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O evolucionismo na psicologia educacional: uma análise historiográfica

Evolutionary theory in educational psychology: a historiographical analysis

Resumo

Analisa-se o discurso sobre o desenvolvimento humano veiculado em manuais de psicologia educacional destinados à formação docente. Caracteriza-se nesses discursos a presença da “teoria da recapitulação”. Essa teoria, elaborada por Ernst Haeckel no campo da embriologia no final do século XIX, afirma que o indivíduo atravessa diversos estágios de desenvolvimento, que correspondem à forma adulta de seus antepassados na sequência evolutiva. Foi apropriada pela psicologia e serviu como modelo explicativo para diversos aspectos do desenvolvimento, desde as diferenças individuais e grupais na forma e no tamanho do cérebro até a evolução da linguagem e da moral. A análise recorre aos escritos de Michel Foucault acerca da análise do discurso e de Nikolas Rose a respeito da história da psicologia.

Ernst Haeckel (1834-1919; Michel Foucault (1926-1984; Nikolas Rose (1947; psicologia do desenvolvimento; formação de professores

Abstract

We analyze the discourse on human development in educational psychology manuals written for teacher training. “Recapitulation theory” is seen in this discourse. This theory, developed by Ersnt Haeckel in the field of embryology in the late nineteenth century, asserts that individuals pass through different development stages that correspond to the adult form of their ancestors in the evolutionary sequence. It was appropriated by psychology and served as an explanatory model for various different aspects of development, for everything from individual and group differences in the shape and size of the brain to the evolution of language and morals. The analysis refers to the writings of Michel Foucault on discourse analysis and to those of Nikolas Rose on the history of psychology.

Ernst Haeckel (1834-1919; Michel Foucault (1926-1984; Nikolas Rose (1947; developmental psychology; teacher training

Parece perverso sugerir que antes do início do século XX as crianças não se desenvolviam. Evidentemente, seu crescimento da infância à idade adulta sempre foi óbvio para qualquer um com olhos para ver. Ainda assim, não era de maneira nenhuma evidente que um conhecimento sistemático da infância deveria se basear na noção de que seus atributos devem ser ligados ao longo da dimensão do tempo em uma sequência unificada. Crianças pequenas foram objeto do interesse filosófico nos séculos XVIII e XIX, proporcionando ‘experimentos cruciais’ que poderiam revelar a presença ou ausência de qualidades e ideias inatas, ou mostrar a extensão em que os atributos humanos derivavam das sensações obtidas pelos órgãos do sentido. Mas no final do século XIX e no início do século XX, um novo olhar científico focalizou as crianças pequenas a partir da perspectiva da evolução (Rose, 1999ROSE, Nikolas. Governing the soul: the shaping of the private self. London: Free Association Books. 1999., p.144; destaques no original).

No decorrer do século XX, a promoção do desenvolvimento humano constituiu quase a própria razão de ser da educação escolar. A observação dos processos de desenvolvimento psicológico do aluno, ano a ano, série a série, e a avaliação de cada criança se tornaram atribuições fundamentais dos professores. Neste artigo, caracteriza-se o discurso da psicologia sobre o desenvolvimento da criança presente em manuais da disciplina destinados à formação docente. Mais especificamente, focaliza-se a presença de variações do enunciado “a ontogênese reproduz a filogênese”, afirmação fundamental da “teoria da recapitulação”, elaborada pelo médico Ernst Haeckel no campo da embriologia em 1866 e amplamente apropriada pelo campo das ciências humanas nas décadas seguintes (Gouvêa, Gerken, 2010, p.49).

De acordo com essa teoria, o indivíduo atravessa diversos estágios de desenvolvimento, que correspondem à forma adulta de seus antepassados na sequência evolutiva. Trazida para o domínio da psicologia, essa formulação serviu como modelo explicativo para diversos aspectos do desenvolvimento, desde a forma e o tamanho do cérebro até a evolução da linguagem e da moral. E levou os pesquisadores a aproximar o comportamento da criança ao do homem primitivo e do deficiente mental. Conforme Stephen Jay Gould (2003GOULD, Stephen Jay. A falsa medida do homem. São Paulo: Martins Fontes. 2003., p.113; destaque no original): “A recapitulação serviu como teoria geral do determinismo biológico. Todos os grupos ‘inferiores’ – raças, sexos e classes – foram comparados às crianças brancas do sexo masculino”. A teoria da recapitulação associou-se às teorias raciais do século XIX que pretenderam explicar as desigualdades entre os grupos humanos a partir do critério controverso da raça (Gouvêa, Gerken, 2010; Schwarcz, 1995SCHWARCZ, Lilia Moritz. O espetáculo das raças: cientistas, instituições e questão racial no Brasil, 1870-1930. São Paulo: Companhia das Letras. 1995.).

A análise toma como fontes obras redigidas por autores que lecionaram psicologia na Escola Normal Caetano de Campos e, posteriormente, na Universidade de São Paulo, bem como na Escola Normal e, mais tarde, no Instituto de Educação do Rio de Janeiro, entre 1914 e 1972. Orienta-se pelas considerações de Foucault (2004)FOUCAULT, Michel. A arqueologia do saber. Rio de Janeiro: Forense Universitária. 2004. em A arqueologia do saber, em que o autor considera as escolhas teóricas um modo de entrada em um discurso específico e ponto de partida para a formulação de enunciados. A teoria evolucionista foi empregada no discurso da psicologia educacional como uma escolha estratégica que, ao permitir a aproximação das ciências naturais, ensejou a formulação de enunciados tidos como verdadeiros sobre o sentido das transformações observadas nas crianças ao longo do tempo. Tornou possível, ainda, a enunciação das leis do desenvolvimento infantil, a serem obedecidas na educação. Constituiu-se em argumento científico empregado na crítica ao ensino tradicional, fundamentado na chamada “lógica do adulto”, e na defesa de sua substituição por um programa adaptado aos interesses e possibilidade de compreensão das crianças em cada etapa da sua evolução, como se verá adiante.

Segundo Foucault (2004FOUCAULT, Michel. A arqueologia do saber. Rio de Janeiro: Forense Universitária. 2004., p.74), “uma formação discursiva não ocupa, assim, todo o volume possível que lhe abrem por direito os sistemas de formação de seus objetos, de suas enunciações, de seus conceitos; ela é essencialmente lacunar, em virtude do sistema de formação de suas escolhas estratégicas”.

No discurso da psicologia educacional, nem tudo o que poderia ter sido enunciado a respeito das transformações observáveis nas crianças no decorrer do tempo o foi. O recurso à teoria evolucionista fez com que o enunciado “as crianças, assim como os povos primitivos, têm um pensamento mágico, diferente do pensamento racional do adulto civilizado” fosse várias vezes repetido, enquanto este outro, “a crença em Deus não é inata, mas resultado de um processo de aculturação que ocorre em diversas sociedades, tanto tradicionais como modernas e industrializadas”, embora possivelmente válido, não tenha sido encontrado. O recurso à teoria evolucionista no discurso da psicologia educacional afirmou a superioridade das sociedades ocidentais modernas sobre as tradicionais, por meio da oposição entre pensamento “mágico” e infantil e pensamento “científico” adulto, mas não foi mobilizado para desqualificar a fé religiosa como menos evoluída do que a confiança na ciência. Essas repetições e lacunas no discurso evidenciam que as escolhas teóricas que se manifestam em uma formação discursiva não estão dissociadas do desejo daqueles que se encontram em posição de enunciá-la. De acordo com Foucault (2004FOUCAULT, Michel. A arqueologia do saber. Rio de Janeiro: Forense Universitária. 2004., p.75), o desejo, longe de ser um elemento perturbador, extrínseco ao discurso, faz parte de seus “elementos formadores”. Caso se pretenda realizar uma análise do discurso tal como a sugerida por Foucault em A arqueologia do saber, as teorias devem ser descritas tal como formuladas no discurso, em seus próprios termos. Não se busca, além do que foi pronunciado, uma verdade oculta, deturpada, à espera de ser desvendada.

