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Um projeto para estudar cientificamente a criança: Maria Lacerda de Moura e sua contribuição para a educação em Minas Gerais, 1908-1921

A project for scientific study of children: Maria Lacerda de Moura and her contribution to education in Minas Gerais, 1908-1921

Resumo

O artigo investiga o projeto de estudo científico da criança idealizado por Maria Lacerda de Moura entre 1908 e 1921. O recorte contempla a trajetória da professora na cidade de Barbacena, lugar em que pensou, escreveu e difundiu seus ideais sobre a psicologia experimental. Dentre as fontes mobilizadas, destacam-se o requerimento enviado pela professora à Secretaria do Interior do Estado de Minas Gerais, solicitando autorização para realizar experiências científicas nas escolas de Barbacena, e os pareceres gerados em resposta ao seu pedido. Além da identificação dos testes, também foi possível verificar a resistência do governo ao projeto, revelando diferentes relações de poder no contexto da inserção da psicologia experimental na educação.

Maria Lacerda de Moura (1887-1945); estudo científico; criança; educação

Abstract

This article investigates a scientific study of children conducted by Maria Lacerda de Moura from 1908 to 1921, and covers this educator’s trajectory in the city of Barbacena, the site of her writing, scholarship, and dissemination of her ideas on experimental psychology. Important sources for this research were her request to the Minas Gerais state Department of the Interior for authorization to conduct scientific experiments in the schools in Barbacena, and the subsequent responses. While the tests were identified, government resistance to the project was also seen, revealing different power relationships within the context of how experimental psychology was inserted into education.

Maria Lacerda de Moura (1887-1945); scientific study; child; education

Desejando encetar uma série de experiências de psicologia experimental aplicada à pedagogia ... venho solicitar de V. Excelência permissão para trabalhar 2 ou 3 horas por semana no máximo no Grupo Escolar, Escola Normal, escolas isoladas, Colégio Imaculada Conceição de Barbacena ( Moura, maio 1919MOURA, Maria Lacerda de. Requerimento. Fundo da Instrução Pública de Minas Gerais (Arquivo Público Mineiro, Belo Horizonte). maio 1919. ).

O início do século XX e uma República ainda sem as formas desejadas fizeram com que o Brasil buscasse, mais enfaticamente, uma sociedade produtiva, ordeira e civilizada, que fosse livre dos vários males que a assolavam, como as doenças, o ócio e a pobreza. Contudo, com a expansão da imigração, o crescimento dos centros urbanos e o processo de industrialização, os problemas sociais e sanitários cresciam a cada dia ( Souza, 2008SOUZA, Vanderlei Sebastião de. Por uma nação eugênica: higiene, raça e identidade nacional no movimento eugênico brasileiro dos anos 1910 e 1920. Revista Brasileira de História da Ciência, v.1, n.2, p.146-166, 2008. ). Além da mendicância, as epidemias de febre amarela, varíola e tuberculose fizeram do país um imenso hospital, o que gerou a chamada “era do saneamento do Brasil”, que tinha como meta a salvação do cidadão em relação à própria precariedade ( Hochman, 1998HOCHMAN, Gilberto. A era do saneamento: as bases da política de saúde pública no Brasil. São Paulo: Hucitec; Anpocs, 1998. ; Abreu, 2010ABREU, Jean Luiz Neves. Educação sanitária e saúde pública em Minas Gerais na primeira metade do século XX. História, Ciências, Saúde – Manguinhos, v.17, n.1, p.203-209, 2010. ).

Ao lado das mazelas sociais cresciam, também, as descobertas científicas, entre elas as teorias da evolução e da hereditariedade, que impactaram profundamente os vários campos do conhecimento com vistas a regenerar e civilizar as populações do mundo. Para Foucault (1999)FOUCAULT, Michel. Em defesa da sociedade: curso no Collège de France, 1975-1976. São Paulo: Martins Fontes, 1999. , foi para executar essa tarefa, propriamente política, que, a partir de finais do século XIX, começou a ganhar corpo uma forma de poder positivo, que associou políticos, professores, médicos e higienistas, entre outros, em torno de certa profilaxia social.

No campo da educação, isso se deu de diferentes formas. O conceito de evolução, por exemplo, daria lugar ao conceito de desenvolvimento e às consequentes etapas evolutivas da criança, esclarecendo o educador sobre as fases e as condições de crescimento e de educação. Mais do que isso, a educação, amparada nos novos conhecimentos produzidos pelas ciências, foi representada como condição de evolução normal da criança, oferecendo referenciais eficazes para a sua aprendizagem e formação ( Ó, 2009Ó, Jorge Ramos do. A governamentabilidade e a história da escola moderna: outras conexões investigativas. Educação e Realidade, v.34, n.2, p.97-117, 2009. ).

Segundo Gouvea (2008)GOUVEA, Maria Cristina Soares. Discursos, saberes e poder: estudo de escritas de professores e especialistas nas revistas educacionais portuguesas, 1880-1900. Revista Portuguesa de Educação, v.21, n.2, p.91-114, 2008. , a fisiologia ocupou um lugar de destaque nas ciências da educação, sendo o saber médico – juntamente com o higienismo e a antropometria – eleito para determinar as condições de desenvolvimento da criança, alterando-se a percepção da análise dos processos de desenvolvimento humano e de organização do campo pedagógico.

Com o avanço dos estudos fisiológicos, foi se delineando uma perspectiva diferenciada, de cunho empiricista, voltada para a construção de estratégias de investigação centradas no estudo da criança concreta, através da mensuração dos seus caracteres anatomofisiológicos, definidos por seu pertencimento sociorracial ( Gouvea, 2008GOUVEA, Maria Cristina Soares. Discursos, saberes e poder: estudo de escritas de professores e especialistas nas revistas educacionais portuguesas, 1880-1900. Revista Portuguesa de Educação, v.21, n.2, p.91-114, 2008. , p.108).

Com a missão de formar o cidadão do futuro, a educação buscava amparar-se, cada vez mais, em bases científicas, traduzidas no estudo do organismo vivo da criança, ou seja, na sua condição física e psíquica, que deveria ser compreendida de forma individualizada. Segundo Ramos do Ó (2009)Ó, Jorge Ramos do. A governamentabilidade e a história da escola moderna: outras conexões investigativas. Educação e Realidade, v.34, n.2, p.97-117, 2009. , a pedagogia buscava adquirir o seu estatuto de ciência justamente com a crítica aos modelos tradicionais de ensino e com a adesão a metodologias científicas, nas quais o corpo individualizado da criança seria a possiblidade de descoberta de uma nova e mais promissora educação.

A pedagogia adquiria o seu estatuto de ciência, de um lado, na crítica aos métodos autoritários da escola tradicional – que via todos os estudantes da classe como um só e se limitava ao básico ‘ler, escrever e contar’ – e, de outro, na procura da educação ‘integral’ do indivíduo, tomado em si e para si. A ‘Educação Nova’ – designação que na transição para o século XX identifica as tentativas de renovação pedagógica na Europa e nas Américas – alicerça-se no conhecimento detalhado da diferença de cada criança. Fala mesmo da ‘lei da individualidade’, querendo por tal significar que todo indivíduo difere mais ou menos, na relação dos seus caracteres físicos e psicológicos, dos demais. É, pois, esta uma ciência do singular que, legitimada pelo laboratório e pela observação experimental, postula a necessidade de uma escola ‘por medida’ (Ó, 2009, p.115; destaques no original).

Seria esse processo de individualização, forma de poder constituído pelas ciências, que forneceria à educação saberes considerados verdadeiros sobre a criança, capazes não só de direcionar a prática educativa, mas também de transformar a realidade social de um país ( Foucault, 1984FOUCAULT, Michel. História da sexualidade II: o uso dos prazeres. Rio de Janeiro: Graal, 1984. ).

Segundo Freitas (2005)FREITAS, Marcos Cezar de. Alunos rústicos, arcaicos e primitivos: o pensamento social no campo da educação. São Paulo: Cortez, 2005. , a pedagogia ganhava prestígio ao se amparar em bases científicas, chegando a indicar a direção a ser tomada pela sociedade como um todo. Dos mais variados matizes interpretativos provinham opiniões segundo as quais seria necessário fazer da ciência e da instrução instrumentos preparados para oferecer à sociedade uma direção que a distanciasse do próprio passado, inclusive político, chegando a assumir funções redentoras durante a história da República brasileira.

Conduzido pelo chamado movimento escolanovista, esse período também pode ser caracterizado pela ciência da psicologia da criança; pela experiência e pela experimentação; pelos métodos e instrumentos pedagógicos específicos; pela ação sobre os contextos; e pela pedagogia ativa ( Peyronnie, Vergnioux, 2011PEYRONNIE, Henry; VERGNIOUX, Alain. Escolanovismo. In: Zanten, Agnès (coord.). Dicionário de educação. Petrópolis: Vozes, 2011. p.346-352. ). De acordo com Antunes (1999)ANTUNES, Mitsuko Aparecida Makino. A psicologia no Brasil: leitura histórica sobre sua constituição. São Paulo: Educ, 1999. , foi o trabalho desenvolvido nas escolas normais e seus laboratórios de psicometria que ajudou a psicologia experimental a encontrar seu lugar “para fora” das ciências médicas, o que se concretizou a partir do momento em que se transformou em ciência instrumental para a pedagogia, sobretudo nos ciclos de reformas que se deram na década de 1920, em muitos estados do país.

Expoentes dos estudos psicométricos, Binet e Claparède influenciaram de forma direta e indireta a educação, fosse na transformação do ambiente escolar, fosse para a reeducação dos professores, ou mesmo na substituição dos métodos de ensino vigentes. Com base nesses estudos, o que se deu, nesse momento, foi um olhar metódico sobre a criança e uma readequação do espaço escolar, conduzidos, sobretudo, sob a guia da antropologia pedagógica e da psicologia experimental ( Monarcha, 1999MONARCHA, Carlos. Escola Normal da Praça: o lado noturno das Luzes. Campinas: Editora da Unicamp, 1999. ).

Segundo Antunes (2012)ANTUNES, Mitsuko Aparecida Makino. Educação, ciência e psicologia no Sistema Montessori: por uma psicologia do desenvolvimento da criança. In: Lourenço, Érika; Assis, Raquel Martins de; Campos, Regina Helena de Freitas (org.). História da psicologia e contexto sociocultural, v.1. Belo Horizonte: Editora PUC-Minas, 2012. p.197-224. , o trabalho com a criança dentro do ambiente escolar deveria acontecer por meio de uma observação sistemática e calculada, cuja atenção estaria voltada para o que chamava de desenvolvimento interno da criança, dado, sobretudo, pela natureza e pelas condições hereditárias. Somente a partir disso o professor poderia iniciar suas atividades, fazendo uso desse desenvolvimento para direcionar aprendizagens ofertadas pelo meio. Exemplos dessas ações foram as desenvolvidas por Maria Montessori, que, ao observar a importância dos sentidos para as crianças, criava atividades e materiais que estimulavam a aprendizagem.

