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“Parto humanizado e o direito da escolha”: análise de uma audiência pública no Rio de Janeiro

“Humanized childbirth and the right to choose:” analysis of a public hearing in Rio de Janeiro

Resumo

O trabalho analisa, por meio de pesquisa de campo, uma plenária da Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro, “Parto humanizado e o direito da escolha”. Entendendo esse como um espaço político de conflitos dos saberes da área médica, da enfermagem e do Legislativo, é ponderado o conteúdo da plenária com os discursos de saber/poder acerca do corpo feminino e de sua reprodução. O artigo explora as tensões em torno da luta política pelo “parto humanizado” a partir de demandas feitas pelo Conselho Regional de Enfermagem. É abordada também a história da medicalização do parto e o papel das enfermeiras, obstetrizes e parteiras nesse processo.

cuidado; parto humanizado; conflito

Abstract

This work uses a field survey to analyze a plenary session of the Rio de Janeiro Legislative Assembly entitled “Humanized childbirth and the right to choose.” Understanding this as a political space for conflicts of knowledge pertaining to the areas of medicine, nursing, and legislature, we consider the content of this session and discourses of power/knowledge surrounding the female body and reproduction. The article explores tensions around the political struggle for “humanized childbirth” via demands made by the Regional Council of Nursing. We also address the history of the medicalization of childbirth and the role of nurses, professionals specialized in low-risk births (obstetrizes), and midwives in this process.

care; humanized childbirth; conflict

Em 2012, o Conselho Regional de Medicina do Rio de Janeiro (Cremerj) publicou em seu regimento duas resoluções que geraram embate com o Conselho Regional de Enfermagem (Coren). A primeira resolução, n.265/12, visava impedir médicos de atender a partos domiciliares e de participar de equipes de suporte e de sobreaviso previamente acordados, além de tornar compulsória a notificação dos hospitais ao Conselho de Medicina de todas as transferências de partos domiciliares ou oriundos das chamadas “casas de parto”. A segunda resolução, n.266/12, impede doulas, parteiras e obstetrizes de atuar em partos hospitalares, uma vez que são consideradas, de acordo com o documento, profissionais não habilitadas e/ou não reconhecidas como pertencentes à área da saúde. Tal publicação gerou polêmica no campo científico ( Bourdieu, 2011BOURDIEU, Pierre. O campo político. Revista Brasileira de Ciência Política, n.5, p.193-216. Disponível em: <http://dx.doi.org/10.1590/s0103-33522011000100008>. Acesso em: 1 fev. 2017. 2011.
http://dx.doi.org/10.1590/s0103-33522011...
, p.5) – área dos saberes médicos e da enfermagem – e também em movimentos partidários, movimentos feministas e com as adeptas do “parto humanizado”.

Ao participar da audiência, eu queria entender os conflitos ( Simmel, 2006SIMMEL, Georg. Questões fundamentais da sociologia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar. 2006. ) que apareciam tanto nesse campo quanto na regulação da prática de saúde em relação ao processo gestacional. Acreditando que a plenária constituísse momento privilegiado de espaços de disputas e verdades sobre a reprodução e o corpo feminino, a intenção foi entender os sentidos proferidos sobre o “parto humanizado” no panorama da audiência. Sobre a metodologia para este artigo, além do trabalho de campo, utilizei a gravação disponível no canal da Alerj no YouTube (Alerj, 2016), transcrevendo as falas dos componentes da audiência. Propus-me a realizar uma pesquisa etnográfica na audiência, com densa descrição, portanto “um trabalho árduo de observação”, elaborando sentidos e significados nesse espaço ( Geertz, 1978GEERTZ, Clifford. A interpretação das culturas. Rio de Janeiro: Zahar. 1978. ). Este artigo é resultado parcial de minha pesquisa de dissertação, a qual se dividiu em diferentes frentes de trabalho: na Casa de Parto David Capistrano Filho e em fóruns de debates e palestras sobre o assunto, entre elas a mencionada audiência pública, divulgada em um grupo virtual.

Já ocorrera antes, em 2009, embate semelhante entre os conselhos devido à reabertura da Casa de Parto David Capistrano Filho, no bairro de Realengo, na cidade do Rio de Janeiro. Nessa ocasião, o Cremerj se posicionou contra a reabertura da instituição, com declaração em nota publicada em seu jornal de junho-julho do mesmo ano, reiterando que:

O Conselho Federal de Medicina e o Conselho Regional de Medicina do Estado do Rio de Janeiro voltam a denunciar mais um desrespeito à saúde da população ... Alertamos as autoridades para o equívoco da reabertura da ‘Casa de Parto’ em Realengo, que viola a legislação brasileira, e normas éticas, técnicas e bioéticas de atendimento à mulher e à criança. A ‘Casa de Parto’, que funciona ‘sem médicos’, nega o acesso ao atendimento por obstetras, pediatras e anestesistas, dando uma clara demonstração de descaso com a gestante e com o recém-nascido. É um desrespeito à cidadania submeter mãe e filho a uma condição de risco pela banalização que se quer imputar ao ato de nascer (Cremerj protesta..., 2009, p.19).

E segue expondo a necessidade de uma equipe multiprofissional de atendimento ao parto:

Defendemos o correto: uma maternidade bem equipada com a presença de uma equipe multiprofissional, com número adequado de médicos e outros profissionais, que seja bem treinada e apta a enfrentar qualquer situação de risco. O CFM e o Cremerj reafirmam que continuarão buscando os instrumentos legais para impedir o absurdo funcionamento da ‘Casa de Parto’, que caracteriza um retrocesso inaceitável para a assistência materno-infantil na cidade do Rio de Janeiro em pleno século 21 (Cremerj protesta..., 2009, p.19).

No Brasil não é obrigatório que partos sejam realizados por médicos, obstetras e enfermeiros, sendo esta última categoria autorizada pelo Coren e pela lei n.7.489, de julho de 1986, a assistir partos domiciliares, hospitalares ou em casas de parto. Além desses, existem outros profissionais que apareceram nessa arena de disputa em torno do parto, de acordo com Riesco e Tsunechiro (2002)RIESCO, Maria Luiza Gonzalez; TSUNECHIRO, Maria Alice. Formação profissional de obstetrizes e enfermeiras obstétricas: velhos problemas ou novas possibilidades? Revista Estudos Feministas, v.10, n.2, p.449-459. 2002. ; também há a profissional em obstetrícia, que surge pela primeira vez no Brasil com o título entregue às formadas no Curso de Obstetrícia da Faculdade de Medicina e Cirurgia do Pará, entre 1922 e 1925. Dois tipos de formação eram oferecidos; os cursos de enfermagem e de obstetrícia funcionavam de maneira independente.

Com a crescente hospitalização do parto, o campo de atuação das parteiras passou a ser objeto de disputa entre estas, as enfermeiras e os médicos, e uma grande polêmica foi gerada entre enfermeiras e parteiras. De um lado, as enfermeiras não aceitavam que as parteiras formadas pelos médicos nos cursos anexos às clínicas obstétricas das faculdades de medicina recebessem o título de enfermeira obstétrica e lutavam por consolidar o curso como uma especialidade da enfermagem. Para elas, os cursos de parteira, denominados de enfermagem obstétrica, eram um exemplo de especialização sem base, uma vez que a formação anterior em enfermagem não era exigida das candidatas. Por outro lado, as parteiras argumentavam que no mundo inteiro o ensino da obstetrícia era responsabilidade de médicos, professores da clínica obstétrica, e que a enfermagem e a obstetrícia eram profissões afins, porém distintas, não sendo possível conferir às enfermeiras com um ano de especialização as mesmas competências e prerrogativas asseguradas àquelas que faziam o curso de obstetrícia (Riesco, Tsunechiro, 2002, p.451).

