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A Casa da Ciência e os desafios de um centro cultural de divulgação científica na Universidade Federal do Rio de Janeiro

The Casa da Ciência and challenges of a cultural center for scientific dissemination at the Universidade Federal do Rio de Janeiro

Resumo

A Casa da Ciência é um centro cultural de divulgação científica da Universidade Federal do Rio de Janeiro que tem como objetivo despertar a curiosidade por meio das relações entre ciência, arte e cultura. Utiliza diferentes linguagens, de forma lúdica e interativa, para discutir os conceitos da ciência, proporcionando sua popularização. Este artigo, de caráter bibliográfico e exploratório, aborda os aspectos históricos relativos à criação da instituição, seu funcionamento e financiamento. Traça também um breve histórico da divulgação científica brasileira contemporânea. O trabalho inclui uma reflexão sobre a Política Cultural, Artística e de Difusão Científico-Cultural para a implantação do Sistema Integrado de Museus, Acervos e Patrimônio da universidade. Aponta para as dificuldades dos processos de institucionalização desses espaços.

divulgação científica; história; instituição; memória

Abstract

The Casa da Ciência at the Universidade Federal do Rio de Janeiro is a cultural center meant to stir curiosity by connecting science, art, and culture. Different languages are used in an entertaining and interactive manner to discuss and popularize scientific concepts. This bibliographical and exploratory article addresses the historical aspects around the creation of the institution, its function, and its funding. It also provides a brief history of contemporary scientific dissemination in Brazil. A reflection on cultural, artistic and scientific/cultural policy for the implementation of the university’s integrated system for museums, collections, and university heritage is also included, and indicates the difficulties in the processes of institutionalizing these spaces.

scientific dissemination; history; institution; memory

A Universidade Federal do Rio de Janeiro e a implantação do Sistema Integrado de Museus, Acervos e Patrimônio

Durante todo nosso período colonial, Portugal proíbe a existência de instituições de educação superior no Brasil, salvo algumas escolas dirigidas pelos jesuítas, que eram mera preparação para as certificações das universidades portuguesas. Portanto, a elite era formada pelas universidades europeias, primordialmente em Coimbra. Após quatro séculos de história, cria-se a primeira universidade: Universidade do Rio de Janeiro, cujo decreto, n.14.343 (Brasil, 7 set. 1920), é sancionado no dia das comemorações da Independência do Brasil.

Ficaram ali reunidas a Escola Politécnica, a Faculdade de Medicina e a Faculdade de Direito do Rio de Janeiro, já existentes desde o século XIX. Com base nos jornais da época e nas atas das assembleias das unidades que integravam a Universidade do Rio de Janeiro, em 1920, Fávero (2000)FÁVERO, Maria de Lourdes de Albuquerque. Universidade do Brasil: das origens à construção . Rio de Janeiro: Editora da UFRJ; Comped; Inep, 2000. afirma que a institucionalização dessa universidade teria se processado sem grandes debates e sido recebida com pouco interesse e entusiasmo. Teria sido saudada apenas por um grupo limitado de pessoas que direta ou indiretamente estavam implicadas em sua criação. Em 1931, no contexto de transformação da organização universitária empreendida por Francisco Campos, por meio do Estatuto das Universidades Brasileiras, a Universidade do Rio de Janeiro incorpora a Escola de Música e a Escola de Belas-Artes.

Em 1937, é reorganizada e transformada em Universidade do Brasil, sancionada pela lei n.452, de 5 de julho de 1937. Entre 1937 e 1964, foram incorporadas a essa universidade 15 unidades e 16 institutos, entre eles o Museu Nacional. Posteriormente, a partir da Lei de Diretrizes e Bases, lei n.4.024, de 20 de dezembro de 1961, passou a ser Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Historicamente, a organização acadêmico-administrativa que configurou a universidade se dá por intermédio de seis centros universitários (Centro de Ciências da Saúde, Centro de Tecnologia, Centro de Ciências Matemáticas e da Natureza, Centro de Ciências Jurídicas e Econômicas, Centro de Filosofia e Ciências Humanas e Centro de Letras e Artes), um escritório técnico, o Fórum de Ciência e Cultura (FCC) e seus órgãos suplementares (Museu Nacional, Editora, Sistema de Bibliotecas, Casa da Ciência, Colégio Brasileiro de Altos Estudos, Núcleo de Rádio e TV, Sistema Integrado de Museus, Acervos e Patrimônio Cultural e a Universidade da Cidadania) e a Prefeitura da Cidade Universitária.

Há, portanto, na UFRJ, um vasto patrimônio científico, cultural e edificado que lhe foi incorporado desde suas origens. Entretanto, foi somente a partir do início do século XXI que a universidade procurou trazer para si a interlocução entre ensino, pesquisa e extensão. O FCC foi, então, criado com o objetivo de difundir e preservar a ciência, o patrimônio histórico, cultural, artístico e da natureza brasileira, além de ser um local propício ao debate dos estudos referentes ao progresso dos vários setores do conhecimento, bem como dos problemas brasileiros.

Para dar conta da dispersão do patrimônio científico-cultural da UFRJ, o FCC liderou, em 2012, o debate e a construção de uma Política Cultural, Artística e de Difusão Científico-Cultural, aprovada pelo Conselho Universitário em agosto de 2014. Uma política necessária para que o patrimônio seja preservado e mais bem gerido. Entretanto, para que tal política se concretize, faz-se necessária uma mudança estrutural no interior da universidade, em suas unidades, seus departamentos, programas e cursos, assim como nas instâncias dirigentes e nos colegiados superiores que compõem a gestão da UFRJ. Há que estruturar e envolver o conjunto de concepções e práticas cotidianas que assegure o entendimento de que as dimensões contempladas por essa política universitária são inseparáveis do processo de formação dos estudantes, e que ela só se materializa pela ação conjunta e continuada de professores, estudantes e técnicos administrativos em seu dia a dia nos centros, unidades, departamentos, programas, laboratórios, cursos ou grupos culturais e artísticos.