No Brasil, as experimentações científicas com crianças dentro dos espaços escolares tiveram início na década de 1910. O trabalho desenvolvido por Quaglio na Escola Normal da Praça, em São Paulo, pode ser considerado um dos primeiros e mais robustos, com a participação do médico italiano Ugo Pizzoli, responsável pela criação do laboratório de psicometria da instituição ( Monarcha, 1999MONARCHA, Carlos. Escola Normal da Praça: o lado noturno das Luzes. Campinas: Editora da Unicamp, 1999. ). Já em Minas Gerais, o trabalho considerado pioneiro foi o de Helena Antipoff, psicóloga russa e discípula de Claparède. Convidada pelo governo do estado para conduzir o laboratório de Psicologia Experimental da Escola de Aperfeiçoamento de Professores de Belo Horizonte, seu trabalho se iniciou em 1929, sendo a década de 1930 o principal período de desenvolvimento e publicação de suas pesquisas.

Contudo, dez anos antes da chegada de Helena Antipoff em Minas Gerais, houve uma tentativa de realização de experiências científicas, amparadas na psicologia experimental, em crianças das escolas do estado. Partindo do que havia de mais recente nesses estudos, a professora proponente desse projeto, Maria Lacerda de Moura, trazia consigo um contexto de tensões diversas, reveladoras de desconfianças que recaíam fosse sobre a nascente psicologia experimental, fosse sobre a liderança de uma mulher no desenvolvimento de atividades científicas em um período em que as ações intelectuais eram predominantemente masculinas.

Este trabalho investiga o projeto de estudo científico da criança idealizado por Maria Lacerda de Moura ao longo da sua trajetória e produção docente na cidade de Barbacena, Minas Gerais, entre 1908 e 1921.

Dentre as diferentes fontes mobilizadas, destacam-se o requerimento enviado por Maria Lacerda de Moura à Secretaria do Interior do Estado de Minas Gerais, solicitando autorização para realizar experiências de psicologia experimental com as crianças das escolas da sua cidade, e os seis pareceres gerados pela Secretaria do Interior, em resposta ao pedido da professora mineira, e emitidos ao longo de um ano e seis meses, período em que o requerimento esteve em análise.1 1 Neste trabalho o projeto de Maria Lacerda de Moura é entendido como uma elaboração mais ampla, que envolve não só o requerimento que elaborou para solicitar a aplicação de experiências de psicologia nas escolas de Barbacena, mas todo o percurso de estudos e ações para esse fim. Também compõem o quadro de fontes as publicações de Maria Lacerda, os documentos da escola onde lecionou, as suas correspondências, alguns jornais de Barbacena, entre outros.2 2 As fontes desta pesquisa foram reunidas a partir da busca e seleção de documentos localizados em lugares e arquivos diversos: Arquivo Público Mineiro (APM), em Belo Horizonte; Arquivo Histórico Municipal Altair Savassi (Ahmas), em Barbacena; Arquivo Histórico da Escola Normal Municipal (Ahenm), em Barbacena; Centro de Documentação e Memória da Unesp (Cedem), em São Paulo; na Academia Barbacenense de Letras, em Barbacena, entre outros.

O ineditismo de algumas fontes possibilitou a abertura de novas perspectivas para o entendimento da ciência experimental aplicada à educação da infância em Minas Gerais em um período sobre o qual se desconhecem notícias sobre a realização de tais experimentos no estado. É preciso lembrar que as primeiras questões ligadas à psicologia experimental aplicada à educação da infância em Minas Gerais são bem situadas cronologicamente pela historiografia existente, precisamente a partir de 1929, ano da chegada de Helena Antipoff ao estado, a quem é atribuído o pioneirismo da realização de tais investigações. Entretanto, com a descoberta do requerimento de Maria Lacerda e dos pareceres emitidos sobre ele, tem-se a possibilidade de compreender as questões da psicologia aplicada à educação dez anos antes da chegada da psicóloga, percebendo em que medida educadores e políticos mineiros pensavam a condição da educação aliada à ciência para a formação da infância em um momento anterior à profusão de testes aplicados no âmbito das diretorias de instrução pública de todo o Brasil para detecção dos problemas de aprendizagem e como panaceia para sua superação.3 3 Em Minas Gerais, isso se deu nas décadas de 1920 e 1930, fruto da chamada Reforma Francisco Campos, que, dentro de suas várias determinações, criou a Escola de Aperfeiçoamento de Minas Gerais e seu Laboratório de Psicologia Experimental, dirigido por Antipoff.

Também em função desse conjunto de fontes encontrado, um novo nome se destaca nessa pesquisa, vindo a compor, junto ao de Helena Antipoff, mas, antes da atuação desta, o quadro dos primeiros personagens que se voltaram para questões da inserção da psicologia experimental nas escolas mineiras. Trata-se da responsável por iniciar toda a documentação e o debate citados acima: a professora que solicitou autorização do estado para o desenvolvimento de experiências da psicologia experimental aplicadas à pedagogia na cidade de Barbacena: Maria Lacerda de Moura.

Maria Lacerda de Moura: uma atuação multifacetada

Maria Lacerda de Moura nasceu em Manhuaçu, Minas Gerais, em 1887, e morreu aos 58 anos de idade, no Rio de Janeiro, então capital do Brasil. É personagem ainda pouco conhecida no campo da pesquisa em história da educação, o que gerou, para este estudo, a necessidade primeira de identificá-la em meio ao contexto de produção da documentação encontrada. As primeiras pesquisas, realizadas de forma mais abrangente em sites de busca, trouxeram uma surpresa ao revelar uma Maria Lacerda em um contexto de atuação bem diferente daquele imaginado por meio da leitura de seu requerimento. Distante da figura de uma professora de escola normal de uma cidade do interior de Minas Gerais, ela é apresentada como importante líder feminista e uma das primeiras mulheres anarquistas do Brasil. Rapidamente, foi possível perceber que ela possui duas trajetórias bastante diferenciadas: uma em Barbacena, como professora que atuava na formação de professores primários; e outra em São Paulo, onde passou a viver a partir de 1921, envolvendo-se em movimentos de lutas em prol da mulher e da liberdade social.4 4 Apesar de menos expressiva no que diz respeito à sua atuação, ainda é possível falar de uma terceira trajetória de Maria Lacerda, a do Rio de Janeiro, onde viveu os anos finais de sua vida de forma mais solitária e menos atuante.

Apesar do pouco ou quase nenhum destaque dado à trajetória anterior, a de Barbacena (a não ser como explicação para a sua atuação em São Paulo), as informações apontam que Maria Lacerda foi professora da cadeira de pedagogia e higiene da Escola Normal Municipal da cidade de Barbacena. Foi também nessa escola que se formou, em 1904, e começou a atuar como professora, em 1908, ano em que também iniciou as atividades no Pedagogium, instituição anexa à Escola Normal. Igualmente nesse período participou da fundação da Liga Barbacenense de Combate ao Analfabetismo, sendo uma das suas principais colaboradoras. Além disso, sua atuação em Barbacena incluiu a fundação de um lactário5 5 Instituição de assistência à lactante pobre, a quem era feita a distribuição gratuita de leite. e de uma vila para abrigar pessoas pobres da cidade. Escreveu artigos sobre educação para os jornais locais e realizou palestras na região, o que possibilitou a composição do primeiro livro, Em torno da educação , publicado em 1918 ( Moura, 1918MOURA, Maria Lacerda de. Em torno da educação. São Paulo: Livraria Teixeira, 1918. ). Já em 1919, publicou seu segundo livro, Renovação ( Moura, 1919MOURA, Maria Lacerda de. Renovação. Belo Horizonte: Tipografia Athene, 1919. ), no qual ressignifica a educação da mulher naquele período histórico, demonstrando a importância de uma formação científica para aquela que seria a principal personagem na missão de educar a infância para a sociedade, seja na condição de mãe, seja na condição de professora.

Maria Lacerda foi atuante no espaço escolar e social de Barbacena. De formação espírita e anticlerical, destacava em seu discurso a opressão que mulheres e pessoas pobres sofriam em meio a uma população burguesa e católica existente em sua cidade. Naquele momento, demonstrava interesse em conscientizar esse público e esclarecê-lo sobre o importante papel que ele tinha na transformação da sociedade. Como é possível perceber, ela se colocava não somente como professora atuante na escola em que trabalhava, mas também como militante das minorias desfavorecidas da sociedade. De acordo com Miriam Lifchitz Moreira Leite (1984)LEITE, Miriam Lifchitz Moreira. Outra face do feminismo: Maria Lacerda de Moura. São Paulo: Ática, 1984. , suas ideias passaram a ser hostilizadas em Barbacena, sendo consideradas impróprias, sobretudo quando se direcionavam à defesa dos direitos da mulher, amparada nos ideais propostos pelo movimento feminista, mas também nas ações de cunho espírita e no discurso anticlerical.6 6 Filha de pai espírita e maçom, Maria Lacerda iniciou uma trajetória de combate à influência da Igreja católica sobre o ensino e as relações sociais na sua cidade, tornando-se assumidamente anticlerical. Foi nesse contexto que, em 1921, Maria Lacerda se mudou para São Paulo, lugar onde buscou encontrar maior espaço e apoio para os seus ideais, participando de movimentos feministas e sindicalistas diversos ( Leite, 1984LEITE, Miriam Lifchitz Moreira. Outra face do feminismo: Maria Lacerda de Moura. São Paulo: Ática, 1984. ). A afirmação da conquista desse espaço em São Paulo veio por meio dos vários convites que recebeu para realizar palestras, da veiculação de seus artigos em jornais e da publicação de livros sobre o assunto,7 7 Maria Lacerda publicou mais de 15 livros e diversos artigos e conferências. o que gerou um reconhecimento de sua atuação não só no Brasil, mas também em outros países, como Argentina, Uruguai e Espanha.8 8 Maria Lacerda realizou palestras na Argentina e Uruguai e teve sua literatura reconhecida na Espanha. Nesse momento, destacou-se também pelos seus ideais libertários, o que a levou a fixar moradia em uma comunidade anarquista em Guararema (SP), período durante o qual desenvolveu intensa produção intelectual.9 9 Em 1937, com o advento do Estado Novo, Maria Lacerda se refugiou em Barbacena. Novamente hostilizada na cidade, mudou-se para o Rio de Janeiro, onde viveu até sua morte, em 1945, aos 57 anos de idade.

Apesar de ter tido significativa atuação na cidade de Barbacena, sobretudo no que diz respeito à educação da infância, não há estudos que explorem essa fase da vida da educadora. Quase toda a produção existente sobre Maria Lacerda explora o período de sua vivência em São Paulo, especificamente sua condição de feminista e anarquista ( Guimarães, 2016GUIMARÃES, Paula Cristina David. Maria Lacerda de Moura e o estudo científico da infância em Minas Gerais, 1908-1921. Tese (Doutorado em Educação) – Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2016. ). Sobressaem, nesse sentido, os estudos de gênero, seguidos dos estudos sociais e políticos sobre Maria Lacerda, como os de Leite (1984)LEITE, Miriam Lifchitz Moreira. Outra face do feminismo: Maria Lacerda de Moura. São Paulo: Ática, 1984. , Rago (2012)RAGO, L. Margareth. Entre o feminismo e o anarquismo: Maria Lacerda de Moura e Luce Fabbri. Verve, v.21, p.54-77, 2012. , Richter (1998)RICHTER, Liane Peters. Emancipação feminina e moral libertária: Emma Goldman e Maria Lacerda de Moura. Dissertação (Mestrado em História) – Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 1998. , Miranda (2006)MIRANDA, Jussara Valéria de. “Recuso-me”! Ditos e escritos de Maria Lacerda de Moura. Dissertação (Mestrado em História) – Universidade Federal de Uberlândia, Uberlândia, 2006. , Pacheco (2010)PACHECO, Joice Oliveira. O pensamento de Maria Lacerda de Moura sobre a emancipação feminina: contribuições e desafios para a educação contemporânea. Dissertação (Mestrado em Educação) – Universidade do Vale dos Sinos, São Leopoldo, 2010. , Souza (2009)SOUZA, Tatiana de. Tecnologias políticas do gênero no Brasil: a contribuição do pensamento de Maria Lacerda de Moura. Dissertação (Mestrado em Tecnologia e Sociedade) – Universidade Tecnológica Federal do Paraná, Curitiba, 2009. , Mendes (2010)MENDES, Samanta Colhado. As mulheres anarquistas na cidade de São Paulo, 1889-1930. Dissertação (Mestrado em História e Serviço Social) – Universidade Paulista Júlio de Mesquita Filho, Franca, 2010. , Dias (1999)DIAS, Maria Aparecida Lima. O espírito da educação: Maria Lacerda de Moura (1918-1935). Dissertação (Mestrado em Educação) – Universidade de São Paulo, São Paulo, 1999. e Ferreira (2012)FERREIRA, Denise Cristina. Educação e sociedade: lições pedagógicas de Maria Lacerda de Moura (1889-1945). Dissertação (Mestrado em Ciências Sociais) – Universidade Federal de Campina Grande, Campina Grande, 2012. .