Em 1970 foram introduzidas modificações nas grades curriculares, decorrentes da reformulação das universidades brasileiras, propondo “vedar a duplicação de meios para fins idênticos ou equivalentes”, como apontam Riesco e Tsunechiro (2002)RIESCO, Maria Luiza Gonzalez; TSUNECHIRO, Maria Alice. Formação profissional de obstetrizes e enfermeiras obstétricas: velhos problemas ou novas possibilidades? Revista Estudos Feministas, v.10, n.2, p.449-459. 2002. ; então os cursos de enfermagem e de obstetrícia se fundiram. Em 2005, o curso de obstetrícia foi recriado na Universidade de São Paulo, no campus da Escola de Artes, Ciências e Humanidades (EACH), e atualmente é o único curso de ensino superior com formação em obstetrícia no Brasil (Obstetrícia, s.d.).

Vale ressaltar que, de acordo com Morais (2010MORAIS, Fátima Raquel Rosado. A humanização no parto e no nascimento: os saberes e as práticas no contexto de uma maternidade pública brasileira. Tese (Doutorado em Psicologia Socia) – Universidade Federal do Rio Grande do Norte; Universidade Federal da Paraíba, Natal. 2010. , p.82), a partir de 1998 foi incentivada a especialização em “enfermagem obstétrica” no Brasil, a fim de promover o parto normal realizado por essa categoria. A autora aponta que isso aconteceu após o destaque recebido na primeira Conferência Internacional sobre Humanização do Parto e do Nascimento, ocorrida em Fortaleza (CE). Anteriormente, em 1995, ativistas e profissionais se manifestaram sobre “avanços nas reflexões acerca do conceito de humanização, na ênfase da importância da mulher nesse processo e, ainda, na discussão do papel dos diferentes interlocutores para a efetivação de sua proposta” ( Morais, 2010MORAIS, Fátima Raquel Rosado. A humanização no parto e no nascimento: os saberes e as práticas no contexto de uma maternidade pública brasileira. Tese (Doutorado em Psicologia Socia) – Universidade Federal do Rio Grande do Norte; Universidade Federal da Paraíba, Natal. 2010. , p.81).

O dossiê Humanização do parto (Rede..., 2002), feito pela Rede Nacional Feminista de Saúde, Direitos Sexuais e Direitos Reprodutivos, destaca outra categoria que emerge no país, a das doulas (ver Simas, 2016SIMAS, Raquel. Doulas e o movimento pela humanização do parto: poder, gênero e a retórica do controle das emoções. Dissertação (Mestrado em Antropologia) – Universidade Federal Fluminense, Niterói. 2016. ). O documento aponta que o grupo Doulas do Brasil foi criado em 2002 por iniciativa de quatro mulheres, todas localizadas na região de São Paulo e Campinas. Foi difundido por uma plataforma virtual, na qual elas ofereciam informações sobre a profissão, cursos de capacitação, depoimentos, fotos e um cadastro nacional de doulas.

Partos e cuidados com o gestar e o parir

Nesta seção contextualizo a produção sobre o saber obstétrico no Brasil a partir do século XIX, observando como uma sociedade com forte componente moral acolheu esses saberes sobre o corpo feminino pelo olhar do médico.

No Brasil, os partos e seus cuidados eram rituais tradicionalmente de mulheres, muitas vezes encabeçados pela figura da parteira. Ela detinha um saber empírico e assistia a futura mãe em seu domicílio, antes, durante e após a chegada da criança ( Rohden, 2000ROHDEN, Fabíola. Uma ciência da diferença: sexo, contracepção e natalidade na medicina da mulher. Tese (Doutorado em Antropologia) – Museu Nacional/Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro. 2000. , 2006ROHDEN, Fabíola. Histórias em torno da medicalização da reprodução. Revista Gênero, v.6, n.1, p.213--224. 2006. ; Brenes, 1991BRENES, Anayansi Correa. História da parturição no Brasil, século XIX. Cadernos de Saúde Pública, v.7, p.135-149. 1991. ). Essa figura, de inteira confiança das mulheres, era consultada sobre temas variados, como cuidados com o corpo, doenças venéreas, aborto etc. ( Brenes, 1991BRENES, Anayansi Correa. História da parturição no Brasil, século XIX. Cadernos de Saúde Pública, v.7, p.135-149. 1991. , p.135).

De acordo com Magalhães (citado em Rohden, 2006ROHDEN, Fabíola. Histórias em torno da medicalização da reprodução. Revista Gênero, v.6, n.1, p.213--224. 2006. , p.214), até o início do século XIX, a presença do profissional médico só era requerida em casos de partos complicados, nos quais a vida da criança ou da gestante estivesse em risco. Assim, era rara a presença de um médico no momento do parto. Dar à luz fora de casa era uma situação anormal, considerada apavorante, e acontecia apenas em casos extremos, sobretudo por “desclassificados socialmente”, como pessoas em situação de rua ou prostitutas. Além disso, de acordo com a autora, há relatos dessa época de que a presença do médico poderia causar certo “excesso de pudor” em relação ao profissional, pois era um homem conduzindo o parto no corpo feminino. De modo geral, a medicina até então não intervinha muito no aparelho genitourinário e nas chamadas enfermidades femininas ( Rohden, 2006ROHDEN, Fabíola. Histórias em torno da medicalização da reprodução. Revista Gênero, v.6, n.1, p.213--224. 2006. , p.214).

Com a vinda da Corte portuguesa para o Brasil, em 1808 ocorreu a implantação do ensino oficial de medicina, primeiro na Bahia e depois no Rio de Janeiro. Assim, em 1809, a “arte obstétrica” passou a ser lecionada na Escola de Cirurgia do Rio de Janeiro, e a cadeira de partos, que constava do currículo das academias médicas, foi integrada definitivamente quando essas instituições se transformaram, segundo Santos Filho (citado em Rohden, 2006ROHDEN, Fabíola. Histórias em torno da medicalização da reprodução. Revista Gênero, v.6, n.1, p.213--224. 2006. , p.214), nas prestigiadas faculdades de medicina, criadas em 1832.

Mott (dez. 2002) lembra que no Brasil, a partir da década de 1820, as parteiras, além de atender no domicílio, recebiam gestantes em suas casas. Ao longo dos anos, essa configuração de atendimento se expandiu, e as casas das parteiras começaram a ser conhecidas como “casas de maternidade”.

Em 1832, foi criado um “curso de partos” no país, com o objetivo de que as parteiras estudassem de acordo com as normas da ciência; assim, elas teriam uma “forma correta” de atender as mulheres na ocasião do parto e nos cuidados do recém-nascido. De acordo com Barreto (2008)BARRETO, Maria Renilda Nery. Assistência ao nascimento na Bahia oitocentista. História, Ciências, Saúde – Manguinhos, v.15, n.4, p.901-925. 2008. , as mulheres que almejassem atuar como parteiras precisavam se inscrever no curso de partos, ter no mínimo 16 anos de idade, apresentar um atestado de bons costumes passado pelo juiz de paz da freguesia, saber ler e escrever corretamente e pagar vinte mil réis pela matrícula. Já em 1854, o curso foi reformulado, introduzindo-se outras exigências:

a idade das candidatas passou de 16 para 21 anos; a moralidade deveria ser atestada pelas famílias; a autorização para matrícula era dada pelo pai, quando a candidata era solteira, e pelo marido, quando casada; além do domínio da escrita e da leitura em língua portuguesa, passou-se a exigir o conhecimento do francês e das quatro operações matemáticas – Decreto n.1.387, 28 abr. 1854 ( Barreto, 2008BARRETO, Maria Renilda Nery. Assistência ao nascimento na Bahia oitocentista. História, Ciências, Saúde – Manguinhos, v.15, n.4, p.901-925. 2008. , p.908).