As ações, os programas e projetos que integram essa política não constituem tarefas do FCC, e sim do conjunto da universidade. Cabe ao FCC, em estreita colaboração com as pró-reitorias, ser responsável pela coordenação e implementação. Mas a execução, propriamente dita, cabe às unidades em suas diversas instâncias.

O grupo de trabalho para a estruturação do Sistema Integrado de Museus, Acervos e Patrimônio (Simap) foi criado em 2013 (em 28 de março de 2014 foi instituído pela portaria n.3.064), para atuar na preservação, na conservação e no desenvolvimento de acervos, arquivos, centros de memória, museus e espaços de ciência e patrimônio edificado.

Dentro das perspectivas desse sistema destaca-se a necessidade de divulgação dos museus, espaços de ciência e patrimônio histórico, considerando-se que o conhecimento e a fruição pública desses equipamentos e acervos representam novas possibilidades de reflexões, de conhecimentos e encantamentos à disposição da sociedade e, consequentemente, uma ferramenta de preservação e valorização social. Além disso, faz-se necessário implementar ações capazes de auxiliar a gestão, proteção, conservação e divulgação dos museus, centros de ciência, acervos e patrimônio da UFRJ, bem como apoiar e propor ações conjuntas e/ou individuais dos membros do sistema, sempre considerando suas especificidades.

Sob a liderança do Simap estão em curso levantamento, qualificação, sistematização e registro de acervos, arquivos, centros de memória, museus, espaços de ciência e patrimônio edificado. O objetivo é obter uma ideia mais exata da dimensão, composição, situação de conservação e de acessibilidade do patrimônio, bem como o valor histórico, documental, científico, cultural, pedagógico de cada elemento, objeto, obra e edificação. Essa catalogação, feita sobretudo com a participação de estudantes bolsistas, iniciou-se em 2014, no âmbito do Programa de Difusão Científica e Cultural (Prodicc), e ainda não foi finalizada por falta de recursos e a consequente interrupção do programa de bolsas.

Dentre as ações propostas pelo Simap, podemos destacar a participação na 23ª Conferência Internacional do Conselho Internacional de Museus, realizada de 10 a 17 de agosto de 2013 na Cidade das Artes, no Rio de Janeiro. A UFRJ exibiu seu conjunto de museus e espaços de ciência dedicados à pesquisa, ao ensino e à divulgação científica e cultural. Tal conjunto, diverso e plural, é o resultado do esforço coletivo de manter e promover o conhecimento da memória e do patrimônio da universidade, bem como difundir ciência.

Como resultado do mapeamento, o Simap já reúne as seguintes instituições: Casa da Ciência – Centro Cultural de Ciência e Tecnologia da UFRJ, Museu Nacional, Espaço Coppe Miguel de Simoni, Espaço Memorial Carlos Chagas Filho, Museu da Geodiversidade, Museu Dom João VI, Observatório do Valongo, Laboratório Didático do Instituto de Física, Museu da Escola Politécnica, Museu de Química Professor Athos da Silveira Ramos, Museu Itinerante de Neurociências, Museu Delgado de Carvalho, Museu da Computação, Museu da Escola Anna Nery, Espaço Arte, Memória & Sociedade Jesse Jane Vieira de Souza e Museu de Anatomia. A multiplicidade desses espaços faz da UFRJ uma instituição singular no campo da divulgação e popularização da ciência.

Há, também, um vasto patrimônio edificado tombado: Paço de São Cristóvão (Museu Nacional), Faculdade Nacional de Direito, Hospital Escola São Francisco de Assis, Palácio Universitário, Instituto de Filosofia e Ciências Sociais, Fundação Universitária José Bonifácio, Centro de Arte Hélio Oiticica, Escola Nacional de Música, Observatório do Valongo, Praça da República, Escola de Enfermagem Anna Nery, Colégio Brasileiro de Altos Estudos, Instituto de Puericultura e Pediatria Martagão Gesteira, Faculdade de Arquitetura e Urbanismo – Reitoria.

Entre os desafios para consolidar a política de museus, acervos e patrimônio da UFRJ estão a implantação de um sistema de segurança eficiente contra sinistros, a realização do tratamento adequado aos acervos (levantamento, preservação, digitalização e disponibilização), a busca de financiamento para recuperação e manutenção dos prédios históricos, a implantação de um programa de acessibilidade em museus, além da musealização dos prédios históricos. São metas e desafios de curto, médio e longo prazos que, embora tenham sido iniciados, estão interrompidos por falta de recursos.

Breve histórico da divulgação científica brasileira contemporânea

A divulgação científica, nas primeiras décadas do século XX, é marcada pela organização da comunidade científica por meio da criação da Sociedade Brasileira de Ciências (1916), que, em 1921, torna-se Academia Brasileira de Ciências (ABC); da Associação Brasileira de Educação (1924); da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência, em 1948; e da Sociedade Brasileira de Geologia (1945). No pós-Segunda Guerra Mundial, foram criadas várias instituições de pesquisa, como o Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas, em 1949; o Instituto de Matemática Pura e Aplicada, em 1951; e o Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia, em 1952. Esse período também é marcado pela criação, em 1951, das agências de fomento, como o Conselho Nacional de Pesquisa (CNPq) e a Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes). Esta tinha como objetivo promover a qualificação dos professores, e aquele tinha como missão traçar rumos para a pesquisa científica que assegurassem a soberania nacional.

Ferreira (2014)FERREIRA, José Ribamar. Popularização da ciência e as políticas públicas no Brasil . Tese (Doutorado em Biofísica) – Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2014. , mencionando Valente (2008)VALENTE, Maria Esther Alvarez. Museus de ciências e tecnologia no Brasil: uma história da museologia entre as décadas de 1950-1970 . Tese (Doutorado) – Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2008. , aponta que, apesar de se desenvolverem ou inaugurarem museus de ciência e tecnologia, as décadas de 1950 a 1970 criaram estímulos e condições para que o processo de implantação acontecesse em grande escala a partir da década de 1980. A autora registra importantes avanços na concepção e na missão dos museus a partir dos anos 1970, como a preservação do patrimônio cultural e natural, a exibição do fenômeno abstrato (patrimônio imaterial da ciência), superando a exclusividade do uso do objeto, e, ainda, sua responsabilidade social.