O projeto de estudo científico da criança de Maria Lacerda de Moura: a psicologia experimental em questão

Convencida de que Vossa Excelência está na altura de compreender o meu projeto – estou certa de que me auxiliará no estudo científico da criança patrícia. É possível que caiba a Minas a primazia da ideia – se eu conseguir o que desejo ( Moura, maio 1919MOURA, Maria Lacerda de. Requerimento. Fundo da Instrução Pública de Minas Gerais (Arquivo Público Mineiro, Belo Horizonte). maio 1919. ).

Escrever para o órgão máximo de gestão e fiscalização da educação do estado requerendo licença para realizar experimentos recém-divulgados por estudiosos de outros países não era ação comum para uma professora normalista do interior de Minas Gerais no início do século XX. Ao contrário, para essas educadoras cabia, na maioria das vezes, somente o papel de seguir o que indicava a legislação educacional e o que direcionavam os inspetores regionais do ensino em suas visitas de fiscalização às instituições escolares.10 10 É preciso esclarecer que, assim como Maria Lacerda, outras professoras se destacaram como intelectuais em finais do século XIX e início do XX, como foi o caso de Maria Guilhermina, estudada por Chamon (2005) , e Júlia Lopes, estudada por Vidal (2004) . Ainda assim, nesses estudos, essas mulheres são tratadas como sujeitos “singulares” de seu tempo, que se destacaram por uma atuação diferenciada. Apesar de inesperado, entretanto, tal fato aconteceu com uma professora de escola normal da cidade de Barbacena, em 1919.

Na época, Maria Lacerda, com 32 anos de idade, atuando havia 11 anos na Escola Normal Municipal de Barbacena, escreveu um requerimento direcionado à Secretaria do Interior do Estado de Minas Gerais, mais especificamente ao diretor da Instrução, pedindo permissão para realizar experiências de psicologia experimental com as crianças das escolas de sua cidade.

Como órgão deliberativo do governo do estado de Minas Gerais, inclusive no setor educacional, a Secretaria do Interior teria o papel de analisar tal pedido e emitir um parecer sobre a solicitação de Maria Lacerda, autorizando ou não a execução do seu projeto. Contudo, algo que nos parece ser de simples definição se tornou alvo de uma produção discursiva diversa dentro da secretaria, gerando divergências entre os pareceres emitidos sobre a inserção da psicologia experimental nas escolas de Minas Gerais.

Nesse sentido, tanto o requerimento como os pareceres emitidos se tornam importantes chaves de leitura a respeito da inserção da psicologia experimental nas escolas do estado, bem como sobre a sua recepção pelo governo mineiro. Além disso, demonstram que o estado não era monolítico, mas, sim, permeado por relações de poder, advindas de discursos de autores e de espaços diferentes ( Foucault, 2009FOUCAULT, Michel. A ordem do discurso: aula inaugural no Collège de France pronunciada em 2 de dezembro 1970. São Paulo: Loyola, 2009. ).11 11 Diferentemente da análise marxista, que vê o poder de forma maciça, de dominação de uma classe sobre a outra, Foucault mostra a existência das relações múltiplas de poder, que funcionam como redes.

No dia 23 de maio de 1919, chegou à Secretaria do Interior do Estado de Minas Gerais um manuscrito com letra legível e bem desenhada escrito pela professora; o documento consiste em apenas uma lauda pautada, que traz um texto breve, porém claro e formal para o trato com a autoridade a quem era dirigido, o secretário do Interior de Minas Gerais, Afonso Penna Junior ( Moura, maio 1919MOURA, Maria Lacerda de. Requerimento. Fundo da Instrução Pública de Minas Gerais (Arquivo Público Mineiro, Belo Horizonte). maio 1919. ). Tal texto busca destacar, sobretudo, o objetivo da professora mineira naquele requerimento, assim como as justificativas para que fosse aceito.

No requerimento, Maria Lacerda pedia para realizar experiências de psicologia experimental aplicada à pedagogia nas escolas da cidade de Barbacena. Para isso, solicitava o tempo máximo de três horas semanais com as crianças que estudavam no Grupo Escolar de Barbacena, na Escola Normal Municipal,12 12 A Escola Normal Municipal de Barbacena mantinha em seu prédio classes anexas de ensino primário. nas escolas isoladas existentes na cidade,13 13 Não há informações, no requerimento, sobre quais seriam essas escolas isoladas. e no Colégio Imaculada Conceição.14 14 Instituição educacional católica da cidade de Barbacena.

Para justificar seu pedido, a proponente evidenciou, em sua escrita, o pioneirismo do seu projeto. Afirmava que procuraria “trazer luzes para o magno problema nada explorado no Brasil, ... não me consta que, aqui, alguém tenha feito um estudo experimental” ( Moura, maio 1919MOURA, Maria Lacerda de. Requerimento. Fundo da Instrução Pública de Minas Gerais (Arquivo Público Mineiro, Belo Horizonte). maio 1919. ). Tal justificativa se repetia ao final do requerimento, quando, mais uma vez, a professora creditava a si a primazia da ideia: “Convencida de que V. Excelência está na altura de compreender o meu projeto, – estou certa de que me auxiliará no estudo científico da criança patrícia. É possível que caiba a Minas a primazia da ideia se eu conseguir o que desejo” ( Moura, maio 1919MOURA, Maria Lacerda de. Requerimento. Fundo da Instrução Pública de Minas Gerais (Arquivo Público Mineiro, Belo Horizonte). maio 1919. ).

Ainda com o interesse de justificar a realização do que chamou de “projeto de estudo científico da criança”, Maria Lacerda destacava em seu requerimento o nome de alguns estudiosos que, segundo ela, seriam os “responsáveis por construir as bases da educação do futuro” e referências para o trabalho que pretendia desenvolver. Cita Binet, Simon, Claparède, Mosso, Sikorski, Godin, Hall e mademoiselle Yoteiko ( Moura, maio 1919MOURA, Maria Lacerda de. Requerimento. Fundo da Instrução Pública de Minas Gerais (Arquivo Público Mineiro, Belo Horizonte). maio 1919. ).

Ao apresentar esse conjunto de autores, a professora demonstrava ter conhecimentos sobre os estudos e produções mais recentes a respeito das pesquisas experimentais, sobretudo da psicologia aplicada à infância em seu processo de educação. Alfred Binet (1857-1911), por exemplo, foi o responsável por desenvolver pesquisas sobre o funcionamento das funções psicológicas superiores e sobre as diferenças individuais na inteligência e nos estilos de pensamento das crianças. Já Théodore Simon (1872-1961) ficou conhecido por sua colaboração com Alfred Binet na construção da primeira escala de medida de inteligência, em 1905. Édouard Claparède (1873-1940), por sua vez, ficou conhecido pelos estudos que realizou sobre o desenvolvimento infantil, sendo considerado o pioneiro nas investigações da psicologia da criança na Suíça. Granville Stanley Hall (1844-1924), também citado pela professora, foi um dos principais responsáveis pela inserção da infância como objeto dos estudos científicos nos EUA, ainda no final do século XIX. Outros nomes citados por Maria Lacerda, apesar de pouco conhecidos atualmente, também estão ligados aos estudos da fisiologia e da psicologia aplicadas à infância. Angelo Mosso (1846-1910), por exemplo, médico italiano que se interessou pelos estudos experimentais dos fenômenos fisiológicos, desenvolveu estudos sobre a fadiga que influenciaram muitas das posteriores análises sobre a fadiga escolar. Já Paul Godin (1857-1935), médico militar francês, foi o fundador da ciência do crescimento da criança, tendo também sido professor no Instituto Jean-Jacques Rousseau, em Genebra, entre 1912 e 1924. Sikorsky (1842-1919), psiquiatra alemão e professor na Universidade de Kiev, dedicou-se aos estudos sobre a patologia mental em crianças, tendo fundado uma instituição para crianças com “retardo mental”. Por fim, mademoiselle Yoteyko, que, segundo a própria Maria Lacerda, desenvolvia diversos estudos sobre fadiga, na Bélgica.

Também é importante observar no requerimento que, mesmo se propondo a realizar um estudo quantitativamente significativo, envolvendo crianças dos mais diferentes espaços escolares da cidade, a professora manteve certa cautela ao estipular um tempo de três horas semanais com a alternância entre as turmas a serem trabalhadas. Isso fica evidente quando utiliza a expressão “no máximo” para se referir ao tempo em que atuaria nas escolas, e quando evidencia que procuraria “não prejudicar o ensino”. Tais ressalvas denotam que, naquele período, aquele tipo de experimentação não era comum em Minas Gerais e, consequentemente, não seria algo de fácil aceitação pelo estado.

Outro aspecto observado e analisado no requerimento é o pioneirismo que Maria Lacerda credita ao seu projeto em Minas Gerais, e até mesmo no Brasil. Contudo, nos estados de São Paulo e Rio de Janeiro já existiam trabalhos sobre as questões da psicologia experimental aplicada à pedagogia, especificamente na Escola Normal da Praça e no Pedagogium, respectivamente.15 15 A Escola Normal da Praça, de São Paulo, teve o trabalho de Clemente Quaglio, que, a partir de 1914, esteve à frente de estudos e experimentos de cunho psicológicos com os alunos das classes anexas. Maria Lacerda, entretanto, parece desconhecer ou até mesmo ignorar tais ações de forma a sustentar o seu pioneirismo. É possível pensar que isso pode ter sido utilizado como uma estratégia discursiva para dar visibilidade ao seu trabalho perante a Secretaria do Interior, já que é pouco provável que ela desconhecesse os trabalhos desenvolvidos por Quaglio e Bomfim no Brasil.

Como o requerimento é breve, não foi possível identificar nele os experimentos que Maria Lacerda pretendia realizar. Contudo, com a chegada desse documento à Secretaria do Interior e com toda a produção discursiva gerada por ele, alguns desses experimentos ficaram mais visíveis.