Não há (ou pelo menos não se pode admitir para a descrição histórica cuja possibilidade aqui traçamos) uma espécie de discurso ideal, ao mesmo tempo último e intemporal, que escolhas de origem extrínseca teriam pervertido, desordenado, reprimido, lançado para um futuro talvez muito longínquo; não se deve supor, por exemplo, que existam sobre a natureza ou sobre a economia, dois discursos superpostos e misturados: um que prossegue lentamente, que acumula suas aquisições e, pouco a pouco, se completa (discurso verdadeiro, mas que só existe em sua pureza nos confins teleológicos da história); o outro, sempre arruinado, sempre recomeçado em contínua ruptura consigo mesmo, composto de fragmentos heterogêneos (discurso de opinião, que a história, ao longo do tempo, lança para o passado) (Foucault, 2004FOUCAULT, Michel. A arqueologia do saber. Rio de Janeiro: Forense Universitária. 2004., p.77).

Não se pretende medir a distância que separa o discurso da psicologia educacional pronunciado nos livros aqui selecionados do discurso contemporâneo sobre o desenvolvimento da criança, para explicitar suas ingenuidades, ignorâncias e preconceitos que o afastam do que se admite atualmente como sendo a verdade. Os enunciados foram examinados em seus próprios termos, do modo como se apresentam nos textos analisados, o que significa que não se procurou avaliar o grau de correção e rigor ou, ao contrário, de simplificação ou distorção desses enunciados em relação à teoria “original” atribuída a Haeckel e posteriormente apropriada por Spencer no campo da sociologia e da psicologia então nascentes. Em vez disso, tratou-se de mostrá-los tal como se apresentam nas páginas dos livros destinados aos professores.

O desenvolvimento humano como objeto para a ciência

A preocupação em dividir a vida humana em etapas é anterior ao surgimento da psicologia e foi tema de interesse especializado ao menos desde o Renascimento, quando as crianças se tornaram objeto de atenção especial, passando a ser percebidas como um grupo distinto de pessoas, com necessidades próprias (Ariès, 1981ARIÈS, Philippe. História social da criança e da família. São Paulo: Livros Técnicos e Científicos. 1981.). António Ferreira observou que, embora a psicologia do desenvolvimento tenha se estabelecido apenas no decorrer do século XX, a ordenação das fases da vida já ocupava bastante espaço em discursos médicos e pedagógicos nos séculos XVII, XVIII e XIX. Exemplo disso é a obra Didática magna, de 1632 (Coménio, 1985COMÉNIO, João Amós. Didática magna: tratado da arte universal de ensinar tudo a todos. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian. 1985.), que propõe uma organização escolar em etapas correspondentes às fases da vida (Ferreira, 2010FERREIRA, António Gomes. A criança e o seu desenvolvimento em discursos médicos e pedagógicos que circularam no contexto português (séculos XVIII a XX). Educação em Revista, v.26, n.1, p.215-234. 2010., p.218).

No decorrer do século XIX, o estudo do desenvolvimento humano tomou um novo impulso, quando passou a ser feito no âmbito da biologia, associado à teoria da evolução das espécies. O conceito de “evolução” tornou-se central nas tentativas de explicar as transformações vividas pelas sociedades desde o homem primitivo até o homem civilizado das sociedades ocidentais, assim como as mudanças no indivíduo desde a primeira infância até a idade adulta. Também foi empregado para comparar os indivíduos considerados deficientes mentais aos indivíduos tidos como normais. Influenciou ainda a filosofia política, dando origem ao chamado darwinismo social.

Nos estudos sobre o desenvolvimento humano realizados sob a égide da biologia, o conceito de “adaptação” foi fundamental. Compreendia-se que “os processos de desenvolvimento individual seriam definidos por transformações evolutivas desde a precariedade dos mecanismos adaptativos da criança pequena ao ápice das formas de interação com o ambiente característico da idade adulta” (Gouvêa, Gerken, 2010, p.34). Além dos conceitos de “adaptação” e de “evolução”, a ideia de “raça” também foi determinante para esses estudos. As teorias raciais e as teorias embriológicas forneceram os modelos para se pensar a respeito dos processos de desenvolvimento do indivíduo.

Estava instituída na biologia do século XIX uma controvérsia acerca das diferenças entre os povos. A perspectiva monogenista afirmava a igualdade entre as raças e atribuía o grau diferenciado de desenvolvimento entre elas a fatores históricos. Por sua vez, “os poligenistas, representados principalmente por Taine, Gobineau e Renan, afirmavam que os homens tinham origens distintas, tendo partido de diferentes centros de criação, os quais teriam originado humanidades plurais e cindidas” (Gouvêa, Gerken, 2010, p.40). Com a publicação de A origem das espécies, acabou prevalecendo a perspectiva monogenista, mas que, na prática, equivalia ao poligenismo ao considerar as diferenças entre as raças muito antigas e, portanto, irreversíveis. Para esse resultado, concorreu a publicação da obra Desigualdade das raças humanas, de Gobineau, em 1856, que alcançou grande divulgação na época e teve ampla aceitação no meio científico (Schwarcz, 1995SCHWARCZ, Lilia Moritz. O espetáculo das raças: cientistas, instituições e questão racial no Brasil, 1870-1930. São Paulo: Companhia das Letras. 1995.; Gouvêa, Gerken, 2010).

Os estudos biológicos da embriologia também influenciaram os estudos sobre o desenvolvimento do indivíduo, ao estabelecer uma analogia entre os processos evolutivos intrauterinos e o desenvolvimento posterior, do nascimento à idade adulta. Ernst Haeckel (1834-1919) formulou a lei biogenética, ou teoria da recapitulação, segundo a qual a ontogênese reproduz a filogênese, ou seja, o princípio segundo o qual o indivíduo reproduz em seu desenvolvimento as etapas de desenvolvimento da vida na Terra (na fase de embrião).

A perspectiva monista de Haeckel, que estabelecia uma “homologia entre os processos evolutivos naturais, psíquicos e sociais” (Gouvêa, Gerken, 2010, p.52), era também poligenista ao afirmar que, embora houvesse um único gênero humano, esse englobava espécies distintas e hierarquicamente ordenadas. No que dizia respeito ao desenvolvimento psicológico, comparavam-se os traços intelectuais e emocionais do selvagem, do primitivo, às características da criança branca. Para a nascente psicogenia, “as possibilidades do desenvolvimento individual estariam definidas por seu pertencimento sociorracial” (p.56).

Herbert Spencer (1820-1930) foi o principal divulgador da concepção segundo a qual todos os fenômenos físicos, sociais e naturais se processam de acordo com um modelo evolutivo universal. Acreditava que havia “uma homologia nos processos de desenvolvimento individual e social em que as crianças manifestariam os mesmos traços caracterológicos, psíquicos e morais das raças ditas primitivas” (Gouvêa, Gerken, 2010, p.63). Adepto de uma perspectiva lamarkiana, rejeitou a lei universal do progresso, substituindo-a pela hipótese segundo a qual os processos de adaptação dos grupos humanos podiam se orientar tanto para o progresso quanto para a degeneração. Spencer “inverteu a perspectiva de determinação biológica tradicional, entendendo que o tamanho do cérebro seria função do desenvolvimento social. Para ele, a evolução social não seria função da evolução biológica, mas sua determinante” (Gouvêa, Gerken, 2010, p.67).

A partir de 1870, realizaram-se estudos monográficos sobre o desenvolvimento a partir da observação de crianças, frequentemente os próprios filhos dos pesquisadores. Essas pesquisas resultavam em diários, cada vez mais comuns no final do século XIX, motivados pela expectativa de que a observação do desenvolvimento da criança permitiria compreender a evolução da humanidade, bem como as características que distinguem os humanos dos animais, e ainda identificar até que ponto o comportamento era herdado ou aprendido (Rose, 1999ROSE, Nikolas. Governing the soul: the shaping of the private self. London: Free Association Books. 1999.).