Do final da década de 1970 até os anos 1990, houve um intenso movimento de implantação de centros e museus de ciência, entre eles o Museu de Ciência e Tecnologia da Bahia (1979); o Centro de Divulgação Científica e Cultural, da cidade de São Carlos (1980); o Espaço Ciência Viva, no Rio de Janeiro (1982); o Museu de Astronomia e Ciências Afins (Mast), também no Rio de Janeiro (1985); a Estação Ciência, em São Paulo (1987); o Museu de Ciências e Tecnologia da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (1993); o Espaço Ciência, na Paraíba(1995), e a Casa da Ciência da UFRJ (1995).

Infelizmente, esse período de implantação foi seguido de outro, que culminou com a interrupção de algumas dessas iniciativas, entre elas o Museu de Ciência e Tecnologia da Bahia. Segundo Souza (2008)SOUZA, Adriana Vicente da Silva. A ciência mora aqui: reflexões acerca dos museus e centros de ciência interativos do Brasil . Dissertação (Mestrado em História das Ciências e das Técnicas) – Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2008. , este alternou fases de abertura e fechamento, e somente em 2006 foi reaberto definitivamente ao público, recebendo visitantes regularmente, participando de eventos de divulgação científica e organizando exposições. Já a Estação Ciência foi fechada para visitação em 15 de março de 2013 e teve seus equipamentos distribuídos pelas unidades da Universidade de São Paulo. O prédio não pertencia à universidade, e sim ao governo do estado de São Paulo, e teve que ser devolvido. Entretanto, o órgão Estação Ciência ainda existe e faz parte de um grupo de trabalho para elaborar novo projeto, junto a outros órgãos de difusão científica da Pró-Reitoria de Cultura e Extensão Universitária/PRCEU.

No que diz respeito às primeiras iniciativas governamentais para a popularização da ciência, a criação do Mast e da Estação Ciência fez parte das novas orientações do CNPq, iniciadas na década de 1980. Nessa mesma época (1984 a 1996), o Subprograma de Educação para Ciência do Programa de Apoio ao Desenvolvimento Científico e Tecnológico (SPEC/PADCT), promovido pela Capes, fortaleceu a área por meio de uma política de incentivo e financiamento que viabilizou o apoio a inúmeros projetos espalhados pelo país da comunidade de educadores em ciências. Tal incentivo possibilitou a formação de mestres e doutores e a criação de programas de pós-graduação ou de linhas de pesquisa de educação em ciências, além das várias iniciativas para a melhoria da qualidade do ensino de ciências, como projetos de formação continuada de professores, de elaboração de materiais didáticos etc.

Em 1985, foi criado o Ministério da Ciência e Tecnologia (MCT), transformado em 2014 em Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação (MCTI), e, em 2016, como resultado de uma profunda crise política instaurada pelo impeachment da presidenta eleita Dilma Rousseff, o ministério foi fundido com o das Comunicações. Diante de instabilidade política do país, nos últimos anos, há uma queda brutal nos investimentos em ciência e tecnologia, agravada pela aprovação da proposta de emenda constitucional n.55/2016, que limitou drasticamente os gastos públicos por duas décadas, colocando em jogo um dos principais instrumentos de justiça social do país, que são os gastos com educação e saúde. O orçamento, congelado, será o mais baixo dos últimos dez anos. Em consoante, há um desmonte dos institutos de pesquisa e financiamento em ciência e tecnologia; o CNPq, a Capes e fundações de amparo à pesquisa estão com cada vez menos recursos.

As instituições de pesquisa sofrem com a falta de investimento, assim como os museus de ciências e instituições afins.

O orçamento de investimentos do setor passou de R$ 8,4 bilhões em 2013 para R$ 3,2 bilhões em 2017, e, para 2018, o programado foi ainda menor: R$ 2,7 bilhões. No momento em que houve mais investimentos, tivemos um número grande de editais para a execução de diferentes ações de divulgação científica.

Entre 2010 e 2013 os editais voltados para divulgação científica tiveram grandes investimentos, e os centros e museus de ciência conseguiram desenvolver uma série de atividades, exposições e mostras científicas. Em particular, a Casa da Ciência da UFRJ desenvolveu em 2010 a exposição “Energia nuclear” com recursos via edital da Financiadora de Estudos e Projetos (Finep), da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro (Faperj), do CNPq e do Banco do Brasil. Essa exposição itinerou pelo Museu da Maré (Rio de Janeiro), pelo Museu Ciência e Vida (Duque de Caxias) e pelo Centro de Ciências da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF). Em 2011, a exposição “Sensações do passado geológico da Terra” recebeu, via edital, recursos do CNPq e da Faperj. Ainda nesse ano a exposição “Cadê a química?” recebeu investimentos do CNPq. Essa exposição itinerou pelo Centro de Ciências da UFJF e pela Fundação da Memória Republicana Brasileira (São Luís-MA). Em agosto de 2017 foi cedida para o Espaço Ciência de Pernambuco. Além dos investimentos via editais, essas exposições também receberam apoio da Petrobras e Eletronuclear, entre outros.

Do decréscimo de investimentos, conforme Figura 1 , resultaram corte de recursos para as ações de divulgação científica, corte de bolsas e programas. A mudança da estrutura organizacional na distribuição dos recursos de ciência e tecnologia representm um retrocesso na gestão da ciência, da tecnologia e da inovação em nosso país. Há consenso entre os dirigentes das instituições de ciência e tecnologia sobre a necessidade de recuperar o orçamento do ministério, implementando ações junto ao atual governo para que se cumpra a promessa de campanha, de chegar ao fim de seu mandato aplicando 3% do produto interno bruto em ciência, tecnologia e inovação.

