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Shozo Motoyama (1940-2021), várias tradições

Primeiramente, agradeço a Marcos Cueto, editor científico de História, Ciências, Saúde – Manguinhos , por ter cedido o espaço da Carta do Editor para homenagear o historiador das ciências Shozo Motoyama, falecido em 26 de janeiro de 2021. Convido os leitores a lembrar seu importante trabalho nesta homenagem na forma de breve obituário.

A história das ciências no Brasil teve em Shozo Motoyama (1940-2021) um defensor contundente. Seu recente falecimento constitui razão para demonstrar o seu comprometimento constante com o fortalecimento da história das ciências como uma área de pesquisa e de produção de conhecimentos sobre o Brasil.

Filho de imigrantes japoneses, Shozo Motoyama ingressou na graduação em física em 1964, na Universidade de São Paulo (USP), num período de crises, em meio ao golpe militar, e de debates acalorados. Foi ainda um momento de transformação no ensino superior brasileiro, como aquele provocado pela reforma universitária. Na pós-graduação, a criação do sistema nacional de avaliação da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior demarcou reformas nos cursos existentes. Concomitantemente ocorriam na USP intensas discussões sobre a criação de institutos e o desmembramento da antiga Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras, onde estavam inseridos os cursos de física, química, biologia, matemática, psicologia, juntamente com os cursos de humanidades, letras e educação. Ainda na antiga faculdade, estimulados pelo diretor Eurípedes Simões de Paula, os físicos formados, Shozo Motoyama, em 1967, e Maria Amélia Mascarenhas Dantes, em 1964, foram contratados para ministrar aulas de história das ciências junto ao Departamento de História, na subseção de Ciências, cadeira de História da Civilização Antiga e Medieval.

Com o desmembramento da faculdade em 1968, e a criação dos respectivos institutos, departamentos e novas faculdades, ambos precisaram decidir entre a docência no Instituto de Física, do qual eram oriundos, e onde também atuavam, e no Departamento de História, na nova Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas. Shozo, assim como Maria Amélia, optaria pela transferência formal para o Departamento de História, onde ele também desenvolveu sua tese de doutoramento Galileu Galilei: um estudo sobre a lógica do desenvolvimento científico , criando, com outros, o Núcleo de História da Ciência e da Tecnologia. A defesa da tese já se daria no Programa de Pós-graduação em História Social, em 1971. A livre-docência na USP e o pós-doutorado em laboratórios de estudos sobre raios cósmicos das universidades japonesas University of Tokyo e Waseda University completaram a sua formação interdisciplinar.

O conjunto dessas experiências permite reconhecer na produção escrita do professor Shozo Motoyama, em livros e artigos diversos, o vínculo entre as concepções sociopolíticas de busca da superação do subdesenvolvimento brasileiro, especialmente no contexto dos anos 1960 e 1970, em que o Brasil buscava, por meio do planejamento econômico, da cooperação internacional, do incentivo à ciência e à tecnologia, gerar aumento no número de empregos, ampliação das capacidades produtivas do país e, consequentemente, a esperada melhora na qualidade de vida nacional. Esse panorama geral, em conjunto com sua participação em um universo formal acadêmico também em modificação, apontou para uma vivência universitária marcada por estes dois parâmetros de atenção: pensar sobre o papel da ciência e da tecnologia tendo em vista o panorama sociopolítico do país e contribuir participando do ambiente institucional acadêmico.

Se, como diz Ludwik Fleck (2010FLECK, Ludwik. Gênese e desenvolvimento de um fato científico. Belo Horizonte: Fabrefactum, 2010. , p.81-82), “o processo de conhecimento não é o processo individual de uma ‘consciência em si’ teórica, é o resultado de uma atividade social, uma vez que o respectivo estado do saber ultrapassa os limites dados a um indivíduo”, Shozo adicionou à sua produção intelectual, individual, uma também importante atividade para a estruturação coletiva da área da história das ciências brasileiras. Nesse sentido, Shozo Motoyama teve atuação decisiva para a área da pesquisa histórica: a participação na criação da Sociedade Brasileira de História da Ciência (SBHC), em 1983, atuando como principal moderador e secretário daquela associação em seu período inicial, e a criação da Revista Brasileira de História da Ciência , em 1985, bem como do primeiro Boletim da SBHC , que começou a circular antes, em outubro de 1984, finalizado em 1985, quando do início da circulação da revista.