A partir de então, passou-se a divulgar a ideia das parteiras especializadas, com certificado concedido pelos médicos (Rodhen, 2006, p.215). “A introdução da medicina neste espaço inaugurou não só a experimentação clínica articulada com o discurso anatomopatológico quanto produziu um discurso a partir da penetração da figura masculina no saber e prática obstétrica” ( Brenes, 1991BRENES, Anayansi Correa. História da parturição no Brasil, século XIX. Cadernos de Saúde Pública, v.7, p.135-149. 1991. , p.135-136).

Nesse cenário, as parteiras começam a perder autonomia na gestão dos corpos femininos, e os médicos passam a desempenhar fortemente sua autoridade na regulamentação dessas práticas. Assim, esses profissionais passam cada vez mais a gerenciar a saúde feminina e sua reprodução (Rodhen, 2006). De acordo com Martins (2005)MARTINS, Ana Paula Vosne. A ciência dos partos: visões do corpo feminino na constituição da obstetrícia científica no século XIX. Estudos Feministas, v.13, n.3, p.645-666. Disponível em: <https://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104-026X2005000300011&lng=pt&tlng=pt>. Acesso em: 1 fev. 2017. 2005.
https://www.scielo.br/scielo.php?script=...
, a constituição da ciência obstétrica esteve sujeitada a um conjunto de situações: não apenas à transformação do status do conhecimento médico como um saber autorizado, mas à própria reorganização do saber científico nas primeiras décadas do século XIX e à reestruturação do ensino da medicina.

A reorganização do conhecimento científico que aconteceu nas primeiras décadas do século XIX levou ao abandono definitivo das explicações especulativas sobre o corpo humano. O corpo se transforma num cenário material e visível, num novo território cujas verdades eram acessíveis ao olhar atento do médico e do cientista, que passaram a lançar um olhar em profundidade entre tecidos e órgãos em direção ao núcleo da verdade ( Martins, 2005MARTINS, Ana Paula Vosne. A ciência dos partos: visões do corpo feminino na constituição da obstetrícia científica no século XIX. Estudos Feministas, v.13, n.3, p.645-666. Disponível em: <https://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104-026X2005000300011&lng=pt&tlng=pt>. Acesso em: 1 fev. 2017. 2005.
https://www.scielo.br/scielo.php?script=...
, p.652).

Martins (2004MARTINS, Ana Paula Vosne. Visões do feminino: a medicina da mulher nos séculos XIX e XX. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz. 2004. , p.83) diz que houve uma reestruturação do ensino na área da medicina. A ideia era que tivesse uma composição de especialidade pautada no saber científico, de forma a objetivar os processos, construir um vocabulário próprio e constituir os acessos aos espaços hospitalares para atender às demandas médicas. No que diz respeito ao parto, essas mudanças resultaram na criação das “maternidades” na segunda metade do século XIX. De acordo com Santos Filho (citado em Rohden, 2006ROHDEN, Fabíola. Histórias em torno da medicalização da reprodução. Revista Gênero, v.6, n.1, p.213--224. 2006. , p.216):

Cada vez mais os médicos iam tomando a frente no gerenciamento da saúde feminina e da reprodução. Iam se especializando e investindo na normalização das práticas relativas ao corpo feminino. A influência das parteiras era crescentemente defasada. Quando surgiram as primeiras maternidades no Rio de Janeiro, as parteiras diplomadas foram convocadas ao trabalho, mas sob o controle dos médicos. A autoridade de ginecologistas e obstetras sobre o comportamento das mulheres, no final do século XIX, ultrapassava em muito o domínio dos consultórios. E principalmente ultrapassava o domínio do físico, do orgânico ou mesmo do psíquico para se instalar no domínio da moral. A crescente especialização médica sobre o corpo feminino ... [e o] clima intervencionista mais geral que caracterizava a medicina do século passado são fatores implicados nesse processo.

Brenes (1991)BRENES, Anayansi Correa. História da parturição no Brasil, século XIX. Cadernos de Saúde Pública, v.7, p.135-149. 1991. aponta que, apesar da existência das faculdades e de o ensino teórico ter melhorado bastante, a partir de 1832 o ensino prático permanecia precário, tanto pela falta de espaço físico para alocar as parturientes quanto pelo número reduzido de mulheres grávidas que procuravam o serviço. No Rio de Janeiro, o curso era ministrado em dois locais, no Hospital Militar e na Santa Casa, na qual já havia uma enfermaria para atender mulheres pobres; mas as irmãs de caridade ofereciam forte resistência à entrada dos alunos na enfermaria devido a fatores morais. Assim, a ideia de criar maternidades anexas às faculdades de medicina veio com a lei de 28 de abril de 1854, que reformou os cursos e estipulou essa determinação. Naquele momento, a fim de atrair mulheres para esses espaços, houve por parte da corporação médica um enorme esforço em construir uma imagem do médico que inspirasse confiança na população. Aliado a isso, o discurso médico teceu para a mulher uma nova subjetividade, de maneira que:

garantiu-lhe um novo papel na sociedade, abrindo-lhe as portas para uma vida social mais intensa, esposando-lhe nova configuração dentro do lar, da família, tornando-a, enfim, um ser bem mais vivo que a mulher da sociedade patriarcal da colônia. Porém, o ponto de apoio deste discurso que criou a mulher da sociedade imperial foi a sexualidade feminina. Sexualidade que foi descrita a fundo, com acurada precisão fazendo a mulher um ser frágil e inconstante, a quem somente os médicos poderiam orientar, por serem os únicos que a conheciam. Deste ‘jogo’ surgiram ‘o mito do amor materno’, a ‘mãe dedicada’, ‘boa esposa’, ‘a rainha do lar’, as histéricas, as mundanas e toda uma série de tipos femininos que ocupariam a literatura médica e o imaginário social do século XIX. A mulher criada no século XIX, que povoou as páginas do romance nacional, destacava-se pela sua constituição frágil e débil ( Brenes, 1991BRENES, Anayansi Correa. História da parturição no Brasil, século XIX. Cadernos de Saúde Pública, v.7, p.135-149. 1991. , p.145).

De acordo com Nagahama e Santiago (2005)NAGAHAMA, Elizabeth Eriko Ishida; SANTIAGO, Silvia Maria. A institucionalização médica do parto no Brasil. Ciência e Saúde Coletiva, v.3, n.10, p.651-657. 2005. , o processo de hospitalização do parto a partir do século XX, com a institucionalização da assistência ao ato de dar à luz, foi fundamental para a apropriação do saber nessa área e para o desenvolvimento do saber médico. Tal processo produz a transformação do papel da mulher de sujeito (como parteira) para objeto no processo de parto e nascimento (como parturiente). Desse modo, a apropriação do saber médico e as práticas médicas constituíram fatores determinantes para a institucionalização do parto e a transformação da mulher em propriedade institucional no processo de dar à luz (Nagahama, Santiago, 2005, p.656), sendo as parteiras retiradas de cena.

Diante desse cenário, surgem nos últimos tempos discussões e conflitos entre os profissionais que disputam a arena do parto. Nesse sentido, observo os efeitos e as práticas das mencionadas resoluções do Cremerj na Alerj. Assim será possível detalhar de forma mais eficiente os principais desafios encontrados para entender as dimensões do cuidado nos serviços de saúde, bem como os percursos históricos dos agentes no cenário do parto.