Figura 1
: Limites de empenho do Ministério da Ciência e Tecnologia (em bilhões de R$) (Mugnatto, 10 out. 2017)

A Casa da Ciência: das origens à consolidação do centro de memória

A Casa da Ciência foi designada, em 1995, como Centro Cultural de Ciência e Tecnologia da UFRJ, pelo Conselho Universitário no âmbito do FCC. Durante as discussões do Plano de Desenvolvimento Institucional da UFRJ, os objetivos e metas institucionais foram revistos, ampliados e se transformaram na missão institucional:

Promover a divulgação e a popularização da ciência e da tecnologia, destacando suas interfaces com a cultura e a arte, de forma interdisciplinar e participativa, favorecendo a pesquisa e a experimentação, em diferentes linguagens e suportes, de modo a contribuir para a democratização do acesso e apropriação social da ciência e da tecnologia e as interações entre público e instituições científicas e culturais (Casa..., 6 dez. 2016).

Para cumprir tal missão, desenvolve exposições multimídias e cenográficas, oficinas, espetáculos de teatro e música, ciclo de debates e mostras de vídeos voltados para a divulgação de conteúdos científicos e culturais.

A edificação, localizada na rua Lauro Müller, n.3, no campus da UFRJ da Praia Vermelha, abriga o primeiro centro cultural de ciência e tecnologia da UFRJ. O espaço sofreu transformações sociais (Simões, Moraes, 2016) ao longo do tempo, desempenhando diferentes funções. Foi construído para ser “pavilhão”, virou um “casarão” e, hoje, é uma “casa”.

As origens

Em torno de 1926, o Pavilhão Alaor Prata (PAP) foi construído com o objetivo de ser uma enfermaria auxiliar ao Hospício Pedro II – Hospital Nacional dos Alienados, para tratar pacientes tuberculosos. Esse hospital foi o primeiro manicômio do Brasil, construído ainda no período imperial sob o decreto n.82, de 18 de julho de 1841, pelo imperador Pedro II. O edifício foi inaugurado em 5 de dezembro de 1852, em uma extensa área da chácara do Vigário-Geral, próxima à praia da Saudade, e tinha como objetivo abrigar a mais nova unidade hospitalar da Santa Casa de Misericórdia, voltada especificamente para o atendimento aos loucos da cidade. A sua equipe de médicos foi fundamental para a elaboração de um escopo especializado sobre a loucura, na divulgação de conceitos sobre as diferenças entre saúde e desordem mental e ainda na elaboração de leis sobre o tema.

O manicômio da Praia Vermelha foi desativado em 1944. Ao final desse ano, todos os pacientes já haviam sido transferidos para colônias de alienados, no Engenho de Dentro ou em Jacarepaguá. A desativação do Hospital Nacional dos Alienados gerou, no âmbito do Ministério da Educação e Saúde, ampla discussão sobre qual rumo dar para ao ex-hospital.

Destituído da função de assistência hospitalar e isolamento de mulheres diagnosticadas como loucas e tuberculosas, o pavilhão encerrou essa primeira etapa. Assim, Caetano (1993)CAETANO, Lucinda Oliveira. O palácio da Universidade do Brasil, ex-hospício de Pedro II: imagens e mentalidades . Dissertação (Mestrado em Belas-Artes) – Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 1993. esclarece que, para o novo uso do espaço, foram tomadas as primeiras providências para abrigar o Externato do Colégio Pedro II. Após a realização de diferentes projetos de reestruturação, novas conjecturas políticas levaram ao aproveitamento desses estudos de remodelação do ex-hospício para o Externato do Colégio Pedro II, feitos pela seção técnica do Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, para a instalação da Universidade do Brasil ( Oliveira, 2011OLIVEIRA, Antonio José Barbosa de. A casa de Minerva: entre a ilha e o palácio: os discursos sobre os lugares como metáfora da identidade institucional . Tese (Doutorado em Memória Social) – Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2011. ).

As negociações e reformas de adaptação do antigo hospício e alguns de seus anexos levaram alguns anos, mesmo após a inauguração do novo espaço, que ocorreu em dezembro de 1949. No ano seguinte, ficaram prontas as instalações para abrigar a Escola Nacional de Educação Física e Desportos (ENEFD), mais tarde Escola de Educação Física e Desportos (EEFD) da UFRJ. Neste estudo, destacamos tal escola, pois sua história está diretamente relacionada com o antigo PAP.

A criação da ENEFD se deu em 17 de abril de 1939, pelo decreto n.1.212. E, durante alguns anos, a nova faculdade funcionou em espaços cedidos temporariamente, só ganhando sede definitiva em 1949, quando iniciou seu processo de instalação no campus da Praia Vermelha. Segundo depoimento da professora Margarida Thereza Nunes da Cunha Menezes, que vivenciou esses momentos iniciais da escola – primeiro como aluna, depois como professora –, o pavilhão era chamado, carinhosamente, de Casarão e servia de apoio para atividades da Escola de Educação Física – com aulas de dança moderna e oficinas educativas.

Diante da nova conjuntura trazida pela década de 1990 para as universidades brasileiras, deu-se a ressignificação desse espaço, institucionalizando-o como Casa da Ciência – Centro Cultural de Ciência e Tecnologia da UFRJ. Além da degradação física do espaço, por falta de manutenção, embates políticos nas instâncias universitárias nos levam a crer que não houve consenso entre as unidades acadêmicas da UFRJ sobre a nova função do Casarão.

Reformada pelas articulações políticas do Instituto Alberto Luiz Coimbra de Pós-graduação e Pesquisa de Engenharia/Coppe, em 1995, a casa (a edificação) inspirou a identidade visual da instituição e, acima de tudo, estabeleceu sua relação com o público visitante, cuja principal ideia é a associação da ciência com o cotidiano das pessoas; criou-se, assim, um lugar para que o visitante se sentisse “em casa”. Nesse plano discursivo, a palavra casa deixa de ser um substantivo comum, passa a ser um fragmento discursivo que, na visão de Bakhtin (Bakhtin, Volochínov, 1981), encerra em si uma perspectiva ideológica, criando um referencial de representação que é uma marca constitutiva da identidade institucional. Assim, na perspectiva da análise do discurso de vertente francesa ( Pêcheux, 2015PÊCHEUX, Michel. Discurso, estrutura ou acontecimento . São Paulo: Pontes Editora, 2015. ; Orlandi, 2007ORLANDI, Eni P. Análise de discurso: princípios e procedimentos . Campinas: Pontes, 2007. ), por esse deslizamento de sentidos, a casa passa a ser a Casa, promovendo uma aproximação, uma quebra de barreiras e uma humanização da ciência junto à população.

