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“Lições para o professorado”: o curso Educação Sanitária (Higiene e Medicina Preventiva) e a formação da professora na cidade do Rio de Janeiro, 1929-1930

“Lessons for teachers:” the Health Education (Hygiene and Preventive Medicine) course and teacher training in Rio de Janeiro, 1929-1930

Resumo

O artigo analisa o curso Educação Sanitária (Higiene e Medicina Preventiva), idealizado pelo médico-chefe do Serviço de Inspeção Médica e da Assistência Dentária Escolar, Oscar Clark, em 1929. Problematiza a concepção de formação de professor que se instituiu a fim de produzir uma “cruzada saneadora” pelas escolas da capital federal. Parte-se da compreensão de que o curso se configurou em lócus a partir do qual se enunciaram lições de caráter educativo-higiênico, funcionando como espaço de prescrição médica, pedagógica e científica. A concepção que orienta a análise é a de que o curso fez parte das estratégias da Diretoria de Instrução (1927-1930), visando estabelecer um ethos normativo e educativo às práticas ordinárias das professoras.

educação sanitária; formação de professores; inspeção médico-escolar; reforma da instrução; Oscar Clark (1890-1940

Abstract

This article analyzes the course in health education (Hygiene and Preventive Medicine) developed in 1929 by Oscar Clark, head doctor of the Medical Inspection and School Dental Care Service. We investigate the concept of teacher training implemented in schools in Rio de Janeiro (then Brazil’s capital) to create a “health crusade.” We start from the understanding that the course emerged in locus and produced lessons on education and hygiene, acting as a prescriptive space for medicine, pedagogy, and science, remembering that the course was part of the strategies of the Board of Instruction (1927-1930) to establish a normative and educational ethos for everyday teaching practices.

health education; teacher training; medical-school inspection; education reform; Oscar Clark (1890–1940

Com a reforma do ensino recentemente posta em vigor, os serviços médicos escolares do Distrito Federal adquiriram uma latitude mais ampla e uma eficiência que se vai revelando à medida que se organizam, em bases mais amplas e científicas, os seus princípios fundamentais. ... O amparo e defesa da saúde dos nossos escolares careciam realmente de um trabalho de centralização sem o qual se perdia grande parte dos esforços isolados dos médicos escolares, recrutados, entretanto, entre os nossos profissionais mais dignos e mais competentes (Os serviços..., 31 ago. 1928, p.3).

Como parte do plano de reorganização geral da instrução pública concebido pela reforma elaborada, de 1927 a 1930, pelo educador Fernando de Azevedo, foi criado o Serviço de Inspeção Médica e Dentária Escolar do Distrito Federal ( Camara, 2019CAMARA, Sônia. Entre a prescrição e o cuidado: o serviço médico-escolar na gestão de Oscar Clark no Distrito Federal (1928-1930). In: Vieira, Carlos Eduardo; Osinski, Dulce R. Baggio; Gondra, José (org.). História intelectual e educação: reformas educacionais, Estado e sociedade civil . Jundiaí: Paco, 2019. ). Para o cargo de inspetor médico-chefe foi convidado o professor catedrático da Faculdade de Medicina e inspetor médico-escolar, Oscar Clark. O decreto n.2.940, de 22 de novembro de 1928, que regulamentou a lei n.3.281 de janeiro do mesmo ano, instituiu o serviço e estabeleceu suas competências e finalidades. Em sua organização, tinha como fim “zelar pela saúde das crianças das escolas, manter as condições higiênicas do meio escolar e difundir princípios gerais de higiene” (Distrito Federal, 1929a, p.804).

Esteio a partir do qual a reforma do ensino do Distrito Federal1 1 As reformas de base escolar foram instituídas nos estados a partir de 1920. Esse movimento renovador propagou-se no Brasil, visando conhecer e intervir sobre as condições educacionais do país por meio de inquéritos e congressos. deveria se pautar, o plano de reorganização previa a articulação das instituições educativas com a realidade social e os princípios modernos de educação. Nessa perspectiva, a escola foi idealizada com a finalidade de preparar os alunos “para a vida social e para o trabalho produtivo” (Distrito Federal, 1929b, p.12), sendo concebida a partir de três princípios fundamentais: o da escola comunidade, o da escola única e o da escola do trabalho. Ao propor a criação do Serviço de Inspeção Médica e Dentária Escolar, a reforma da instrução se ancorava, por um lado, nos pressupostos apregoados pela pedagogia moderna, ou Escola Ativa, que atribuía à escola um papel dinâmico e transformador da realidade social, e, por outro, nas concepções formuladas pelos intelectuais do campo médico que defendiam iniciativas públicas no âmbito da saúde e da educação sanitária.

Com a criação do serviço,2 2 Importa destacar que, em 1910, durante a gestão do prefeito Serzedello Corrêa, foi criada a Inspeção Sanitária Escolar, sendo extinta no mesmo ano e reativada em 1916. Quanto ao funcionamento e aos debates em torno do serviço, ver Camara (2013b). aparatos médicos e higiênicos foram idealizados a fim de preceituar um conjunto de orientações que versassem sobre funcionamento pedagógico, equipamento e regulação dos comportamentos na escola. A adoção da educação higiênica, da assistência aos alunos, da inspeção médica, da fiscalização, da prescrição, do aconselhamento às professoras e do aparelhamento escolar (Distrito Federal, 1929a, p.804-805), constituiu-se em parte do plano de disseminação da instrução pública e da higienização física e moral dos escolares. Para isso, previam investir na formação profissional do professor como educador, como detentor de uma missão social e patriótica, pois “o professor que, dando a sua lição, julgou concluída a sua tarefa, não é digno da profissão que exerce, no interesse público. A ele é que cabe contribuir para a educação moral e cívica, pelo exemplo constante e pelas oportunidades que lhe dá o ensino a seu cargo” (Distrito Federal, 1929b, p.14).

O projeto delineado visou estabelecer a institucionalização da formação de professores para além dos atributos específicos da transmissão de uma “soma de conhecimentos, com precisão e segurança no detalhe de aplicação dos métodos pedagógicos” (Azevedo, s.d., p.94). Mediante tal compreensão, ampliou-se a dimensão do instruir e do educar, incorporando-se novas disciplinas e demandas como próprias ao exercício do magistério. Nessa direção, esperava-se que as professoras estivessem preparadas “tanto para formar espíritos e caracteres como para formar a consciência social e civil, por uma ação profunda no meio social e pela reorganização interna da escola” (p.94). Mudanças foram prenunciadas, envolvendo a imposição de um novo método de ensino, a redefinição das finalidades da escola e dos conteúdos a serem ensinados, além da reconfiguração do papel do professor. Para isso, a formação do professor foi perspectivada em ao menos duas direções: a primeira, com a compreensão de que era necessário reorganizar a Escola Normal da capital,3 3 Em meio às transformações empreendidas com a reforma, foram propostas pelos seus idealizadores, entre outros aspectos: a ampliação do curso normal para cinco anos e a inclusão de disciplinas como psicologia geral e aplicada, pedagogia, didática, história da educação e sociologia. transformando-a em “centro de experiências e investigações pedagógicas” (p.49), a fim de contribuir para a formação das futuras gerações de professoras. Estas foram concebidas como sentinelas “sempre alerta da ciência da educação“ (p.219). A segunda, com base na premissa de que era preciso criar condições de aperfeiçoamento dos professores para que, atuando nas escolas da municipalidade, fossem responsáveis pelo caráter essencialmente educativo da higiene como fator de civilização.

O presente artigo tem como interesse analisar o curso Educação Sanitária (Higiene e Medicina Preventiva), idealizado pelo inspetor-chefe do Serviço de Inspeção, o médico Oscar Clark (1890-1948), e ministrado pelos inspetores médicos e dentários da Diretoria Geral de Instrução Pública para o professorado das escolas primárias em 1929. Para tanto, examinaremos o curso como parte das estratégias de formação das professoras no âmbito da educação sanitária e da medicina preventiva, apreendendo-o como expressão das ideias e das ações que se corporificaram na cidade do Rio de Janeiro, então capital federal. A par dessa compreensão, o curso será analisado para além do período de sua realização, ou seja, de abril a novembro de 1929, considerando também seus desdobramentos, em 1929 e 1930, no que diz respeito a conhecimentos difundidos e materializados nas escolas e para além delas.

