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Reciprocidades em desequilíbrio: história das relações entre animais

Este suplemento da revista História, Ciências, Saúde – Manguinhos se propõe como número especial sobre a história dos animais. Surgiu da ideia de quatro pesquisadores brasileiros que se dedicam ao tema há alguns anos. Nós – Regina, Natascha, Gabriel e Nelson, editores – temos compartilhado o fascínio pelas possibilidades de pesquisa e reflexão no seio do Centro de Estudos dos Animais (CEA), inaugurado em dezembro de 2019. O CEA integra o grupo de pesquisa Coleção Brasiliana, sediado na Universidade Federal de Minas Gerais. Esta é uma de nossas primeiras iniciativas coletivas.

Mas por que “especial”? Em primeiro lugar, por aspirar a um pioneirismo no campo historiográfico brasileiro. Após um levantamento bibliográfico, constatamos que várias revistas brasileiras de antropologia e outras áreas de humanidades já publicaram importantes dossiês sobre estudos animais, mas não encontramos nenhuma iniciativa do tipo nas mais destacadas revistas da área de história. A despeito do crescente número de bons trabalhos sobre história dos animais realizados por historiadores brasileiros, não houve, até agora, uma abordagem do tema para além de (louváveis) iniciativas individuais. Não há uma publicação coletiva que circule como uma espécie de pedra fundadora ou ato inaugurador dessa promissora área de interesse. Nosso intento é o de “botar esse bloco na rua” da historiografia feita no Brasil, lembrando aqui os versos da música de Sérgio Sampaio.

O número é especial, em segundo lugar, por apresentar um recorte provocativo para a história dos animais, e isso se manifesta desde o título escolhido. Desejamos explorar “relações entre animais”, e aqui abandonamos deliberadamente a dicotomia animais humanos/animais não humanos. Essa separação já clássica estabelece hierarquias, em vez de enfatizar conexões interespécies. Ela engloba, numa só categoria (não humanos), todas as espécies zoológicas, com uma única exceção (humanos). Mas também privilegia uma determinada correspondência (humanos ⇆ não humanos), em vez de abrir o pensamento ao horizonte múltiplo de relações entre os mais diversos animais, nos seus mais complexos vetores e redes. O questionamento da binaridade radical entre animais não humanos/humanos recoloca aspectos biológicos, éticos e filosóficos da condição humana, “rebaixando a humanidade” (Walker, 2016, p.59).1

Outro aspecto enfatizado desde o título que escolhemos reside nas reciprocidades em desequilíbrio. Pressupor a história dos animais de todas as espécies em termos relacionais implica considerar interdependências, coexistências, interações, reciprocidades. Todos são agentes, cada um a seu modo e em diferentes circunstâncias, mesmo que a maioria aja sem intencionalidade consciente (Maia, 2017MAIA, Carlos Alvarez. Agência material recíproca: uma ecologia para os estudos e ciência. História, Ciências, Saúde – Manguinhos, v.24, n.2, p.447-464, 2017.). Essas reciprocidades oscilam, não obstante, em constante desequilíbrio, urdidas ao longo do tempo em contextos de jogos de força, poder, submissão e/ou aliança entre os animais, entre eles o Homo sapiens.

Com tantas intenções, não poderíamos escolher outro veículo no Brasil que não a História, Ciências, Saúde – Manguinhos para realizar essa empreitada. Periódico da área de história, desde sempre cultivou a transdisciplinaridade, numa trajetória ligada a pioneirismo, ousadia no projeto editorial, consonância com as melhores práticas internacionais, leitores exigentes e qualidade inegável de edição e conteúdo. Recebemos a confiança da equipe editorial com o acolhimento de nossa proposta, e esperamos oferecer um número em concordância com tantas qualidades.

Neste número pululam pássaros, hipopótamos, jaguares, pumas, lhamas e coelhos. Animais extintos, humanos vegetarianos, conquistadores e tantos outros demonstram que a escrita da história precisa, necessariamente, incluir a diversidade dos animais para além do humano. Miríades de espécies zoológicas em contínuo movimento no espaço e no tempo não são recipientes passivos, mas atores nos processos de transformação, pois a história se faz “também” com animais, que possuem papel-chave “no desenvolvimento de vários processos históricos” (Nance, 2016, p.5).2 Não se trata de antropomorfizá-los, mas de indicar seu coprotagonismo nos efeitos e resultados de ações muito específicas, destituídas de intencionalidades (Shaw, 2013SHAW, David. A way with animals. History and Theory, v.52, n.4, p.1-12, 2013., p.7).

Ao organizar o número, buscamos garantir a abrangência de autores de instituições diversas, temas, enfoques metodológicos, áreas geográficas. As contribuições resultam de pesquisas independentes, trazem temáticas variadas e expressam distintas análises. Os vários textos percorrem diferentes caminhos teóricos e metodológicos, e apresentam diversos recortes documentais e bibliográficos. Nossa proposta se pretende crítica, propositiva e, esperançosamente, provisória, pois já se concretiza com o desejo de ser superada.