A institucionalização

A Casa da Ciência da UFRJ é um centro cultural de divulgação científica que busca, na experimentação, despertar a curiosidade por meio das relações entre ciência, arte e cultura. Utiliza diferentes linguagens, de forma lúdica e interativa, para refletir sobre os conceitos da ciência, proporcionando a popularização de tais concepções. Muita criatividade orienta as ações inovadoras da Casa, determinando sua identidade como um museu de ciência dentro da perspectiva contemporânea.

Entendemos centro cultural como “espaços que se propõem a produzir e difundir diferentes formas de expressão artística, tais como artes visuais, artes performativas, música, dança e cinema” ( Centros Culturais, 2018CENTROS CULTURAIS. Rio Prefeitura . 23 jan. 2018. Disponível em: https://www.rio.rj.gov.br/web/smc/centros-culturais. Acesso em: 7 jun. 2021.
https://www.rio.rj.gov.br/web/smc/centro...
). Assim, a criação de um espaço cultural para a realização de eventos que associem ciência, tecnologia e arte estimula o pensar crítico diante da influência das descobertas científicas no cotidiano das pessoas. O desafio é promover uma participação mais ativa da sociedade na dinâmica das transformações científicas, a fim de estabelecer uma conexão entre o público e a ciência.

O conceito de museu que norteia nosso trabalho é dado pelo Instituto Brasileiro de Museus (Ibram, 2010, p.133): “Os museus são casas que guardam e apresentam sonhos, sentimentos, pensamentos e intuições que ganham corpo através de imagens, cores, sons e formas”. As ações desenvolvidas na Casa buscam dar esse tom, criando ambientes cenográficos e multimídias para que o visitante interaja e experimente sensações que nem sempre são permitidas por objetos originais: tocar, manipular, provar sabores e cheiros que provocam imersão por meio de suportes interativos.

A nova museologia preconizada pelo Conselho Internacional de Museus, dentro da Política Nacional de Museus, entende os centros de ciência e cultura como espaços museais em que a experiência a ser vivida pelo público visitante é mais determinante do que a existência ou não de acervos:

O Brasil faz parte do Conselho Internacional de Museus desde sua criação, participando da construção de definições e metas específicas a serem alcançadas. A partir da definição básica de museu como instituição permanente, que adquire, conserva, pesquisa, transmite e expõe testemunhos materiais do homem e do seu meio ambiente, diversos adendos foram realizados, ampliando a diversidade do que se compreendia por museu, assim como seus vínculos e responsabilidades em relação à sociedade. Atualmente podem ser consideradas instituições museais não só monumentos, jardins botânicos e zoológicos, aquários, galerias, centros científicos, planetários, reservas naturais, como também centros culturais, práticas culturais capazes de preservar legados intangíveis e atividades criativas do mundo digital (Ibram, 2010, p.133).

De acordo com a Política Nacional de Museus, os museus estão “a serviço da sociedade” e são instituições importantes para o aprimoramento da democracia e da inclusão social, contribuindo para o desenvolvimento social. Segundo o Conselho Internacional de Museus, o museu “é uma instituição permanente, sem fins lucrativos, a serviço da sociedade e do seu desenvolvimento, aberta ao público, que adquire, conserva, estuda, expõe e transmite o patrimônio material e imaterial da humanidade e do seu meio, com fins de estudo, educação e deleite” (Desvallées, Mairesse, 2013, p.64).

Assim, a Casa se aproxima de um “museu de ciência” no que concerne ao lugar que exibe acervos em exposições, ainda que de forma temporária, colocados a serviço da sociedade. E se apresenta como um centro cultural discutindo as interações entre arte e ciência numa constante experimentação das diferentes áreas de conhecimento por meio de práticas comunicacionais imersivas no campo da popularização da ciência.

A intenção é transformar a relação de desinteresse pela ciência, proveniente da abordagem conteudista – que valoriza a repetição em detrimento da curiosidade – em algo atrativo e prazeroso. Portanto, as experiências vividas pelo público no espaço expositivo não se dão, exclusivamente, pelo contato com objetos expostos; ocorrem, também, por meio das sensações compartilhadas em cada visita. Por essas razões, a Casa da Ciência, assim como outros centros de ciência do país, integra o Cadastro Brasileiro de Museus do Ibram na categoria Museus de Ciência e Tecnologia.

O funcionamento

A Casa da Ciência oferece, em média, duas novas exposições por ano, com cerca de cinco mil visitantes mensais. Os temas e conteúdos são estudados para que a abordagem seja feita com o intuito de envolver e emocionar o público, além de estimular uma atitude crítica e questionadora diante do conhecimento científico proposto.

Além das exposições e suas atividades complementares, a programação conta, ainda, com uma produção editorial que abrange diversas publicações, como a Série Terra Incógnita, as revistas do ciclo de debates Ciência para Poetas e o material didático direcionado aos professores a fim de estimular o desenvolvimento dos temas das exposições em sala de aula. Para fazer a interface da exposição com o público, realizamos o Programa de Mediadores, voltado para estudantes de graduação da UFRJ, de diferentes áreas de conhecimento. Na busca por essas formas de expressão para a divulgação científica encontramos, no teatro, estímulo à imaginação e a reflexão para o campo da popularização da ciência, daí nasceu o projeto Palco da Ciência. Outra forma de expressão é discutida no projeto Ciência por Aí, cuja intenção é refletir formas de comunicação ligadas à divulgação científica, a partir de produções em vídeo com a metodologia participativa ( Minayo, 2010MINAYO, Maria Cecília de Souza (org.). Pesquisa social: teoria, método e criatividade . Petrópolis: Vozes, 2010. ) das TVs comunitárias. Tal metodologia permite a atuação dos integrantes no processo educativo sem os considerar meros receptores do conhecimento. Nesse enfoque, valorizam-se as experiências dos participantes, envolvendo-os na busca de soluções para problemas que afloram durante a dinâmica.

