tentativa de oferecer uma cobertura universal e equitativa e minimizar a seleção adversa; (2) financiamento por meio de contribuições conjuntas dos empregados e empregadores, juntamente com alguns subsídios do governo local. Os prêmios de contribuição foram agrupados e redistribuídos em duas contas fundamentais: a conta poupança médica individual (Medical Saving Accounts, MSAs) e a poupança médica conjunta (Social Pooling Account, SPA), também denominada fundo mútuo de risco social; (3) os benefícios do seguro cobriam os principais serviços, incluindo internação, atendimento ambulatorial e emergencial, além de medicamentos (Liu, Zhao, 2006).

Em 1998, o governo anunciou a decisão de implementar o programa de seguro social para os trabalhadores urbanos nos moldes do Seguro Médico Básico para todo o território da China, ampliando a cobertura aos trabalhadores das empresas privadas, pequenas empresas estatais, como também a trabalhadores do setor rural. Exceto os trabalhadores rurais, todos os demais tinham a obrigatoriedade de aderir ao programa. Esse seguro não proporcionava os serviços de saúde aos dependentes dos trabalhadores. Os trabalhadores aposentados estavam assegurados, não precisando mais contribuir; o custo de suas contribuições deveria ser responsabilidade dos seus antigos empregadores (Liu, 2002LIU, Yuanli. Reforming China’s urban health insurance system. Health Policy, v.60, n.2, p.133-150. 2002.). O financiamento do Programa de Seguro Médico Básico ocorreu em três níveis: (1) contas de poupanças médicas individuais (MSAs); (2) despesas por conta própria pelos beneficiários, na forma de franquias; e, (3) fundo mútuo de riscos sociais (social risk pooling, SRP).

Os fundos não gastos ao final da vida de uma pessoa passam a fazer parte de seu patrimônio. Contudo, quando a conta poupança médica individual se esgota, os inscritos precisam pagar as despesas ambulatoriais diretamente. No momento em que um inscrito fica sujeito às despesas hospitalares, ele deve pagar primeiro uma dedução que equivale a 10% do seu salário anual. As despesas que excedem essa franquia são pagas pelo fundo mútuo de riscos sociais, mas cabe ao paciente o pagamento de um cosseguro, cuja taxa é decidida pelos governos locais. O fundo mútuo de riscos sociais limita seu pagamento pelo inscrito em quatro vezes o salário médio dos trabalhadores de uma mesma cidade. As despesas excedentes a esse limite podem ser cobertas por planos de seguro suplementares ou devem ser pagas pelo próprio paciente. O seguro suplementar é fornecido para os funcionários do governo, podendo também ser adquirido por outros empregadores para seus funcionários. As contribuições premium do empregador estão isentas de impostos até 4% de sua massa salarial total. Os funcionários também podem adquirir seguros suplementares privados (Liu, 2002LIU, Yuanli. Reforming China’s urban health insurance system. Health Policy, v.60, n.2, p.133-150. 2002., p.140).

Do total de contribuições dos empregadores (6% do salário do trabalhador) e dos empregadores (2% do salário), 3,8% vai para o MSA, percentual que os inscritos podem utilizar para as despesas de cuidados de saúde. E 4,2% vai para o fundo mútuo de riscos sociais (SRP), sendo utilizado para financiar grandes despesas médicas. No intuito de controlar os gastos com o novo programa de seguro, listas de medicamentos e serviços essenciais cobertos pelo seguro são determinadas pelos setores administrativos do governo. A lista mais restritiva é estabelecida pelo governo central, e os governos locais, por meio de seus departamentos de segurança social, podem ampliá-la ou reduzi-la em até 5% dos seus itens (Liu, 2002LIU, Yuanli. Reforming China’s urban health insurance system. Health Policy, v.60, n.2, p.133-150. 2002.).

De acordo com Yuanli Liu (2002)LIU, Yuanli. Reforming China’s urban health insurance system. Health Policy, v.60, n.2, p.133-150. 2002., o seguro de saúde privado passa a desempenhar um papel importante na China: primeiramente, como seguro complementar aos inscritos no programa de seguro social nas cidades, na medida em que o programa do governo oferece um conjunto de serviços básicos, com os gastos limitados a um teto de quatro vezes o salário médio. Assim, o próprio governo incentiva os trabalhadores e seus empregadores à adesão a um seguro privado para ajudar a cobrir as despesas que excedam o limite máximo do seu programa de seguro. O seguro privado para os funcionários governamentais é financiado com a dotação orçamentária do próprio governo.