No primeiro número da revista da SBHC, ontem, como hoje, era preciso afirmar que “C&T desempenham papéis importantes no processo de desenvolvimento. Esta constatação seria até banal se não fossem as armadilhas do subdesenvolvimento, traduzidas numa visão tecnocrática sobre o assunto” ( Motoyama, 1985MOTOYAMA, Shozo. Os principais marcos históricos em Ciência e Tecnologia no Brasil. Revista da Sociedade Brasileira de História da Ciência , n.1, p.41-49, 1985. Disponível em: https://www.sbhc.org.br/revistahistoria/view?ID_REVISTA_HISTORIA=41. Acesso em: 20 jun. 2021.
https://www.sbhc.org.br/revistahistoria/...
, p.41). Para ele, a superação das deficiências estruturais do país dependeria de novas circunstâncias:

nem a ciência nem a tecnologia estão harmonicamente integradas nas instituições sociais, econômicas e culturais brasileiras. Dessas desarmonias, resultantes dos mecanismos inerentes ao subdesenvolvimento, vingam distorções e desvios correntemente observados. Ideias oportunistas e deformadas como o empresariamento e rentabilidade imediata das pesquisas são exemplos claro disso. A desconfiança quanto à objetividade dos resultados científicos, que nem sempre são favoráveis aos eventuais donos do poder, é outra manifestação ( Motoyama, 1985MOTOYAMA, Shozo. Os principais marcos históricos em Ciência e Tecnologia no Brasil. Revista da Sociedade Brasileira de História da Ciência , n.1, p.41-49, 1985. Disponível em: https://www.sbhc.org.br/revistahistoria/view?ID_REVISTA_HISTORIA=41. Acesso em: 20 jun. 2021.
https://www.sbhc.org.br/revistahistoria/...
, p.47-48).

A história das ciências no Brasil e sua historiografia seguem atualmente debates conceituais diversos, e algumas vezes muito divergentes. Quando, contudo, olhamos a história dessa produção a partir da percepção do entrelaçamento das convicções particulares com as causas coletivas, a enorme produção e a atuação empenhada do professor Shozo Motoyama ganham um valioso sentido. Pessoalmente lembro do seu esforço em continuar auxiliando a SBHC em tempos recentes, quando, por exemplo, se empenhou para angariar apoios, institucionais e financeiros, para a realização do seminário nacional que voltou a ocorrer em São Paulo, muito tempo depois de sua gestão. Ou ainda do grande acervo de orientações de pós-graduação e dos destacados orientandos espalhados em diversas instituições. Essas são proezas individuais que não se subtraem, mas que se somam às características que auxiliam a compreender o universo formativo de uma área científica, e que transitam e se imprimem em gerações posteriores.

Shozo Motoyama foi também fiel às suas raízes identitárias, atuando intensamente nas relações Brasil/Japão, como membro de centros de estudos, diretor do Museu Histórico da Imigração Japonesa, com livros sobre a história desses temas, assim como autor e organizador de livros sobre a história das ciências no Brasil. Tudo isso demonstrando sua dedicação à causa da universidade pública brasileira.

REFERÊNCIAS

  • FLECK, Ludwik. Gênese e desenvolvimento de um fato científico. Belo Horizonte: Fabrefactum, 2010.
  • MOTOYAMA, Shozo. Os principais marcos históricos em Ciência e Tecnologia no Brasil. Revista da Sociedade Brasileira de História da Ciência , n.1, p.41-49, 1985. Disponível em: https://www.sbhc.org.br/revistahistoria/view?ID_REVISTA_HISTORIA=41 Acesso em: 20 jun. 2021.
    » https://www.sbhc.org.br/revistahistoria/view?ID_REVISTA_HISTORIA=41

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    03 Set 2021
  • Data do Fascículo
    Jul-Sep 2021
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