A judicialização do conflito

Diante das resoluções do Cremerj, ainda em 2012 o Coren ajuizou uma ação civil pública1 1 “Ação civil pública é um instrumento processual, de ordem constitucional, destinado à defesa de interesses difusos e coletivos. Mesmo estando referida no capítulo da Constituição Federal relativo ao Ministério Público (artigo 129, inciso III)” (Jusbrasil, s.d.). contra a entidade, pedindo a anulação dessas resoluções. Obteve-se a liminar com antecipação de tutela, pois, de acordo com o Conselho de Enfermagem, a decisão do Cremerj colocava as mulheres em “situação de risco”. Em julho do mesmo ano, a decisão judicial resultou na suspensão das resoluções até nova decisão. Já em setembro de 2014, uma decisão judicial de primeira instância avaliou como pertinente a solicitação do Coren de pedir a suspensão das resoluções. Em janeiro de 2016, quando o processo se encontrava na primeira audiência da segunda instância, o então desembargador2 2 O processo pode ser visualizado na íntegra em: < http://old.cremerj.org.br/anexos/RES_266_Anexo.pdf> . Acesso em: 10 out. 2020. solicitou vistas ao processo para entender o que o relator estava ponderando. Não houve consenso na nova decisão: foram dois votos a favor do Cremerj e um contra. Depois disso o Coren entrou com um embargo infringente,3 3 No “art. 530 – Cabem embargos infringentes quando o acórdão não unânime houver reformado, em grau de apelação, a sentença de mérito, ou houver julgado procedente ação rescisória. Se o desacordo for parcial, os embargos serão restritos à matéria objeto da divergência” (Brasil, 23 ago. 2000). previsto na lei n.10.352/2001, contra a decisão do TRF-RJ, alegando não ter havido consenso na sentença. Os advogados representantes do Coren solicitaram então um novo julgamento com uma nova turma.

É interessante destacar que, de acordo com o Coren, o Cremerj não regulamenta as profissões das enfermeiras, obstetras, doulas e parteiras em seu regimento profissional, mas, como estratégia, a lei n.7.498, de 1986, que regulamenta o exercício profissional da enfermagem, reconhece as parteiras e as obstetrizes. O Conselho Federal de Medicina não formaliza a profissão da enfermagem em seu regulamento, tampouco a das doulas, obstetrizes e parteiras. O embate se dá porque tal dispositivo deixa para a direção médica do hospital a decisão da entrada de parteiras, doulas e obstetrizes durante o parto. Essas resoluções, entendidas como disputas entre os lugares e os profissionais “dignos” de realizar o parto, foram alvo de processo, no que Diniz, Machado e Penalva (2014) e Ventura (2010)VENTURA, Miriam et al. Judicialização da saúde, acesso à justiça e a efetividade do direito à saúde. Physis: Revista de Saúde Coletiva, v.20, n.1, p.78. 2010. chamaram de judicialização da saúde, com o Coren contestando as resoluções do Cremerj e defendendo o direito de assistência ao parto.

Depois desses acontecimentos ocorreram algumas mobilizações que foram divulgadas em um grupo virtual, criado em janeiro de 2016 no Facebook, intitulado “Meu corpo, minhas regras, nossas escolhas” (Movimento..., s.d.). De acordo com sua própria descrição, o movimento é constituído por profissionais, mulheres e familiares a favor do “parto fisiológico” e de “direitos reprodutivos das mulheres”, entendendo como arbitrárias as resoluções do Cremerj. Diante dos conflitos gerados pelos conselhos, articularam-se também outras ações, como duas marchas contra as resoluções, na praia do Leme e na Central do Brasil, no Rio de Janeiro ( Promundo, 2016PROMUNDO. Movimento pelo direito ao parto humanizado e contra retrocesso da resolução do Cremerj acontece no Rio de Janeiro. Disponível em: <http://promundo.org.br/2016/03/01/movimento-pelo-direito-ao-parto-humanizado-e-contraretrocesso-da-resolucao-do-cremerj-acontece-no-rio-de-janeiro/>. Acesso em: 8 ago. 2016. 2016.
http://promundo.org.br/2016/03/01/movime...
). Tais mobilizações deram origem à audiência pública que foi realizada em 14 de março de 2016, estudada no presente trabalho.

A casa legislativa

A Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro (Alerj) é conhecida popularmente como a “Casa do Povo”, como se esse espaço concretizasse a ideia do Estado democrático de direito. Em seu site oficial está escrito que “a representação que se encontra no Poder Legislativo é uma síntese da realidade do Estado”, e informa que, de todos os poderes, o Legislativo é o que tem mais acesso à população civil.

De acordo com Escosteguy (2017)ESCOSTEGUY, Carlos. O Poder Legislativo. Disponível em: <https://www12.senado.leg.br/jovemsenador/home/paginas/cursos-online/planos-de-aula-ilb-o-poder-legislativo>. Acesso em: 8 out. 2020. 2017.
https://www12.senado.leg.br/jovemsenador...
, o Legislativo, além de exercer a função legiferante (produzir leis) e fiscalizadora, cumpre papel educativo. Nesse espaço público, de acordo com o autor, as propostas que atingem diretamente o interesse das pessoas são exibidas, debatidas e transformadas em normas legais.

Em geral, nesse processo de constituição das leis há a participação de segmentos organizados da sociedade, como sindicatos, confederações de trabalhadores, organizações não governamentais e associações, todas apresentando seus pleitos. Nas audiências públicas, essas demandas são ouvidas e debatidas com os parlamentares, dando a ideia de participação política do povo nessa casa legislativa ( Escosteguy, 2017ESCOSTEGUY, Carlos. O Poder Legislativo. Disponível em: <https://www12.senado.leg.br/jovemsenador/home/paginas/cursos-online/planos-de-aula-ilb-o-poder-legislativo>. Acesso em: 8 out. 2020. 2017.
https://www12.senado.leg.br/jovemsenador...
).

A Alerj é composta por setenta deputados, que supostamente representam seus eleitores. De acordo com o site da instituição, as audiências públicas são realizadas pelas “comissões permanentes” para debater projetos de lei, ouvir propostas de organizações da sociedade civil, mediar negociações etc. (Alerj, s.d.).

Essas sessões são abertas ao público, e os membros das comissões podem solicitar a presença de pessoas ou entidades para prestar esclarecimentos e debater questões sobre temas em discussão. Já os deputados podem conduzir o requerimento de informações a autoridades públicas do Estado para solicitar explicações acerca de determinados assuntos.

Uma breve descrição da Assembleia Legislativa: as múltiplas vozes femininas e a produção da política

Na mesa da plenária havia representantes do Movimento de Doulas, da Associação Brasileira de Obstetrizes e Enfermeiros Obstetras (Abenfo), da Associação Brasileira de Obstetrizes e Enfermeiros (Aben), da direção da Casa de Parto, representando a Secretaria Estadual de Saúde, do programa da Rede Cegonha Carioca e a deputada Rejane, que presidia a mesa. No público, integrantes do PCdoB e representantes de movimentos feministas e civis interessados no tema. A deputada Rejane informou que enviara convite ao Ministério Público e ao Cremerj para que participassem, porém não obtivera retorno. Como dito, tratava-se de iniciativa solicitada por membros do Conselho de Enfermagem e do movimento “Meu corpo, minhas regras, nossas escolhas”, em decorrência das resoluções n.265/2012 e n.266/2012 do Cremerj.

A composição se fez em sua maioria por mulheres, muitas delas mães, acompanhadas de seus filhos pequenos, carregados por slings (técnica de amarração de um pano junto ao corpo para sustentar o bebê), e gestantes. Entre o público havia também profissionais de enfermagem e estudantes. Algumas vestiam camisas com a imagem do programa da Rede Cegonha Carioca e da Casa de Parto David Capistrano Filho. Foram distribuídas cadernetas com informativos sobre o exercício da enfermagem e sobre violência doméstica.