Nesse conjunto, destacou-se o trabalho Tieldmanns record of infant life, escrito por um professor alemão de filosofia, interessado em investigar o surgimento da inteligência na criança a partir da observação de seu filho. Darwin também se dedicou ao registro sistemático das ações de seu primeiro filho, nascido em 1839. Em 1881, Wiliam Preyer publicou The mind of the child: observations concerning the mental development of the human being in the first year, considerado o trabalho inaugural da ciência psicogenética. Preyer era fisiologista e colega de Haeckel na Universidade de Jena, cujo trabalho conhecia. Interessava-se também pelo estudo do desenvolvimento embrionário, mas, “ao contrário de Taine e Darwin, Preyer recusava o estudo comparativo com outras espécies, por considerá-lo inútil para a compreensão dos processos de desenvolvimento humanos” (Gouvêa, Gerken, 2010, p.85).

Cumpre destacar ainda o trabalho de James Baldwin (1861-1934), psicólogo norte-americano considerado precursor de Piaget. Formado em filosofia, em 1884, ganhou uma bolsa de estudos para estudar com o eminente psicólogo William Wundt. Seguindo a tradição dos estudos monográficos a partir da observação de crianças, realizou registros sobre o desenvolvimento de suas duas filhas. Seu interesse pela origem das funções psíquicas afastou-o da perspectiva estrutural de Wundt e da psicologia experimental dedicada, e aproximou-o da psicologia funcional de William James (1842-1910), que privilegiava a adaptação do organismo ao meio. Baldwin formulou dois princípios fundamentais para os estudos dos processos genéticos: “Todas as séries verdadeiramente genéticas são irreversíveis e cada novo estágio, ou termo, nas séries verdadeiramente genéticas, são sui generis, um novo modo de presença naquilo que é chamado realidade” (Gouvêa, Gerken, 2010, p.112). Considerou que o desenvolvimento da mente pode ser visto de qualquer um destes três pontos principais: a perspectiva filogenética (estabelecimento de relações entre o desenvolvimento humano e o de outras espécies); a perspectiva antropológica (comparação entre o desenvolvimento de diferentes grupos sociais, traçando-se o desenvolvimento do homem primitivo ao civilizado); a perspectiva psicogenética (estudo do desenvolvimento psicológico do indivíduo “normal”). No diálogo entre a biologia, a antropologia e a psicologia, procurou formular as bases para uma ciência psicogenética (Gouvêa, Gerken, 2010; Ferreira, 2010FERREIRA, António Gomes. A criança e o seu desenvolvimento em discursos médicos e pedagógicos que circularam no contexto português (séculos XVIII a XX). Educação em Revista, v.26, n.1, p.215-234. 2010.).

No início, esses primeiros estudos de crianças mostraram-se importantes para a psicologia do desenvolvimento, mas foram principalmente as investigações realizadas em clínicas e escolas que permitiram a ampliação de seus conhecimentos. As instituições de saúde e educação infantil forneceram aos especialistas ambiente mais propício à observação, ao reunir no mesmo espaço uma grande quantidade de crianças de diversas faixas etárias. Nas escolas, criaram-se condições ótimas para a observação dos comportamentos, a realização de comparações e o estudo das diferenças individuais. Os psicólogos passaram a identificar padrões de comportamento para cada idade, alinhados em um eixo temporal dividido em etapas. Esse modo de sistematização das observações tornou possível a comparação entre as capacidades de qualquer indivíduo e a norma para a sua faixa etária. Diversas manifestações relativas a postura, locomoção, aquisição de vocabulário, destreza manual, modos de interação com os objetos e com outras pessoas, interesse sexual etc. passaram a ser apreciadas como indícios de desenvolvimento normal, adiantado ou atrasado. As escalas de desenvolvimento se multiplicaram e se tornaram parte do saber considerado imprescindível para os professores. Por meio de sua divulgação, mães, pediatras, professores e outros profissionais encarregados dos cuidados e da educação das crianças e adolescentes foram convocados a atuar como vigilantes do desenvolvimento, sempre atentos às manifestações atípicas do comportamento que pudessem sugerir a necessidade de intervenções especializadas (Rose, 1999ROSE, Nikolas. Governing the soul: the shaping of the private self. London: Free Association Books. 1999.).

Em solo brasileiro, a psicologia do desenvolvimento difundiu-se a partir da perspectiva funcionalista, em especial por meio da divulgação das obras de William James, Édouard Claparède e John Dewey, recorrentes na bibliografia dos manuais (Campos et al., 2004a). Em estudo histórico a respeito da importação das ideias estrangeiras das perspectivas genética e funcional na produção da psicologia brasileira do século XX, Regina Helena de Freitas Campos e colaboradores propuseram uma divisão do período em cinco fases. A primeira vai até 1930 e coincide com a “fase heroica” da psicologia brasileira, na designação de Lourenço Filho, caracterizada pela iniciativa de um pequeno grupo de educadores interessados em divulgar a produção estrangeira no país. Nesse período, estabeleceram-se duas vertentes da psicologia funcional no Brasil:

A primeira delas, iniciada por Manuel Bomfim, dialoga sobretudo com a tradição europeia, especialmente nas vertentes desenvolvidas por Alfred Binet, no Laboratório de Psicologia Experimental da Sorbonne, em Paris, e por Édouard Claparède, na Suíça; a segunda, presente na obra de Medeiros e Albuquerque, Sampaio Dória e Anísio Teixeira, sofre uma maior influência da perspectiva funcionalista norte-americana, especialmente daquela desenvolvida nas obras de William James e John Dewey. O próprio Lourenço Filho faz parte desse pequeno grupo de estudiosos que iniciaram o trabalho em Psicologia no Brasil na perspectiva funcionalista, e sua obra caracteriza-se pelo amplo conhecimento tanto da vertente europeia quanto da norte-americana (Campos et al., 2004a, p.162).

Nas décadas de 1930 e 1940, já na segunda fase, buscou-se aproximar a psicologia da realidade brasileira por meio de investigações conduzidas no país. Surgiram então os serviços de psicologia associados ao sistema escolar, que criaram a oportunidade para a realização de estudos sobre os escolares brasileiros, de que são exemplos o Laboratório de Psicologia da Escola de Aperfeiçoamento de Professores de Minas Gerais, criado por Léon Walther em 1928 e dirigido por Helena Antipoff, o Serviço de Psicologia Aplicada anexo à Diretoria Geral do Ensino de São Paulo, organizado em 1931, a cargo de Noemy da Silveira Rudolfer, e a Seção de Ortofrenia e Higiene Mental do Instituto de Pesquisas Educacionais do Rio de Janeiro, criada em 1934 e dirigida por Arthur Ramos. Na fase seguinte, de 1940 a 1960, iniciaram-se os cursos superiores de formação em psicologia no Brasil, que permitiram a expansão da pesquisa científica, com ênfase nos estudos sobre os efeitos da cultura na formação da personalidade, de que são exemplos, na Faculdade de Filosofia da Universidade de São Paulo, os trabalhos realizados por Anitta Cabral e o canadense Otto Klineberg, que atuou como professor de psicologia visitante na instituição. Na Faculdade de Filosofia da Universidade Federal do Rio de Janeiro, difundiu-se a partir desse período a teoria de Piaget, por iniciativa de António Gomes Penna. Na quarta fase, que se estende de 1960 a 1990, foram criados os cursos superiores de psicologia no Brasil, e, posteriormente, os cursos de pós-graduação associados à formação de novos grupos de pesquisa, muitos dos quais dedicados aos estudos piagetianos e suas implicações para a educação (Campos et al., 2004b, p.196). Essa fase se caracterizou pela intensificação do debate em torno das relações entre cultura e desenvolvimento psicológico e pela centralidade do fracasso escolar como tema de investigação, fosse a partir da teoria da carência cultural ou outras perspectivas que se empenharam em fazer a sua crítica, como foi o caso dos trabalhos realizados a partir do materialismo histórico. Na última fase, iniciada em 1990, a perspectiva genético-funcional, especialmente referida às obras de Piaget e Vygotsky, ampliou-se a partir da criação e expansão dos grupos de pesquisa e programas de pós-graduação em psicologia.