Em segundo lugar, as companhias de seguro privadas podem oferecer a cobertura de serviços que não foram incluídos nos regimes de segurança social. “Isso pode incluir franquias, copagamento, bem como serviços ou medicamentos que não constam na lista oficial de serviços e medicamentos essenciais” (Liu, 2002LIU, Yuanli. Reforming China’s urban health insurance system. Health Policy, v.60, n.2, p.133-150. 2002., p.141). Em terceiro lugar, podem ofertar o seguro para os que não estão assegurados pelo Sistema Médico Básico, pois cerca de 44% da população urbana, incluindo trabalhadores independentes e trabalhadores industriais rurais, ficou fora do programa, além da população rural (cerca de 70% da população), que também precisa da cobertura de algum seguro depois do colapso do CMS (Liu, 2002LIU, Yuanli. Reforming China’s urban health insurance system. Health Policy, v.60, n.2, p.133-150. 2002.).

De maneira geral, as reformas nos sistemas de seguro dos cuidados de saúde urbanos destinaram-se a estabelecer um regime de segurança social, com benefícios e preços acessíveis aos trabalhadores urbanos, por meio da partilha de riscos que foram transferidos das unidades de trabalho para os governos locais, de maneira a conseguir maior estabilidade financeira e abarcando também os trabalhadores urbanos da iniciativa privada. Por outro lado, os desafios à sua implementação ainda são de caráter financeiro e de gestão. Isso porque as unidades orçamentárias são cidades e condados, o que faz com que muitos dos governos locais relutem em implementar esse programa, já que quaisquer deficits dos fundos teriam que ser absorvidos por eles. Essas diferenças entre os recursos e as obrigações no interior do programa refletem a falta de um método uniforme para o recolhimento das contribuições, já que os governos locais não podem obrigar os trabalhadores a se inscrever no regime de seguro, pois não há uma lei de seguro social na China, o que compromete as receitas. Outro problema é a questão dos aposentados, pois as empresas estatais estão dispostas a arcar com os custos médicos desse segmento, entretanto, as empresas joint-ventures estão menos dispostas a fazer as contribuições (Liu, 2002LIU, Yuanli. Reforming China’s urban health insurance system. Health Policy, v.60, n.2, p.133-150. 2002.).

Esses obstáculos, agregados à condição de a China ser um grande país, porém, com população em sua maioria de baixa renda, com variações socioeconômicas regionais significativas, colocam desafios a enfrentar na oferta, prestação e no financiamento da saúde. Nesse sentido, no próximo segmento, que aborda o período sob o comando de Hu Jintao, apresentar-se-ão as novas decisões para a resolução das desigualdades acentuadas quanto a cobertura, acesso e qualidade dos cuidados à saúde nas áreas rurais e urbanas.

As perspectivas históricas e econômicas à assistência à saúde sob a liderança de Hu Jintao (2003-2013): a chegada no século XXI, novas reformas e novos desafios

Em 2002, cerca de 90% da população das áreas rurais não tinha seguro de saúde. Nas áreas urbanas, aproximadamente 50% dos residentes tinham cobertura, por meio do Sistema Médico Básico, para os trabalhadores do setor formal, tanto da iniciativa estatal quanto da privada (Yip, Hsiao, 2009a).

Muitos chineses não podiam arcar com as suas despesas médicas, contribuindo para o empobrecimento de muitas famílias devido aos altos custos com os serviços de saúde (Hesketh, Xing, 1997). Em um estudo citado por Winnie Yip e William Hsiao (2009b), houve a constatação de que 46% da população rural que se encontrava doente não procurava cuidados médicos e, entre eles, 40% citaram o custo como a principal razão. Dos que foram aconselhados por médicos a hospitalizar-se, 22% se recusaram a fazê-lo porque não podiam pagar.

A sobrevivência financeira das unidades públicas de saúde dependia da cobrança dos pacientes que utilizavam os serviços de saúde. Isso porque os subsídios do governo central para as instalações de saúde representavam somente 10% de suas receitas. Ou seja, essas unidades, sob a supervisão dos governos locais, precisavam gerar 90% do total de seus custos fixos. O governo central fixava os preços dos serviços básicos de saúde abaixo do custo, permitindo aos hospitais e centros de saúde margem de lucro de 15% sobre a cobrança de medicamentos e de novos serviços de diagnóstico que envolvessem alta tecnologia (Yip, Hsiao, 2009a).