Os pareceres sobre o requerimento: desconfianças sobre a psicologia experimental e sobre a atuação de uma mulher no campo da pesquisa educacional

Logo que o requerimento de Maria Lacerda chegou à Secretaria do Interior do Estado de Minas Gerais, em maio de 1919, pareceres sobre a sua solicitação começaram a ser emitidos dentro da instituição. Foram seis pareceres, produzidos ao longo do período de um ano e seis meses, nos quais são expostos motivos para a aceitação e para a negação da entrada da psicologia experimental nas escolas do estado mineiro.16 16 A Secretaria do Interior do Estado de Minas Gerais foi criada pela lei n.6, de 16 de outubro de 1891. Tinha como principais atribuições os negócios referentes à justiça, segurança, estatística, saúde pública, magistratura, instrução pública, eleições e leis. Além disso, cuidava das relações do estado de Minas Gerais com os governos dos outros estados e com o governo federal.

O primeiro parecer emitido foi em 28 de junho de 1919. Com pouco mais de uma lauda, era recomendado que as próprias diretorias das escolas onde a requerente pretendia realizar os seus estudos se manifestassem sobre o pedido, tendo liberdade para autorizar ou não os experimentos. O parecerista justifica sua posição tendo em vista que alguns dos estabelecimentos elencados por Maria Lacerda eram particulares e que, embora equiparados às escolas mantidas pelo estado e municípios com relação aos programas de ensino, regiam-se por estatutos especiais, muitos desses pertencentes a ordens religiosas. Assim, o governo não poderia “obrigá-los a receber pessoas estranhas a sua comunidade” ( Braz, 28 jun. 1919BRAZ, Antônio Braulio. Parecer sobre o requerimento de Maria Lacerda de Moura. Fundo da Instrução Pública de Minas Gerais (Arquivo Público Mineiro, Belo Horizonte). 28 jun. 1919. ). Só após uma possível aprovação dada por tais escolas é que o requerimento deveria ser encaminhado à Secretaria do Interior, com o simples objetivo de cientificar o estado sobre o trabalho que seria desenvolvido. No parecer em questão, não é mencionado o trabalho nas demais escolas em que a proponente pretendia aplicar seu projeto: escolas isoladas, Grupo Escolar e Escola Normal de Barbacena; apenas remete o texto à apreciação de outras instâncias, intituladas pelo parecerista de “5ª e 6ª Seção”17 17 A assinatura desse documento não é legível, o que impossibilitou a identificação do parecerista. da Secretaria do Interior.

Nas seções indicadas acima, um segundo parecer foi emitido, quase um mês após o primeiro, no dia 26 de julho de 1919. Nele, o parecerista responsável, Firmiano Pereira,18 18 Após ampla pesquisa no Arquivo Público Mineiro, no Dicionário histórico biográfico da Primeira República em Minas Gerais e em sites de busca, não foram encontradas informações sobre o parecerista Firmiano Pereira. destaca a “ingenuidade” do pedido, que deveria ser prontamente atendido, até mesmo com relação às escolas equiparadas, por se tratar de um trabalho necessário e a ser realizado por uma professora reconhecidamente competente.

É tão inocente o pedido que faz Dona Maria Lacerda de Moura, que não vemos motivo para a secretaria criar-lhe embaraços até mesmo nos colégios equiparados; pelo contrário, tratando-se, como se trata, de uma observação útil e gratuita e, demais, a ser feita por uma senhora de inteligência culta e inteiramente devotada às causas do ensino entre nós, parece-nos que o governo deve até interessar-se pelos estudos que ela pretende fazer ( Pereira, 26 jul. 1919PEREIRA, Firmiano. Parecer sobre o requerimento de Maria Lacerda de Moura. Fundo da Instrução Pública de Minas Gerais (Arquivo Público Mineiro, Belo Horizonte). 26 jul. 1919. ).

Cabe observar que alguns termos usados pelo parecerista, como “inocente”, remetem a uma possível relação de gênero na qual a mulher, figura de pouca inserção política e social, não traria prejuízos à educação e à escola, local onde tinha destaque em seu papel maternal.

Apesar de o primeiro e o segundo pareceres não demonstrarem resistência ao pedido de Maria Lacerda, no dia 3 de outubro de 1919, o diretor da Instrução emitiu um terceiro parecer, no qual solicitava que, sobre o assunto, se manifestasse o inspetor regional do ensino, responsável pela fiscalização da zona a que pertencia o município de Barbacena, onde atuava a requerente. “Sobre esse pedido parece que se deve ouvir o Sr. Inspetor Regional, pois só ele poderá dizer se há inconveniente para o ensino no deferimento desse pedido”. Assim, no dia 30 de dezembro, foi encaminhado ao inspetor regional Alceu de Souza Novaes,19 19 Alceu de Souza Novaes (1886-1962) nasceu em Uberaba (MG) e atuou na Secretaria do Interior desse estado como inspetor regional de ensino. Interessa ressaltar que Novaes era espírita, assim como Maria Lacerda, e esteve à frente da associação espírita de Uberaba. o pedido para que fizesse um relatório sobre o requerimento da professora.20 20 De acordo com Gonçalves (2004) , o inspetor se traduzia na figura do profissional remunerado que, como previsto na reforma de 1899, era um agente de confiança do governo, encarregado da fiscalização das escolas e, sobretudo, investido de poderes e atribuições que faziam dele um elo entre as escolas isoladas e o governo do estado.

Atendendo prontamente à solicitação da Secretaria do Interior, o inspetor regional entregou seu relatório 27 dias depois de o pedido ter sido realizado. Foi no dia 27 de janeiro de 1920 que chegou à 6ª Seção da Secretaria do Interior o documento com 12 laudas manuscritas, em que se esclarece, de forma minuciosa, sobre os experimentos científicos e sua possível aplicação nas escolas. Também, no documento, é traçada a trajetória e a capacidade intelectual da professora Maria Lacerda e, por fim, são apresentadas as possiblidades de realização do projeto.

Alceu de Souza Novaes inicia seu relatório manifestando entusiasmo e satisfação pelo pedido da professora, “que representa a primeira tentativa, em Minas, no terreno de tais investigações que deram, entretanto, origem às grandes modificações por que passou a escola moderna” ( Novaes, 27 jan. 1920NOVAES, Alceu de Souza. Parecer sobre o requerimento de Maria Lacerda de Moura. Fundo da Instrução Pública de Minas Gerais (Arquivo Público Mineiro, Belo Horizonte). 27 jan. 1920. , p.5).

Apenas o grande estado de São Paulo se preocupou, no Brasil, com as experiências que põem à luz fatos mais importantes da instrução – isto é, o aluno. Os dois outros fatores: o que se ensina (programas) e como se ensina (métodos) estão necessariamente subordinados ao primeiro: a quem se ensina ( Novaes, 27 jan. 1920NOVAES, Alceu de Souza. Parecer sobre o requerimento de Maria Lacerda de Moura. Fundo da Instrução Pública de Minas Gerais (Arquivo Público Mineiro, Belo Horizonte). 27 jan. 1920. , p.5).

O inspetor não deixou claro em sua escrita, mas ele se referia à experiência de Qualio, na Escola Normal da Praça. Nesse caso, pode-se inferir que o próprio Alceu Novaes comparou o projeto de Maria Lacerda com as experiências desenvolvidas em São Paulo, o que indica que a professora não estaria propondo um trabalho diferenciado em relação às experiências de psicologia aplicada à educação.

Credita valor à proposta de Maria Lacerda ao propor conhecer melhor os alunos das escolas mineiras por meio dos experimentos. Para Novaes (27 jan. 1920NOVAES, Alceu de Souza. Parecer sobre o requerimento de Maria Lacerda de Moura. Fundo da Instrução Pública de Minas Gerais (Arquivo Público Mineiro, Belo Horizonte). 27 jan. 1920. , p.6), “as causas de ficarem certos alunos presos indefinidamente nas classes primárias” eram muitas, e podiam, quase todas, ser observadas e reconhecidas “pelo professor inteligente, dedicado e estudioso”. Para ele, a base desses professores seria as experiências e os estudos já realizados nas escolas públicas “por sábios de grande renome e que deram resultados tão excelentes para a pedagogia, conformando seus métodos e processos com o modo de ser de cada aluno” (p.7).

Novaes (27 jan. 1920)NOVAES, Alceu de Souza. Parecer sobre o requerimento de Maria Lacerda de Moura. Fundo da Instrução Pública de Minas Gerais (Arquivo Público Mineiro, Belo Horizonte). 27 jan. 1920. , nas páginas 7 e 8 do seu relatório, destacava que grande parte desses problemas, que considerava a causa do atraso de certos alunos, poderia ser “facilmente removível e alterável”, desde que identificada rapidamente pelo professor. Como exemplo, cita a “miopia”, a “surdez parcial”, as “vegetações adenoides”, o “não funcionamento das glândulas de secreções internas”, “anemia”, a “deficiência de alimentação” e os “trabalhos exaustivos (nas classes pobres)”, causas fundadas nos estudos fisiológicos da época. Apesar de tal afirmação, o inspetor não esclarece a quem caberia a “remoção” ou “alteração” desses “problemas”.21 21 Nesse caso, não seria suficiente pensar somente em médicos e suas diversas especialidades na resolução dos problemas de ordem fisiológicas, mas também em agentes ou instituições capazes de intervir na realidade social desse aluno, tendo em vista que a sua rotina de trabalho também poderia interferir negativamente na sua escolarização.

A base dos exemplos dados pelo inspetor era os estudos de Binet, sobretudo aqueles que mostravam a influência de problemas de ordem fisiológica na ação de um indivíduo.

Segundo Gouvea (2008)GOUVEA, Maria Cristina Soares. Discursos, saberes e poder: estudo de escritas de professores e especialistas nas revistas educacionais portuguesas, 1880-1900. Revista Portuguesa de Educação, v.21, n.2, p.91-114, 2008. e Guimarães (2011)GUIMARÃES, Paula Cristina David. O discurso médico sobre a educação da infância pobre veiculado pela Revista do Ensino de Minas Gerais, 1925-1930. Cadernos de História da Educação, v.10, n.2, p.303-314, 2011. , a fisiologia ocupou um lugar de destaque nas ciências da educação, sendo o saber médico – juntamente com o higienismo e a antropometria – eleito para determinar as condições de desenvolvimento da criança, alterando-se a percepção da análise dos processos de desenvolvimento humano e de organização do campo pedagógico.

Para não cometer erros, os professores deveriam conhecer os períodos de crescimento e formação de seus alunos, que, segundo Novaes (27 jan. 1920)NOVAES, Alceu de Souza. Parecer sobre o requerimento de Maria Lacerda de Moura. Fundo da Instrução Pública de Minas Gerais (Arquivo Público Mineiro, Belo Horizonte). 27 jan. 1920. , eram classificados em crises: “crise de nascimento”, “crise da entrada para a escola” e “crise da puberdade”.22 22 As crises mencionadas pelo inspetor regional remetem aos estudos desenvolvidos por Stanley Hall, nos EUA, embora essa informação não esteja explícita no relatório. Para ele, essas “crises” influenciavam poderosamente as crianças em seu processo de educação, “enfraquecendo-lhes as faculdades de aprender, pois que todas as forças do organismo são violentamente solicitadas para o seu reparo necessário” (p.8).

É necessário observar que a primeira parte do texto revela que, nesse período, a conformação de uma escola centrada no aluno, em seu processo de desenvolvimento, dava-se a partir de um referencial da fisiologia. Ao mesmo tempo, o inspetor evidenciava que reconhecia o trabalho de Maria Lacerda enquanto tentativa pioneira, em Minas Gerais, de realização de estudos da psicologia experimental aplicada à educação. Citava, no entanto, a existência de outra experiência desse tipo no estado de São Paulo, possivelmente na Escola Normal da Praça.