A teoria evolucionista ensinada aos professores em São Paulo e no Rio de Janeiro

Em São Paulo, o período inicial do ensino de psicologia aos normalistas pode ser mais bem compreendido no âmbito da reforma do ensino empreendida por Caetano de Campos em 1890, emblemática da nova ordem republicana. Para o reformador, o novo regime político, ao entregar ao povo a direção de si mesmo, requeria a instrução para formar suas escolhas e convicções em bases científicas. Com esse propósito, construiu-se na praça da República o edifício majestoso da nova Escola Normal e a Escola Modelo anexa, onde os normalistas deveriam aprender na prática o moderno método intuitivo, adequado à psicologia infantil. Para implantá-lo apropriadamente, foram contratadas professoras formadas nos Estados Unidos e importados materiais didáticos (Carvalho, 2011CARVALHO, Marta Maria Chagas de. A escola e a República. São Paulo: Brasiliense. 2011.).

A psicologia já estava prevista no currículo da instituição desde 1892, no âmbito da disciplina Psicologia, moral e educação cívica, que, no entanto, foi suprimida antes mesmo de chegar a ser ministrada. Mais tarde, na reforma curricular realizada pelo novo diretor, Oscar Thompson, em 1911, a psicologia foi restituída, na disciplina Psicologia, pedagogia e educação cívica, e tornou-se símbolo da modernização do ensino, capaz de proporcionar bases científicas às práticas escolares. Em 1914, criou-se na Escola Normal de São Paulo o Gabinete de Antropologia Pedagógica e Psicologia Experimental, com o objetivo de favorecer a realização de investigações sobre os alunos que permitissem formar classes homogêneas e ajustar o ensino às diferenças individuais (Tavares, 1995TAVARES, Fausto. A ordem e a medida: escola e psicologia em São Paulo (1890-1930). Dissertação (Mestrado em Educação) – Universidade de São Paulo, São Paulo. 1995.; Carvalho, 1997CARVALHO, Marta Maria Chagas de. Quando a história da educação é a história da disciplina e da higienização das pessoas. In: Freitas, Marcos Cezar de (Org.). História social da infância no Brasil. São Paulo: Cortez; USF. 1997.). De 1920 em diante, por iniciativa de Sampaio Dória, a matéria que ele próprio lecionava desde 1914 foi desmembrada, e a psicologia se tornou uma matéria independente (Tavares, 1995TAVARES, Fausto. A ordem e a medida: escola e psicologia em São Paulo (1890-1930). Dissertação (Mestrado em Educação) – Universidade de São Paulo, São Paulo. 1995.; Monarcha, 1999MONARCHA, Carlos. Escola Normal da Praça: o lado noturno das luzes. Campinas: Editora da Unicamp. 1999.).

Em 1931, a Escola Normal Caetano de Campos foi transformada em Instituto Pedagógico, e dois anos mais tarde em Instituto de Educação, para formação em nível superior. Este foi incorporado à Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras (FFCL) em 1934, quando foi fundada a Universidade de São Paulo. Em 1938, o governo do estado extinguiu o instituto e criou uma Seção de Educação na FFCL-USP, posteriormente designada Seção de Pedagogia, para a qual se transferiram os professores do antigo instituto. Essa transição, que impôs a coexistência dos professores da Faculdade de Filosofia com os novos professores, antigos normalistas, não foi bem aceita pelos primeiros, que viam com despeito e desconfiança os docentes da Seção de Educação. Criou-se um espaço universitário cindido, em que o curso de didática e seus professores eram desprestigiados. Em 1946, André Dreyfus, diretor da faculdade, solicitou ao ministro da Educação uma mudança no currículo, que resultou em um decreto autorizando a redução da parte pedagógica da formação dos professores secundários nas disciplinas de Psicologia educacional, Didática geral e Didática especial (Bontempi Jr., 2011). Essa providência evidenciava a desvalorização da formação pedagógica, mas também o reconhecimento da importância do estudo da psicologia pelos futuros professores.

Na década seguinte, criou-se na FFCL-USP o curso de psicologia, iniciado em 1958 e formado pela reunião da cadeira de Psicologia educacional, do curso de pedagogia, e da cadeira de Psicologia do curso de filosofia, a qual se desdobrou em outras duas: Psicologia clínica e Psicologia experimental e social. A partir de 1968, com a reforma universitária e a elaboração dos novos estatutos da Universidade de São Paulo, foi criada a Faculdade de Educação, que passou a funcionar em janeiro de 1970, mesmo ano em que foi instalado na USP o Instituto de Psicologia, criado pelo decreto n.52.326 do governador do estado em 1969. Desde então, o ensino e a pesquisa em psicologia voltados às questões relativas à educação tiveram continuidade tanto na Faculdade de Educação quanto no Instituto de Psicologia.

Sampaio Dória (1883-1964) e Lourenço Filho (1897-1970) eram formados em direito e sucederam-se no ensino de psicologia para os alunos da Escola Normal Caetano de Campos, além de ter desempenhado funções importantes na administração do ensino e na política do país. Sampaio Dória participou na criação da Liga Nacionalista de São Paulo e, em 1920, tornou-se diretor-geral da Instrução Pública do Estado de São Paulo. Lecionou na Faculdade de Direito de São Paulo, tendo sido exonerado do cargo por Getúlio Vargas. Com o fim do Estado Novo, foi nomeado ministro da Justiça (Boto, 2018BOTO, Carlota. Sampaio Dória (1883-1964): política, democracia e instrução pública. In: Rego, Teresa Cristina. Educadores brasileiros: ideias e ações que marcaram a educação nacional. Curitiba: CRV. p.53-64. 2018., p.54). Ao concurso para ingresso na Escola Normal Caetano de Campos, Sampaio Dória (1914)SAMPAIO DÓRIA, António de. Princípios de pedagogia. São Paulo: Pocai Weiss. 1914. apresentou a tese Princípios de pedagogia, de que se tratará adiante. Lourenço Filho foi seu aluno e dedicou-lhe sua Introdução ao estudo da escola nova (1930). Educador atuante, foi diretor-geral da Instrução Pública no Ceará e em São Paulo, diretor do Instituto de Educação do Distrito Federal e presidente da Associação Brasileira de Educação, entre outras posições de destaque no campo educacional. Atuou também na divulgação do conhecimento especializado da psicologia, tendo traduzido Psicologia experimental, de Henri Piéron, A escola e a psicologia experimental, de Édouard Claparède, e Testes para a medida da inteligência, de Binet e Simon, e dirigido a Biblioteca de Educação da Companhia Melhoramentos de São Paulo (Catani, 2018CATANI, Denice Barbara. Lourenço Filho (1897-1970): uma vida dedicada à educação. In: Rego, Teresa Cristina. Educadores brasileiros: ideias e ações que marcaram a educação nacional. Curitiba: CRV. p.101-111. 2018., p.102-103). Na Escola Normal, Lourenço Filho foi sucedido por Noemy da Silveira Rudolfer (1902-1988), que fora sua aluna na Escola Normal Padre Anchieta. Na ocasião de seu ingresso na USP, ela apresentou a tese A evolução da psicologia educacional através de um histórico da psicologia moderna (Rudolfer, 1936RUDOLFER, Noemy da Silveira. A evolução da psicologia educacional através de um histórico da psicologia moderna. São Paulo: Revista dos Tribunais. 1936.), posteriormente publicada na forma de livro, com o título Introdução à psicologia educacional (Rudolfer, 1961RUDOLFER, Noemy da Silveira. Introdução à psicologia educacional. São Paulo: Companhia Editora Nacional. 1961.), dedicada a Lourenço Filho. Os três professores da Escola Normal paulista foram signatários do “Manifesto dos pioneiros da educação nova”, de 1932.