A fim de empreender esse movimento analítico, tomamos como fontes documentais Programas para os jardins de infância e para as escolas primárias (Distrito Federal, 1929b), exemplares do Boletim da Instrução Pública , o livro Educação sanitária (higiene e medicina preventiva ) ( Clark, 1930CLARK, Oscar. Educação sanitária (higiene e medicina preventiva). Rio de Janeiro: Livraria Francisco Alves/Paulo de Azevedo, 1930. ), a revista especializada A Folha Médica, dirigida por J.P. Fontenelle e tendo como redatores Carlos Sá, J. Sant’Anna e Oscar Clark, e jornais comerciais como Diário de Notícias, O Globo, Jornal do Brasil , entre outros periódicos disponíveis na Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional. A partir do repertório documental acionado não foi possível, contudo, recompor os pormenores que envolveram a organização e o funcionamento do curso, nem mesmo os critérios adotados para a escolha dos inspetores escolares (médicos e dentários) que ministraram as preleções. Consideramos, no entanto, que indícios presentes nessa trama colaboram para a construção de nexos que ajudam a captar possíveis efeitos das prescrições nas escolas, permitindo enredar compreensões a respeito da formação pretendida para as professoras primárias da capital do país.

O curso, finalidades e perspectivas

Senhoras Professoras,

Todo sistema de educação compreende, hoje em dia, o ensinamento de noções gerais de Medicina Preventiva e Higiene, pois a saúde é condição essencial à felicidade e prosperidade na vida; e porque tendes a responsabilidade da educação sanitária da população do país na fase mais importante de seu desenvolvimento fostes elevadas, no mundo civilizado, à categoria de ‘funcionárias indispensáveis’ a todo serviço de Saúde Pública bem organizado. Os grandes progressos realizados em Ciência Médica nesses últimos decênios demonstram que as alterações patológicas do organismo humano têm, na sua maioria, causas perfeitamente evitáveis; mas, por outro lado, a experiência ensinou que, sem a cooperação inteligente e esclarecida do povo, pouco se conseguirá em Medicina Preventiva. ... É uma questão de vida ou de morte para o futuro da humanidade e ninguém, como vós, que representais ‘o papel de professoras e mães’, está em condições de exercer tão patriótica missão ( Clark, 1930CLARK, Oscar. Educação sanitária (higiene e medicina preventiva). Rio de Janeiro: Livraria Francisco Alves/Paulo de Azevedo, 1930. , p.5-7; destaques nossos).

Na solenidade de inauguração do curso, em 4 de abril de 1929,4 4 A Folha Médica , em 5 de maio de 1929, fez referência à inauguração, no dia 4 de abril, de cursos de aperfeiçoamento e especialização para enfermeiras e professoras primárias. Embora o informativo aluda à realização de cursos no plural, interessa-nos analisar as conferências direcionadas ao magistério das escolas primárias da municipalidade. no salão nobre do Instituto Nacional de Música do Rio de Janeiro, o inspetor médico-chefe do Serviço de Inspeção, Oscar Clark, enalteceu a importância das conferências na disseminação de lições sobre educação sanitária e higiene preventiva, destacando o valor dos conhecimentos científicos na resolução dos problemas e na construção de uma consciência de saúde. Publicado, posteriormente, como prefácio do livro Educação sanitária (higiene e medicina preventiva ), o texto exalta a missão das professoras como “funcionárias indispensáveis”, mediadoras privilegiadas da saúde pública “no mundo civilizado”. Ao justificar a validade do curso, Clark reafirmou a importância da saúde como requisito à “felicidade e prosperidade da vida”, cabendo às professoras atuar na promoção das concepções pedagógicas, higiênicas e físicas, colaborando na construção de uma consciência sanitária.

A ênfase na saúde e na formulação de uma “consciência sanitária” ancorava-se nas ações mobilizadas pelos intelectuais reformadores da sociedade quanto à importância da ciência na promoção das transformações sociais que se ambicionava instituir no país. As condições precárias de higiene e salubridade, o acirramento da pobreza e o crescimento das doenças epidêmicas que atingiam os centros urbanos e as regiões rurais eram apontados como os principais males que afligiam e coibiam o progresso e a modernização do país, devendo, portanto, ser suprimidos. O pensamento de que era preciso povoar o território brasileiro com “ideias sadias” fez parte do ideal que alinhavou as ações reformadoras e salvacionistas que visavam, por meio da educação e da higiene, “dar consciência” aos cidadãos ( Carvalho, 1997CARVALHO, Marta Maria Chagas de. Educação e política nos anos 20: a desilusão com a República e o entusiasmo pela educação. In: Lorenzo, Helena Carvalho de; Costa, Wilma Peres da (org.). A década de 1920 e as origens do Brasil moderno . São Paulo: Fundação Editora da Unesp, 1997. p.115-132. , p.122-123).

Medidas de medicalização dos indivíduos e da sociedade foram empreendidas, no intento de que era preciso superar os “males de origem” e o descaso dos poderes públicos com a saúde da população. Os antagonismos saúde/doença, educação/ignorância e atraso/progresso povoavam o imaginário da época, potencializando os desafios a enfrentar: a superação da mortalidade, a baixa natalidade e o analfabetismo, entre outros. Desse modo, era na vigilância que repousava o melhor meio de prevenção dos problemas que impactavam o presente e perspectivavam o futuro. Se o presente foi descrito como lastimável e condenável, foi na construção do futuro, aludido como “de glórias ou de pesadelos”, que se projetava a esperança mediada pela “ação condutora de uma elite que deveria direcionar “pela educação a transformação do país” ( Carvalho, 1997CARVALHO, Marta Maria Chagas de. Educação e política nos anos 20: a desilusão com a República e o entusiasmo pela educação. In: Lorenzo, Helena Carvalho de; Costa, Wilma Peres da (org.). A década de 1920 e as origens do Brasil moderno . São Paulo: Fundação Editora da Unesp, 1997. p.115-132. , p.120).

Quanto a essa questão, Benchimol e Teixeira (1993BENCHIMOL Jaime; TEIXEIRA, Luiz Antonio. Cobras, lagartos e outros bichos: uma história comparada dos institutos Oswaldo Cruz e Butantan . Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 1993. , p.93) afirmam que “discutir saúde implicava questionar o modelo todo de civilização do país”, sendo a saúde o prisma “que refratava os parâmetros sociais, culturais, políticos e geográficos da modernização desejada por todos os grupos sociais descontentes”. No que dizia respeito às reformas dos serviços de saúde, que se configuraram a partir da década de 1910, elas foram provocadas pela precariedade identificada nas condições sanitárias, especialmente a partir das expedições empreendidas pelos médicos sertanistas ao interior do Brasil durante a primeira década da República. Associadas a isso, foram mobilizadas ações nos centros urbanos a fim de mapear as condições de vida dos indivíduos, a proliferação das doenças e as formas de contágio.

Para Lovisollo e Gois Júnior (2003, p.42), o final do século XIX e o início do XX marcaram a chegada, no Brasil, “mediante reapropriações e reinterpretações, de um novo ideal”, assentado na preocupação com “a saúde coletiva e individual” da população. Esse novo ideal assumiu a conotação de movimento higienista, ou sanitarista, firmando-se no tripé defesa da saúde, educação pública e ensino de novos hábitos higiênicos. Para os autores, o movimento tinha como ideia central a valorização da população “como um bem, como capital, como recurso principal da nação”. A compreensão da educação sanitária como um valor, e da população como um bem, colabora para pensarmos os investimentos potencializados e materializados pela Diretoria de Instrução Pública na construção de uma “consciência sanitária” junto ao professorado.

A consciência de saúde vinha acompanhada do pensamento de que era preciso desenvolver ações propositivas destinadas a difundir valores associados à higiene e aos cuidados com o corpo, com destaque para as camadas pobres. Nessa vertente, como bem adverte Marques (2000MARQUES, Marília Bernardes. Discursos médicos sobre seres frágeis . Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, 2000. , p.35), foi a partir do final da década de 1910, sobretudo no pós-Primeira Guerra Mundial, que foram criadas condições para a educação sanitária se constituir como especialidade da saúde pública. Propunha promover a educação para a saúde, estabelecendo para tanto a prevenção como componente central dos programas de atuação. Desde o seu nascedouro, a educação sanitária estabeleceu estreita vinculação com a puericultura. Esse aspecto assumiu relevância particular, principalmente no que diz respeito aos estudos e projetos associados à infância. No Brasil, desde o final do século XIX, é possível identificar, no âmbito das iniciativas filantrópicas e assistenciais, ações de vulgarização dos conhecimentos da puericultura como ciência capaz de instruir e prescrever as noções necessárias ao cultivo da criança. Nesse contexto, a escola passou a ser responsabilizada pela transmissão dos valores higiênicos indispensáveis à construção da civilidade desejada, sendo a mulher o “ser dócil e frágil, ... principal elo na salvação da ‘barbárie’” ( Marques, 2000MARQUES, Marília Bernardes. Discursos médicos sobre seres frágeis . Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, 2000. , p.41).