De acordo com Mello e Souza (citado em Barbosa, 2002BARBOSA, Gisele Peixoto et al. Parto cesáreo: quem o deseja? Em quais circunstâncias? Cadernos de Saúde Pública, v.19, n.6, p.1611-1620. Disponível em: <http://www.scielo.br/pdf/csp/v19n6/a06v19n6.pdf>. Acesso em: 20 jul. 2015. 2002.
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), o campo médico se apropriou dos discursos feministas por meio do argumento de que as mulheres têm autonomia sobre seus corpos. Por essa razão, podem optar por formas diversas de parto, inclusive a cesariana. Entretanto, esse discurso não é unânime no campo médico, e alguns não pensam a cesariana como uma possibilidade de autonomia, mas como uma indução ao risco conduzida por médicos.

Nesse cenário, a realização excessiva de partos obstétricos via cirurgia pré-agendada foi denunciada como resultado de uma “cultura da cesariana” ( Carneiro, 2011CARNEIRO Rosamaria Giatti. Cenas de parto e políticas do corpo: uma etnografia de práticas femininas de parto humanizado. Tese (Doutorado em Ciências Sociais) – Universidade Estadual de Campinas, Campinas. 2011. ). A visão de que a opção pela cesariana é mais um risco do que uma possibilidade de escolha e exercício de autonomia feminina circulava como um discurso ( Foucault, 1995FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. Rio de Janeiro: Graal. 1995. ) na sessão pesquisada.

Pude notar que para algumas palestrantes e para grande parte do público a “cultura da cesariana” é algo danoso à saúde das mulheres e de sua prole. Além disso, havia a associação de que essa cultura se devia ao fato de o campo médico brasileiro transformar o corpo da mulher em mercadoria. Isso pode ser visto na fala da deputada Rejane, quando diz que os médicos propuseram as resoluções n.265/2012 e n.266/2012 não por preocupação com a saúde feminina, mas por um interesse mercadológico sobre seus corpos, buscando garantir uma reserva de mercado.

De acordo com a deputada, os médicos visam menos a suas pacientes e mais à dominação de seus corpos como meio de obtenção de lucros. A deputada Rejane traz a ideia de que a medicalização da prática obstétrica opera segundo a lógica do sistema capitalista, que ordena a vida social e produz uma “maquinização” do corpo feminino. De acordo com Arruda (citado em Nagahama, Santiago, 2005),

as modificações definitivas na assistência ao parto ocorreram a partir do século XVII, quando se descobriu o mecanismo da ovulação, pois o entendimento de que a mulher possuía uma estrutura mais delicada do que a do homem levou à percepção do parto como perigoso para a saúde e que a medicina deveria protegê-la. O modelo cartesiano do dualismo mente/corpo evoluiu para o corpo como uma máquina, sendo o corpo masculino considerado o protótipo desta máquina e o feminino um desvio do padrão masculino, considerado hereditariamente anormal, defeituoso, perigosamente imprevisível, regido pela natureza e carente do controle constante por parte dos homens. Com o advento do capitalismo industrial, a prática da assistência ao parto se consolidou como exercício monopolizado dos médicos e, assim, foi legitimado e reconhecido.

Emily Martin (2006)MARTIN, Emily. A mulher no corpo: uma análise cultural da reprodução. Rio de Janeiro: Garamond. 2006. , antropóloga norte-americana influenciada pelo pensamento marxista, diz que a medicina ocidental pensa o corpo como uma máquina. O útero como uma máquina de produção, a mulher como a operária, o médico como o técnico ou o mecânico que “conserta” ou supervisiona a fim de que sejam “produzidos” bebês saudáveis. Nesse contexto, a cesariana, que exige o máximo de “condução” do médico e o mínimo de trabalho ao útero, é considerada o melhor processo para produzir os melhores “produtos”. Essa perspectiva teria então gerado um processo de substituição das mãos das parteiras pelas tecnologias médicas (o bisturi, o fórceps). A própria ideia do trabalho de parto é entendida como um trabalho fabril, que é subdivido em vários estágios: fase latente, dilatação, expulsão, progressão etc.

Do século XIX a meados do XX, à medida que se constituem os saberes científicos, formula-se a concepção da “metáfora da máquina”. Dessa forma, o paradigma da medicina remete à funcionalidade do corpo feminino relacionando-o ao modo de organização industrial capitalista ( Martin, 2006MARTIN, Emily. A mulher no corpo: uma análise cultural da reprodução. Rio de Janeiro: Garamond. 2006. ). À luz dessas questões que envolvem o debate sobre o corpo feminino e a reprodução, formula-se dentro da audiência a ideia de que, além da cesariana, há outras “intervenções desnecessárias”, denominadas violência obstétrica. Para além do ponto de vista econômico, o que está em jogo é uma questão de moralidade médica, que pauta o que seria o “melhor” para a mãe e para o bebê ( Pulhez, 2015PULHEZ, Mariana. Mulheres mamíferas: práticas de maternidade ativa. Dissertação (Mestrado em Antropologia) – Universidade Estadual de Campinas, Campinas. 2015. , p.94).

Ao longo da sessão, houve discursos apoiados na crítica à mercantilização do corpo feminino pelo campo médico. Além desse tipo de acusação, a prática médica foi considerada um lócus de produção de “violência obstétrica”. Com isso surgem múltiplas vozes defendendo a importância de práticas que não promovam a “violência obstétrica”. Heloísa, enfermeira obstétrica, aponta nomes de profissionais e de ambientes favoráveis para ter um parto que não promova a violação dos corpos femininos.

É isso que a gente precisa entender, por que a gente quer doula, por que a gente quer parto em casa, por que a gente quer casa de parto, por que a gente quer isso tudo? Porque a gente quer de verdade menos mortalidade materna, a gente quer menos sangramento, a gente quer um parto mais fácil, a gente quer um parto menos penoso, a gente quer que o parto deixe de ser lembrado como uma coisa dolorosa. A gente vai falar que alguma coisa foi difícil e a gente fala da dor, ‘foi um parto’. Não! Este parto é um parto da violência obstétrica, esse parto é o parto da posição deitada, é o parto da mulher que não tem um acompanhamento digno do lado dela, isso a gente não quer mais (Heloisa, enfermeira obstétrica, durante a Audiência Pública, Alerj, 2016).

Na mesma direção, Luciana, integrante da audiência como representante da União Brasileira de Mulheres, traz a ideia de que é necessário levar uma “conscientização” às mulheres que não querem o “parto humanizado”. Pois essas estariam sendo “vítimas” de um sistema maior. Para ela, as mulheres pobres são vítimas das “violências obstétricas” dentro de hospitais.

Pensando em como a gente conseguiria aumentar a conscientização, eu ainda escuto muitas mulheres falando que não querem parto humanizado ou parto normal por conta da dor. Porque o médico diz que não tem passagem e elas são, já no primeiro momento de sua consulta, induzidas a quererem uma cesariana. Imaginem nós, mulheres que ainda temos acesso à informação, se já somos condicionadas dessa forma, imaginem todas as outras mulheres, pobres, que na maioria das vezes não têm muitas informações, como elas são condicionadas a ter o parto via cesárea. Hoje nós temos parto por cesárea sendo marcado às 18h, porque por volta das 18h nós temos as taxas de emergência, então tem um lucro maior para esses médicos que irão fazer esses partos. Então o meu questionamento é justamente esse. Fora outras coisas que a gente vê: a mulher pode pagar por um dia de estética antes do parto, quando a gente não vê um bufê sendo oferecido para que as pessoas fiquem numa antessala, observando por um Big Brother a mulher parindo. Então, gente, várias situações bizarras. Como ficam, também, essas mulheres pobres que não têm esse acesso? Na verdade, minha pauta seria justamente falar sobre esse questionamento e como nós deveríamos pensar numa estratégia de conscientizar mais mulheres e que mais vozes femininas estejam dentro de uma próxima audiência pública falando e se defendendo de todas essas violências que a gente sofre cotidianamente (Luciana, representante da União Brasileira de Mulheres, durante a Audiência Pública, Alerj, 2016).