Assim, os hospitais chineses, especialmente nos centros urbanos, tornaram-se cada vez mais dependentes de tecnologia avançada. O aumento da importação de aparelhos de ressonância magnética e equipamentos cirúrgicos contribuiu, em parte, para a eficiência e a qualidade da prática médica. Contudo, o nível de tecnologia médica contribuiu também para que aumentassem os custos para os pacientes (Diep, 28 set. 2008; Marco, 2000MARCO, Carla P. Aguirre. Cambio político y salud: estructura y funcionamiento de un sistema sanitario plural. Medicina y Ciencias Sociales, v.314, n.12, p.1543-1545. Disponível em: <http://www.uv.es/medciensoc/num1/china.html>. Acesso em: 30 jul. 2015. 2000.
http://www.uv.es/medciensoc/num1/china.h...
). Outro fator que elevou os custos foi a colusão entre os fornecedores dos serviços de saúde e as empresas farmacêuticas. Os hospitais recebiam propinas do setor farmacêutico para que prescrevessem seus produtos, enquanto os médicos de aldeia compravam medicamentos com validade vencida e falsificados e os vendiam como produtos válidos a preços mais altos (Yip, Hsiao, 2009a).

Entre 1993 e 2003, a participação da população chinesa nas despesas de saúde aumentou, em média, em termos de percentagem do rendimento familiar, de 8,2% para 10,7% em áreas rurais e de 6% para 7,2% em áreas urbanas, representando uma sobrecarga financeira com os cuidados de saúde para as famílias rurais e urbanas. Ainda entre 1993 e 2003, a renda real per capita aumentou em menos de 50%, nas áreas urbanas e rurais, porém, as despesas por admissões e/ou visitas ambulatoriais quadruplicaram. O crescimento das despesas com os processos de internação, em 1993, representou 74% do rendimento de um residente rural e 80% de um residente urbano. Em 2003, o custo foi duas vezes superior à renda anual de morador urbano e rural, demonstrando que o rápido crescimento dos custos de saúde contribuiu para um risco financeiro no enfrentamento às doenças.

Segundo Winnie Yip e William Hsiao (2009a), uma explicação plausível relativa a essas disparidades foi a dependência das finanças públicas locais para o custeio dos cuidados de saúde. Em 2003, 91,7% do total das despesas com saúde pública foi de responsabilidade dos governos locais. Como resultado, houve uma grande variação no gasto público em saúde nas regiões com diferentes níveis de desenvolvimento econômico. Por exemplo, ainda em 2003, a despesa pública per capita em saúde para residentes por região variou de 32,36 yuans em Guizhou a 266,52 yuans em Zhejiang (Yip, Hsiao, 2009a).

Outra explicação estaria relacionada aos problemas inerentes à tabela de preços estabelecida pelo governo central, combinada com um sistema financeiro que exercia intensa pressão sobre os prestadores de saúde de todos os níveis para gerar receita. Isso acarretou uma busca por testes de diagnóstico de alta tecnologia, como também por serviços e medicamentos caros à custa dos serviços básicos de saúde, contribuindo assim para a taxa crescente de gastos com os cuidados de saúde (Yip, Hsiao, 2009a).

Esses problemas não são distribuídos igualmente em todo o país. Os pobres, principalmente aqueles que vivem em áreas rurais, são os mais atingidos (Yip, Hsiao, 2009a). Vale ressaltar que essas despesas, em sua maioria, estão relacionadas ao tratamento das mesmas doenças em áreas rurais e urbanas. Isso porque a constante transição epidemiológica de doenças infecciosas para doenças crônicas não transmissíveis alterou as causas de mortes, tanto em áreas urbanas como nas áreas rurais. Assim, o governo da RPC enfrentou o desafio de pensar ações e políticas para além do foco do controle e cuidado de doenças transmissíveis, voltando-se também para um sistema que garantisse a prevenção e o gerenciamento de custos de doenças crônicas (Eggleston, 9 jan. 2012).