Quanto ao papel da mulher na educação da criança, Vidal e Carvalho (2001VIDAL, Diana Gonçalves; CARVALHO, Marília Pinto de. Mulheres e magistério primário: tensões, ambiguidades e deslocamentos. In: Vidal, Diana G.; Hilsdorf, Maria Lúcia (org.). Tópicos em história da educação . São Paulo: Edusp, 2001. p.205-224. , p.212--213) esclarecem que, nas primeiras décadas do século XX, a composição do ensino primário, leigo e estatal já se fez com o emprego de mão de obra do sexo feminino. Aspecto que, como asseveram as autoras, colabora para explicar a maior concentração de mulheres, na década de 1920, entre o professorado primário, especialmente em cidades como Rio de Janeiro e São Paulo. Nesse contexto, as professoras foram identificadas como agentes indispensáveis na comunicação de ideias e na promoção do projeto de reforma social. Assim,

Na produção de uma identidade docente ao magistério primário carioca não apenas a temática da profissionalização técnica despontou nos discursos dos renovadores. Os enunciados que estabeleciam estreita vinculação entre magistério e mulher também circularam largamente no período. As discussões em torno do celibato pedagógico, criticado por Luiz Palmeira e defendido por Benevenuta Ribeiro, entre outros educadores e educadoras; as afirmações sobre o pendor natural da mulher à socialização infantil; a expressiva matrícula feminina na Escola Normal e a manutenção da disciplina Trabalhos de Agulha no seu currículo consolidavam a construção do magistério primário como uma profissão feminina no imaginário social ( Vidal, 2000VIDAL, Diana Gonçalves (coord.). Reforma da Instrução Pública no Distrito Federal (RJ), 1927-1930 . São Paulo: Arquivo Fernando de Azevedo/Instituto de Estudos Brasileiros, 2000. CD-ROM. ).

A par dessa compreensão, consideramos que o curso aqui analisado pode ser pensado como estratégia destinada a difundir conselhos de higiene que, sustentados nos saberes advindos da medicina preventiva e da educação sanitária, requeriam a renovação das práticas escolares e, por conseguinte, das tarefas a ser exercidas pelas famílias a partir de uma ação esclarecida das professoras. A defesa de Clark quanto ao caráter profilático e terapêutico da higiene escolar firmou raízes na gestão do Serviço de Inspeção e, consequentemente, nos objetivos que estruturam o curso. Em sua forma original, esse foi organizado em 33 preleções proferidas em sessões públicas, com média de 60 minutos de duração para cada expositor, sendo posteriormente divulgada em três formatos: como artigos em A Folha Médica e no jornal Diário de Notícias ,5 5 O jornal publicou, na seção Página de Educação, dirigida por Cecília Meireles, comentários sobre o livro, com destaque para o texto “Abecedário de higiene escolar”, de Oscar Clark, publicado em partes entre 6 e 21 de agosto de 1930. Quanto ao papel assumido pela seção dirigida por Cecília Meireles, destacam Camara e Roberto (2017 , p.44) que a jornalista e educadora atuou de forma engajada na causa da reconstrução do país, transformando a Página de Educação “em um instrumento de combate e de divulgação de ideias relacionadas à educação” durante os anos em que circulou, de 1930 a 1933. de 1929 a 1930, e como livro, em que foram compiladas sob o mesmo título do curso, publicado em 1930 pela Livraria Francisco Alves/Paulo de Azevedo & Cia.

O livro apresenta 639 páginas, sendo algumas preleções ilustradas com fotografias e gráficos, assim como fez o inspetor médico Massilon Saboia no texto “Que se tem feito no mundo civilizado para se proteger a criança, de 2 a 6 anos de idade? A mortalidade neste período. Causas e meios de combatê-la”, em que, além de apresentar suas impressões sobre as visitas realizadas a instituições dedicadas à infância de vários países, incluiu fotografias alusivas a essas iniciativas, a exemplo da Pestalozzi-Fröebel-Haus, em Berlim ( Figura 1 ). As 31 fotografias mostradas no livro registram as ações desenvolvidas em países como EUA, Itália, Alemanha e México, bem como as medidas instituídas nas escolas e na clínica médica escolar com a reforma da instrução pública do Distrito Federal (1927-1930). Flagram-se registros do atendimento médico e dentário, das “modernas” e higiênicas instalações da Clínica Médica Escolar, da distribuição do prato de sopa e de leite e do pelotão de saúde pelas escolas do Distrito Federal. A presença das fotografias parece-nos significativa, tendo em vista a preocupação de associar os registros das iniciativas, inclusive em outros países, às proposições apresentadas nas seções do curso quanto aos benefícios e possibilidades para a saúde dos escolares.

Figura 1
: Pestalozzi-Fröebel-Haus, em Berlim, Alemanha, criada por Henriette Brymann para funcionar como “núcleo de educação para as profissões pedagógicas, domésticas e de higiene social” ( Saboia, 1930SABOIA, Massilon. Que se tem feito no mundo civilizado para se proteger a criança, de 2 a 6 anos de idade? A mortalidade neste período. Causas e meios de combatê-la. In: Clark, Oscar. Educação sanitária (higiene e medicina preventiva). Rio de Janeiro: Livraria Francisco Alves/Paulo de Azevedo, 1930. p.79-103. , p.98)

A seu respeito assim se pronunciou o jornal Correio da Manhã, em matéria intitulada “Educação sanitária: o trabalho da chefia da inspeção médico-escolar”, de 18 de setembro de 1930:

Destinado especialmente à educação sanitária dos membros do magistério municipal, ele é um repositório de lições, ensinamentos e resultados práticos de experimentação clínica e higiênica, que vale por um tratado de medicina preventiva com os resultados mais recentes dos progressos da ciência sanitária na Europa e na América. ... É uma súmula de estudos e especializações, congregando elementos científicos que de outra maneira não seria possível reunir de forma tão eficiente e completa. ... Pelos títulos de alguns capítulos pode-se fazer juízo da obra que é, realmente, um serviço à educação técnico-sanitária dos professores e professoras.

Neste artigo, operamos com a perspectiva de que, a partir do microcosmo recortado – o curso –, é possível captar as diferentes dimensões, como observa Revel (2010REVEL, Jacques. Micro-história, macro-história: o que as variações de escala ajudam a pensar em um mundo globalizado. Revista Brasileira de Educação , v.15, n.45, p.434-590, 2010. , p.438), dessa experiência social, “mediante a identificação e integração do maior número possível de variáveis”. Parte-se da premissa de que a concepção orientadora do curso estava em consonância com os debates científicos e pedagógicos que instituíam a competência da ciência na administração e regulação do campo social.6 6 Uma iniciativa nesse campo foi a criação, em 2 de janeiro de 1920, do Departamento Nacional de Saúde Pública no contexto da Reforma Carlos Chagas. O departamento buscou ampliar, segundo Campos (2007) , o rol das ações empreendidas pela saúde pública, “incluindo entre elas a propaganda e a educação sanitária, o combate à lepra, às doenças venéreas e à tuberculose”, bem como a higiene infantil e do trabalho, em meio a outras. Constituindo-se em estratégia de intervenção normativa e de difusão de conhecimentos, o curso foi publicado, como mencionado, em formato de livro, em A Folha Médica e em periódico comercial, permitindo abarcar um público mais amplo. No que se refere à audiência, foram realizadas ações, por parte do diretor-geral da Instrução Pública e do chefe do Serviço de Inspeção Médico- Escolar, com o objetivo de divulgá-lo junto ao magistério. Para isso, comentários e anúncios circularam pela imprensa com indicação do horário, local, orador e título das preleções. Embora tenham sido identificadas ações de promoção do curso pelos jornais, não consideramos factível afirmar a existência de um público cativo às conferências, mas sim considerar a possível flutuação dessa audiência.