Pulhez (2015)PULHEZ, Mariana. Mulheres mamíferas: práticas de maternidade ativa. Dissertação (Mestrado em Antropologia) – Universidade Estadual de Campinas, Campinas. 2015. mostra que a denúncia da “violência obstétrica” é uma disputa que visa a uma construção de mundo, que estabelece o que é dispensável ou abusivo em um parto, uma transformação das mulheres em “vítimas”. Além de a categoria abarcar uma questão subjetiva, carrega um sentido político. O que está em jogo, então, é a “garantia à empatia social e à transformação delas em sujeito político, condição para a constituição de um movimento social reivindicativo e libertário”, como aponta Sarti (citado em Pulhez, 2015PULHEZ, Mariana. Mulheres mamíferas: práticas de maternidade ativa. Dissertação (Mestrado em Antropologia) – Universidade Estadual de Campinas, Campinas. 2015. , p.94).

Parto humanizado é um direito de quem?

Retornando à audiência pública, de acordo com relatos colhidos entre os presentes na sessão, o “parto humanizado” não é acessível a todos. A classe social, a raça/etnia ou gênero das pessoas farão com que elas tenham acesso aos serviços de forma diferenciada, assim como possibilidades distintas de receber cuidados dessa ordem. Pude presenciar Paula, que é doula e educadora perinatal, coordenadora do grupo de apoio ao Parto Ishtar, discorrer sobre isso ao narrar sua trajetória durante a gestação e sua experiência com o “parto humanizado”. Ela diz que, mesmo sendo uma “mulher negra da Baixada Fluminense”, teve acesso à informação sobre o parto humanizado. Entretanto, sua experiência é singular, e considera importante divulgar para outras mulheres. Segundo disse:

Eu, como mulher negra, moradora da Baixada Fluminense, tive acesso à informação, que me levou à Casa de Parto onde eu fui acompanhada, fiz o meu pré-natal. E quando entrei em trabalho de parto, fui para a Casa de Parto. Por conta dos protocolos próprios da Casa, não pude continuar o meu parto lá, fui transferida, fui para outro hospital. Durante todo esse período, durante o meu trabalho de parto eu tive todos os meus desejos respeitados … Então, é importante que todos saibam que é um sistema e que a gente tá lutando, nadando contra a maré o tempo inteiro (Paula, doula, durante a Audiência Pública, Alerj, 2016).

Suzane, enfermeira, da comissão de mulheres do PCdoB de São João da Barra, em sua fala afirma existir uma centralidade dessas políticas e práticas de assistência humanizada do parto nas grandes metrópoles. Para ela, isso restringe ou concede espaços que perpassam a produção do “parto humanizado”. Suzane diz que é oriunda de uma cidade pequena no interior do estado, que não há essa discussão no interior, demarcada apenas para o município do Rio de Janeiro:

E a nossa vivência lá da Casa de Parto não existe, e eu acho que é muito importante que seja levada para o interior, porque eu acho fundamental que as nossas mulheres do interior do estado tenham acesso à informação de que existe esse serviço, esse trabalho, e possam escolher a forma de ter seus filhos: no hospital ou na residência. Porque, afinal de contas, é o corpo delas, são os filhos delas. E, assim, a minha vinda aqui foi pra viver a experiência de vocês. Porque eu acho que é de fundamental importância que se leve uma Casa de Parto ao interior do estado, uma coisa que ainda é muito restrita ao município sede (Suzane, integrante do PCdoB, durante a Audiência Pública, Alerj, 2016).

Além de estar demarcada pela diferenciação de seu corpo, por meio do gênero e da pele, ou pela distinção entre centro e margem da cidade, conforme aparece nas falas, a disponibilização do serviço também é associada às diferentes classes sociais. Scavone (2004)SCAVONE, Lucila. Dar a vida e cuidar da vida: feminismo e ciências sociais. São Paulo: Editora Unesp. 2004. afirma que, no contexto brasileiro, a utilização das técnicas e tecnologias – o uso da peridural, por exemplo – é vista como um privilégio, não um direito. Da mesma maneira, pode indicar uma forma de modernidade, com uma supervalorização da tecnologia médica e a aceitação de seu uso. A questão posta por uma das integrantes da audiência é outra. O acesso à informação aparece como um privilégio, e a recusa da medicalização, como um direito. Tal manifestação remete à ideia de que o “parto humanizado” é algo de uma classe social mais abastada, de uma elite econômica, pois apenas essa teria o poder da escolha.

Estou aqui porque eu quero que todas as mulheres tenham acesso a isso, porque isso não pode ser um privilégio, isso não pode ser para uma elite … Eu tive acesso à informação, tive acesso à uma rede incrível, quero que todas as mulheres tenham isso. Quero que as mulheres possam parir com segurança, com acolhimento, com respeito, com uma equipe profissional qualificada, profissionais que estão atuando na clandestinidade não podem ser devidamente qualificados para nos dar a segurança de um parto saudável, para nós e para nossos bebês. A gente não quer um parto maluco, não, gente. A gente quer um parto seguro, saudável, para nós e para os nossos bebês, com respeito. É isso (Diana, integrante do Movimento Mães e Crias na Luta, durante a Audiência Pública, Alerj, 2016).

Os cuidados femininos e a gestão da reprodução

Ao longo da sessão, pude assistir à exposição da enfermeira obstétrica Heloisa, ativista do parto humanizado e precursora no país das ideias do obstetra francês Michel Odent (2002)ODENT, Michel. O renascimento do parto. Florianópolis: Saint Germain. 2002. . Na época, era a presidenta do instituto Michel Odent no Brasil. Ao discursar, ressaltou que, independentemente das resoluções do Cremerj, as mulheres continuarão tendo “autonomia” para realizar o parto domiciliar. De acordo com Heloisa, o que está em pauta é a ideia de uma hierarquia entre os profissionais que impediria o trabalho em grupo. Trata-se, segundo ela, de uma perpetuação do poder médico e do controle do corpo feminino.

A gente tem que trabalhar em equipe no posto de saúde e a gente tem que trabalhar em equipe no parto em casa. E é por aí que eles estão quebrando a gente, então a ideia é manter as categorias isoladas, brigando entre si. A gente não precisa disso! Eu hoje tenho orgulho em dizer que tenho uma equipe que trabalha em parto hospitalar e em parto domiciliar, em que enfermeiras, médicos, pediatras, psicólogos e doulas estão juntos e podem trabalhar sem hierarquia. Isso é possível. E é a favor disso que estamos lutando, é contra a hierarquia ... É por isso que somos tão atacadas. Quando a gente vê uma mulher parindo, ninguém controla essa mulher, isso é impressionante. A gente vê uma mulher sendo suturada num hospital e ela não dá um gemido, é uma tristeza, ela não dá um gemido porque ela sabe que se ela der um gemido ela vai ser maltratada. ‘Ah, então eu largo você aí, minha filha, toda arreganhada.’ É assim que ela é tratada. Quando a gente vai para a Casa de Parto, a gente vai suturar, a batalha que é para a gente conseguir, porque é doloroso, porque essa mulher reclama, então uma mulher que tem a possibilidade de dar conta de parir sem intervenção nenhuma, por suas pernas, isso dá a ela um poder, e é por isso que querem nos calar, querem nos calar no parto e querem nos calar na nossa vida (Heloisa, enfermeira obstétrica, durante a Audiência Pública, Alerj, 2016).