Onofre de Arruda Penteado Junior trabalhou ao lado de Noemy Rudolfer como catedrático de Didática geral e especial na seção de pedagogia da FFCL-USP. Escreveu o Compêndio de psicologia: problemas de psicologia educacional para o uso das escolas normais (1949). Dante Moreira Leite (2010)LEITE, Dante Moreira. O desenvolvimento da criança. São Paulo: Unesp. 2010., autor de O desenvolvimento da criança, publicado pela primeira vez em 1971, cursou filosofia na mesma instituição. Sob a orientação de Annita Cabral, tornou-se doutor e, posteriormente, livre-docente em psicologia educacional no então recém-criado Instituto de Psicologia da USP.

Em sua história da psicologia educacional, Noemy Rudolfer considerava que

dois grandes fatos emprestam ao século XIX especial significação para a psicologia educacional: o nascimento da psicologia experimental e o advento da teoria evolucionista. Os dois pontos de vista resultantes, o experimental e o genético, proporcionam novo estímulo e nova direção às cogitações da psicologia. E, conquanto o laboratório devesse, numa certa extensão, substituir o estudo pela investigação em alguns problemas, por outro lado cresciam de vulto as considerações relativas ao desenvolvimento da consciência e do comportamento devido ao fato de estar, o homem, em relação íntima com os seus semelhantes e com os outros animais. Além disso, a teoria evolucionista contribuiu com suas concepções capitais para a mudança da psicologia geral e para a organização definitiva da psicologia educacional: a da herança mental que nos é legada e a da adaptação do indivíduo ao meio (Rudolfer, 1936RUDOLFER, Noemy da Silveira. A evolução da psicologia educacional através de um histórico da psicologia moderna. São Paulo: Revista dos Tribunais. 1936., p.135).

O recurso à teoria evolucionista, ao aproximá-la das ciências naturais, favoreceu a legitimação científica da psicologia educacional. A partir do seu estudo, esperava-se desvendar as leis do desenvolvimento. A psicologia educacional tomava como ponto de partida o enunciado segundo o qual “a criança não é um homem em ponto pequeno, tem sua psicologia própria” (Sampaio Dória, 1914SAMPAIO DÓRIA, António de. Princípios de pedagogia. São Paulo: Pocai Weiss. 1914., p.11), e que precisa ser levada em consideração pelos adultos encarregados de ensiná-las. Associava-se a essa ideia a afirmação de que “a criança é o pai do homem” (Leite, 2010LEITE, Dante Moreira. O desenvolvimento da criança. São Paulo: Unesp. 2010., p.41-42), considerando-se que o comportamento do adulto se explica pela história de sua criação, de modo que as consequências dos erros cometidos na educação da criança se fariam sentir por toda a vida. Essas afirmativas eram associadas à hipótese de recapitulação da recomendação de Hebert Spencer de “que a educação seja em ponto pequeno uma reprodução da cultura humana” (citado em Sampaio Dória, 1914SAMPAIO DÓRIA, António de. Princípios de pedagogia. São Paulo: Pocai Weiss. 1914., p.18).

Os livros de Sampaio Dória, Lourenço Filho, Noemy Rudolfer e Onofre Penteado Junior endossam a ideia principal da recapitulação, de que a criança se aproxima do homem primitivo por seu comportamento e modo de pensar. Parte expressiva de Princípios de pedagogia é dedicada à exposição desse princípio e suas implicações educacionais. Conforme Sampaio Dória (1914)SAMPAIO DÓRIA, António de. Princípios de pedagogia. São Paulo: Pocai Weiss. 1914., o desenvolvimento humano é determinado por dois conjuntos de fatores, os de ordem social e os de ordem individual. Os primeiros são explicados pela teoria da recapitulação: “Na opinião quase unânime dos pedagogistas, dignos desse nome, ‘a criança se desenvolve como se desenvolveu a espécie’” (p.13; destaque do autor). Refere-se a Comte para estabelecer o paralelismo entre a história da civilização e a educação da criança. Em sua aplicação pedagógica, suprime a idade metafísica da humanidade, e os anos de formação são divididos em duas fases: a da educação “espontânea ou materna”, que reproduz “a fase feitícica da cultura”, e a da educação pública, que tornaria “os indivíduos capazes das sociedades superiores, unificadas no gênero humano” (p.14-15). Para Spencer, o governo das crianças devia seguir a história política:

Por fim, uma passagem última, onde a lei da recapitulação abreviada se impõe ao espírito de Spencer: ‘Que a história da legislação doméstica seja um resumo da história da legislação política: a princípio, a autoridade despótica, quando essa autoridade for de fato necessária; logo depois um constitucionalismo nascente, em que a liberdade do indivíduo é reconhecida em alguns pontos; e, afinal, aumentos sucessivos da liberdade do vassalo até a completa abdicação do senhor’ (citado em Sampaio Dória, 1914SAMPAIO DÓRIA, António de. Princípios de pedagogia. São Paulo: Pocai Weiss. 1914., p.19; destaques no original).

Em Introdução ao estudo da escola nova, Lourenço Filho (1930) considera que os estudos sobre a infância haviam alcançado o limiar da cientificidade graças à teoria evolucionista. Desde então, a criança já não era comparada ao adulto civilizado, mas compreendida a partir da aproximação entre o seu comportamento e o dos animais, povos primitivos e alienados. Seguindo Sampaio Dória, Lourenço Filho afirma que a perspectiva evolutiva fornecera o modelo para a compreensão das bases sociais do comportamento humano.

Ao mesmo passo, a psicologia dos primitivos vinha demonstrar a importância da interpsicologia, ou da influência do meio social na formação do comportamento humano. O pensamento não seria mais produto individual, mas necessidade social, fabricada pela sociedade. Uma velha ideia de Comte, renovada por Durkheim e Tarde. E, desde então, as reações verbais, ou seja, a linguagem (como outros produtos sociais: arte, religião, direito), passaram a ser objetivamente estudados na criança e no selvagem, da mesma forma por que, neles, se estudavam antes as reações simplesmente motrizes. Estavam assentados os primeiros fundamentos da psicologia realmente científica (Lourenço Filho, 1930, p.46-47).

Noemy da Silveira Rudolfer, em sua Introdução à psicologia educacional, dedica um capítulo à “Psicologia da criança e suas contribuições à psicologia educacional”, em que divide os estudos sobre o desenvolvimento infantil em três períodos: filosófico, pré-científico e científico. Seriam representantes do primeiro período Rousseau, Pestalozzi e Froebel, que, embora já manifestassem interesse pela criança e defendessem a adaptação da educação às suas características e necessidades, pretendiam conhecer a criança por meio “de experiências ocasionais, de apriorismos e inferências filosóficas” (Rudolfer, 1961RUDOLFER, Noemy da Silveira. Introdução à psicologia educacional. São Paulo: Companhia Editora Nacional. 1961., p.136). O segundo período, pré-científico, é apresentado como aquele em que começaram a ser produzidos relatos baseados na observação de crianças na forma de diários, porém sem a preocupação de coletar informações sobre um grande número de indivíduos ou controlar as condições de observação. A autora se refere a Darwin, que escreveu Biographical sketch of an infant, como o principal representante dessa fase. Menciona também Preyer, autor de Soul of the child, que realizara observações sistemáticas de uma criança nos seus primeiros três anos de vida, como precursor do período seguinte. Afirma que a psicologia da criança alcançara o status de conhecimento científico com Stanley Hall, que, em vez de se basear apenas em registros de observações do comportamento infantil, empregou questionários em suas investigações.