Realizado no Liceu de Artes e Ofícios ao longo de sete meses, de abril a novembro de 1929, o curso ocorria sempre às quintas-feiras, dia destinado ao repouso do magistério. A regularidade das seções quanto ao local, o dia da semana e o horário permite apreendermos a intenção de seus elaboradores de instituir as condições para a frequência regular das professoras, sem prejuízo ao funcionamento das escolas, assim como o objetivo de se manter, ao longo das 33 semanas de curso, a divulgação junto ao magistério e ao público em geral. Foi um tanto sugestivo o despacho publicado pelo diretor da Instrução Pública, Fernando de Azevedo, no Jornal do Brasil , de 3 de abril de 1929, em que anunciava a inauguração do curso e convidava “todos” para sua inauguração (Azevedo, 3 abr. 1929, p.18). Nessa perspectiva, é possível conceber o curso como um “marcador das reorganizações profundas” ( Revel, 2010REVEL, Jacques. Micro-história, macro-história: o que as variações de escala ajudam a pensar em um mundo globalizado. Revista Brasileira de Educação , v.15, n.45, p.434-590, 2010. , p.439), uma vez que os temas propostos e as finalidades pedagógicas e educativas enredadas em sua preparação apresentam indícios de aspectos referentes às transformações sociais vislumbradas pelos reformadores quanto à concepção de que era preciso incidir sobre o presente a fim de colaborar para a construção de um futuro desejável e asséptico. Assim,

O serviço de higiene escolar compreende, entre outras, quatro questões de capital relevância: o exame médico de alunos e professores, a educação sanitária, a alimentação dos escolares e a organização das clínicas. ... Deve o inspetor médico examinar os alunos das escolas a seu cargo e consignar na ficha sanitária o resultado de cada exame, assim como as indicações terapêuticas e as medidas antropométricas ... Para a ‘educação sanitária e difusão dos princípios de higiene’, entre outros meios empregados cumpre mencionar o curso de conferências realizadas pelo corpo de Inspetores médicos (Boletim..., 1930, p.136-137; destaques nossos).

Ponderando sobre o significado atribuído às Conferências Populares da Glória, no Rio de Janeiro, em fins do século XIX, Carula (2007CARULA, Karoline. As conferências da Glória e a difusão da ciência. Almanack Braziliense , n.6, p.86-100, nov. 2007. , p.88) afirma que elas assumiram o sentido de “explicação de uma lição”, relacionada à “aula de determinada matéria” exercida por um orador e destinada a uma plateia interessada em um assunto. Como “atos públicos”, as preleções deveriam se constituir em “Lição que se explica”, assumindo caráter pedagógico marcado pela intenção de se transmitir conhecimentos relacionados a determinadas matérias.

Moreira e Massarani (2001)MOREIRA, Ildeu de Castro; MASSARANI, Luisa. A divulgação científica no Rio de Janeiro: algumas reflexões sobre a década de 1920. História, Ciências, Saúde – Manguinhos , v.7, n.3, p.627-661, 2001. defendem que, diferentemente das Conferências da Glória, em que a divulgação científica era carregada, de maneira predominante, de uma visão da ciência marcada pelos “aspectos aplicados”, as conferências promovidas durante a década de 1920 tinham como motivação principal “criar condições para o desenvolvimento da pesquisa básica no país”. Nessa direção, afirmam que as conferências realizadas pela Associação Brasileira de Educação (ABE) de 1926 a 1929 foram exemplares, uma vez que visavam difundir temas especializados a um público variado, a partir da exposição de renomados cientistas e acadêmicos brasileiros e estrangeiros. Para embasar essa visão, destacam que “cerca de dois terços dos eventos promovidos pela ABE referem-se a domínios de ciência pura, ao passo que essa proporção cai para menos de 15% nas Conferências Populares da Glória” (p.126-127). Entretanto, destacam que “o caráter da divulgação realizada na referida época era ainda fragmentado e lacunar, reflexo direto da situação ainda muito frágil do meio científico de então” (p.127).

A atmosfera a que aludem Moreira e Massarani (2001)MOREIRA, Ildeu de Castro; MASSARANI, Luisa. A divulgação científica no Rio de Janeiro: algumas reflexões sobre a década de 1920. História, Ciências, Saúde – Manguinhos , v.7, n.3, p.627-661, 2001. colabora para a compreensão do curso e suas formas de difusão. No entanto, as preleções para as professoras guardam uma especificidade no que se refere à natureza pedagógica e à finalidade instrutiva, não se enquadrando diretamente nas balizas propostas por esses autores. Ponderamos, entretanto, ser presumível pensar o curso como parte das ações de valorização dos conhecimentos científicos e de difusão da educação sanitária, assim como uma estratégia de intervenção social. Dessa forma, o caráter pedagógico que as preleções assumiram fazia parte da intenção de que essas ideias fossem replicadas como conhecimentos a ser transmitidos e praticados nas escolas7 7 Na segunda página que sucede a capa do livro encontra-se a seguinte recomendação: “Para uso dos membros do magistério municipal” ( Clark, 1930 ). e para além de seus muros. Nessa direção, foram empreendidas ações, a exemplo das atividades propostas pela Associação Brasileira de Educação, para a terceira Semana de Educação, realizada de 12 a 18 de maio de 1930. Na ocasião, instituiu-se o Dia do Lar, o Dia da Fraternidade, o Dia da Saúde, o Dia do Dever, o Dia da Natureza e o Dia da Boa Vontade. Organizado no estádio do Fluminense Football Club, o Dia da Saúde reunia alunos das escolas públicas, que executavam “em conjunto exercícios de ginástica pedagógica e jogos recreativos, demonstrando, na precisão e elegância de todos os movimentos”, o que era praticado nas escolas (Dia da Saúde, 15 maio 1930, p.3).

O curso buscou constituir um novo ethos profissional para as professoras, identificadas como “missionárias do projeto de civilidade”. Como “porta-vozes” ( Marques, 2000MARQUES, Marília Bernardes. Discursos médicos sobre seres frágeis . Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, 2000. , p.40) desse projeto, as professoras precisavam transmitir conteúdos, incutir noções de medicina e higiene e desenvolver o sentimento patriótico junto aos escolares. O sentido de missão e de dever social, moral e patriótico deveria revestir a atuação da professora de uma aura de devotamento “sacerdotal”, bem como de uma formação de base científica e racional. Como “agente social, com alto espírito de cooperação, as professoras deveriam aliar a doçura insinuante de um apóstolo à energia de uma ‘força social em ação’, para agir eficazmente”. De tal modo, sua formação deveria arregimentar-se em “bons compêndios de psicologia infantil, de biologia, de fisiologia da criança, no mesmo passo que lhe exige dar opinião sobre Pestalozzi, Montessori, Decroly e mais Ferriére e Claparede, e outros autores tão em voga nas estantes dos estudiosos de Pedagogia” (Meireles, 11 out. 1930, p.4).

Como campo de atuação e de imposição de normas e saberes, a escola primária foi perspectivada como “organismo vivo e flexível”, lugar apropriado para se incutir valores e regras as crianças (Azevedo, s.d., p.111), mas também de prestar assistência à infância. A educação sanitária deveria basear-se “em atos concretos que se transformem pela repetição em ‘hábitos’, por assim dizer automáticos, aproveitando-se as oportunidades múltiplas que se apresentam a cada momento da vida escolar” ( Clark, 1930CLARK, Oscar. Educação sanitária (higiene e medicina preventiva). Rio de Janeiro: Livraria Francisco Alves/Paulo de Azevedo, 1930. , p.154; destaques no original). Em sua organização, o curso versou sobre a saúde individual e coletiva. Para isso, prescreveu orientações que envolviam os cuidados e as prescrições a encaminhar quanto a corpos, espaços, tempos e práticas nas escolas e, em alguma medida, fora delas.