Além da transição demográfica e epidemiológica, nos últimos trinta anos também tem se visto uma transição, em parte, das rápidas mudanças de estilo de vida na China influenciadas pelos acelerados crescimento econômico, urbanização e industrialização, além de intensa migração interna e envelhecimento da população (Xu et al., 2014XU, Huiwen et al. Aging village doctors in five counties in rural China: situation and implications. Human Resources for Health, n.36, p.1-12. 2014.; Meng et al., 2015MENG, Qingyue et al. People’s Republic of China health system review. Health Systems in Transition, v.5, n.7, p.1-246. 2015.).

Entretanto, a taxa de expectativa de vida da população chinesa aumentou substancialmente após a proclamação da República Popular da China até finais do governo da quarta geração: de 35 anos, em 1949, para 67 anos, em 1980, e 75 anos em 2012. A taxa de mortalidade infantil continuou em constante declínio: de 47,2/1.000 nascidos, em 1980, para 12,9, em 2011, caindo também a taxa de mortalidade dos menores de 5 anos: de 61,3/1.000 nascidos vivos, em 1980, para 14,9, em 2011. A taxa de mortalidade materna na China diminuiu de 120/100.000 nascidos vivos, em 1990, para 26,1, em 2011.

Todavia, ao analisar as causas de mortes na China, percebeu-se que houve o aumento contínuo de mortes relacionadas às doenças crônicas, em comparação com as doenças transmissíveis, respiratórias crônicas e digestivas. Entre 1990 e 2010, as doenças crônicas do trato respiratório caíram do topo para o quarto lugar na lista de causas de morte, com um declínio na proporção de óbitos de 24,9% para 13,5%; o câncer se tornou a principal causa de morte, com sua proporção aumentando de 19% para 26,5%. As doenças cerebrovasculares mantiveram-se como a segunda principal causa de morte, passando de 19% a 23,4%. As doenças transmissíveis ficaram em sétimo lugar entre 1990 e 1995, mas em nono, considerando o período de 2005 e 2010. As doenças endócrinas nutricionais e metabólicas não estavam entre as dez principais causas de morte anteriormente, mas subiram para o sétimo lugar entre 2005 e 2010.

Aproximadamente 70% do total de mortes na China são causadas por doenças não transmissíveis: acidente cerebrovascular, diabetes, doença pulmonar obstrutiva crônica e câncer de pulmão. Em 2012 havia 260 milhões de pacientes com alguma doença crônica, e o número de mortes nesse ano foi de 7,12 milhões. Além disso, a prevalência de doenças crônicas vem crescendo, conforme se observa entre 2002 e 2010: a prevalência de hipertensão na população com mais de 18 anos aumentou de 18,8% para 22,8%, e a prevalência de diabetes aumentou de 2,6% para 9,7%. A prevalência de cânceres também cresceu a uma taxa anual de 4% ao ano, desde meados de 1990, sendo os de maior incidência o pulmonar, o gástrico, o hepático, o esofágico e o colorretal. Isso pode decorrer e/ou estar correlacionado a alguns fatores: fumo, alcoolismo, dieta pouco balanceada e falta de exercício físico (Meng et al., 2015MENG, Qingyue et al. People’s Republic of China health system review. Health Systems in Transition, v.5, n.7, p.1-246. 2015.; Xu et al., 2014XU, Huiwen et al. Aging village doctors in five counties in rural China: situation and implications. Human Resources for Health, n.36, p.1-12. 2014.).

Em governos anteriores da RPC as doenças transmissíveis, incluindo cólera, lepra, tuberculose, esquistossomose e malária, apresentavam-se como as mais prevalentes na China que, entretanto, conseguiu reduzir essa incidência ao implementar um sistema de prevenção e controle de doenças, promoção de vacinação em massa e organização de campanhas de saúde voltadas para a população em geral (Meng et al., 2015MENG, Qingyue et al. People’s Republic of China health system review. Health Systems in Transition, v.5, n.7, p.1-246. 2015.).

No entanto, há doenças transmissíveis consideradas emergentes, as quais ainda representam ameaças potenciais à população chinesa e um desafio ao sistema de saúde, a saber: a síndrome respiratória aguda grave (Sars), a gripe aviária altamente patogênica, a febre aftosa, a pólio alóctone e a infecção humana com a gripe aviária Influenza A. Além dessas doenças emergentes, incluem-se as doenças infecciosas agudas e as infecções crônicas, como a hepatite viral, a tuberculose e a Aids. Em 2012, a taxa de incidência de hepatite viral foi de 102,5 por cem mil habitantes; a de tuberculose, 70,6; a de doenças sexualmente transmissíveis, 30,4; e a de HIV/Aids, 7,4 (Meng et al., 2015MENG, Qingyue et al. People’s Republic of China health system review. Health Systems in Transition, v.5, n.7, p.1-246. 2015.).