Também é possível observar que o inspetor atribuía aos professores um papel de confiança diante do trabalho com tais experimentos: o de diagnosticar possíveis problemas de seus alunos, incluindo os de ordem fisiológica. Esclarecia, porém, que, para que isso acontecesse, o interesse do professor em conhecer os estudos sobre o assunto seria primordial.

A segunda parte do relatório se volta para o esclarecimento das experiências possíveis de ser realizadas por Maria Lacerda. O inspetor declarava que as experiências sobre os “sentidos” seriam as de mais fácil execução e as que trariam melhores resultados para o processo educacional a partir do momento em que direcionariam melhor organização das classes. Essas experiências estariam relacionadas, sobretudo, à visão e à audição, sentidos considerados essenciais para o processo educativo. O professor deveria realizar o exame dos órgãos visuais e auditivos dos alunos, sob o ponto de vista escolar, o que significava que tal experiência não seria absoluta, mas, sim, relativa àquele meio, ou seja, à sala de aula. Nesse caso, o professor deveria, por exemplo, escolher os lugares na sala de aula para os seus alunos em função da acuidade visual de cada um, que poderia ser medida pela escala optométrica de Binet. Nesse experimento, o aluno deveria ler corretamente três letras em sete possibilidades, escritas em caracteres de impressão colocados a cinco metros de distância. O aluno deveria ser colocado distante, sobre uma linha graduada, e ir se aproximando aos poucos, até que pudesse ler as três letras. Em seguida, media-se a distância, e a fórmula que deveria ser usada era a seguinte: V (acuidade visual) = d/D (distância média sobre distância normal). A indicação era que o professor fizesse a medição da acuidade visual do olho direito e depois a do esquerdo. Se a diferença não fosse grande, o que era comum, não haveria motivos para receios por parte do professor. Porém, se fosse “além de um certo limite”, a criança deveria ser encaminhada a um especialista.

Em relação ao exame da audição, Novaes (27 jan. 1920)NOVAES, Alceu de Souza. Parecer sobre o requerimento de Maria Lacerda de Moura. Fundo da Instrução Pública de Minas Gerais (Arquivo Público Mineiro, Belo Horizonte). 27 jan. 1920. destacava a facilidade e comodidade na sua realização pelo professor. Também amparado nos estudos de Binet, sugere o teste do relógio, cujo “tic-tac” deveria ser ouvido a certa distância pela criança. Outro recurso seria o ditado, que deveria ser executado pelo professor com diferentes variações de voz para que ele pudesse identificar quais alunos possuíam problemas na audição e colocá-los em carteiras mais à frente na sala de aula.

De acordo com Freitas (2005)FREITAS, Marcos Cezar de. Alunos rústicos, arcaicos e primitivos: o pensamento social no campo da educação. São Paulo: Cortez, 2005. , o objeto de estudo da nascente psicologia era o objeto de estudo da fisiologia, ou seja, o organismo e suas reações. Isso se deu porque os primeiros psicologistas experimentalistas eram fisiologistas por formação, como Wundt e Binet. Assim, seus primeiros estudos se voltaram, primeiramente, para as sensações, as percepções e atenção, para, depois, concluir sobre seus derivados: aprendizagem, motivação e influências sociais, denominadas funções mentais superiores.

Apesar de indicar experimentos e ações para ser realizados na sala de aula, o inspetor argumentava que a atuação do professor deveria ir muito além da reorganização dos alunos no espaço escolar. Ele deveria chamar atenção dos pais ou responsáveis daquelas crianças que tivessem miopia ou surdez mais severas, a fim de que fossem submetidas a tratamento médico conveniente.

Após discorrer sobre os experimentos ligados mais à fisiologia da criança, o inspetor regional se direcionou às análises das experiências sobre a inteligência e as aptidões. Para ele, tais experiências seriam menos positivas, pois traziam apenas os resultados das classes, ou “as verdades de médias”, em contraposição aos resultados individuais, ou “às verdades de aplicação individual”. Nesse caso, mais uma vez, os estudos realizados por Binet foram referência para Novaes (27 jan. 1920)NOVAES, Alceu de Souza. Parecer sobre o requerimento de Maria Lacerda de Moura. Fundo da Instrução Pública de Minas Gerais (Arquivo Público Mineiro, Belo Horizonte). 27 jan. 1920. , que apontava a “tabela com as médias normais”, como a mais indicada para calcular o grau de inteligência do aluno. O inspetor, contudo, alertava que seus resultados não poderiam ser tomados como verdade absoluta pelos professores, já que fatores diversos poderiam interferir na realização do teste, como, por exemplo, o maior ou menor costume do aluno de se submeter a esse tipo de avaliação. O aluno poderia apresentar atrasos de um, dois ou três anos, em relação à média normal estabelecida pela tabela. O atraso de três anos para mais, desde que não explicado por uma falta sensível de assiduidade às aulas, constituiria uma anormalidade e deveria merecer atenção do médico e, talvez, do governo, de quem se esperava determinação para a criação de classes especiais para a educação dos atrasados mentais.

Com relação às experiências sobre a inteligência, o inspetor eslcarecia que elas poderiam ser as mais simples, e que, ainda assim, deveriam ser realizadas pelo professor que tivesse grande poder de observação: “Um lápis e um pedaço de papel são os principais e quase únicos aparelhos necessários às experiências sobre a inteligência das crianças. Assim, a sua execução é possível e, dentro de certos limites, fácil: tal é o primeiro ponto” ( Novaes, 27 jan. 1920NOVAES, Alceu de Souza. Parecer sobre o requerimento de Maria Lacerda de Moura. Fundo da Instrução Pública de Minas Gerais (Arquivo Público Mineiro, Belo Horizonte). 27 jan. 1920. , p.9).

Ao finalizar a exemplificação dos experimentos, o inspetor deixava registrado em seu relatório o valor dos experimentos da psicologia aplicada à educação, sobretudo os relacionados à avaliação dos sentidos, pois seria por meio deles que o professor poderia organizar racionalmente as classes e solicitar o auxílio do médico especialista.

Ao analisar a segunda parte do relatório é interessante observar que o conhecimento que o inspetor possuía sobre as experiências da psicologia experimental aplicada à pedagogia era advindo do trabalho de Alfred Binet. Outra percepção diz respeito aos tipos de testes que Maria Lacerda poderia realizar: os ligados às questões da medição das capacidades fisiológicas do aluno (visão, audição etc.); e os ligados à medição da inteligência, que seriam os menos indicados pelo pouco preparo dos professores brasileiros. De acordo com Marcellos e Araújo (2011)MARCELLOS, Cintia Fernandes; ARAÚJO, Saulo de Freitas. A questão da consciência na psicologia de Wilhelm Wundt. Estudos e Pesquisas em Psicologia, v.11, n.1, p.311-332, 2011. , as pesquisas direcionadas às sensações (com relação a um conteúdo objetivo: luz, som etc.) e sentimentos mais simples (com relação a um conteúdo subjetivo: prazer, desprazer etc.) produziriam resultados sobre os processos psíquicos mais simples, chamados de “processos psicológicos elementares”, que envolviam pesquisas ligadas às sensações.23 23 Para o médico alemão Wilhelm Wundt (1832-1920), a psicologia seria um ramo das ciências naturais, devendo, assim, utilizar-se de seus métodos e experimentos, que consistiam na interferência proposital do pesquisador sobre o início, a duração e o modo de apresentação dos fenômenos investigados ( Araújo, 2009 ). Já as pesquisas centradas nas funções cognitivas, como a inteligência, produziriam resultados sobre os processos psicológicos superiores.

Na última parte de seu relatório, Novaes (27 jan. 1920NOVAES, Alceu de Souza. Parecer sobre o requerimento de Maria Lacerda de Moura. Fundo da Instrução Pública de Minas Gerais (Arquivo Público Mineiro, Belo Horizonte). 27 jan. 1920. , p.10) direcionava sua análise para a trajetória e atuação de Maria Lacerda na Escola Normal de Barbacena, a fim de verificar se a professora teria ou não condições para realizar os experimentos que propunha. Para tal análise, ele lança duas perguntas iniciais: “1ª) Teria a professora aptidão para fazer e dirigir tais experiências? 2ª) Até que ponto podem elas causar prejuízo às escolas públicas?”.

Buscando responder à primeira questão, Novaes (27 jan. 1920)NOVAES, Alceu de Souza. Parecer sobre o requerimento de Maria Lacerda de Moura. Fundo da Instrução Pública de Minas Gerais (Arquivo Público Mineiro, Belo Horizonte). 27 jan. 1920. esclarecia que Maria Lacerda possuía “um grande tato” e “conhecimentos claros de psicologia”, adquiridos pelos estudos das obras de Binet, Claparède e Pizzoli, “como de alguns outros sábios” que vinham pesquisando o assunto. Novaes afirmava que “Dona” Maria Lacerda detinha esse conhecimento, pois era uma “estudiosa”, “leitora constante” e “adorava o magistério”.

Destacava também a competência da professora em variados assuntos, que poderia ser verificada em suas publicações. Como vimos, até esse momento, Maria Lacerda havia lançado dois livros: Em torno da educação , em 1918, e Renovação , em 1919. O inspetor destacava que tais livros haviam sido muito bem recebidos pela imprensa e que a professora foi “entusiasticamente elogiada”. Destacava, também, a atuação da professora na Escola Normal de Barbacena, frisando que sua aula de pedagogia era “excelente” e que “suas alunas conheciam teoricamente as principais experiências, referidas principalmente por Claparède e Pizzoli” ( Novaes, 27 jan. 1920NOVAES, Alceu de Souza. Parecer sobre o requerimento de Maria Lacerda de Moura. Fundo da Instrução Pública de Minas Gerais (Arquivo Público Mineiro, Belo Horizonte). 27 jan. 1920. , p.10).

Com relação à segunda questão colocada pelo inspetor, sobre os possíveis prejuízos que tais testes poderiam trazer às escolas públicas, ele esclarece que seria indispensável que as experiências fossem circunscritas aos “casos clássicos”, como os expostos e exemplificados em seu relatório. Os modelos adotados deveriam ser aqueles “determinados pelos sábios”, sem que o desejo de investigar levasse a professora a se aventurar demais no “terreno pouco conhecido da psicologia” ( Novaes, 27 jan. 1920NOVAES, Alceu de Souza. Parecer sobre o requerimento de Maria Lacerda de Moura. Fundo da Instrução Pública de Minas Gerais (Arquivo Público Mineiro, Belo Horizonte). 27 jan. 1920. , p.10). De acordo com o inspetor, “isso poderia levá-la a conclusões errôneas” (p.10). Complementava a resposta afirmando que, no Brasil, não havia nenhum curso especial de psicologia e pedagogia, apenas curiosos e estudiosos conheciam um pouco do assunto. Esclarecia que o laboratório de São Paulo, único que possuía um gabinete de psicologia experimental, fora especialmente encomendado pelo governo paulista ao “sábio” Ugo Pizzoli, que dera aulas aos inspetores, diretores de grupos e professores de melhores notas. No entanto, apontava que os processos do “sábio italiano” eram demasiadamente complicados e exigiam aparelhamento tão sensível, “que é para temer que as suas experiências nem possam ser prosseguidas pelos alunos” (p.10).