Nessa direção, o curso foi concebido em três grandes eixos: “a escola” – seus programas, a higiene escolar, a linguagem, o médico, a enfermeira, a professora, o prédio, os hábitos higiênicos e de saúde, a fadiga escolar; “a criança/escolar” – os dentes, os vermes, a puberdade, a higiene geral da primeira infância; e “a casa/doenças” – a casa como base da saúde, o alcoolismo, a malária, a tuberculose e a alimentação. Esses eixos se desdobraram nas 33 preleções, estruturando-se em três partes: higiene da gravidez; higiene da primeira infância e higiene escolar. Respaldado no papel educativo com o qual a medicina preventiva articulada à higiene escolar seria capaz de assegurar a defesa orgânica e social da criança, o curso foi pensado em seu caráter pedagógico, cultural e político. Para isso, contemplou temáticas variadas e úteis à vida prática, com notável recorrência para o desenvolvimento biológico nas diferentes fases da infância e da adolescência. Temas referentes a mortalidade infantil, doenças venéreas, alcoolismo, puberdade, higiene infantil, doenças contagiosas, higiene escolar, merenda, prédio escolar, entre outros, assumiram destaque, como pode ser observado no Quadro 1 .8 8 A análise do Quadro 1 permite identificar modificações quanto à ordem de apresentação das preleções publicadas pelos jornais, bem como a inclusão e exclusão de temas. Localizamos no jornal O Globo , de 4 de abril de 1929, informações distintas com relação à sequência, aos nomes dos oradores e aos títulos das preleções.

Quadro 1
: As preleções do curso

É possível identificar nos jornais analisados a presença e o engajamento efetivo de muito desses inspetores médicos e dentários, como Frederico Eyer, Octávio Ayres, Massilon Saboia, em diversas atividades promovidas pela Diretoria-geral de Instrução Pública nas escolas. Esse aspecto corrobora para que se possa inferir uma presumível aderência desses inspetores à Reforma do Ensino que ganhava corpo na capital do país. Entretanto, consideramos que essa assertiva necessita ser problematizada, uma vez que em algumas preleções publicadas no livro é possível apreender a ideia de que a presença desses funcionários no curso não se fez unicamente por desejo e engajamento, constituindo-se como demanda, e até mesmo, exigência, por parte do inspetor médico-chefe. Nesse sentido, é ilustrativa a preleção do inspetor dentário, Frederico Eyer, que na abertura da sessão afirmou: “Como funcionário, recebi ordens do nosso eminente chefe Dr. Oscar Clark, e aqui estou para cumpri-las; como técnico odontológico, porém ficaria mais contente se me permitisse ele a escolha do assunto” (Eyer, 1930, p.567). Desse modo, além da vontade eletiva e das concepções defendidas pelos oradores, o curso se configurou como parte das estratégias mobilizadas pelo Serviço de Inspeção no sentido de difundir, preceituar e propagar as noções de higiene e medicina preventiva que estavam na base das medidas defendidas pelo médico Oscar Clark e, por extensão, da reforma da instrução.

Lições a ensinar: a construção de uma consciência sanitária

Quando a Diretoria de Instrução houve por bem pedir aos médicos escolares para palestrar aqui convosco, não teve certamente intuito de que eles viessem explanar assuntos transcendentais, ou questões até hoje controvertidas em matéria de higiene. O que ela quis, foi indubitavelmente que nós viéssemos fazer um apelo à vossa memória, trazer ao vosso consciente, noções por vós ‘sobejamente conhecidas da arte de cuidar da saúde, ministrando ao mesmo tempo conselhos de ordem prática que possam ser úteis ao vosso governo, no lar e na escola’ (Pernambuco Filho, 1930, p.15; destaques nossos).

A preleção que abriu o curso foi proferida pelo médico-inspetor Pedro Pernambuco Filho e abordou a fase da puberdade na adolescência, procurando apresentar as transformações orgânicas e físicas de meninos e meninas. Para ele, é nessa fase da vida que o crescimento se faz “uniforme e harmonioso e os caracteres físicos, intelectuais e morais, concernentes a ambos os sexos, se exteriorizam de modo definitivo” (Pernambuco Filho, 1930, p.20), tornando a lição de higiene sexual tema de máxima urgência. Em acordo com essa urgência, o orador enaltecia como “missão” das professoras promover a vigilância das atitudes, a instrução higiênica do corpo e da mente, o direcionamento de exercícios físicos e a orientação moral da infância à adolescência. A fim de atingir esses objetivos, as professoras teriam um papel fundamental no desenvolvimento de atividades físicas alinhadas a uma nutrição regular capaz de constituir condições favoráveis à robustez da criança e sua defesa frente às doenças venéreas.

Assim, se por um lado as preleções tinham, como destacava Pernambuco Filho, a intenção de trazer à memória das professoras a arte de cuidar da criança, tão próxima do seu papel social como mãe/esposa, por outro deveriam promover aconselhamentos respaldados em bases científicas, a fim de se constituir em formadoras esclarecidas. Para isso, as professoras teriam que desempenhar “deveres análogos aos dos pais”, no sentido de inibir “atitudes violentas que nesta fase se apresentavam”, atuando como “guias sensatas”, provocadoras de “ações úteis” (Pernambuco Filho, 1930, p.26). Em matéria intitulada “A nutrição dos escolares”, A Folha Médica , de 15 de setembro de 1929, reproduz entrevista de Oscar Clark em que ele destaca a atuação das professoras que, “ensaiando” a distribuição do prato de sopa e o copo de leite em suas escolas, prestavam importante serviço no que se refere à deficiência nutricional das crianças.

O caráter patriótico e altruísta demonstrado pelas professoras era exemplar do que o médico destacava como características imprescindíveis à professora: o devotamento e o idealismo. Este último deveria impulsionar uma “cruzada saneadora” a ser empreendida a partir do voluntarismo das professoras que, como destaca Clark (15 set. 1929), iniciavam campanhas de amparo às crianças, em especial as desnutridas, com atraso pedagógico e deficit físico, entre outros fatores que as acometiam. Além de procurar dar visibilidade às qualidades que “esculpiam” as professoras, algumas preleções assumiram como temática central discorrer sobre a situação do magistério, expondo os requisitos desejáveis às candidatas que aspirassem ingressar na Escola Normal. Em preleção intitulada “A saúde do professor e os deveres escolares”, o inspetor médico Octavio Ayres buscou expor os dados relativos à condição de saúde do magistério municipal, bem como as medidas instituídas pela reforma, que retirou do Departamento de Higiene Municipal a inspeção da saúde do magistério, passando-a para o Serviço de Higiene Escolar.

Em sua exposição, o médico apresentou os números identificados pela comissão encarregada das inspeções de saúde do magistério relacionados a um período de aproximadamente três meses. Para o referido período foram examinados, de acordo com Ayres (1930AYRES, Octavio. A saúde do professor e os deveres escolares. In: Clark, Oscar. Educação sanitária (higiene e medicina preventiva). Rio de Janeiro: Livraria Francisco Alves/Paulo de Azevedo, 1930. p.351-361. , p.352), 258 professores que apresentaram, entre outros, casos de: tuberculose (41), lepra (3), sífilis (11), lesões cardíacas (19), estados mentais e nervosos (13), lesões renais (7) e alcoolismo crônico (1). Do número total exposto, 120 professores encontravam-se, segundo informava, em precárias condições de saúde. Diante disso, defendia que o exame médico precedesse o pedagógico no ingresso ao magistério, pois dessa forma se eximiria “a administração municipal de fazer matricular, na Escola Normal, número avultado de desnutridas, com capacidade respiratória mínima, etc., etc., destarte impedindo a constituição de um magistério constantemente enfermiço, quando não em precárias condições de saúde” (p.353). O inspetor médico prossegue prenunciando o que as futuras professoras deveriam esperar da profissão:

É preciso muito considerar que uma menina destinando-se ao magistério público haverá que enfrentar encargos de uma profissão extenuante, quer sob o ponto de vista físico quer intelectual, o que lhe irá exigir grande robustez orgânica, necessária a idas e vindas às escolas, por morros acima e abaixo, em subúrbios afastados e longínquos, ou ilhas de baía, vezes muitas sem meios fáceis e cômodos de transporte, ao sol ou por intempéries, tudo isso acrescido dos deveres sagrados e prementes de mãe e senhora de um lar.

Se é obrigação do higienista escolar esclarecer e nortear os membros da superior administração para os problemas exigindo imediata solução, não menos precípua é a sua tarefa explanando questões aparentemente inócuas e cujas consequências graves só em futuro distante pesarão sobre a instrução pública. Assim, com a observação e dados que venho recolhendo como médico da Escola Normal, alguma autoridade não só me poderá negar para dizer claramente que mister se fazem, e quanto antes, providências práticas que salvaguardem a vida e saúde do futuro professorado, se fato e na realidade quisermos ‘ter um dos elementos (e primordial) da escola ativa – o magistério –’ em situação de suportar os encargos da nova e atual reforma de ensino ( Ayres, 1930AYRES, Octavio. A saúde do professor e os deveres escolares. In: Clark, Oscar. Educação sanitária (higiene e medicina preventiva). Rio de Janeiro: Livraria Francisco Alves/Paulo de Azevedo, 1930. p.351-361. , p.353-354; destaques nossos).