Considerando todas essas questões, houve reformas por meio das quais se estabeleceram novos sistemas de seguro básicos de saúde, além do Seguro Básico Médico que atendia os empregados urbanos (UEBMI), a saber: o Novo Sistema Médico Cooperativo (NCMS) e o Seguro Médico Básico do Residente Urbano (URBMI). O governo também implementou um Programa de Assistência Médica (MA) de modo a fornecer um conjunto de programas de proteção financeira para a saúde dirigidos a grupos de baixa renda, ou seja, os pobres das áreas rurais e urbanas (Yip, Hsiao, 2014; Eggleston et al., 2008EGGLESTON, Karen et al. Health service delivery in China: a literature review. Health Economics, v.17, n.2, p.149-165. 2008.; Wagstaff et al., 2009WAGSTAFF, Adam et al. China’s health system and its reform: a review of recent studies. Health Economics, v.18, n.52, p.7-23. 2009.).

Todavia, novos desafios se colocaram quanto à implementação e ao financiamento dos sistemas NCMS e URBMI, como também do programa MA. Entre esses desafios citam-se três de maior impacto para os governos locais e central: (1) um melhor alinhamento dos incentivos entre o governo central e local; (2) a criação de uma estrutura de incentivos e um sistema de responsabilização pelo desempenho local na prestação de serviços de saúde; e (3) a maneira de resolver as desigualdades fiscais regionais em todo o território chinês (Yuanyuan et al., abr. 2012).

A adesão ao UEBMI era obrigatória; ao NCMS e ao URBMI era voluntária. Assim, para alcançar sua meta de cobertura universal nos cuidados de saúde para toda a população, o governo comprometeu-se em fazer reembolso de cerca de 70% das despesas com internação, para mais de 90% da população coberta por NCMS e URBMI (Yip et al., 2012YIP, Winnie C. et al. Early appraisal of China’s huge and complex health-care reforms. The Lancet, v.329, n.3, p.833-842. 2012.; Eggleston, 9 jan. 2012). Quanto ao UEBMI, suas características continuaram as mesmas implementadas sob o governo de Jiang Zemin: adesão obrigatória para todos os funcionários urbanos; financiamento por meio de contribuições conjuntas dos empregados e empregadores e os prêmios de contribuição por meio das contas poupanças; e a cobertura dos principais serviços, incluindo internação, atendimento ambulatorial e emergencial, além de medicamentos (Liu, Zhao, 2006; Yip et al., 2012YIP, Winnie C. et al. Early appraisal of China’s huge and complex health-care reforms. The Lancet, v.329, n.3, p.833-842. 2012.).

No que se refere à meta de fortalecer os serviços de atenção primária, Winnie Yip e William Hsiao (2014) afirmam que, apesar de 96% da população estar coberta por um dos três sistemas de seguro em 2014, o progresso da reforma da prestação de serviços tem sido lento. Apesar do investimento substancial em infraestrutura para a base de cuidados primários de saúde, a população continua buscando esses serviços dentro dos hospitais, no nível secundário (condado) e terciário (província). As unidades que prestavam os cuidados primários não demonstravam capacidade de executar a função gatekeeping, reforçando uma prática e cultura hospitalocêntrica e fragmentada. No Plano de Trabalho de 2011, da Secretaria-geral do Conselho do Estado, o governo central daria o apoio financeiro para construir ou renovar trezentos hospitais de condado, mil hospitais municipais e 13 mil unidades de saúde locais. Um dos objetivos é que, em cada município, pelo menos um hospital alcance o nível 2 e que entre um e três hospitais dos municípios atinjam o nível 3, ou seja, de hospital de referência.