Maia (2010)MAIA, Mônica Bara. Humanização do parto: política pública, comportamento organizacional e ethos profissional. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz. 2010. ressalta que a enfermagem obstétrica está tendo cada vez mais ampliação no mercado de trabalho no contexto brasileiro, mostrando-se uma importante área de expertise no serviço da “humanização do parto”. O Ministério da Saúde traz normativas que incentivam a humanização da assistência ao parto, certificando a atuação da enfermeira obstetra na atenção ao parto normal sem complicações. A exemplo disso, a autora afirma que o Ministério da Saúde tem financiado cursos de capacitação, estabelecendo pagamento, pelo SUS, de parto assistido por enfermeira obstetra e implantação dos centros de parto normal, unidades privilegiadas de atuação dessa profissional em partos sem distocia (complicações durante a parição), além de trabalhar em partos domiciliares.

De acordo com Maysa, representante da Abenfo presente na mesa da plenária, as resoluções do Cremerj dificultam a atenção ao parto fornecida pelas profissionais enfermeiras obstétricas e obstetrizes. Segundo ela, são decisões que delimitam e padronizam os espaços de atuação do médico, da enfermeira e de obstetrizes na atenção ao parto em domicílio e hospitais. Ela explicou que nos chamados partos de “baixo risco” ou nos partos de “risco habitual” o acompanhamento da gestação, do parto e do pós-parto pode ser realizado por enfermeiros/as e obstetrizes que estejam qualificados/as para tal. Na mesma direção, como se trata de um “processo fisiológico”, as mulheres podem e devem ter a opção de ser atendidas em um hospital, em um centro de parto normal, em uma casa de parto ou em um domicílio.

Para Maysa, há que pensar que a concepção da assistência ao parto também deve pressupor que a maioria das mulheres está “saudável”. Para ela, o atual modelo hospitalar, “biomédico”, entende a gestação, o parto e o pós-parto como algo que altera a saúde das mulheres. Dessa forma, as gestantes são submetidas a um modelo de assistência montado para aquelas que adoecem. O primeiro pressuposto, de acordo com Maysa, deve ser que as mulheres são saudáveis. O que está em debate é a transição de paradigmas “para um modelo em que as principais protagonistas deixam de ser o médico e passam a ser a mulher, é ela que precisa poder escolher quais são os locais em que se sente mais segura”.

Sendo assim, é possível notar que essa visão é crítica ao modelo biomédico e ao paradigma do cuidado. Pensando em termos foucaultianos, o processo de nascimento passa a ser de interesse da biopolítica. Há, então, uma vigilância estatal, interessada no cuidado e controle dos corpos e da população, normatizando o biológico e o controle das vidas.

Maysa afirma que as resoluções do Cremerj interferem no processo de cuidado das mulheres. De acordo com ela, para que se desencadeie o processo e transcorra da forma mais “natural possível”, a parturiente precisa de um sistema que esteja adequado:

E para que possamos construir isso é necessário que um grupo multidisciplinar esteja trabalhando em acordo. Portanto, essas resoluções dificultam a escolha dessas mulheres para tomar uma decisão coerente e segura, também dificultam os diversos profissionais envolvidos no processo, ao atuarem sob ameaça. … Na medida em que os profissionais trabalham com segurança, sabemos que em algum momento podemos necessitar dessa transferência e precisamos poder contar com esse plano (Maysa, enfermeira obstétrica, durante a Audiência Pública, Alerj, 2016).

Na audiência apareceu a ideia da dimensão da “gestão do cuidado”. Em um de seus artigos, Cecílio (2009)CECÍLIO, Luiz Carlos de Oliveira. ‘A morte de Ivan Ilitch’, de Leon Tolstói: elementos para se pensar as múltiplas dimensões da gestão do cuidado. Interface: Comunicação, Saúde, Educação, v.13, supl.1, p.545-555. 2009. analisa o romance A morte de Ivan Ilitch , de Tolstói, um tanto ilustrativo em relação às formas de cuidar e às críticas à normativa do cuidado. Na obra, o escritor descreve o sofrimento do enfermo a partir do “olhar do doente”. O personagem Ivan Ilitch, que levou uma vida burguesa na Rússia czarista, consegue, a partir de sua enfermidade – da sensação da dor, da perda de autonomia, do medo da morte, da sensação de desespero e solidão – e de certa ausência de comunicação do outro, inserir-se na produção do cuidado em dimensões distintas, tanto naquela de quem recebe o cuidado como na de quem gera o cuidado.

é a incomunicabilidade com os outros. Ninguém parece entender o que ele está vivendo. Os médicos, porque insistem em um linguajar técnico, preocupados em encontrar um diagnóstico da doença e a terapia correspondente. A mulher e os filhos expressam pena e culpa ao vê-lo naquela situação. ... Ele sabe que é um estorvo para a família. O pior, porém, é que ele sabe que todos mentem, que todos fingem não ver o agravamento de sua situação. Seus encontros com o espelho são dramáticos, quase insuportáveis. A imagem que vê em nada faz lembrar o homem que era, antes, inveja a vitalidade e a autonomia dos que não estão doentes. Um mundo que lhe parece cada dia mais distante ( Cecílio, 2009CECÍLIO, Luiz Carlos de Oliveira. ‘A morte de Ivan Ilitch’, de Leon Tolstói: elementos para se pensar as múltiplas dimensões da gestão do cuidado. Interface: Comunicação, Saúde, Educação, v.13, supl.1, p.545-555. 2009. , p.546).

Até que surge a figura do Guerássim, um serviçal humilde, analfabeto, designado a ajudar o patrão em suas atividades diárias, visto que este não conseguia mais dar conta delas sozinho. Em dado momento, Ivan IIitch descobre que ao erguer suas pernas a dor se alivia, então pede para que Guerássim o ajude a fazer isso; foi uma primeira intervenção terapêutica eficaz, taxada pelo médico e pela família como um absurdo sem utilidade, pois não se encaixava nos cânones da medicina daquela época.

O ato de colocar as pernas de Ilitch no ombro de Guerássim foi criando laços de intimidade inimagináveis na época entre o senhor e seu servo. Cecílio traz a ideia do cuidado como gesto acolhedor, que produz junto a Ilitch um cuidado que tem a potência de diminuir a dor. Com essa intimidade, Ilitch admite seu medo da morte, discute sobre isso e dispõe da atenção que necessita: “a invenção de um novo modo de cuidar que escapa dos instituídos e alarga e reinventa o mundo do possível. Uma ‘tecnologia de cuidado’ que nasce do gesto, da proximidade física, da escuta e da generosidade do ‘cuidador’” (Cecílio, 2009, p.548).

O autor também aponta para certo risco dos programas de “qualificação” e dos programas de “humanização”, pois as formas de construir o atendimento ao outro podem continuar a colaborar para uma instrumentalização demasiada de formalizações do encontro “trabalhador-usuário”, impedindo a possibilidade dos encontros que produzem cuidado, como o caso dos personagens Ilitch e Guerássim.

De acordo com Mendonça (2014)MENDONÇA, Paulo Eduardo Xavier de. Sem soberania: gestão solidária e força fraca para cuidar de vidas fracas. Tese (Doutorado em Clínica Médica) – Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro. 2014. , o ato do cuidado se dá a partir da construção da abertura ao outro, trazendo as ideias oriundas do conceito do “ato livre”, de Lévinas. A abertura para o outro se faz por uma necessidade e total vulnerabilidade, afirma Lévinas (citado em Mendonça, 2014MENDONÇA, Paulo Eduardo Xavier de. Sem soberania: gestão solidária e força fraca para cuidar de vidas fracas. Tese (Doutorado em Clínica Médica) – Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro. 2014. ). O “ato livre” então corresponde a uma ação humana compelida pela presença da face do outro. As liberdades se localizam nas relações, em meio à subjetividade e à vulnerabilidade. O cuidado é um acontecimento marcado pelo encontro de quem cuida e de quem é cuidado.