Nos primeiros dias do darwinismo, Haeckel mostrara que o embrião humano passa por estádios que se assemelham àqueles pelos quais a raça passou; formula, assim, em 1866, a ‘lei biogenética’ – a embriogênese repete a filogênese (p.114) ... Sobre esses fundamentos, Hall expõe no seguinte princípio essa herança: a criança passa por uma série de estádios semelhantes aos da vida da espécie. Passa, como a espécie, por um período de caça, de construção, de coleção, de pastoreio. Igualmente, interpreta os jogos da criança como sendo o exercício daquelas atividades próprias do estágio cultural a que corresponde seu próprio estágio. A educação, portanto, deve, no seu entender, consistir em oferecer-se à criança as oportunidades para expansão desses impulsos característicos de cada época de desenvolvimento, com o seu ciclo inevitável de instintos e interesses. Foi da psicologia comparativa que ele tirou a noção da evolução dos instintos, assim como colheu, da biologia, a teoria da recapitulação (Rudolfer, 1961RUDOLFER, Noemy da Silveira. Introdução à psicologia educacional. São Paulo: Companhia Editora Nacional. 1961., p.114-115; destaques no original).

Apesar disso, considera criticáveis os procedimentos dele, pois entende que o psicólogo “empregou métodos quantitativos rudes” ao interpretar os dados de seus questionários, cuja construção, além disso, afastava-se da “técnica moderna” (Rudolfer, 1961RUDOLFER, Noemy da Silveira. Introdução à psicologia educacional. São Paulo: Companhia Editora Nacional. 1961., p.137). Depois de apresentar o pioneirismo de Stanley Hall, a autora se refere aos seus seguidores Terman, Gesell, Goddard, Sully e Baldwin. Este último é autor da obra Mental development in the child and the race, que abrira “o caminho para o estudo da correlação entre os dados da psicologia da criança e os da biologia” (Rudolfer, 1961RUDOLFER, Noemy da Silveira. Introdução à psicologia educacional. São Paulo: Companhia Editora Nacional. 1961., p.145). Noemy Rudolfer afirma que “coube a Baldwin ver o inverso da ideia do desenvolvimento racial, aplicando o plano do desenvolvimento racial ao estudo da mente individual”, sem se deter, contudo, na explicação da teoria do autor (p.145). Ao final do capítulo intitulado “A psicologia da criança e suas contribuições à psicologia educacional”, a autora informa que a teoria da recapitulação já não era aceita para explicar a evolução dos instintos e interesses na criança. Diz: “A moderna psicologia educacional não crê, porém, que a evolução das tendências instintivas obedeça à filogênese: o papel do meio é preponderante na determinação do objeto sobre o qual se exercerão os instintos e interesses” (p.153).

No Compêndio de psicologia, de Onofre de Arruda Penteado Junior (1949), não há um capítulo especialmente dedicado ao tema do desenvolvimento da criança, mas a teoria da recapitulação está presente em várias passagens do livro, cujas referências fundamentais são as obras de Piaget Le langage et la pensée chez l’enfant (1924) e Le jugement moral chez l’enfant (1930) e as de Claparède Psicologia del niño (1927) e A educação funcional (1933). Em todos os casos, busca-se evidenciar as semelhanças entre a criança e o “homem primitivo”. É significativo que esse “homem primitivo” fosse abstraído de qualquer contexto, não se referisse a qualquer comunidade em particular. No máximo era o aborígene ou o índio de certa tribo não especificada.

A criança, segundo a explicação de Piaget, ‘sobredetermina’ suas ideias. Em vez de as definir de maneira unívoca, as define por muitos caracteres ao mesmo tempo. Assim, vivente, para ela, é o que está em movimento, o que se move. Generaliza por confusão, mistura os gêneros, aproveita as analogias acidentais, as aproximações fortuitas. O mesmo fenômeno se verifica nos primitivos: as árvores, os rochedos, podem possuir sentimentos humanos (Penteado Junior, 1949, p.126; destaque no original).

No livro O desenvolvimento da criança, de Dante Moreira Leite (2010)LEITE, Dante Moreira. O desenvolvimento da criança. São Paulo: Unesp. 2010., a teoria da recapitulação já não aparece como modelo para a compreensão do desenvolvimento, sendo referida como ultrapassada, pertencente ao passado da psicologia.

O paralelismo entre a ontogênese e a filogênese – isto é, o paralelismo entre o desenvolvimento do indivíduo e o da espécie – foi princípio aceito praticamente sem discussão. Em alguns autores do século XIX e mesmo do século XX, levou à ideia de que haveria raças ‘infantis’, onde seria possível encontrar o desenvolvimento da criança, mas não do adulto; em outros casos, esperava-se que a criança manifestasse as várias fases de evolução da humanidade. Hoje, dificilmente se aceitaria esse princípio, pois não é fácil dizer o que é infantil no comportamento, a não ser que se tenha um critério social de definição. Como se observa no texto de Baldus (capítulo 3), a criança no grupo primitivo pode parecer mais adulta do que nos povos industrializados; além disso, mesmo o adulto não perde o gosto pelo jogo e pelo brinquedo, supostamente infantis (Leite, 2010LEITE, Dante Moreira. O desenvolvimento da criança. São Paulo: Unesp. 2010., p.119; destaque no original).

Nos compêndios anteriores, a teoria da recapitulação como lei do desenvolvimento associa-se à constatação do problema da inadequação dos programas de ensino. Segundo os autores, na escola tradicional, os programas eram elaborados segundo a lógica dos adultos e não respeitavam o desenvolvimento das crianças. Assim como para Spencer o governo das crianças devia reproduzir a história política, de acordo com Sampaio Dória a educação deveria reproduzir a história da humanidade. Noemy Rudolfer ensinava que, de acordo com Stanley Hall, os professores deveriam se transformar em investigadores dos interesses típicos de cada fase do desenvolvimento. A escola nova, que levava em conta o conhecimento da psicologia da infância, aparecia como solução pedagógica progressista.

Em virtude dessa concepção, o educador se torna um investigador desses instintos e interesses para a eles adaptar o programa e a organização escolar. Assim, diz ele que, dos oito ou nove anos à puberdade, há diminuição do grau de crescimento, de modo a haver um relativo repouso do corpo, aumentando a vitalidade, a atividade e o poder de resistir às moléstias. É um período que corresponde ao período humano acima do símio e antes da era histórica, quando os nossos ancestrais já estavam bem ajustados ao seu ambiente. Não é época propícia para acentuar o raciocínio, o pensamento criador, apelar para o julgamento ou a originalidade. Mas é a ocasião para o exercício, formação de hábitos e mecanismos. É então que o professor deve lançar os fundamentos da educação pela leitura, escrita e aritmética (Rudolfer, 1936RUDOLFER, Noemy da Silveira. A evolução da psicologia educacional através de um histórico da psicologia moderna. São Paulo: Revista dos Tribunais. 1936., p.115).

Entre São Paulo e Rio de Janeiro, verifica-se uma correspondência quanto à sucessão dos professores de psicologia na Escola Normal e no Instituto de Educação. Como foi dito, em São Paulo, os primeiros professores de psicologia foram Sampaio Dória e Lourenço Filho, que exerceram o cargo de diretor-geral da Instrução Pública e outras posições de destaque na política educacional. Depois deles, a disciplina foi ensinada por Noemy Rudolfer, professora normalista. No Rio de Janeiro, os pioneiros foram Manoel Bomfim, que exerceu também a função de diretor da Instrução Pública, Plínio Olinto e Maurício de Medeiros. No Rio, a disciplina ficou posteriormente sob o encargo de Iva Waisberg Bonow, formada em 1934 no mesmo Instituto de Educação onde veio a lecionar. A trajetória dos docentes nessas instituições evidencia uma tendência mais geral do ensino da psicologia para professores em formação no Brasil, que foi inicialmente realizado nas escolas normais por advogados e médicos e, posteriormente, por professoras formadas nas próprias escolas normais e institutos de educação.