Ao concluir, o inspetor destacava que as experiências permitidas à professora deveriam ser as mais positivas possíveis, visando ao conhecimento do desenvolvimento físico e dos sentidos das crianças, que seriam imprescindivelmente estudados nas suas relações com a inteligência. Algumas experiências sobre fenômenos como a memória e a atenção também poderiam ser permitidas, ao contrário das atividades sobre a inteligência, aptidões, fadiga, tempos de reação e sentimentos, que exigiriam conhecimentos mais amplos do que poderiam ter os brasileiros, “que fazem esse estudo por si sós”, estudos que eram, “mesmo entre os sábios”, objetos de controvérsia. Permitir esse tipo de estudo era, para o inspetor, transformar os alunos em cobaias: “Não pode o Estado permitir que se transformem as crianças das escolas públicas em indefesas cobaias do ensino” ( Novaes, 27 jan. 1920NOVAES, Alceu de Souza. Parecer sobre o requerimento de Maria Lacerda de Moura. Fundo da Instrução Pública de Minas Gerais (Arquivo Público Mineiro, Belo Horizonte). 27 jan. 1920. , p.10). Sobre o tempo de trabalho proposto pela professora, entre duas e três horas semanais, Novaes frisava sobre o prejuízo ao ensino que, de fato, iria existir, sobretudo nas escolas isoladas.24 24 Não é apresentada uma justificativa por parte do inspetor regional para tal afirmação. Apontava, contudo, que se as experiências não fossem feitas continuamente com os mesmos sujeitos e com as mesmas escolas, esse prejuízo não aconteceria. Para resolver tal situação, sugeria que Maria Lacerda “variasse” o campo de suas experiências, fazendo um rodízio entre as diferentes turmas e escolas a ser trabalhadas.

Ainda com relação à realização dos experimentos nas escolas, o inspetor aponta outra questão que deveria ser previamente considerada: a recepção dessa prática pelo estado de Minas Gerais. Para ele, esse seria um ponto “melindroso” do assunto, pois o povo mineiro teria o espírito “atrasado, rotineiro, misoneísta”.25 25 Aquele que tem horror ao povo.

Há um outro ponto melindroso do assunto e vem a ser o espírito atrasado, rotineiro, misoneísta do nosso povo, que porá obstáculos a tais experiências, como tem feito relativamente a todas as inovações, mesmo as melhores, como a leitura pela sentenciação, a ginástica, os cantos escolares etc. ( Novaes, 27 jan. 1920NOVAES, Alceu de Souza. Parecer sobre o requerimento de Maria Lacerda de Moura. Fundo da Instrução Pública de Minas Gerais (Arquivo Público Mineiro, Belo Horizonte). 27 jan. 1920. , p.10).

Contudo, a aceitação do pedido pelo inspetor ficou condicionada à frequência às aulas dos alunos nas escolas escolhidas para a realização das experiências. Assim, Maria Lacerda deveria atestar tal frequência por meio de comunicados regulares à Secretaria do Interior, além de comunicar, também, qualquer alteração importante nas classes com as quais estivesse trabalhando. Além disso, a professora deveria entrar em acordo com o diretor do grupo e com as professoras das escolas isoladas, buscando harmonia e consenso no trabalho a ser realizado. Ainda deveria escolher classes regidas por professoras capazes de se interessar pelas experiências que propunha, “professoras inteligentes e dedicadas, cujas observações sejam precisas para o bom êxito das mesmas experiências” ( Novaes, 27 jan. 1920NOVAES, Alceu de Souza. Parecer sobre o requerimento de Maria Lacerda de Moura. Fundo da Instrução Pública de Minas Gerais (Arquivo Público Mineiro, Belo Horizonte). 27 jan. 1920. , p.11).

Ao final do relatório, o inspetor sugere a autorização do projeto de Maria Lacerda, desde que todas as ressalvas apontadas fossem consideradas. Termina elogiando a inciativa da professora, considerada por ele inovadora e de grande importância.

Assim, se as experiências forem as mais simples e positivas de tipo clássico, se não se dirigirem sempre à mesma classe, para que os alunos não fiquem prejudicados em relação ao programa primário, se as experiências forem feitas para o desenvolvimento das futuras professoras e, finalmente, se a professora de Pedagogia entrar em combinação com o diretor do grupo e professoras das escolas isoladas, para a escolha do dia, hora e sujeitos para as experiências, penso que a autorização pedida por D. Maria Lacerda de Moura deve ser francamente concedida, e até mesmo elogiada a professora que, antes de qualquer outra, rompe com o tradicionalismo ronceiro e comodista das nossas escolas e procura fazer Pedagogia verdadeiramente científica ( Novaes, 27 jan. 1920NOVAES, Alceu de Souza. Parecer sobre o requerimento de Maria Lacerda de Moura. Fundo da Instrução Pública de Minas Gerais (Arquivo Público Mineiro, Belo Horizonte). 27 jan. 1920. , p.11).

A partir das informações da última parte do relatório é possível inferir que Maria Lacerda pode ter sido a pioneira, em Minas Gerais, na proposta de trabalho com as experiências de psicologia experimental aplicada à pedagogia nas escolas do estado. Isso porque o inspetor dá a entender que o conhecimento que ela possuía das questões da psicologia aplicada à educação não era comum para a população mineira naquele momento. Também fica marcado o fato de que os estudos da psicologia experimental aplicada à pedagogia eram pouco conhecidos e até mesmo rejeitados no estado naquele momento, talvez por ser um conhecimento ainda restrito ou pouco partilhado e, consequentemente, de valor pouco discutido. É nesse contexto que o inspetor valorizou a proposta de ação de Maria Lacerda, creditando-lhe a possibilidade de trazer a “prática” como complemento do ensino nas escolas normais, como forma de aplicação daquilo que era aprendido na teoria pelas normalistas. “Assim, a aplicação dos conhecimentos se impõe, como complemento do ensino de pedagogia, e diante do programa da matéria, outra não podia ser a atitude da professora” ( Novaes, 27 jan. 1920NOVAES, Alceu de Souza. Parecer sobre o requerimento de Maria Lacerda de Moura. Fundo da Instrução Pública de Minas Gerais (Arquivo Público Mineiro, Belo Horizonte). 27 jan. 1920. , p.12). Percebe-se que, para o inspetor, tal prática seria não somente permitida, mas obrigatória a todas as professoras.

A indicação de aprovação do pedido de Maria Lacerda, contudo, impunha limitações. Apesar de assegurar a sua boa atuação enquanto professora e estudiosa da psicologia, Novaes (27 jan. 1920)NOVAES, Alceu de Souza. Parecer sobre o requerimento de Maria Lacerda de Moura. Fundo da Instrução Pública de Minas Gerais (Arquivo Público Mineiro, Belo Horizonte). 27 jan. 1920. reduz o seu poder de ação àquelas experiências por ele julgadas “simples”, “seguras” e de “fácil” realização. Como o próprio inspetor mencionou havia, de sua parte, certa desconfiança com relação ao valor dos resultados de alguns testes, como, por exemplo, os de medição da inteligência. Outra condição estabelecida por Novaes – a manutenção da frequência escolar dos alunos que participariam dos experimentos – também revela certo cuidado na análise de uma questão que ainda se mostrava complexa à época, já que o problema da infrequência às aulas extrapolava as causas geradas na escola, envolvendo outras condições, como as de ordem social, impossíveis de ser resolvidas pela professora.26 26 Como demonstram muitos estudos no campo da história da educação, como os desenvolvidos por Faria Filho (2000) entre outros, a infrequência escolar – que já era um problema no século XIX – se manteve no início do século XX, o que dificultou a efetivação da instrução primária no período, se tornando alvo de ações de diferentes esferas da ordem pública.

Passados quatro dias da entrega do relatório do inspetor Alceu de Souza Novaes, um novo parecer é emitido sobre o requerimento de Maria Lacerda. Vindo da 5ª Seção, em 31 de janeiro de 1920, o parecer acrescenta mais uma restrição ao projeto: ser realizado somente nas escolas singulares.

A vista da presente informação, penso que pode ser atendido o pedido de fls.2, ‘relativamente à permissão para fazer a requerente, nas escolas singulares’, do município de Barbacena, as experiências de psicologia aplicada à pedagogia. Se assim o decidir V. Exca, dar-se-á conhecimento da decisão à requerente e ao Sr. Inspetor Escolar do Município, para os devidos fins ( SIEMG, 31 jan. 1920SIEMG, Secretaria do Interior do Estado de Minas Gerais. Parecer sobre o requerimento de Maria Lacerda de Moura. Fundo da Instrução Pública de Minas Gerais (Arquivo Público Mineiro, Belo Horizonte). 31 jan. 1920. ; destaques no original).

As escolas isoladas, singulares ou cadeiras primárias públicas de ensino, como foram chamadas, eram unidades não agrupadas, constituídas por um ou mais grupos de alunos, de idades variadas, sob a responsabilidade de um único docente. Elas podiam ser femininas, masculinas ou mistas e havia a possibilidade de subdivisão das turmas em classes, segundo o nível de instrução do público atendido ( Faria Filho, 2000FARIA FILHO, Luciano Mendes de. Dos pardieiros aos palácios: cultura escolar e urbana em Belo Horizonte na Primeira República. Passo Fundo: Editora UPF, 2000. ). Para a criação dessas escolas era preciso que um professor ou um grupo de moradores solicitasse ao governo a implantação de uma cadeira de instrução primária. No caso de Minas Gerais, a partir da promulgação da lei n.439, de 1906, para que uma escola isolada fosse instalada era obrigatório um número mínimo de 45 alunos para regiões urbanas e 40 para as rurais. É preciso analisar que o espaço autorizado para que Maria Lacerda realizasse suas experiências, as escolas isoladas/singulares, era herdeiro do modelo de educação de primeiras letras vigente no século XIX e que continuava a existir no Brasil mesmo após a implantação dos grupos escolares, considerados instituições superiores de organização para a instrução primária.27 27 É preciso lembrar que um dos objetivos, com a criação dos grupos escolares, era extinguir as escolas isoladas/singulares, consideradas modelos ineficientes de educação e de organização.

Apesar de a autorização ter sido concedida, mesmo de forma parcial, foram necessários mais dez meses para que a Secretaria do Interior do Estado de Minas Gerais se manifestasse definitivamente sobre o assunto. Isso se deu em um quinto parecer, que trazia, por sua vez, uma opinião contrária a do inspetor técnico.

Datado de novembro de 1920, o parecer, com autoria não identificada, apresenta-se em apenas duas laudas datilografadas. Nele foi transcrito, em letras de caixa alta, logo de início, uma frase creditada a William James: “Riscai dos vossos encargos de educadores contribuições à psicologia, observações psicológicas que devam ser feitas com método e cuja responsabilidade vos caiba”.28 28 William James (1842-1910) foi um dos fundadores da psicologia nos EUA. Apesar de ter defendido a efetivação da psicologia como ciência, James a considerava ainda incipiente nessa esfera, pois não possuía suficiente conhecimento para formular leis consistentes sobre a percepção, a sensação ou a natureza da consciência ( Araki, 2009 ).