Há também uma série de ações fora do espaço físico da casa, que chamamos de atividades extramuros; entre elas podemos citar a pesquisa e desenvolvimento de enredos para o GRES Unidos da Tijuca, em 2004 e 2005;1 1 Em 2004, o enredo desenvolvido junto com o carnavalesco Paulo Barros foi “O sonho da criação e a criação do sonho. A arte da ciência no tempo do impossível”, com esse enredo, o GRES Unidos da Tijuca ficou como segunda colocada no Grupo Especial da Liga das Escolas de Samba (Rio de Janeiro). Em 2005, o enredo foi “Entrou por um lado, saiu pelo outro. Quem quiser que invente outro!”. Também ficou em segundo lugar. a coordenação dos Eventos Integrados na cidade do Rio de Janeiro durante a Semana Nacional de Ciência e Tecnologia, de 2004 a 2007; e também a coordenação do evento em cerca de cinquenta municípios do estado, de 2009 a 2014; atuou também na articulação do projeto de turismo científico Caminhos de Darwin, em 12 municípios do Rio de Janeiro.

O projeto Ciência para Poetas nas Escolas é também uma atividade extramuros e teve como inspiração a série Ciência para Poetas, já realizada nas instalações da Casa desde 1999. O objetivo é promover um diálogo entre o conhecimento produzido na universidade e a realidade vivenciada pelas escolas de ensino médio do Rio de Janeiro. Geologia, química, matemática, biologia, astronomia e educação física foram algumas áreas exploradas pelo Ciência para Poetas nas Escolas. O veículo utilizado nesse projeto foi obtido com recursos do Edital Ciência Móvel – MCT/ABC/2004.

A itinerância de exposições é uma prática na Casa da Ciência, hoje muito impulsionada pela Associação Brasileira de Centros e Museus de Ciência (ABCMC). A troca de exposições tem papel relevante nos museus e centros de ciência, por isso é importante conceber projetos com características que facilitem e permitam a itinerância. As parcerias com instituições públicas e privadas junto à sociedade fortalecem laços e trocas de experiências que viabilizam a realização de projetos de maneira a consolidar cada vez mais o encontro entre ciência, arte e cultura.

No que diz respeito aos prêmios, a Casa recebeu menção honrosa no Prêmio Mercocidades de Ciência e Tecnologia (1998); o Rio Faz Design, em sua primeira edição, na categoria instituições públicas e privadas, como reconhecimento à valorização do design em suas atividades operacionais (2002); o Prêmio de Popularização Científica (Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro e Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura/Unesco), com a exposição “Descubra e divirta-se” (2005); e a menção honrosa no prêmio da primeira Mostra Latino-Americana de Vídeo Científico, com o vídeo Professor Tadeu – uma descoberta (2009).

Ao longo desses anos, as atividades e projetos desenvolvidos pela Casa estimularam alunos de graduação, servidores e diferentes pesquisadores oriundos de outras instituições a produzir trabalhos acadêmicos voltados para a divulgação científica em diferentes níveis, desde a graduação até a pós-graduação; este artigo e a tese em andamento são resultados desses esforços.

Centro de memória

No segundo semestre de 2014, o comitê técnico do Plano Diretor da UFRJ lançou uma proposta de criação de um complexo de arte, ciência e cultura no campus da Praia Vermelha. O plano arquitetônico previa a demolição de várias edificações, incluindo o complexo que abriga a Casa da Ciência (administração, salão de exposições, auditório e mezanino), para construir um edifício com amplos salões de exposições. Nesse momento, a Casa teve que buscar vestígios de uma ancestralidade que justificasse, historicamente, a legitimidade institucional de sua permanência. Para tanto, em caráter emergencial, a historiadora Monica Cristina de Moraes foi imbuída de encontrar informações que esclarecessem a condição histórica do salão de exposições e, assim, chegou-se às origens da edificação conforme descrito na seção “As origens” deste artigo.

Conforme afirma Moraes (2015)MORAES, Monica Cristina de. Um arquivo em construção: Projeto Memória – Casa da Ciência/Centro Cultural de Ciência e Tecnologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro. In: Simpósio Nacional de História, 28., 2015, Florianópolis. Anais eletrônicos... Florianópolis: UFSC, 2015. Disponível em: http://www.snh2015.anpuh.org/resources/anais/39/1434397729_ARQUIVO_Proj.MemoriaSimposioANPUH.pdf . Acesso em: 15 jun. 2021.
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, essa circunstância auxiliou o desarquivamento do Projeto Memória, “colocando-o em outra perspectiva, de valorização do passado como requisito de permanência”. Nesse momento, a questão documental adquiriu um novo status para a instituição, uma vez que poderia configurar a perspectiva histórica garantidora de sua sobrevivência. Pensamos então, a partir de Ricoeur (2007)RICOEUR, Paul. Memória, história e esquecimento . Campinas: Editora Unicamp, 2007. , no documento como a soma dos indícios e dos testemunhos cuja prova documental designa a porção de verdade histórica acessível em alguma etapa da operação historiográfica.

Portanto, é armado de perguntas que o historiador se engaja numa investigação dos arquivos para que rastro, documento e pergunta formem, assim, o tripé de base do conhecimento histórico. Isso faz com que o arquivo não seja mais “o saldo mais ou menos intencional de uma memória vivida, mas a secreção voluntária e organizada de uma memória perdida” ( Ricoeur, 2007RICOEUR, Paul. Memória, história e esquecimento . Campinas: Editora Unicamp, 2007. , p.414). Desse modo, o recorte temporal da proposta se ampliou, retrocedendo à construção da edificação, por volta de 1923, para que os gestores do Plano Diretor constatassem seus valores históricos, evitando assim sua demolição. Toda documentação encontrada relativa à construção do PAP foi encaminhada à coordenação do FCC à época e, posteriormente, ao comitê técnico do Plano Diretor, que, finalmente, reconheceu a necessidade e legitimidade de preservação da edificação.

