Acessibilidade / Reportar erro

Os navegantes cruzados entre as duas margens de um mesmo Atlântico: a(s) arquitetura(s) na(s) saúde(s) de Oitocentos entre Brasil e Portugal

Navigators crossing the two sides of one Atlantic: architecture(s) in health in nineteenth-century Brazil and Portugal

MIRANDA, Cybelle Salvador; COSTA, Renato da Gama-Rosa. Hospitais e saúde no Oitocentos: diálogos entre Brasil e Portugal . Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, 2018. 223.

Por um vasto oceano uniram-se dois continentes, com uma língua e um passado partilhados. Entre as viagens, sobreveio um profícuo e interessante linguajar oitocentista entre vários actores e instituições portugueses e brasileiros. Essas “conversas”, influenciadas por uma Europa de referência elitista, por um maior poder económico e um rápido incremento de estatuto social, foram cruciais para a apropriação e a utilização de conceitos na arquitetura da época. Cybelle Salvador Miranda e Renato da Gama-Rosa Costa, no livro Hospitais e saúde no Oitocentos: diálogos entre Brasil e Portugal , publicado em 2018, pela Editora Fiocruz, organizam relatos históricos de uma viagem icónica entre esses dois mundos que, aparentemente diferentes, beberam da mesma fonte.

Os diversos poderes imperiais e não imperiais que, nesse arco cronológico, sofreram metamorfoses são, também, agentes produtores de registos cruciais, pois, em última análise, a decisão é um poder executivo. Nessa obra, não são apenas os detalhes históricos centrados em sistemas governativos, mas também as visões dos doentes para com os seus decisores, invertendo a narrativa para ilustrar a importância da doença e do tratamento – o relato pelas elites resulta, normalmente, numa linha histórica rapidamente solúvel. As diversas peças do puzzle são extensivamente analisadas nos textos, entre as quais a questão da mudança da direcção médica das instituições, a consolidação científica, a título de exemplo. A arquitetura é um “espelho de Alice” que, além de refletir imagens da sua realidade, revela, por detrás, um mundo desconhecido de premissas e locuções – as mesmas que, também, o livro desvenda.

Por um lado, são demais interessantes as apropriações de conhecimento entre os actores portugueses e os brasileiros, mesmo quando o solo lhes foi trocado, com um estudo não apenas focado nos experts , mas dando destaque ao papel fundamental de muitos outros personagens. Essas redes construídas no Oitocentos permitiram alinhar os pontos entre os projetos dos arquitetos e engenheiros de “além-mar”, com uma reciprocidade que os autores profundamente exploram. Sendo a arquitetura para os seus utilizadores e, no caso do tipo hospitalar ou assistencial, para os seus doentes, é de notar que, partilhando o palco, a visão dos seus utilizadores não é de somenos explorada, mas sim consequente das decisões políticas e das espacializações arquitetónicas adoptadas.

Por outro lado, o livro é mais uma contribuição para uma história da arquitetura com ênfase na história da medicina, numa primeira escala. Esse trabalho relê as entrelinhas entre essas duas disciplinas, fundamentais para a compreensão do poder político e económico, as suas consequências no planeamento urbano e, especialmente, na arquitetura hospitalar. Não fica apenas pelas fachadas, pelos pormenores construtivos ou ainda por elementos de índole artística – precisamente ícones de fulgurantes transições neoclássicas ou “beaux-artianas” francesas –, mas apoia-se na compreensão da arquitetura como um elemento organizado e integrativo. As descobertas médicas e a sua adopção no sentido científico e prático da época foram peças fundamentais e até dominantes para uma resposta por parte dos arquitetos, e contribuíram para uma nova visão de programa hospitalar. Concorda-se com as palavras dos organizadores, na “leitura dos diálogos intensos e ainda pouco visíveis na historiografia luso-brasileira” (Miranda, Costa, 2018), e até no ponto de vista internacional, que, só muito recentemente, considera a história das ciências, da tecnologia e da medicina não como mediadores, mas como fundamentais para a compreensão da razão (clássica e modernista) das decisões. Essa razão – científica, nesse caso – foi o mote para a construção de uma régua e de um esquadro próprios para os hospitais e a higienização das urbes, e a lente utilizada para as decisões políticas da época. Questionar o status quo vigente da historiografia da arquitetura, retomando a história comparada e com realce na história da ciência, é uma das grandes contribuições dessa obra.

Analisando o filme de um século iluminado, os vários fotogramas examinados pelos sete capítulos do livro examinam, em detalhe, o(s) seu(s) objeto(s): o(s) hospitai(s) (num sentido plural e lato).