Manuel Bomfim, Plínio Olinto e Maurício de Medeiros estudaram na Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro e lecionaram na Escola Normal. Bomfim viajou para Paris em 1902 para estudar psicologia. Foi discípulo de Alfred Binet, que o ajudou a planejar a instalação do primeiro laboratório de psicologia aplicada do país, em 1906, no Pedagogium. Exerceu também os cargos de diretor da Escola Normal e diretor da Instrução Pública do Rio de Janeiro. É autor dos livros Lições de pedagogia, de 1915, e Noções de psicologia (Bomfim, 1917BOMFIM, Manoel. Noções de psicologia. Rio de Janeiro: Livraria Francisco Alves. 1917.), lançado originalmente em 1916, entre outros. Pelo conjunto de sua obra, Bomfim é hoje considerado um autor cujas ideias foram contra-hegemônicas, uma vez que ele se opôs às teorias raciais difundidas no Brasil nas primeiras décadas do século XX e explicou as condições sociais vividas no país em função da exploração colonial. Pesquisadores dedicados ao estudo de suas produções constataram que, já nas primeiras décadas do século XX, o autor fez a crítica da psicologia experimental que se restringia aos dados coletados em laboratório para explicar a “vida do espírito” (Bomfim, 1917).

Em Noções de psicologia, o autor afirma que “a formação da personalidade se realiza como resultante das tendências herdadas e da influência do meio” (Bomfim, 1917BOMFIM, Manoel. Noções de psicologia. Rio de Janeiro: Livraria Francisco Alves. 1917., p.302). A perspectiva evolucionista está presente de uma maneira em que se equilibram as forças da natureza e da sociedade na determinação do desenvolvimento. Ao descrever a condição inicial da criança, o autor contesta o enunciado segundo o qual a mentalidade da criança a aproxima dos animais e dos adultos anormais.

De fato, ainda não existe, na criança de tenra idade, unidade subjetiva; mas deve haver uma consciência fragmentada – repercussão de excitações de origem interna e dos sentidos, influxos de tendências suscitadas, de apetites despertados, esboços de emoções, correspondendo à atividade de centros inferiores, subcorticais, ainda não contidos pela atividade organizada do córtex. Disto resulta que a consciência da criança não tem análogo, nem nos estados anormais do adulto, nem na série animal (Bomfim, 1917BOMFIM, Manoel. Noções de psicologia. Rio de Janeiro: Livraria Francisco Alves. 1917., p.303).

Contudo, poucas páginas adiante, valida o enunciado central da teoria da recapitulação, ao afirmar que “cada indivíduo refaz abreviadamente a marcha geral da evolução da espécie” (Bomfim, 1917BOMFIM, Manoel. Noções de psicologia. Rio de Janeiro: Livraria Francisco Alves. 1917., p.309), e compara o egoísmo da criança ao do homem primitivo, explicando-o como “deficiência mental”, nos seguintes termos:

Nos primeiros tempos de vida consciente e inteligente, a criança tudo refere a si mesma, e, realmente, só sente os próprios interesses. Dizemos, então, que ela é egoísta. Sim; é egoísta, não por defeito moral, essencial, mas por deficiência mental – por não compreender os interesses dos outros; falta-lhe o elemento representativo para despertar os instintos sociais e morais. Esses instintos, mais modernos que os propriamente egoístas, só mais tarde se revelam. A criança é egoísta por ser egocêntrica; o homem primitivo é também egocêntrico, por insuficiência mental (p.311).

Bomfim recorre ao psicólogo norte-americano James Baldwin (1861-1934) para explicar o desenvolvimento infantil e afirma que “o desenvolvimento psíquico é uma verdadeira formação evolutiva, relativamente rápida, e onde não se encontram, nos momentos que se sucedem, dois perfeitamente iguais nem absolutamente diversos” (Bomfim, 1917BOMFIM, Manoel. Noções de psicologia. Rio de Janeiro: Livraria Francisco Alves. 1917., p.316-317). Destaca dois períodos cruciais do desenvolvimento, o primeiro correspondendo ao momento em que a criança, “com seu aparelho cerebral completo, começa a conhecer e passa, com os poucos elementos fonéticos que possui, a indicar e a nomear os seres que vai distinguindo em conhecimentos diretos” (p.317). No segundo período crítico, a criança toma consciência da insuficiência de sua compreensão e de seus conhecimentos, passa a requisitar as explicações e os conhecimentos dos adultos e começa assim a “empregar a experiência acumulada da espécie” (p.317).

Plínio Olinto, seu colega e sucessor na Escola Normal do Rio de Janeiro, era psiquiatra e atuara no Laboratório do Hospital Nacional de Psicopatas do Rio de Janeiro antes de ingressar, em 1916, na Escola Normal, onde lecionou psicologia até 1930. Seu manual da disciplina foi dedicado a Bomfim e a Juliano Moreira, este também médico formado na Faculdade de Medicina da Bahia e precursor da psicanálise no Brasil.

Tal como Bomfim, Plínio Olinto afirmava que as influências do meio cósmico, social e do ensino intencional eram os três fatores determinantes do desenvolvimento infantil. Em seu texto, a perspectiva do evolucionismo aparece em enunciados como: “Indiscutivelmente é o homem o animal que maior e melhor capacidade de adaptação ao meio revela como manifestação de sua inteligência” (Olinto, s.d., p.37), e “cada um repete, nos limites de suas possibilidades, o esforço que empregou a humanidade na sua socialização, pois é sabido que o indivíduo refaz, abreviadamente, a marcha geral da evolução da espécie” (p.254). Apresenta-se, ainda, na aproximação entre o comportamento da criança e do animal.

O animal e a criança traduzem seu comportamento por meio dos instintos. No homem adulto a conduta, modificada pela experiência, vai se tornando inteligente. Os puros instintos são substituídos por instintos modificados, as tendências instintivas intervêm, os instintos adaptativos tomam o lugar dos primeiros (Olinto, s.d., p.41).

Maurício de Medeiros também era médico formado pela Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro, com especialização na Europa, sob orientação de George Dumas, assim como Manoel Bomfim. Em 1907, defendeu sua tese de doutorado, Os métodos da psicologia. Atuou no Pedagogium e tornou-se professor de psicologia na Escola Normal. É de sua autoria o livro Aspectos da psicologia infantil (Medeiros, 1952MEDEIROS, Maurício de. Aspectos da psicologia infantil. Rio de Janeiro; São Paulo: Livraria José Olympio. 1952.), que não apresenta a estrutura de manual de ensino, mas reúne textos independentes, entre os quais “Neuroses e psicoses do climatério feminino” e “Psiquiatria e direito”. A teoria da recapitulação é apresentada no segundo capítulo, “O mundo imaginário das crianças”, nos seguintes termos:

Há uma lei em biologia que sintetiza o resultado de longas observações. Segundo essa lei, a evolução do indivíduo reproduz abreviadamente a evolução da espécie. Em termos mais bombásticos, porque científicos, se diz: ‘A ontogênese reproduz a filogênese’ (Medeiros, 1952MEDEIROS, Maurício de. Aspectos da psicologia infantil. Rio de Janeiro; São Paulo: Livraria José Olympio. 1952., p.39; destaques no original).

O autor explica o sentido da recapitulação no desenvolvimento físico do período embrionário e depois no desenvolvimento psicológico, quando afirma que “a espécie humana recapitula no indivíduo o lento progresso da espécie”, e ainda que “a observação dos povos primitivos neles assinala uma tendência ao raciocínio por analogia, tal como na criança civilizada. Essa tendência os leva a animar o mundo material que os cerca, isto é, a emprestar vida e sentimento às coisas” (Medeiros, 1952MEDEIROS, Maurício de. Aspectos da psicologia infantil. Rio de Janeiro; São Paulo: Livraria José Olympio. 1952., p.43).