Foi diante desse quadro que a Casa iniciou os trabalhos para institucionalização de seu Centro de Memória, que terá como lema: “Memórias de um futuro desejado”. Esse conceito tem a ideia de que tudo o que se coloca como memória pressupõe vida compartilhada por seres num determinado presente. Nessa perspectiva, para que haja “lugares de memória” é preciso uma “vontade de memória”. Se um museu reduz sua construção identitária à mera exibição de coleções (peças ou artefatos), podemos crer que não estamos num lugar de memórias, estamos num lugar de história, adotando-se aqui a perspectiva analítica de Nora (1993)NORA, Pierre. Entre memória e história: a problemática dos lugares. Projeto História , v.10, p.7-28, 1993. . Pensamos, então, que a Casa da Ciência, mais do que ser um lugar de história, deve ser um lugar de memória. O olhar, portanto, não está na materialidade de um acervo, e sim no uso e no significado que são atribuídos a ele. A Casa como lugar de memória da divulgação da ciência, de uma determinada concepção de divulgação científica, é um lugar de memória viva, que se faz cotidianamente, a cada experiência, a cada exposição, a cada atividade.

Os centros de memória, além de fortalecer a identidade institucional, também possuem um caráter retrospectivo e prospectivo, estabelecendo vínculos entre o passado, o presente e o futuro. O acervo híbrido característico dessa instituição possui um caráter intrínseco ao seu fazer porque registra as atividades-meio e atividades-fim, mas também possui um caráter exógeno, porque discute as relações e concatenações na formulação de políticas voltadas para o fortalecimento da divulgação científica brasileira.

O ponto de partida para criação dos centros de memória é a necessidade de cuidar dos documentos, e, por entender a natureza híbrida do acervo, propomos a criação de um centro de memória que seja um misto de arquivo e biblioteca. A ideia é que a heterogeneidade desse acervo seja associada ao capital intelectual da instituição, e, por isso, trataremos de assuntos relacionados à divulgação científica.

Assim, o arquivo institucional é concebido como uma “cápsula do tempo” ( Assman, 2011ASSMAN, Aleida. Espaços da recordação . Campinas: Editora Unicamp, 2011. , p.375), em que se armazenam documentos, fotografias, relatórios etc.; não é algo passivo, porque entendemos que não se arquiva sem classificar, sem produzir sentido, sem sugerir uma visão total ou parcial do que se quer guardar, mas, sobretudo, sem ordenar simbolicamente o real. Isso impõe uma escolha e cria lacunas de informação, uma vez que se seleciona o que vai ser ou não arquivado.

Grande parte da documentação arquivada foi produzida durante a rotina institucional, sem a preocupação de preservação memorialística e que atendesse ao interesse de um historiador em criar uma identidade institucional. Como nos lembra Pierre Nora (1993)NORA, Pierre. Entre memória e história: a problemática dos lugares. Projeto História , v.10, p.7-28, 1993. , se, por um lado, buscamos estabelecer um lugar de memória, reivindicando um espaço de preservação, por outro, entendemos que o olhar da história nos direciona para a dessacralização do passado e a sua representação no presente.

Entendemos os documentos textuais (relatórios, clippings , projetos) e os registros iconográficos (fôlderes, fotografias, vídeos) como materialidades de um discurso institucional que devem ser analisadas para além do que significam, mas como significam, pois devem ser abordadas como “práticas socialmente inseridas em contextos específicos” ( Oliveira, 2011OLIVEIRA, Antonio José Barbosa de. A casa de Minerva: entre a ilha e o palácio: os discursos sobre os lugares como metáfora da identidade institucional . Tese (Doutorado em Memória Social) – Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2011. , p.20). Assim, sabemos que o que fica não é a totalidade daquilo que existiu no passado, mas escolhas do mundo e das relações sociais. Tais relações resultam em disputas de percepções de mundo, em que prevalecem, na maioria das vezes, as visões daqueles que detêm o poder em determinado momento histórico ( Le Goff, 2013LE GOFF, Jacques. História e memória . Campinas: Editora Unicamp, 2013. ). Além dessa impossibilidade de totalidade, há também o que Rousso (1996)ROUSSO, Henry. O arquivo ou o indício de uma falta. Estudos Históricos , v.9, n.17, 1996. aponta como sendo o abismo entre o autor que produz o registro e o historiador ou pesquisador que, a posteriori e em outras circunstâncias, se debruça sobre tal registro, alçado, nessa perspectiva, ao estatuto de “fonte documental”.

O direito à memória é um direito à cidadania, e por isso precisamos criar mecanismos internos e externos às instituições que reforcem junto às instâncias superiores, aos governantes, às agências de fomento e aos empresários a importância de salvaguarda da memória das instituições, bem como a necessidade de viabilizar recursos materiais importantes à recuperação, preservação e disseminação de informações sobre os acervos memorialísticos à toda a sociedade (Oliveira, Queiroz, 2009). O Estado brasileiro também tem sido omisso nas políticas de preservação de patrimônio, e, por isso, há uma tendência nas instituições de multiplicação dos arquivos, entendendo “a história como uma narrativa construída, e não mais como a descoberta e reconstituição de um passado efetivamente existente, isto é, ‘daquilo que de fato aconteceu’” (Stronzenberg citado em Barreto, 2009BARRETO, Cristina Barros. Arquivos de cultura contemporânea: uma experiência de pesquisa e documentação. In: Oliveira, Antonio José Barbosa; Queiroz, Andréa Cristina de Barros (org.). Universidade e lugares de memória II . Rio de Janeiro: Universidade Federal do Rio de Janeiro; Fórum de Ciência e Cultura; Sistema de Bibliotecas e Informação, 2009. ).