De acordo com Winnie Yip e William Hsiao (2014), a reforma dos hospitais públicos foi frustrada ao longo dos anos do governo de Hu Jintao. Entretanto, a decisão mais marcante do governo foi a de estimular o investimento privado no setor hospitalar. Apesar de essa decisão não ser explicitada, os autores interpretam como um movimento estratégico de duas distintas maneiras: (1) a intenção do governo em utilizar a concorrência do setor privado para estimular mudanças no setor hospitalar público; ou, (2) a volta para uma abordagem ideológica do governo pró-mercado, com o intuito de melhorar a produtividade e a resolutividade do setor de saúde (retornando aos princípios de Deng Xiaoping).

Para Meng et al. (2015)MENG, Qingyue et al. People’s Republic of China health system review. Health Systems in Transition, v.5, n.7, p.1-246. 2015., a decisão governamental está voltada para a segunda abordagem de Yip e Hsiao (2014)YIP, Winnie C.; HSIAO, William C.L. Harnessing the privatization of China’s fragmented health-care delivery. The Lancet, v.384, n.9945, p.805-818. 2014., de modo a tratar as diversas necessidades da população chinesa e melhorar o ambiente político. Meng et al. (2015)MENG, Qingyue et al. People’s Republic of China health system review. Health Systems in Transition, v.5, n.7, p.1-246. 2015. ainda mencionam que, entre 2009 e 2012, o número de hospitais privados aumentou de 6.240 para 9.786.

Os hospitais públicos na China oferecem 90% dos serviços ambulatoriais e hospitalares do país, absorvendo de 2 a 9% do PIB. Além de suas atividades inerentes, os hospitais chineses têm uma função importante no atendimento ambulatorial, porque, como já apontado, os pacientes tinham dificuldades em conseguir crédito em clínicas e centros de saúde. Isso desloca para os hospitais atendimentos de problemas simples de saúde, sobrecarregando-os (Yip, Hsiao, 2014).

Logo, para Winnie Yip et al. (2015)YIP, Winnie C. et al. Payment reform pilot in Beijing hospitals reduced expenditures and out-of-pocket payments per admission. Health Affairs, v.34, n.10, p.1745-1752. 2015., o sucesso das reformas no setor de saúde depende da reforma no setor hospitalar, especialmente para controlar o crescimento das despesas de saúde. A questão principal para a sua reforma está relacionada à sua administração, já que a estrutura de sua gestão, na opinião do autor, é arcaica e complexa. A complexidade está no fato de o Ministério da Saúde ter responsabilidade pela saúde da população, porém, vários ministérios terem poder para alocar fundos públicos e seguros para a saúde, como também definir preços, formas de pagamento, alocação de recursos humanos e investimento de capital. Em suma, o Ministério da Saúde tem a responsabilidade pelos cuidados de saúde, mas não tem mecanismos para controlar a prestação de serviços de saúde (Yip et al., 2012YIP, Winnie C. et al. Early appraisal of China’s huge and complex health-care reforms. The Lancet, v.329, n.3, p.833-842. 2012.).

Assim, os hospitais passam a ser geridos por vários ministérios, com políticas muitas vezes conflitantes, o que confunde as funções, responsabilidades sociais e quais regras devem seguir os hospitais públicos. Por exemplo, o Ministério da Saúde determina que os hospitais priorizem o tratamento de pacientes e ofereçam serviços de saúde a custo mínimo, porém, quem determina os preços é o Departamento de Preços do Ministério de Finanças e Orçamento (MOF). O Ministério da Saúde pode determinar ou incentivar que os médicos não elevem os custos de saúde, prescrevendo medicamentos e testes caros, porém, quem regulamenta os recursos humanos é o Ministério de Recursos Humanos e Segurança Social (MOHRSS). Além disso, quem nomeia os diretores dos hospitais é o Departamento de Organização do Partido, e não o Ministério da Saúde. Assim, mesmo que o governo reconheça a necessidade de reforma do setor, o desafio consiste em lidar com os interesses contraditórios em relação a essa reforma (Yip et al., 2012YIP, Winnie C. et al. Early appraisal of China’s huge and complex health-care reforms. The Lancet, v.329, n.3, p.833-842. 2012.).