O livro Psicologia educacional e desenvolvimento humano: manual de trabalhos práticos foi escrito por Iva Waisberg Bonow (1972)BONOW, Iva Waisberg. Psicologia educacional e desenvolvimento humano. São Paulo: Companhia Editora Nacional. 1972., professora formada em 1934 no Instituto de Educação do Rio de Janeiro, onde mais tarde passou a lecionar a matéria. Criado em 1932, no mesmo dia em que veio a público o “Manifesto dos pioneiros da educação nova”, o instituto foi constituído a partir da “integração do jardim de infância, escola primária, secundária e de professores” (Vidal, 2005VIDAL, Diana Gonçalves. Anísio Teixeira, professor de professoras: um estudo sobre modelos de professor e práticas docentes (Rio de Janeiro, 1932-1935). Revista Diálogo Educacional, v.5, n.16, p.293-314. 2005., p.5), por meio de decreto assinado por Anísio Teixeira. Sua criação foi norteada pelos princípios da profissionalização docente e do avanço da ciência pedagógica, associados à valorização da escola ativa (Vidal, 2005VIDAL, Diana Gonçalves. Anísio Teixeira, professor de professoras: um estudo sobre modelos de professor e práticas docentes (Rio de Janeiro, 1932-1935). Revista Diálogo Educacional, v.5, n.16, p.293-314. 2005.).

O livro apresentava-se como repositório da experiência de ensino acumulada pelo grupo de professores que atuava no gabinete de psicologia do Instituto de Educação. É inovador ao reunir textos redigidos por diversos integrantes da equipe coordenada por Iva Waisberg Bonow e também por sua organização, que evidencia orientação para a pesquisa e para a prática profissional no ensino da matéria. O compêndio divide-se em duas partes, um “guia do aluno” e um “guia do professor”. A parte dedicada ao aluno tem dez capítulos, entre os quais “Como estudar psicologia”, “Como utilizar o teste sociométrico”, “Como fazer entrevistas” e “Estudo de um aluno no seu grupo escolar”. A parte do mestre é constituída por 12 capítulos, tais como “Estudo dirigido: principais técnicas”, “Material didático ilustrativo”, “O professor e os testes psicológicos” e “Mapa censitário da turma”. O livro traz ainda, como apêndices, um exemplo de programa de psicologia educacional formulado pela comissão de professores do Instituto de Educação do Rio de Janeiro, uma filmografia comentada e uma listagem de referências bibliográficas para o professor dividida por temas. Assim como as antecessoras, essa obra descreve o desenvolvimento humano como processo de adaptação do indivíduo ao meio e defende o respeito tanto da individualidade do aluno quanto da consideração das características gerais de cada estágio do desenvolvimento, com suas “reações biológicas e psicossociais” próprias. Afirma que “cada aluno é um ser humano em desenvolvimento, com formas pessoais de ajustamento, e condicionado à influência da família e de grupos sociais específicos” (Bonow, 1972, p.12). Mas o enunciado evolucionista que associava o comportamento da criança ao do homem primitivo está ausente. Em vez disso, o que se encontra é a afirmação das diferenças culturais, sem que o adulto ocidental seja considerado mais evoluído do que outros grupos humanos.

A observação sistemática dos antropólogos sobre grupos que vivem bastante isolados da nossa cultura (nativos de Nova Guiné – os Manus; ou de povos dos mares do sul – Arapesh, Mundugumor, Tchambuli etc.) garante esta nova perspectiva. Comportamentos muito diferentes e até opostos aos nossos foram registrados. O que pode parecer anormal ou simplesmente errado na nossa cultura, não o é em outras. Em Samoa, ilha do Pacífico Sul, a criança participa de certos acontecimentos que a nossa educação não permite (assiste ao nascimento de uma criança, por exemplo). E, do nosso ponto de vista, em Samoa não há praticamente neuróticos (Bonow, 1972BONOW, Iva Waisberg. Psicologia educacional e desenvolvimento humano. São Paulo: Companhia Editora Nacional. 1972., p.10).

O excerto é significativo, porque marca a diferença entre esse livro e os anteriormente examinados também no nível dos enunciados, ao considerar outras culturas não atrasadas ou inferiores, mas apenas “diferentes”. Mostra o discurso da psicologia educacional começando a tomar distância da biologia, ao aproximar-se da antropologia. Nas décadas seguintes, uma parte do discurso da psicologia educacional aproximou-se das ciências humanas, da filosofia, da história e até mesmo da literatura, ao mesmo tempo que fez a crítica da naturalização da ciência psicológica. Contudo, não se tratou de um movimento linear, uniforme ou generalizado. Sua caracterização exigiria um estudo detido, que ultrapassa as possibilidades deste texto.

Considerações finais

O conjunto dos livros examinados evidencia que a teoria evolucionista constituiu uma referência central para o discurso da psicologia na primeira metade do século XX, tendo perdido legitimidade e força explicativa no interior desse discurso desde então. Ao mesmo tempo, permite perceber a heterogeneidade das apropriações feitas pelos autores, pois a hipótese da recapitulação não foi sempre aceita sem restrições, tendo sido ora referendada, ora parcialmente questionada, ora desacreditada nas páginas dos manuais. Parte dos professores afirmou o paralelismo entre o desenvolvimento da criança e a história da humanidade, ambos pensados a partir da perspectiva moderna, evolutiva e progressista. Como consequência, recomendou que a educação da criança acompanhasse de perto a história da civilização, conduzindo-a do estágio da inteligência selvagem ou primitiva à condição de adulto racional e civilizado.

Ao se apropriar da teoria evolucionista, a psicologia do desenvolvimento adquiriu legitimidade científica, ao mesmo tempo que serviu à disseminação da tese do determinismo biológico, sobretudo a partir da divulgação dos trabalhos de Spencer, segundo o qual os diferentes grupos humanos apresentavam capacidades desiguais, de acordo com a herança recebida de seus antepassados. Embora nos textos examinados não tenham sido encontradas afirmações expressas da inferioridade dos negros, das mulheres e dos pobres, grupos tradicionalmente oprimidos na sociedade brasileira, são recorrentes os enunciados que estabelecem a distinção entre povos primitivos e civilizados nos escritos da primeira metade do século XX.

Como se apresenta hoje a questão do desenvolvimento da criança para a professora e o professor encarregados de sua educação escolar? De alguma maneira, cabe-lhes ajustar o desenvolvimento “natural” ou “individual” da criança ao desenvolvimento “artificial” ou “social” estabelecido pelo currículo escolar. Essa é, afinal, a questão. A propósito, pode-se indagar: como uma ciência do desenvolvimento pode ajudar? O discurso da psicologia do desenvolvimento é híbrido; nele as verdades sobre as transformações vividas na infância e na adolescência não se separam da intenção de orientar as práticas educacionais, tendo em vista as expectativas sociais relativas a saúde, aprendizado, responsabilidade, sucesso. Esse discurso não dá acesso a qualquer verdade essencial ou universal sobre a natureza humana, antes oferece um retrato da infância socialmente desejada. Mas em que medida deve haver ajuste entre o desenvolvimento individual e o desenvolvimento social? É evidente que a resposta a essa questão depende da medida em que se valoriza o conjunto de expectativas sociais.

Mesmo que se reconheça a sua legitimidade, seria preferível um ajuste frouxo, não muito apertado, não muito preciso ou científico, pois, se a escola deve inserir o indivíduo em um meio social que lhe antecede, é também o espaço propício à renovação da sociedade, ao promover o encontro entre gerações. Seguindo Winnicott (2005WINNICOTT, Donald. O conceito de indivíduo saudável. In: Winnicott, Donald. Tudo começa em casa. São Paulo: Martins Fontes. 2005., p.9; destaques no original), “digamos que um homem ou uma mulher saudáveis sejam capazes de ‘alcançar uma certa identificação com a sociedade sem perder muito de seus impulsos individuais ou pessoais’”. Um ajuste frouxo corresponderia à ideia de “uma certa identificação” do aluno com a sociedade, numa medida que não impeça o surgimento de um movimento espontâneo da criança em direção ao mundo.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    23 Out 2020
  • Data do Fascículo
    Jul-Sep 2020

Histórico

  • Recebido
    7 Ago 2018
  • Aceito
    4 Jun 2019
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