Corpos animais em seus movimentos furtivos e suas sonoridades oferecem-se como ricas fontes documentais. Aves que cantam como não o faziam há muito tempo, aproveitando o silêncio decorrente da pandemia de covid-19 entre os humanos, explicitam a importância das paisagens sonoras. Na Andaluzia, a maior nitidez de seus cantos facilita a reflexão sobre as suas relações com os humanos. Apresentam-se como evidência documental de como o canto das aves é repleto de história e se modula em diálogo com transformações antrópicas no tempo e nos espaços. Na Colômbia, dezenas de hipopótamos que circulam pelo vale do médio Magdalena são memória em movimento do famoso zoológico do traficante Pablo Escobar. Incontroláveis, alteram paisagens, ecossistemas, interagem com a fauna nativa, conectando a história dos zoos, urbanização, vida política, ação do Estado e conservação/destruição do meio natural. Nas fronteiras entre a Argentina e o Brasil, grandes felinos como pumas e jaguares demarcam territorialidades próprias para caça e acasalamento, confrontando espaços geográficos de limites políticos entre nações, de áreas de parques nacionais, de avanço das atividades agropecuárias. Em seu movimento, esses grandes felinos desafiam e se sobrepõem espacialmente às intenções humanas de divisão territorial. Nas coleções extensas de museus de história natural, exemplares empalhados de foca-monge-do-caribe, espécie descrita pela primeira vez em 1492 e declarada extinta em 2008, são um verdadeiro documento-monumento das práticas museológicas do mundo moderno e de seu papel na perseguição implacável da fauna pelos seres humanos. São restos mortais de ações gananciosas em nome do conhecimento e do controle da natureza que conferiram o golpe final em tantas espécies. No início do século XX, nas grandes matas centrais do Brasil, a astúcia e os movimentos furtivos de grandes felinos frustraram, tantas vezes, a ação dos fotógrafos da expedição de Theodore Roosevelt, em sua pretensão de construir um repertório de imagens desses animais como símbolo do domínio humano sobre o meio natural, mas também da força do imperialismo americano.

Interações entre espécies têm longa história e mobilizam sociedades humanas ao longo do tempo frente aos desafios e possibilidades desses encontros. Lhamas e coelhos transitam entre domesticação, laboratórios, zoonoses, entre utilidade, representações culturais e ameaças para os seres humanos. Nos Andes, o lhama viveu uma história interconectada com seres humanos desde sua domesticação pelas civilizações pré-colombianas. Seus corpos se transformaram nessas interações, em que foram domesticados, ameaçados, manipulados em laboratórios, transformados em objetos culturais e representações diversas. Entre a Austrália e o Brasil, coelhos se afiguravam como pragas, entraram em confronto com espécies endêmicas da Austrália e estimularam cientistas à criação de estratégias de controle biológico, com manipulação de vírus em laboratórios, num denso contexto de dimensões éticas, políticas, ecológicas e imunológicas.

Na pesquisa das ações e representações humanas, a diversidade de atitudes entre o antropocentrismo e a coexistência assume matizes complexos e paradoxais. No delírio da superioridade humana, e seu pretenso poder de ação sobre outras espécies animais, mesmo o vegetarianismo no Brasil do século XX não logrou o abandono da ideia de inferioridade dos outros animais. Em discursos moralizantes e, por vezes, com o recurso à razão científica, permaneceram inquestionáveis as hierarquias e assimetrias entre os seres vivos. Entre idealizações, negação da morte e da dor, a supremacia humana foi mais uma vez reafirmada na recusa de comer carne. Entretanto, os animais humanos afortunadamente também instauram o contraditório, e suas práticas ultrapassam em muito o que contam as narrativas de destruição. A análise cuidadosa da história e das dinâmicas transoceânicas, desde o início do século XVI, ilumina uma tradição obscurecida de que muitos humanos intentaram construir relações muito diversas com outros animais, plantas e elementos naturais.

Na seção “Revisão historiográfica”, o balanço da historiografia latino-americana – assim como de uma instigante tradição anterior de escritos da história natural – evidencia as muitas possibilidades em aberto e lança um convite tentador aos pesquisadores brasileiros.

A entrevista com a professora e historiadora Harriet Ritvo – uma das principais referências no campo da história dos animais – demonstra a pertinência, densidade e consolidação da história dos animais no debate acadêmico internacional, além de evidenciar o pioneirismo de seus trabalhos valiosos.

É hora de os historiadores brasileiros se voltarem com atenção, rigor e sistemática para essa área tão fascinante de estudos não apenas em iniciativas individuais, mas como empreitada coletiva, em congressos, publicações, propostas didáticas, grupos de pesquisa, ações de extensão e divulgação de conhecimento. Num país habitado por tantas espécies animais, a sobrevivência de tantas delas – incluindo a nossa – depende de nossa disposição em firmar alianças, relações de respeito, abertura ao conhecimento, amor à diversidade, alegria de coexistir, desejo ativo de garantir a sobrevivência de todos. Essa disposição, necessariamente, estará ligada à ética, à ciência, à luta política e à construção de novos valores fundadores para a sociedade brasileira.

REFERÊNCIAS

  • MAIA, Carlos Alvarez. Agência material recíproca: uma ecologia para os estudos e ciência. História, Ciências, Saúde – Manguinhos, v.24, n.2, p.447-464, 2017.
  • NANCE, Susan. The historical animal New York: Syracuse University Press, 2016.
  • SHAW, David. A way with animals. History and Theory, v.52, n.4, p.1-12, 2013.
  • WALKER, Brett. Animals and the intimacy of history. In: Isenberg, Andrew C. (ed.). The Oxford handbook of environmental history New York: Oxford University Press, 2016. p.52-75.

NOTAS

  • 1
    No original: “holding humanity down”. Nessa e nas demais citações de textos publicados em outros idiomas, a tradução é livre.
  • 2
    No original: “in the unfolding of several historical processes”.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    07 Fev 2022
  • Data do Fascículo
    Dez 2021
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