Em 2011, o governo continuou a aumentar os investimentos em saúde, com a realização de pagamentos diretos aos prestadores de saúde que ofertassem um conjunto de serviços básicos de saúde pública à população em suas áreas de abrangência (de 15 yuans, em 2009, foi para 25 yuans, em 2011). No 12º Plano Quinquenal para a saúde, anunciado em 2012, o governo central reconfirmou o seu compromisso, aumentando novamente os recursos para o financiamento do NCMS e do URBMI, além de serviços de saúde pública, melhorias contínuas na infraestrutura de cuidados à saúde primária, formação de clínicos gerais e a expansão da lista de medicamentos que passaram a ser considerados essenciais, e, por isso, deveriam ser comercializados a partir da fixação de preço do governo (Meng et al., 2015MENG, Qingyue et al. People’s Republic of China health system review. Health Systems in Transition, v.5, n.7, p.1-246. 2015.; Yip, Hsiao, 2014).

Segundo Winnie Yip et al.(2012)YIP, Winnie C. et al. Early appraisal of China’s huge and complex health-care reforms. The Lancet, v.329, n.3, p.833-842. 2012., desde 2011 o objetivo do governo da RPC foi reduzir o copagamento por serviços de internação para 30%, além de identificar as doenças prioritárias para a redução adicional de copagamento. Como resultado, houve a redução das mortalidades infantil e materna, além de melhoria no acesso à prestação de serviços de base hospitalar. Os subsídios diretos do governo, juntamente com o sistema NCMS, permitiram o acesso quase gratuito aos serviços hospitalares. As despesas destinadas às doenças prioritárias (catastróficas), eram cobertas pelo Programa de Assistência Médica, que contemplava eventuais copagamentos para as famílias de baixa renda, por intermédio dos departamentos locais de assuntos civis. Porém, o sucesso dessas reformas não se deu de maneira homogênea no território chinês (Yip et al., 2012YIP, Winnie C. et al. Early appraisal of China’s huge and complex health-care reforms. The Lancet, v.329, n.3, p.833-842. 2012.).

Assim, pode-se concluir que no governo de Hu Jintao houve avanços no sentido de promover serviços de saúde equitativos e com preços acessíveis para a população (com certa paridade entre a população urbana e rural). Isso decorre: (1) da expansão da cobertura do seguro saúde, visando à sua cobertura universal, por meio da adesão aos seguros voluntários do Novo Seguro Médico Cooperativo (NCMS) e do Seguro Médico Básico do Residente Urbano (URBMI); (2) do aumento do gasto do governo com saúde pública, sobretudo nas regiões de baixa renda, de modo a homogeneizar os dispêndios nas diferentes regiões; (3) da construção de infraestrutura de centros de saúde para os cuidados de saúde primária; (4) da implementação de um sistema de medicamentos essenciais, criando regulações ao mercado farmacêutico; (5) da intenção de reformar os hospitais públicos, os quais voltariam a desempenhar papel similar ao da era de Mao Tsé-Tung, se houvesse mais progressos.

Se as reformas no setor de saúde, especialmente, a partir das reformas de 2009 a 2012, demonstraram os compromissos com os cuidados de saúde para a população, ainda há desafios maiores à China, como: (1) manter essas conquistas; (2) garantir a sustentabilidade do sistema recém-estabelecido em um longo prazo; (3) combater as desigualdades na saúde, considerando as enormes dívidas do setor público; e (4) atender à crescente demanda por cuidados de saúde devido às mudanças demográficas e tecnológicas (Liu, Emsley, Dunn, 2013; Yip et al., 2012YIP, Winnie C. et al. Early appraisal of China’s huge and complex health-care reforms. The Lancet, v.329, n.3, p.833-842. 2012.; Meng et al., 2015MENG, Qingyue et al. People’s Republic of China health system review. Health Systems in Transition, v.5, n.7, p.1-246. 2015.).

Considerações finais

Após as reformas da era de Deng Xiaoping, uma série de reformas de saúde alterou gradualmente o sistema de saúde maoísta. Isso comprometeu o caráter coletivo das contribuições, com a intenção de tornar os usuários de saúde “cooperantes” com o governo no financiamento dos encargos com a saúde, por pagamento out-of-pocket ou copagamento, de modo a conter as despesas de saúde e socializar os riscos (risk pooling). Essas mudanças continuaram a se desenvolver no período de Jiang Zemin.