Como elemento primordial da Escola Ativa, às professoras era requerido desenvolverem, conforme assegura Ayres (1930)AYRES, Octavio. A saúde do professor e os deveres escolares. In: Clark, Oscar. Educação sanitária (higiene e medicina preventiva). Rio de Janeiro: Livraria Francisco Alves/Paulo de Azevedo, 1930. p.351-361. , “ Mens sana e corpore sano ”, sendo exigida da municipalidade atenção às condições de saúde do magistério primário. Em sua argumentação, o inspetor preceituava recomendações a ser observadas quanto ao horário de funcionamento das escolas e as distâncias percorridas para a elas se chegar. Defendia, ainda, a atenção do magistério quanto à higiene da nutrição, à higiene do repouso e à instituição do seguro contra doença (p.357-358). O aperfeiçoamento do professorado consistia, desse modo, em uma tarefa primordial da ação médica pedagógica que se pretendia instituir na escola.

É possível afirmar que, embora algumas das preleções apresentadas versassem sobre os cuidados com a saúde das professoras, grande parte delas prescrevia orientações quanto às medidas higiênicas e pedagógicas a ser observadas pelas professoras, com especial atenção para os cuidados com as crianças. A ideia de que uma “campanha sagrada da educação sanitária” estava em marcha e que, portanto, caberiam às professoras que conviviam “com o Brasil vindouro” edificá-lo e educá-lo parece-nos recorrente. A preleção do inspetor médico Octacílio Dantas (1930DANTAS, Octacílio. Água potável, sua importância para o organismo, perigos decorrentes do uso da água contaminada e meios de evitá-los. In: Clark, Oscar. Educação sanitária (higiene e medicina preventiva ). Rio de Janeiro: Livraria Francisco Alves/Paulo de Azevedo, 1930. p.443-460. , p.459) ilustra bem essa compreensão, afirmando ser “no banquinho escolar que se incute na criança o valor de si mesmo, o valor da saúde, a obrigação de cultivá-la, assim como a de cultivar a inteligência para ser gigante amanhã”. Os métodos de ensino foram pensados como corolário da arte de ensinar pelas professoras. Por meio da experimentação, dos aconselhamentos, da observação, bem como das demonstrações a respeito dos benefícios do consumo diário de leite na merenda escolar, do hábito das atividades físicas ao ar livre em moderadas exposições ao sol, entre outros aspectos, pretenderam investir no afazer das professoras e no funcionamento da escola.

A preleção “Abecedário da higiene escolar”, proferida por Oscar Clark (1930)CLARK, Oscar. Educação sanitária (higiene e medicina preventiva). Rio de Janeiro: Livraria Francisco Alves/Paulo de Azevedo, 1930. é elucidativa dessa compreensão. Nela, o médico defende a importância de se municiar as professoras de uma linguagem própria, sendo preciso que tivessem uma perfeita compreensão sobre o caráter educativo e terapêutico da higiene escolar. Com esse objetivo, a preleção foi organizada em seis tópicos gerais: (a) “A higiene escolar precisa ser integrada no programa escolar”; (b) “A enfermeira escolar como educadora social da higiene pública”; (c) “Educação física”; (d) “Alimentação”; (e) “Testes mentais, testes pedagógicos. A psicologia experimental e a escola”; (f) “O inspetor médico. Tratamento dos alunos doentes”. Os tópicos se desdobraram em subitens. O primeiro, por exemplo, se divide em: “A razão do banho de sol”; “A razão do banho de ar – a principal função psicológica da pele e a vida nos países tropicais”; e “A campanha em favor do leite”. A preleção assumiu um caráter prescritivo, à medida que reafirmava a situação da infância na capital e os benefícios que tais medidas poderiam provocar. Recomendações sobre a ingestão de frutas, legumes e do leite pasteurizado apareciam como orientações necessárias para combater os estados de morbidez que tanto prejuízo causavam ao país ( Clark,1930CLARK, Oscar. Educação sanitária (higiene e medicina preventiva). Rio de Janeiro: Livraria Francisco Alves/Paulo de Azevedo, 1930. , p.161). Para isso, era preciso equipar as professoras com conhecimentos que, repetidos reiteradamente, se transformariam em hábitos praticados nas escolas. A incorporação de hábitos higiênicos e sanitários transbordaria para o meio familiar e social, e dessa forma previa-se suplantar a ignorância em que se encontrava a população. Quanto à preparação do magistério, Clark (1930CLARK, Oscar. Educação sanitária (higiene e medicina preventiva). Rio de Janeiro: Livraria Francisco Alves/Paulo de Azevedo, 1930. , p.154) afirmava:

Se, entretanto, preparamos o professorado, de maneira inteligente, em fisiologia humana, de onde a higiene e a medicina preventiva haurem sua maior inspiração, terá ele ocasião bastante para transmitir às crianças, com clareza necessária, noções concretas de biologia de grande interesse para a saúde. A questão mais difícil, a meu ver, está nesse preparo dos professores, que deve ser rigorosamente à altura dos conhecimentos atuais. Dois exemplos, apenas: Fala-se muito em banhos de sol e de ar e o mundo civilizado está empenhado, neste momento, em uma campanha sem paralelo a favor do maior consumo de leite por parte das crianças. Quais os motivos que levaram os médicos a encetar esses movimentos? O professor precisa bem conhecê-los quando organizar os preceitos higiênicos a incutir, como hábitos, na conduta dos alunos.

Corroborando essa compreensão, o inspetor médico Leão Velloso (1930VELLOSO, Antônio Leão. O programa escolar: a duração e número de aulas. Fadiga dos escolares. In: Clark, Oscar. Educação sanitária (higiene e medicina preventiva). Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1930. p.185-201. , p.190-191) preceituava que a higiene do ensino deveria “prover o educador dos conhecimentos indispensáveis ao cultivo da planta humana, isto é, dos conhecimentos dos fatores que facilitam ou dificultam a fisiologia do espírito, o trabalho intelectual do qual depende o bom aproveitamento do ensino”. Afirmava também a importância da observância, por parte das professoras, do que prescreviam os partidários da Escola Ativa: o estudo meticuloso da criança, o ambiente, a adoção de um programa de ideias e os métodos intuitivos, ativos e construtivos, e utilização dos jogos educativos, entre outros.

Conjugando diferentes estratégias, os inspetores defendiam a importância das professoras, juntamente com as enfermeiras escolares, na mediação com a família. Por meio dos círculos de pais, deveriam ser fomentados conhecimentos higiênicos junto a esses. Desse modo, além da competência de atuar na formação das crianças, cabia às professoras9 9 Oscar Clark (1930 , p.163) conjugava o papel das professoras ao das enfermeiras escolares. Essas deveriam atuar “no próprio lar dos alunos, cujo nível sanitário e atmosférico morais deveis procurar melhorar por todos os meios ao vosso alcance”. Ao definir suas funções como educadoras sociais, afirmava que as enfermeiras deveriam apresentar “qualidades raras”, como: “tato, amabilidade, inteligência, delicadeza; mas, ao mesmo tempo, firmeza de ação, energia moral, perseverança, fanatismo pelo trabalho e, acima de tudo, amor à Humanidade”. ampliar o alcance relacionado aos cuidados com elas, advertindo sobre as condições higiênicas dos corpos e das habitações. Para isso, ensejou-se produzir uma linguagem que permitisse “transitar dos hábitos de higiene apregoados e praticados nas escolas para a casa e seus costumes a partir da observância dos preceitos defendidos pela ciência médica” (Camara, 2013a, p.170).