Ainda segundo Mendonça, os modelos assistenciais do cuidado passaram a ser parte integrante e ferramenta das técnicas de governo em uma era da biopolítica, integrando, assim, a máquina do Estado e sendo basilar no controle da população. A biopolítica se dá a partir do problema da população contextualizada no Estado liberal. É preciso então gerir os seres vivos para que haja controle, a fim de garantir a melhoria da gestão da força de trabalho. Nessa perspectiva, o cuidado é biopolítica, mas só algumas vidas são cuidadas. Pelbart (2007PELBART, Peter Pál. Vida nua, vida besta, uma vida. Trópico, p.1-5. Disponível em: <https://territoriosdefilosofia.wordpress.com/2014/06/22/vida-nua-vida-besta-uma-vida-peter-pelbart>. Acesso em: 8 out. 2020. 2007.
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, p.1) aponta que esse biopoder “não visa barrar a vida, mas tende a encarregar-se dela, intensificá-la, otimizá-la”, chegando ao cerne da subjetividade e da vida contemporânea do biopoder. O deixar morrer e fazer viver implicam cuidar da população, dos processos biológicos; otimizar e gerir a vida.

Sobre a concepção da “gestão do cuidado”, Zuleide, enfermeira obstétrica, ao compor a mesa plenária, reforça a ideia de que o enfermeiro atua no “cuidado diferenciado” em relação a essas mulheres. Essas resoluções, argumenta, estariam impedindo esses profissionais de oferecer esse “cuidado”.

A gente precisa buscar porque existe uma demanda, existem mulheres querendo esse cuidado diferenciado. E outras que não buscam, talvez porque ninguém tenha falado disso para elas. Essa informação não chega até elas. E, quando chega, elas não podem usar. Porque a gente ainda tem uma minoria, e é isso que está acontecendo, que decide o que deve ser feito, sem ter a possibilidade de um momento como esse, para que a população se manifeste e diga ‘eu quero um cuidado diferenciado, eu quero essa possibilidade’. Nós queremos todas as possibilidades, porque eu acho que tudo tem que ser respeitado, desde que a gente possa optar. Eu trabalho no programa Cegonha Carioca, trabalho na Casa de Parto David Capistrano, trabalho também com uma equipe de parto domiciliar. São várias possibilidades e todas elas com o objetivo de oferecer o melhor cuidado (Zuleide, enfermeira obstétrica, durante a Audiência Pública, Alerj, 2016).

Assim como os enfermeiros, as doulas são apresentadas como profissionais capazes de humanizar o parto e evitar “violências obstétricas”. Roberta, representante do Movimento de Doulas e do coletivo Parto com Princípio, diz que a presença da doula é uma questão de saúde pública, pois diminui as taxas de cesárias e as taxas de episiotomia e aumenta as taxas de aleitamento nas primeiras semanas após o nascimento.

A categoria “doula”, de acordo com a palestrante, é reconhecida pela Classificação Brasileira de Ocupações (CBO), no entanto, até aquele momento não havia uma lei que regulamentasse sua participação no cenário de parto.

Enquanto Roberta palestrava na sessão plenária, algumas doulas se manifestaram sobre o assunto. Em rumores paralelos à palestra principal, queixavam-se de ser transformadas em “testemunhas oculares” de potenciais “violências obstétricas”, uma vez que o médico em exercício retiraria a “autonomia” da mulher sobre o seu corpo.

Temos que informar a mulher sobre quais são os direitos dela e informar sobre a tal da violência obstétrica, porque tem muitas, muitas e muitas coisas que acontecem dentro de uma sala de parto que são tidas como normais, cotidianas, mas o nosso papel, a gente chega ali no ouvido daquela mulher durante a gestação e diz: ‘Olha, se você deixar que isso seja feito com você ou se fizerem isso com você contra a sua vontade, isso significa que você está sendo vítima de violência obstétrica.’ … então nós somos, sim, testemunhas oculares do que está acontecendo ali. Então porque os médicos estão com tanto, tanto, tanto medo que a gente esteja ali olhando o que eles estão fazendo com as mulheres? (Roberta, doula, durante a Audiência Pública, Alerj, 2016).

É interessante perceber que na plenária não eram debatidas apenas as resoluções, mas a “autonomia” da mulher. Sendo assim, o tema primordial do debate era o efeito de ações públicas na dimensão privada da vida das mulheres ( Foucault, 1995FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. Rio de Janeiro: Graal. 1995. ).

Considerações finais

Acredito que, levando-se em conta os aspectos observados na audiência pública “Parto humanizado e o direito da escolha”, pode-se constatar que existe um ponto de recorrência nas reclamações das mulheres, profissionais e ativistas presentes, que diz respeito ao direito das gestantes e parturientes de serem ouvidas e consultadas acerca dos encaminhamentos do parto. O debate da audiência faz com que compreendamos os espaços políticos de conflitos dos saberes no campo da saúde e também do legislativo, além de ponderar os discursos do saber/poder ( Ortega, 1999ORTEGA, Francisco. Habermas versus Foucault: apontamentos para um debate impossível. Síntese, v.26, n.85, p.242-244. 1999. ) acerca do corpo feminino e sua reprodução. Além do recorte histórico, foi visto como os médicos foram tomando a frente do gerenciamento do corpo feminino, em particular no caso do parto, objeto do presente trabalho.

Com este estudo, busquei dar continuidade às discussões e ajudar a resolver os conflitos que ocorrem entre a medicina, a enfermagem e as doulas, e mais ainda, busquei compreender e dar voz às ativistas e mulheres que exigem ser ouvidas nos encaminhamentos do parto, sendo este encarado como uma escolha da mulher. Almejo que o presente trabalho possa contribuir para a elaboração de outras questões que pautem o espaço do Legislativo, como disputa dos “direitos reprodutivos”, da “autonomia” da mulher e do “direito da escolha” no momento do parto.

AGRADECIMENTO

O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior – Brasil (Capes). Código de financiamento 001.

REFERÊNCIAS

  • ALERJ. Assembleia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro. Audiência Pública: Parto humanizado. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=xeEgo60Lku4&t=5099s> Acesso em: 1 fev. 2017. 2016.
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  • ALERJ. Assembleia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro. Como funciona. Disponível em: <http://www.alerj.rj.gov.br/Alerj/ComoFunciona> Acesso em: 1 fev. 2017. s.d.
    » http://www.alerj.rj.gov.br/Alerj/ComoFunciona>
  • BARBOSA, Gisele Peixoto et al. Parto cesáreo: quem o deseja? Em quais circunstâncias? Cadernos de Saúde Pública, v.19, n.6, p.1611-1620. Disponível em: <http://www.scielo.br/pdf/csp/v19n6/a06v19n6.pdf> Acesso em: 20 jul. 2015. 2002.
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  • BARRETO, Maria Renilda Nery. Assistência ao nascimento na Bahia oitocentista. História, Ciências, Saúde – Manguinhos, v.15, n.4, p.901-925. 2008.
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NOTAS

  • 1
    “Ação civil pública é um instrumento processual, de ordem constitucional, destinado à defesa de interesses difusos e coletivos. Mesmo estando referida no capítulo da Constituição Federal relativo ao Ministério Público (artigo 129, inciso III)” (Jusbrasil, s.d.).
  • 2
    O processo pode ser visualizado na íntegra em: < http://old.cremerj.org.br/anexos/RES_266_Anexo.pdf> . Acesso em: 10 out. 2020.
  • 3
    No “art. 530 – Cabem embargos infringentes quando o acórdão não unânime houver reformado, em grau de apelação, a sentença de mérito, ou houver julgado procedente ação rescisória. Se o desacordo for parcial, os embargos serão restritos à matéria objeto da divergência” (Brasil, 23 ago. 2000).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    18 Dez 2020
  • Data do Fascículo
    Oct-Dec 2020

Histórico

  • Recebido
    4 Set 2018
  • Aceito
    8 Jan 2019
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