As despesas com a saúde elevaram-se rapidamente, sobretudo devido à transição epidemiológica de doenças transmissíveis para doenças crônicas, as quais demandaram maiores gastos em seus tratamentos e na compra de equipamentos e aparelhos. O surgimento de uma elite na China desencadeou a busca por atendimento de saúde no estilo ocidental, demandando alta tecnologia. Todas essas medidas contribuíram para o alto nível de deterioração da saúde em relação ao acesso, cobertura e financiamento, diante das disparidades econômicas e regionais, especialmente entre as áreas rurais e urbanas, o que elevou as despesas e ocasionou o empobrecimento de muitas famílias.

No governo de Hu Jintao, após a crise do surto de Sars e com 90% da população rural e 50% da população urbana sem cobertura de algum sistema de seguro, algumas iniciativas foram tomadas. Elas objetivaram expandir a cobertura do seguro saúde visando à sua universalidade; aumentar o gasto do governo com saúde pública, sobretudo nas regiões de baixa renda, de modo a homogeneizar os dispêndios nas diferentes regiões; constituir centros de saúde para os cuidados de saúde primária; estabelecer reformas no mercado farmacêutico; e realizar projetos-piloto nos hospitais públicos.

O financiamento passou a se caracterizar por contribuição tripartite (o indivíduo, o empregador e o governo – local e/ou central). A administração e o gerenciamento foram descentralizados, porém em outro arranjo, já que o Departamento do Trabalho e Segurança Social ficou responsável pela administração local, enquanto a autoridade central foi dada ao Ministério do Trabalho e da Segurança Social. Apesar das mudanças de direção social dadas à política de saúde entre 1970 e 1980, essas reformas se distinguem da era maoísta (ideologia igualitária), pois seus pilares se pautam em duas propostas essenciais que consistem: (1) no aumento de orçamento para os hospitais públicos e outras instalações de saúde de propriedade pública, visando à prestação de serviços básicos de saúde de forma gratuita ou a preços acessíveis; (2) na expansão planejada do seguro saúde subsidiado pelo governo para cerca de 90% da população que não estava coberta por qualquer forma de seguro-saúde.

A estrutura administrativa passa por modificações, agregando as ações do governo central e local, as organizações não governamentais, o setor privado de saúde, a indústria farmacêutica, entre outros. Porém, a própria estrutura necessita de reformas visando às adequações aos cuidados de saúde, especialmente para garantir os princípios do “desenvolvimento científico” e a “harmonia social”, buscando uma marcha rápida para a cobertura universal às áreas rurais e esforços para abordar questões da prestação de serviços básicos da saúde pública.

Isto demonstra que Hu Jintao fez algumas reformas e tentativas de ir contra a corrente de Deng e Jiang, especialmente em 2008 e 2009, com a Reforma Nacional da Saúde, tomando como referência princípios outrora conquistados na era maoísta. Além de defender algumas ações pró-mercado no setor da saúde, na contramão da perspectiva ideológica de Mao.

Assim, no final da gestão da quarta geração, a China se encontrou em uma encruzilhada, pois mesmo com os avanços conquistados no acesso da população aos cuidados primários de saúde pública, ainda havia desafios em longo prazo. Esses se concentravam principalmente no enfrentamento das doenças crônicas, na garantia da sustentabilidade financeira dos sistemas, na superação da prestação de serviços de saúde fragmentados, na reforma do setor dos hospitais públicos e, também, na fragmentação dos poderes e jurisdições, além dos interesses de vários ministérios ou departamentos, bem como do Ministério da Saúde, na prestação dos serviços de saúde. O ministério, por sua vez, foi reestruturado, tornando-se a Comissão Nacional de Saúde e Planejamento Familiar (NHFPC), no governo da quinta geração, sob a liderança do presidente Xi Jinping e do premier Li Kexiang.

AGRADECIMENTO

Este estudo é um dos resultados da tese de doutorado defendida no Programa de Pós-graduação em Política Social da Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes), em 2017. Também é produto do Grupo de Estudos Críticos sobre o Desenvolvimento, na linha de pesquisa Economia Chinesa Contemporânea. Este grupo integra a pesquisa E7 Countries (Emerging Seven Countries Critical Comparative Studies), coordenado pelo professor Wen Tiejun, na China, e pelo professor e orientador da autora, Paulo Nakatani, no Brasil.

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NOTA

  • 1
    Nessa e nas demais citações de textos publicados em outros idiomas, a tradução é livre.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    13 Jul 2020
  • Data do Fascículo
    Apr-Jun 2020

Histórico

  • Recebido
    18 Mar 2018
  • Aceito
    18 Set 2018
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