Em comum surge a importância da transição entre a primeira e a segunda metade do século XIX: a década de 1850. As grandes epidemias (nacionais e internacionais), as pequenas mas significativas revoluções científicas desse século e o projeto e edificação de edifícios hospitalares não são – nem poderiam ser – um acaso probabilístico dessa década. As doenças, o urbanismo, a arquitetura, a sociedade e os médicos são figuras-chave, que os autores vastamente exploram, para reaver um significado histórico e uma descodificação causal. Adaptando Saramago, as “intermitências da morte” (tal como os surtos epidémicos) varriam os corpos doentes enquanto fizeram lavar as cidades e os edifícios. Também, nas palavras de Sanglard no prefácio do livro, surgem três marcadores cruciais para trilhar o seu caminho: “progresso, asseio (higiene) e racionalidade” (Miranda, Costa, 2018, p.10). Essas palavras são chaves e chavões para, precisamente, o Oitocentos em estudo. A arquitetura higienista, que tem o seu berço nesse século – mesmo que antes da apoteose do século seguinte –, encontrava-se imbuída no discurso dessa época, em Fafe ou no Rio de Janeiro, no Pará ou em Coimbra, ou em qualquer outro local onde as malas dos viajantes luso-brasileiros ou brasileiro-lusos estivessem pousadas.

Para onde foram esses doentes? Em que situações estavam esses doentes? Como viviam esses doentes?

Os autores instigam a arquitetura como contenção, como profilaxia, ou até como isolamento, para os seus vários programas – o do enfermo contagioso, do maluco, do pestilento. Mas esse programa não foi comum, naturalmente, a todos os estratos sociais da época, altamente segregados. Para além da capacidade científica e a sua utilização material na arquitetura, como respondeu a sociedade à incapacidade económica dos seus enfermos? Os estudos relacionados de sistemas das Misericórdias da época, e beneficência e de assistência (pública e privada) relacionaram-se, mas forçaram respostas projetuais diferenciadas. Na mesma sequência, é muito interessante e relevante o estudo paralelo entre várias instituições brasileiras e portuguesas, e suas relações simbióticas. Foram constituídas redes e trocas, com circulação de conhecimento científico e arquitetónico, cujas discussões e decisões, modelos e sistemas são manifestamente importantes tanto para o projeto e a sua materialização como para a compreensão de um fenómeno com diversas faces. Também a importância da circulação de conhecimento por meio da difusão popular, nomeadamente por meio das várias referências existentes no livro sobre opúsculos, boletins ou jornais, mostra tanto a urgência e a necessidade dos ensinamentos higiénicos como também a constante preocupação dos cientistas.

Os arquitetos ou os engenheiros são, assim, as personagens principais nesse palco. Foram os arquitetos uma das classes profissionais a contribuir para a formulação de modelos ou tipos, mas também aqueles que os materializaram. Concomitantemente, a sua utilização como objeto (o hospital, por exemplo), agregando também os desenvolvimentos científicos da época, foi também discutida pelos projetistas. Do desenho no papel à construção da obra, muitas discussões com médicos e políticos são borrachas ou escantilhões para o projeto de arquitetura. Nesse ponto, as adaptações neoclássicas (ou a sua anulação) ganham o seu propósito, pois estavam tanto enraizadas na formação dos arquitetos como vulgarizada na prática, no desenho. Mas apenas existia “um” neoclássico, ou as suas variações são diferentes dos dois lados do oceano? Como se mediou esse conflito estético e gramatical, e por quem? As várias e possíveis respostas encontram-se em cada um dos capítulos, mas levanta-se apenas o véu: a arquitetura portuguesa e a arquitetura brasileira têm ângulos de reflexão diferentes dos ângulos de incidência; mais, são caleidoscópios com resultados inesperados. A rotação da sua lente levanta mais interrogações: foi o neoclássico um estilo exequível para os preceitos higiénicos da época, ou constituiria ele próprio uma imagem de marca de higiene e sanidade, (ou ainda) uma imagem de um império?

O “projeto arquitetónico como enquadramento da memória” ( Miranda, Costa, 2018MIRANDA, Cybelle Salvador; COSTA, Renato da Gama-Rosa (Org.). Hospitais e saúde no Oitocentos : diálogos entre Brasil e Portugal. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz. 2018 . , p.122) resume, também, a vertente documental e a importância dos hospitais para a leitura da cidade. Mesmo perante a destruição de alguns edifícios (e, consequentemente – ou não – de documentação), só a memória permite consolidar a presença dessas instituições e matérias arquitetónicas, quer quando essas ainda existem, quer quando estão para sempre perdidas. Além dos organizadores, são Cibelly Figueiredo, Daniel Bastos, Emanuella Godinho, Éric Gallo, Fernando Grilo, Inês Andrade, Joana Pinho e Maria João Bonina os autores e escrivães desses sete capítulos, que constituem um registo de leitura(s) e memória(s) que não se perderam no oceano.

REFERÊNCIA

  • MIRANDA, Cybelle Salvador; COSTA, Renato da Gama-Rosa (Org.). Hospitais e saúde no Oitocentos : diálogos entre Brasil e Portugal. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz. 2018 .

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    13 Jul 2020
  • Data do Fascículo
    Apr-Jun 2020
Casa de Oswaldo Cruz, Fundação Oswaldo Cruz Av. Brasil, 4365, 21040-900 , Tel: +55 (21) 3865-2208/2195/2196 - Rio de Janeiro - RJ - Brazil
E-mail: hscience@fiocruz.br