É nesse sentido que se vinculam as atividades de pesquisa e documentação, pois acredita-se na “vontade de memória” ( Nora, 1993NORA, Pierre. Entre memória e história: a problemática dos lugares. Projeto História , v.10, p.7-28, 1993. ) e no fato de que a reunião dessa documentação, resultante dos estudos realizados, permite sua permanente ressignificação. Portanto, “os lugares de memória nascem e vivem do sentimento que não há memória espontânea, que é preciso criar arquivos” ( Nora, 1993NORA, Pierre. Entre memória e história: a problemática dos lugares. Projeto História , v.10, p.7-28, 1993. , p.13). E como não podemos pensar diferente, entendemos os museus como espaços de memória que servem à criatividade humana, por meio de descobertas presentes e projeções para o futuro ( Greco, 2009GRECO, Patrícia Danza. Museu, memória e geodiversidade: o planeta em cena. In: Oliveira, Antonio José Barbosa; Queiroz, Andréa Cristina de Barros (org.). Universidade e lugares de memória II . Rio de Janeiro: Universidade Federal do Rio de Janeiro; Fórum de Ciência e Cultura; Sistema de Bibliotecas e Informação, 2009. , p.136).

Considerações finais: os desafios do financiamento

A Casa da Ciência ainda não goza de uma condição que a configure como instância autônoma, gestora de recursos orçamentários e extraorçamentários dentro da UFRJ. Ressalta-se que grande parte dos recursos necessários para a realização da programação da instituição acaba vindo de outras instâncias e agências de fomento. Nessa realidade, a UFRJ atua, fundamentalmente, como contrapartida não financeira (subsídios na forma de bens, recursos humanos, insumos e serviços) que torna viável a execução de uma programação tão vasta.

Vivemos o tempo em que a “mão esquerda do Estado” (trabalhadores sociais, assistentes sociais, educadores etc.) está cada vez mais descrente das intenções da “mão direita” (burocratas, bancos e gabinetes ministeriais) em fazer a manutenção dos setores da vida social ( Bourdieu, 1998BOURDIEU, Pierre. Contrafogos . Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1998. ) que são de sua responsabilidade, como as universidades, por exemplo. Se há cortes tão impetuosos nos orçamentos dos ministérios da Educação e da Ciência e Tecnologia, na área da cultura e na área da ciência e tecnologia, o que podemos esperar, então, sobre financiamento dos museus e centros de ciências dentro dessas universidades? O que podemos fazer para mudar esse quadro?

Em relação à Casa da Ciência, grande parte do financiamento para a realização da programação é obtida por meio dos editais de financiamento de agências de fomento (CNPq, Finep, Faperj), fundações de apoio e patrocínios. Nos últimos anos, conforme já mencionado, constatamos que os investimentos das agências de fomento sofrem uma drástica redução orçamentária e que tais agências não conseguem sequer cumprir compromissos assumidos com projetos já aprovados, sem perspectivas de financiar novos projetos. Diversos mecanismos de incentivo e auxílio destinados à área de divulgação científica foram suspensos, e o cenário não é positivo para mudanças, considerando-se os recentes contingenciamentos nos orçamentos e a política de austeridade em curso no país.

Para minorar o impacto da falta de recursos públicos, a Casa da Ciência vem construindo estratégias de criação de um grupo de mantenedores, a exemplo do modelo de sustentabilidade de outros museus no exterior. Essa iniciativa busca patrocínio privado, via leis de incentivo fiscal e outros mecanismos, tais como captação direta de financiamento com as áreas de comunicação e de responsabilidade social das empresas. Além disso, com o apoio do FCC e da Reitoria, a direção da Casa tem trabalhado na obtenção de emendas parlamentares para a restauração e expansão do espaço físico.

A dependência da captação externa de recursos não é um objetivo, mas uma forma de sobrevivência, não há intenção de promover a qualquer preço a parceria público-privada. A instituição trabalha no sentido de construir mecanismos políticos que visem à implantação e à consolidação de estratégias capazes de garantir o funcionamento, a manutenção e a expansão dos museus da UFRJ no âmbito do Ministério da Educação. Um dos caminhos para se atingir esse objetivo é a implantação do Simap, cuja destinação de orçamento próprio para os museus da UFRJ pode significar a garantia das condições mínimas de funcionamento desses organismos.

Acreditamos ser possível uma administração mista de recursos que contemplem os dois cenários: um investimento mínimo do governo que garanta o funcionamento da Casa com orçamento próprio e o investimento externo em forma de patrocínio para a execução dos diferentes projetos. Além disso, o fortalecimento das parcerias com diversas instituições de ciência e tecnologia, outros centros e museus de ciência, organizações e empresas, na concessão de bens e serviços, também podem garantir o funcionamento das atividades.

Diante desse quadro, entendemos que uma instituição pública não pode ter como principal fonte de sustentação as parcerias e o financiamento externo; isso é destoante da natureza da instância universitária pública. Faz-se necessário refletir sobre novos modelos de administração e mecanismos de financiamento desses espaços, sem abrir mão de sua vinculação ao Estado e de sua natureza educativa. E, como instância educativa, os recursos para sua manutenção devem ser encarados como investimento fundamental para minoração das diferenças e desigualdades sociais e de equidade entre os atores sociais.

REFERÊNCIAS

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NOTA

  • 1
    Em 2004, o enredo desenvolvido junto com o carnavalesco Paulo Barros foi “O sonho da criação e a criação do sonho. A arte da ciência no tempo do impossível”, com esse enredo, o GRES Unidos da Tijuca ficou como segunda colocada no Grupo Especial da Liga das Escolas de Samba (Rio de Janeiro). Em 2005, o enredo foi “Entrou por um lado, saiu pelo outro. Quem quiser que invente outro!”. Também ficou em segundo lugar.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    03 Set 2021
  • Data do Fascículo
    Jul-Sep 2021

Histórico

  • Recebido
    14 Jun 2019
  • Aceito
    29 Nov 2019
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