As lições proferidas no curso encontraram corolário nos debates científicos em voga à época. Foram exemplares as prescrições ressaltadas por Oscar Clark quanto aos benefícios do leite à saúde dos escolares, bem como das práticas dos banhos de ar e de sol10 10 No Rio de Janeiro, o tratamento foi iniciado, em 1914, pelo médico Arthur Moncorvo Filho, no Instituto de Proteção e Assistência à Infância. Em 1916, junto com o médico Alves Figueiras, Moncorvo Filho criou o Helioterápico no bairro da Tijuca, no Rio de Janeiro. Consagrado ao emprego do banho de sol como medida terapêutica e profilática, o Helioterápico deveria atuar de forma complementar no tratamento das crianças nos casos em que apresentassem doenças como raquitismo, escorbuto, anemia e fraqueza, lesões ósseas, tuberculose, doenças nervosas e de nutrição, mas também como medida profilática. como tratamento “eficiente” e moderno no combate ao raquitismo e no aumento de imunidade nos casos de tuberculose óssea e outras afecções cirúrgicas em crianças ( Clark, 1930CLARK, Oscar. Educação sanitária (higiene e medicina preventiva). Rio de Janeiro: Livraria Francisco Alves/Paulo de Azevedo, 1930. , p.155). Nesse caso, tal discussão visava evidenciar os estudos empreendidos em vários países acerca dos benefícios de uma exposição moderada ao sol, assim como dos efeitos positivos de sua adoção nas escolas. Aulas ao ar livre e de ginástica, colônias de férias e prática de atividades físicas foram, entre outras, propostas como ações articuladas às aulas das disciplinas de puericultura e educação higiênica ( Camara, 2004CAMARA, Sônia. A constituição dos saberes escolares e as representações de infância na Reforma Fernando de Azevedo. Revista Brasileira de História da Educação , v.4, n.2 [8], p.159-180, 2004. ).

Figura 2
: Banho de sol na Escola Uruguai (Distrito Federal). Fotografia que ilustra a palestra do inspetor médico Nascimento Silva, “Asseio, vestuário e hábitos higiênicos dos escolares” (Silva, 1930)

Quanto à composição das disciplinas para as escolas primárias, Oscar Clark defendia que as noções de medicina preventiva e higiene escolar fossem parte integrante de seus programas. Na escola de saúde, a aprendizagem deveria se basear em “coisas úteis, como: o valor dos alimentos; a regulação do calor do corpo; as vantagens da educação física e da vida ao ar livre; a necessidade do repouso suficiente e a importância da casa higiênica como base da saúde”. Era desaconselhável, segundo Clark (1930), “atulhar o cérebro da criança com uma série enorme de coisas abstratas de nenhuma aplicação na vida”. Para a escola funcionar como laboratório de saúde e de fermentação de uma consciência sanitária, era indispensável que as professoras transmitissem “aos alunos, sempre que se lhes ofereça oportunidade”, todos os conhecimentos úteis à sua vida (p.9).

Figura 3
: Copo de leite na Escola Rio Grande do Norte (Distrito Federal). Fotografia que ilustra a palestra do inspetor médico Cruz Lima, “Importância dos diversos alimentos para o desenvolvimento do organismo: a merenda escolar” (Lima, 1930)

Defendia, ainda, a “Campanha em favor do leite”, uma vez que sua propriedade vitamínica vinha sendo demonstrada em vários países civilizados. As recomendações apresentadas se baseavam em pesquisas realizadas com alunos de instituições públicas da Inglaterra que recebiam leite como alimentação escolar. Assim, afirmava que “as crianças que bebiam diariamente meio litro de leite acusavam, no fim de quatro anos, peso e altura 20% superiores aos dos outros alunos que recebiam merenda escolar de outra natureza (verduras, açúcar, manteiga etc.)”. Dados a importância da nutrição dos escolares e os altos índices de desnutrição identificados na capital do país, afirmava que o desafio era “educar o povo no consumo diário, pelo menos, de meio litro desse alimento” ( Clark, 1930CLARK, Oscar. Educação sanitária (higiene e medicina preventiva). Rio de Janeiro: Livraria Francisco Alves/Paulo de Azevedo, 1930. , p.160).

Nas instruções em favor do consumo do leite pasteurizado pela população, aparecia o combate à mortalidade infantil como problema que afligia o país e mobilizava uma extensa rede de iniciativas empreendidas pela intelectualidade médica daquele período. A relevância da ingestão diária de leite em benefício da saúde e do desenvolvimento da criança deveria ser incorporada pela escola sob a prática de distribuição de copos de leite, bem como do prato de sopa e de merendas diversas para os alunos durante a rotina escolar. No que diz respeito à intenção de promover a aproximação da escola com a vida, Oscar Clark (1930)CLARK, Oscar. Educação sanitária (higiene e medicina preventiva). Rio de Janeiro: Livraria Francisco Alves/Paulo de Azevedo, 1930. atribuiu às professoras o papel de mediadoras indispensáveis na construção de práticas nas escolas a partir dos parâmetros advindos da higiene e da medicina preventiva. Esperava-se que as professoras incorporassem esses conhecimentos, replicando-os na configuração de ações conformadoras de hábitos nas crianças, como tomar banho, lavar as mãos, escovar os dentes e pentear os cabelos, devendo ser repetidas e reiteradas quantas vezes fossem necessárias. Estimulava, para isso, a criação dos pelotões de saúde e a distribuição do copo de leite aos escolares. Contudo, havia também uma preocupação em direcionar os assuntos de acordo com a faixa etária e o contexto apropriado para um melhor aproveitamento dos ensinamentos. Nesse sentido, buscou-se atuar sobre a cultura sedimentada na escola, instituindo práticas e discursos que tinham o objetivo de compor outras tradições e gerar outros hábitos de conduta nos escolares.

Com as preleções, os oradores procuraram defender o caráter corretivo e exemplar a ser assumido pelas professoras na propagação dos princípios de profilaxia e de educação higiênica e sanitária a ser desempenhada por elas nas escolas. A par dessa compreensão, consideramos plausível inferir a intenção de um processo de penetração, permanência e/ou perenidade dos projetos. Assim, as iniciativas prescritas pelo Serviço de Inspeção Escolar pretenderam constituir movimentos em busca de alterar a gramática das escolas, estabelecendo hábitos higiênicos a ser incorporados ao cotidiano, mas também pela pressão dos ordenamentos legais que visavam incidir sobre os corpos prescrevendo o modo como as coisas deveriam ser e funcionar.

Considerações finais

Além de pensar o curso como lócus em que deveriam ser proferidas lições de caráter educativo-higiênico ou como uma ação pontual do Serviço de Inspeção Médica, procuramos compreendê-lo como estratégia de envolvimento do amplo repertório de conhecimentos científicos que se esperava ver difundido e praticado pelas professoras. Como afirmam Moreira e Massarani (2001)MOREIRA, Ildeu de Castro; MASSARANI, Luisa. A divulgação científica no Rio de Janeiro: algumas reflexões sobre a década de 1920. História, Ciências, Saúde – Manguinhos , v.7, n.3, p.627-661, 2001. , a capital federal, ao longo da década de 1920, experimentou o aumento de ações direcionadas à divulgação de informações científicas e educativas por meio de diferentes aparatos, como rádio, conferências públicas, cursos, livros, jornais e revistas. Inferimos que o curso Educação Sanitária (Higiene e Medicina Preventiva) pode ser compreendido como parte do projeto de difusão dos conhecimentos advindos dos campos médico e pedagógico, que pretenderam suplantar a suposta ignorância higiênica e sanitária, instituindo práticas consideradas, por seus elaboradores, renovadoras da cultura das escolas. Na concepção de Fernando de Azevedo e Oscar Clark, a função da educação sanitária era “despertar na grande massa leiga” a “consciência sanitária”, tendo as professoras um papel-chave na aplicação de “uma nova política de educação” (Azevedo, s.d., p.93). A construção da consciência de saúde se constituiria a partir da imposição de um conjunto de valores e conhecimentos capazes de intervir sobre a saúde, os hábitos e os problemas sanitários da escola. Ao referendar a ideia de uma consciência sanitária como fim, incorporava-se a compreensão de que ela funcionaria como conhecimento capaz de permitir às professoras construir uma percepção do que era adequado e ideal à sua prática pedagógica e educativa.