O parecer chamava de “certos entusiastas da pedologia”29 29 Estudo da vida e desenvolvimento das crianças. ( SIEMG, nov. 1920SIEMG, Secretaria do Interior do Estado de Minas Gerais. Parecer sobre o requerimento de Maria Lacerda de Moura. Fundo da Instrução Pública de Minas Gerais (Arquivo Público Mineiro, Belo Horizonte). nov. 1920. , p.1) aqueles que estavam impondo, sob esta rubrica, “um fardo por demais pesado” aos professores. Mesmo reconhecendo a importância dos estudos da psicologia e das demais ciências voltadas para a compreensão do desenvolvimento da infância, frisava que as práticas que tais estudos direcionavam ao cotidiano escolar e, sobretudo, à atuação docente, não seriam as melhores. Esclarecia que existiam professores que teriam até mesmo um prazer todo especial no “encher formulários”, “registrar as suas observações”, “compilar estatísticas e calcular porcentagens”, mas que, ao final, seriam insignificantes os seus resultados. Enfatizava que os educadores deveriam figurar como simples leitores passivos de tais estudos, “desonerados de trazer subsídios à psicologia ... não arvoremos, pois, em dever imperioso a necessidade de se ocuparem os mestres com ela e nem tão pouco cuidemos de impor taxativamente esse estudo a quem, sem queda para psicólogo, venha ele servir de peso insuportável” ( SIEMG, nov. 1920SIEMG, Secretaria do Interior do Estado de Minas Gerais. Parecer sobre o requerimento de Maria Lacerda de Moura. Fundo da Instrução Pública de Minas Gerais (Arquivo Público Mineiro, Belo Horizonte). nov. 1920. , p.1).

Mais uma vez, em letras maiúsculas, foi transcrita uma fala, agora creditada ao “professor Münsterberg”: “A atitude de um educador em relação à criança deve ser viva e concreta. Opõe-se a ela a do psicólogo, que é abstrata e analítica”.30 30 O alemão Hugo Münsterberg (1863-1916)), médico formado em psicologia experimental no laboratório de Wundt, foi convidado por William James para trabalhar em Harvard, nos EUA. Pesquisou e escreveu sobre: hipnose, jogos de azar, detecção de mentiras, comunicação com os mortos, entre outros temas. Contribuiu para o crescimento da psicologia experimental no país. Interessou-se, entretanto, mais pela psicologia aplicada do que pela de laboratório. Nesse campo se voltou para a psicologia legal e industrial ( Goodwin, 2005 ). A ideia de coexistirem essas duas atitudes em um mesmo professor era considerada um grande conflito para a maioria dos profissionais da educação, e as consequências poderiam ser as piores possíveis, já que o professor poderia sentir a sua vocação “abalada”, dado o reconhecimento do seu papel “nulo” como psicólogo.

Outra análise realizada no parecer diz respeito à sobrecarga de trabalho dos professores, devendo ser considerado “inimigo da educação” qualquer um que “lhes deitasse o menor peso no seu já pesado fardo”.

Ora, uma consciência má agrava o peso de todos os fardos e eu sei que o estudo da criança, como o de outras partes da psicologia, tem lançado em mais de um peito inocente os desassossegos de uma consciência perturbada. Sentir-me-ia deveras feliz se estas palavras pudessem dissipar os escrúpulos de alguns de vós ( SIEMG, nov. 1920SIEMG, Secretaria do Interior do Estado de Minas Gerais. Parecer sobre o requerimento de Maria Lacerda de Moura. Fundo da Instrução Pública de Minas Gerais (Arquivo Público Mineiro, Belo Horizonte). nov. 1920. , p.2).

Ao final do parecer, a conclusão é incisiva: “o melhor educador pode ser um medíocre colaborador no estudo da criança, e o mais hábil psicólogo, um relíssimo educador. Nada de mais fácil verificação” ( SIEMG, nov. 1920SIEMG, Secretaria do Interior do Estado de Minas Gerais. Parecer sobre o requerimento de Maria Lacerda de Moura. Fundo da Instrução Pública de Minas Gerais (Arquivo Público Mineiro, Belo Horizonte). nov. 1920. , p.2).

Ao analisar o documento, percebe-se que o responsável pelo parecer também demonstrava certo conhecimento sobre o assunto em questão, pois dominava algumas críticas feitas à psicologia experimental já aplicada em outros países, como nos EUA, por exemplo.

Assim como fez o inspetor regional, ao colocar Binet como referência central em seu relatório, também o autor do quinto parecer buscou se apoiar em estudos de uma figura de destaque e de reconhecida autoridade da psicologia. Em ambos os casos, tal fato poderia conferir veracidade às análises realizadas, com o apoio de quem teria o estatuto para falar a verdade.

Para Foucault (1979)FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. Rio de Janeiro: Graal, 1979. , cada sociedade tem seu regime de verdade, sua política geral de verdade, isto é, os tipos de discursos que ela acolhe e faz funcionar como verdadeiros, os mecanismos e as instâncias que permitem distinguir os enunciados verdadeiros dos falsos, a maneira como se sancionam uns e outros; as técnicas e os procedimentos que são valorizados para a obtenção da verdade; o estatuto daqueles que têm o encargo de dizer o que funciona como verdadeiro.

A ‘verdade’ é centrada na forma do discurso científico e nas instituições que o produzem; está submetida a uma constante incitação econômica e política (necessidade de verdade tanto para a produção econômica, quanto para o poder político); é objeto, de várias formas, de uma imensa difusão e de um imenso consumo (circula nos aparelhos de educação ou de informação, cuja extensão no corpo social é relativamente grande); é produzida e transmitida sob o controle, não exclusivo, mas dominante, de alguns grandes aparelhos políticos ou econômicos (universidade, exército, meios de comunicação); enfim, é objeto de debate político e de confronto social (as lutas ideológicas) ( Foucault, 1979FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. Rio de Janeiro: Graal, 1979. , p.13; destaque no original).

Ao que tudo indica, o parecer contrário ao pedido se fez mais pelo conhecimento do que pelo desconhecimento do autor sobre as questões da psicologia aplicada à educação. Porém, tratava-se de um conhecimento diferenciado, no qual já se fazia uma crítica às práticas experimentais, vistas como geradoras de resultados superficiais e imediatos, que estavam aquém do entendimento do ser humano como uma entidade completa (socialmente, culturalmente etc.). Para James, referência principal utilizada pelo parecerista, uma experiência poderia se repetir, mas jamais iriam se repetir os mesmos pensamentos e sensações em sua consciência, pois ela é cumulativa e não contínua e está sempre em constante modificação.

Depois de quase um ano e meio de tramitação dentro da Secretaria do Interior de Minas Gerais e de passar por diferentes pareceres, o requerimento de Maria Lacerda foi autorizado, com restrições, pelo secretário do Interior, Afonso Penna Junior, no dia 9 de novembro de 1920. Contudo, Maria Lacerda não chegou a realizar o seu projeto, já que pouco depois se mudou para o estado de São Paulo, deixando a carreira docente e passando a se dedicar a lideranças de movimentos feministas e anarquistas.

Alguns estudos, como os de Leite (1984)LEITE, Miriam Lifchitz Moreira. Outra face do feminismo: Maria Lacerda de Moura. São Paulo: Ática, 1984. e Dias (1999)DIAS, Maria Aparecida Lima. O espírito da educação: Maria Lacerda de Moura (1918-1935). Dissertação (Mestrado em Educação) – Universidade de São Paulo, São Paulo, 1999. , apontam que Maria Lacerda deixou de lecionar em escolas oficiais por acreditar que tais instituições eram autoritárias e perpetuavam tradições e preconceitos contra os quais a professora lutava. É preciso sinalizar, entretanto, que tal afastamento pode ter acontecido, também, pela falta de retorno com relação à sua proposta de trabalho, sinalizada em um livro que publicou anos depois, já em São Paulo. Em Lições de pedagogia , de 1925, a professora menciona que escreveu à Secretaria do Interior um requerimento para realizar experiências de psicologia experimental nas escolas, mas que não obteve nenhuma resposta, o que lhe teria gerado um grande descrédito em relação à instituição.

Considerações finais

Desejaria imenso publicar este meu livro como uma série grande de enquetes e testes. Não me foi possível conseguir, para isso, ‘licença’ da Secretaria do Interior do Estado de Minas Gerais. Oficiei ao Secretário há anos, remeti o ofício por intermédio de um dos chefes de Seção da Secretaria, soube que o ofício já havia corrido algumas repartições e obtido informações favoráveis ao meu projeto de proceder a esses estudos experimentais nas escolas públicas primárias e normais de Minas Gerais e, ao final, perdeu-se o meu requerimento ou deixaram para ocasião mais oportuna... ou acharam de pouca importância ... e não obtive resposta alguma até hoje ( Moura, 1925MOURA, Maria Lacerda de. Lições de pedagogia. São Paulo: Paulista, 1925. ).

Apesar de ter pensado e proposto um estudo científico da criança em meio a um contexto de cidade do interior de Minas Gerais e de tradição católica, no qual sua condição de espírita, anticlerical e feminista era considerada inadequada para a sua condição de mulher e professora de escola normal, não se pode considerar Maria Lacerda uma mulher fora de seu tempo. Ao contrário, ela foi o espelho das questões da sua época, dos desafios pelos quais passaram os professores, as mulheres, a infância e os mais pobres no início do século XX. Imersa no tempo em que viveu, traduziu-se como uma intelectual engajada com as causas que presenciou e buscou atuar como uma espécie de bússola ao apontar caminhos para a melhoria da sociedade de seu tempo. Conhecer a história de Maria Lacerda de Moura, assim como conhecer as biografias de outras educadoras brasileiras, faz com que possamos compreender suas trajetórias e enfrentamentos ideológicos, políticos e sociais.

Mesmo não tendo tido uma formação institucional voltada especificamente para as ações que desenvolveu ao longo de sua trajetória como educadora, foi possível identificar experiências que possibilitaram o seu crescimento reflexivo, como o autodidatismo – ou a autoeducação, como gostava de chamar –, que pode ser considerado a principal chave de leitura para o entendimento da atuação de Maria Lacerda, sobretudo com relação ao seu projeto de estudo científico da criança.

O “projeto de estudo científico da criança” também pode ter sido impulsionado por um contexto diverso que marcou o final do século XIX e o início do XX, em que o cientificismo se colocava como condição de explicação e resolução dos problemas de ordem física e social.

O interesse pelos estudos científicos da infância se materializou no requerimento que escreveu à Secretaria do Interior do Estado de Minas Gerais, em 1919, que não pode ser entendido nem como o começo nem como o fim de seu projeto, mas como uma primeira tentativa de efetivar os estudos e pesquisas que pretendia desenvolver. Apesar de frustrada, essa tentativa pode expressar, por um lado, o interesse em ir além das atividades que vinha desenvolvendo no âmbito da Escola Normal de Barbacena, buscando assumir um lugar de pesquisadora e não apenas divulgadora de conhecimentos científicos sobre a infância; por outro, o seu engajamento com os desejos republicanos de efetivação de uma escola graduada, considerada a única organização possível para a efetiva educação de uma maior parte da população. Nesse sentido, podemos afirmar que a intenção de aplicação da psicologia experimental à pedagogia, naquele período histórico, estava mais ligada à busca por uma melhor organização da escola de massa, identificando as crianças com dificuldades e monitorando os efeitos das práticas de classificação e exclusão do aluno dentro dessa instituição.