Como elemento de distinção e aperfeiçoamento, o curso procurou produzir um redimensionamento da atuação da professora e da escola na formação do caráter nacional e patriótico, na adoção de uma obra de assistência social e na implantação do plano geral de educação que visava atuar sobre as novas gerações. Embora em vários momentos da pesquisa as fontes analisadas se refiram à ideia de “professorado”, fazendo sucumbir o peso do gênero feminino no magistério primário, consideramos que esse aspecto marcou de forma definitiva os temas e a ênfase atribuída às mulheres na função de professoras nas escolas primárias. As lições proferidas não deixaram de aludir ao papel da mulher/mãe e professora que, de educadora “natural” dos filhos, passaria a “funcionária indispensável” ( Clark, 1930CLARK, Oscar. Educação sanitária (higiene e medicina preventiva). Rio de Janeiro: Livraria Francisco Alves/Paulo de Azevedo, 1930. ) do projeto civilizatório que se projetava construir. Como bem destacam Vidal e Carvalho (2001VIDAL, Diana Gonçalves; CARVALHO, Marília Pinto de. Mulheres e magistério primário: tensões, ambiguidades e deslocamentos. In: Vidal, Diana G.; Hilsdorf, Maria Lúcia (org.). Tópicos em história da educação . São Paulo: Edusp, 2001. p.205-224. , p.215), os atributos de feminilidade e de afirmação pedagógica da mulher ajudaram a colocar em perspectiva os papéis de mãe e professora, “no contexto de uma maternidade cívica, uma função pública exercida na privacidade dos lares ou no ambíguo espaço escolar”. Por fim, ressaltamos que a imposição de valores e ideias não deve significar, por si só, a incorporação e conformação de identidades. Assim, consideramos que as professoras não foram sujeitos passivos; constituíram-se, em nossa compreensão, em receptoras capazes de perspectivar o que ouviram e leram, formulando, tecendo, aceitando ou recusando os papeis a elas destinados. Desse modo, as ideias projetadas produziram sentidos e significações que, muitas vezes, escaparam às intenções de seus elaboradores.

AGRADECIMENTOS

O presente trabalho foi realizado com apoio do Programa Prociência da Universidade do Estado do Rio de Janeiro/Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro.

REFERÊNCIAS

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  • AZEVEDO, Fernando de. Novos caminhos e novos fins . São Paulo: Melhoramentos, s.d.
  • BENCHIMOL Jaime; TEIXEIRA, Luiz Antonio. Cobras, lagartos e outros bichos: uma história comparada dos institutos Oswaldo Cruz e Butantan . Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 1993.
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NOTAS

  • 1
    As reformas de base escolar foram instituídas nos estados a partir de 1920. Esse movimento renovador propagou-se no Brasil, visando conhecer e intervir sobre as condições educacionais do país por meio de inquéritos e congressos.
  • 2
    Importa destacar que, em 1910, durante a gestão do prefeito Serzedello Corrêa, foi criada a Inspeção Sanitária Escolar, sendo extinta no mesmo ano e reativada em 1916. Quanto ao funcionamento e aos debates em torno do serviço, ver Camara (2013b).
  • 3
    Em meio às transformações empreendidas com a reforma, foram propostas pelos seus idealizadores, entre outros aspectos: a ampliação do curso normal para cinco anos e a inclusão de disciplinas como psicologia geral e aplicada, pedagogia, didática, história da educação e sociologia.
  • 4
    A Folha Médica , em 5 de maio de 1929, fez referência à inauguração, no dia 4 de abril, de cursos de aperfeiçoamento e especialização para enfermeiras e professoras primárias. Embora o informativo aluda à realização de cursos no plural, interessa-nos analisar as conferências direcionadas ao magistério das escolas primárias da municipalidade.
  • 5
    O jornal publicou, na seção Página de Educação, dirigida por Cecília Meireles, comentários sobre o livro, com destaque para o texto “Abecedário de higiene escolar”, de Oscar Clark, publicado em partes entre 6 e 21 de agosto de 1930. Quanto ao papel assumido pela seção dirigida por Cecília Meireles, destacam Camara e Roberto (2017CAMARA, Sônia; ROBERTO, Jodar de Castro. Entre o “sonho e a ação”: a infância e sua educação nas crônicas de Cecília Meireles no jornal Diário de Notícias , de 1930 a 1932. Educação em Foco , v.20, n.30, p.39-58, 2017. , p.44) que a jornalista e educadora atuou de forma engajada na causa da reconstrução do país, transformando a Página de Educação “em um instrumento de combate e de divulgação de ideias relacionadas à educação” durante os anos em que circulou, de 1930 a 1933.
  • 6
    Uma iniciativa nesse campo foi a criação, em 2 de janeiro de 1920, do Departamento Nacional de Saúde Pública no contexto da Reforma Carlos Chagas. O departamento buscou ampliar, segundo Campos (2007)CAMPOS, Carlos Eduardo Aguilera. As origens da rede de serviços de atenção básica no Brasil: o Sistema Distrital de Administração Sanitária. História, Ciência, Saúde – Manguinhos , v.14, n.3, p.877-906, 2007. , o rol das ações empreendidas pela saúde pública, “incluindo entre elas a propaganda e a educação sanitária, o combate à lepra, às doenças venéreas e à tuberculose”, bem como a higiene infantil e do trabalho, em meio a outras.
  • 7
    Na segunda página que sucede a capa do livro encontra-se a seguinte recomendação: “Para uso dos membros do magistério municipal” ( Clark, 1930CLARK, Oscar. Educação sanitária (higiene e medicina preventiva). Rio de Janeiro: Livraria Francisco Alves/Paulo de Azevedo, 1930. ).
  • 8
    A análise do Quadro 1 permite identificar modificações quanto à ordem de apresentação das preleções publicadas pelos jornais, bem como a inclusão e exclusão de temas. Localizamos no jornal O Globo , de 4 de abril de 1929, informações distintas com relação à sequência, aos nomes dos oradores e aos títulos das preleções.
  • 9
    Oscar Clark (1930CLARK, Oscar. Educação sanitária (higiene e medicina preventiva). Rio de Janeiro: Livraria Francisco Alves/Paulo de Azevedo, 1930. , p.163) conjugava o papel das professoras ao das enfermeiras escolares. Essas deveriam atuar “no próprio lar dos alunos, cujo nível sanitário e atmosférico morais deveis procurar melhorar por todos os meios ao vosso alcance”. Ao definir suas funções como educadoras sociais, afirmava que as enfermeiras deveriam apresentar “qualidades raras”, como: “tato, amabilidade, inteligência, delicadeza; mas, ao mesmo tempo, firmeza de ação, energia moral, perseverança, fanatismo pelo trabalho e, acima de tudo, amor à Humanidade”.
  • 10
    No Rio de Janeiro, o tratamento foi iniciado, em 1914, pelo médico Arthur Moncorvo Filho, no Instituto de Proteção e Assistência à Infância. Em 1916, junto com o médico Alves Figueiras, Moncorvo Filho criou o Helioterápico no bairro da Tijuca, no Rio de Janeiro. Consagrado ao emprego do banho de sol como medida terapêutica e profilática, o Helioterápico deveria atuar de forma complementar no tratamento das crianças nos casos em que apresentassem doenças como raquitismo, escorbuto, anemia e fraqueza, lesões ósseas, tuberculose, doenças nervosas e de nutrição, mas também como medida profilática.
  • Errata

    No artigo “‘Lições para o professorado’: o curso Educação Sanitária (Higiene e Medicina Preventiva) e a formação da professora na cidade do Rio de Janeiro, 1929-1930” (https://doi.org/10.1590/S0104-59702021000300009), de Sônia Camara, publicado em História, Ciências, Saúde – Manguinhos , v.28, n.3, jul.-ago. 2021:
    • na página 780, onde se lia:
    Figura 1
    : Pestalozzi-Fröebel-Haus, em Berlim, Alemanha, criada por Henriette Brymann para funcionar como “núcleo de educação para as profissões pedagógicas, domésticas e de higiene social” (Saboia, 1930, p.98)
    ▶ leia-se:
    Figura 1
    : Banho de sol na Escola Uruguai (Distrito Federal). Fotografia que ilustra a palestra do inspetor médico Nascimento Silva, “Asseio, vestuário e hábitos higiênicos dos escolares” (Silva, 1930)
    • na página 789, onde se lia:
    Figura 2
    : Banho de sol na Escola Uruguai (Distrito Federal). Fotografia que ilustra a palestra do inspetor médico Nascimento Silva, “Asseio, vestuário e hábitos higiênicos dos escolares” (Silva, 1930)
    ▶ leia-se:
    Figura 2
    : Pestalozzi-Fröebel-Haus, em Berlim, Alemanha, criada por Henriette Brymann para funcionar como “núcleo de educação para as profissões pedagógicas, domésticas e de higiene social” (Saboia, 1930, p.98)

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    03 Set 2021
  • Data do Fascículo
    Jul-Sep 2021

Histórico

  • Recebido
    30 Mar 2019
  • Aceito
    31 Mar 2020
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