O estudo científico sobre a criança, almejado por Maria Lacerda de Moura, ocorreria por meio de experiências seguras, baseadas em metodologias advindas das ciências naturais, tidas como as que trariam os resultados mais verdadeiros para o campo da educação. Nesse caso, o corpo da criança seria o ponto de partida. Sua fisiologia deveria ser investigada e relacionada com aspectos da inteligência e condutas emocionais e sociais. Assim, todas as dimensões do físico infantil deveriam ser observadas e medidas na escola. Tais experimentos só poderiam ser realizados dentro de uma nova configuração de escola, livre dos tradicionalismos que atrasavam o desenvolvimento da educação. Por sua vez, essa nova escola só se estabeleceria por meio de uma pedagogia científica, que se faria a partir da contribuição de diferentes campos do conhecimento científico, principalmente daqueles advindos da biologia e da nascente psicologia. Nesses, ganharam especial destaque a psicologia experimental e a higiene, a primeira traduzida pela investigação de um objeto acessível, controlável e quantificável ( Monarcha, 1999MONARCHA, Carlos. Escola Normal da Praça: o lado noturno das Luzes. Campinas: Editora da Unicamp, 1999. ), que determinava a relação entre corpo e mente.

É possível afirmar que o projeto de estudo científico da infância pensado e proposto por Maria Lacerda de Moura não teve a visibilidade tampouco o reconhecimento que a professora desejava. Até hoje, ele esteve esquecido, tanto pelo contexto da prática educacional do período em que a professora mineira atuou como pela historiografia da educação e da psicologia. Mesmo não tendo sido executado, tal projeto pode ser considerado uma das primeiras – senão a primeira – tentativas de inserção dos estudos de psicologia experimental nas escolas de Minas Gerais, revelando informações não somente a respeito de tais estudos científicos sobre a infância, mas principalmente, quanto ao contexto de recepção destes em um espaço e tempo pouco favoráveis à manifestação intelectual de uma mulher espírita, anticlerical e libertária.

Esse pioneirismo ao propor esse projeto em Minas Gerais, apontado por ela própria e pelo inspetor Alceu de Souza Novaes, reafirma não só o seu engajamento nas causas de sua época, mas também o desejo de conquista de um espaço como intelectual e pesquisadora da educação, um dos poucos autorizados à mulher naquele período.

O grande tempo de tramitação na Secretaria do Interior e os diferentes pareceres emitidos sobre o pedido de Maria Lacerda até o momento da sua aprovação – que, por sua vez, só se deu de forma parcial – indicam um cenário ainda incipiente de recepção da psicologia experimental em Minas Gerais. Isso pôde revelar, por um lado, as desconfianças quanto à implementação desse novo campo de pesquisa nos grupos escolares do estado; por outro, o receio de disponibilizar o acesso a essas instituições e o início desses experimentos em Minas Gerais a uma professora/mulher/espírita, ficando a autorização do seu trabalho restrita às escolas isoladas, consideradas precárias e indesejáveis no período ( Gouvea, 2015GOUVEA, Maria Cristina Soares. O projeto republicano de instrução e as escolas isoladas urbanas: entre a transitoriedade e a transparência (Belo Horizonte, 1906-1927). In: Congresso Brasileiro de História da Educação, 8., 2015, Maringá. Anais... Maringá: Universidade Federal de Maringá, 2015. Disponível em: http://www.8cbhe.com.br/. Acesso em: 28 dez. 2015.
http://www.8cbhe.com.br/...
).

Como visto, a resposta ao requerimento de Maria Lacerda se daria depois da sua partida para São Paulo e de sua desvinculação da escola normal em que trabalhou, o que pode ter contribuído para que a autorização não fosse enviada a Barbacena e, consequentemente, não chegasse ao seu conhecimento. Entretanto, mais do que a autorização, percebe-se que Maria Lacerda buscava um espaço de reconhecimento ao propor para Barbacena e Minas Gerais a realização de uma proposta de estudo e pesquisa reconhecida em outros países. Ao contrário disso, encontrou a burocracia, a demora e, no seu entender, até mesmo o desinteresse por parte do governo do estado na realização desses estudos nas escolas.

Se Maria Lacerda de Moura tem um lugar de reconhecimento como liderança feminista e anarquista, este artigo busca lançar luzes sobre a sua atuação como educadora, sobretudo, na proposição de um projeto de estudo científico sobre a infância. Por se tratar de uma mulher multifacetada e com uma significativa produção, é certo que muito ainda pode ser conhecido sobre essa figura fundamental para pensarmos o lugar da mulher educadora na sociedade ao longo do século XX.

AGRADECIMENTOS

O presente trabalho apresenta resultados de pesquisas financiadas pelo Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação (MCTI) e pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq).

REFERÊNCIAS

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NOTAS

  • 1
    Neste trabalho o projeto de Maria Lacerda de Moura é entendido como uma elaboração mais ampla, que envolve não só o requerimento que elaborou para solicitar a aplicação de experiências de psicologia nas escolas de Barbacena, mas todo o percurso de estudos e ações para esse fim.
  • 2
    As fontes desta pesquisa foram reunidas a partir da busca e seleção de documentos localizados em lugares e arquivos diversos: Arquivo Público Mineiro (APM), em Belo Horizonte; Arquivo Histórico Municipal Altair Savassi (Ahmas), em Barbacena; Arquivo Histórico da Escola Normal Municipal (Ahenm), em Barbacena; Centro de Documentação e Memória da Unesp (Cedem), em São Paulo; na Academia Barbacenense de Letras, em Barbacena, entre outros.
  • 3
    Em Minas Gerais, isso se deu nas décadas de 1920 e 1930, fruto da chamada Reforma Francisco Campos, que, dentro de suas várias determinações, criou a Escola de Aperfeiçoamento de Minas Gerais e seu Laboratório de Psicologia Experimental, dirigido por Antipoff.
  • 4
    Apesar de menos expressiva no que diz respeito à sua atuação, ainda é possível falar de uma terceira trajetória de Maria Lacerda, a do Rio de Janeiro, onde viveu os anos finais de sua vida de forma mais solitária e menos atuante.
  • 5
    Instituição de assistência à lactante pobre, a quem era feita a distribuição gratuita de leite.
  • 6
    Filha de pai espírita e maçom, Maria Lacerda iniciou uma trajetória de combate à influência da Igreja católica sobre o ensino e as relações sociais na sua cidade, tornando-se assumidamente anticlerical.
  • 7
    Maria Lacerda publicou mais de 15 livros e diversos artigos e conferências.
  • 8
    Maria Lacerda realizou palestras na Argentina e Uruguai e teve sua literatura reconhecida na Espanha.
  • 9
    Em 1937, com o advento do Estado Novo, Maria Lacerda se refugiou em Barbacena. Novamente hostilizada na cidade, mudou-se para o Rio de Janeiro, onde viveu até sua morte, em 1945, aos 57 anos de idade.
  • 10
    É preciso esclarecer que, assim como Maria Lacerda, outras professoras se destacaram como intelectuais em finais do século XIX e início do XX, como foi o caso de Maria Guilhermina, estudada por Chamon (2005)CHAMON, Carla Simone. Maria Guilhermina Loureiro de Andrade: a trajetória profissional de uma educadora, 1864-1914. Tese (Doutorado em Educação) – Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2005. , e Júlia Lopes, estudada por Vidal (2004)VIDAL, Diana Gonçalves. Júlia Lopes de Almeida e a educação brasileira no fim do século XIX: um estudo sobre o livro escolar ‘Contos infantis’. Revista Portuguesa de Educação, v.17, n.1, p.29-45, 2004. . Ainda assim, nesses estudos, essas mulheres são tratadas como sujeitos “singulares” de seu tempo, que se destacaram por uma atuação diferenciada.
  • 11
    Diferentemente da análise marxista, que vê o poder de forma maciça, de dominação de uma classe sobre a outra, Foucault mostra a existência das relações múltiplas de poder, que funcionam como redes.
  • 12
    A Escola Normal Municipal de Barbacena mantinha em seu prédio classes anexas de ensino primário.
  • 13
    Não há informações, no requerimento, sobre quais seriam essas escolas isoladas.
  • 14
    Instituição educacional católica da cidade de Barbacena.
  • 15
    A Escola Normal da Praça, de São Paulo, teve o trabalho de Clemente Quaglio, que, a partir de 1914, esteve à frente de estudos e experimentos de cunho psicológicos com os alunos das classes anexas.
  • 16
    A Secretaria do Interior do Estado de Minas Gerais foi criada pela lei n.6, de 16 de outubro de 1891. Tinha como principais atribuições os negócios referentes à justiça, segurança, estatística, saúde pública, magistratura, instrução pública, eleições e leis. Além disso, cuidava das relações do estado de Minas Gerais com os governos dos outros estados e com o governo federal.
  • 17
    A assinatura desse documento não é legível, o que impossibilitou a identificação do parecerista.
  • 18
    Após ampla pesquisa no Arquivo Público Mineiro, no Dicionário histórico biográfico da Primeira República em Minas Gerais e em sites de busca, não foram encontradas informações sobre o parecerista Firmiano Pereira.
  • 19
    Alceu de Souza Novaes (1886-1962) nasceu em Uberaba (MG) e atuou na Secretaria do Interior desse estado como inspetor regional de ensino. Interessa ressaltar que Novaes era espírita, assim como Maria Lacerda, e esteve à frente da associação espírita de Uberaba.
  • 20
    De acordo com Gonçalves (2004)GONÇALVES, Irlen Antônio. Cultura escolar: práticas e produção dos grupos escolares em Minas Gerais, 1891-1918. Tese (Doutorado em Educação) – Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2004. , o inspetor se traduzia na figura do profissional remunerado que, como previsto na reforma de 1899, era um agente de confiança do governo, encarregado da fiscalização das escolas e, sobretudo, investido de poderes e atribuições que faziam dele um elo entre as escolas isoladas e o governo do estado.
  • 21
    Nesse caso, não seria suficiente pensar somente em médicos e suas diversas especialidades na resolução dos problemas de ordem fisiológicas, mas também em agentes ou instituições capazes de intervir na realidade social desse aluno, tendo em vista que a sua rotina de trabalho também poderia interferir negativamente na sua escolarização.
  • 22
    As crises mencionadas pelo inspetor regional remetem aos estudos desenvolvidos por Stanley Hall, nos EUA, embora essa informação não esteja explícita no relatório.
  • 23
    Para o médico alemão Wilhelm Wundt (1832-1920), a psicologia seria um ramo das ciências naturais, devendo, assim, utilizar-se de seus métodos e experimentos, que consistiam na interferência proposital do pesquisador sobre o início, a duração e o modo de apresentação dos fenômenos investigados ( Araújo, 2009ARAÚJO, Saulo de Freitas. A ideia de uma psicologia científica em Wilhelm Wundt: uma visão panorâmica. Scientiae Studia, v.7, p.209-220, 2009. ).
  • 24
    Não é apresentada uma justificativa por parte do inspetor regional para tal afirmação.
  • 25
    Aquele que tem horror ao povo.
  • 26
    Como demonstram muitos estudos no campo da história da educação, como os desenvolvidos por Faria Filho (2000)FARIA FILHO, Luciano Mendes de. Dos pardieiros aos palácios: cultura escolar e urbana em Belo Horizonte na Primeira República. Passo Fundo: Editora UPF, 2000. entre outros, a infrequência escolar – que já era um problema no século XIX – se manteve no início do século XX, o que dificultou a efetivação da instrução primária no período, se tornando alvo de ações de diferentes esferas da ordem pública.
  • 27
    É preciso lembrar que um dos objetivos, com a criação dos grupos escolares, era extinguir as escolas isoladas/singulares, consideradas modelos ineficientes de educação e de organização.
  • 28
    William James (1842-1910) foi um dos fundadores da psicologia nos EUA. Apesar de ter defendido a efetivação da psicologia como ciência, James a considerava ainda incipiente nessa esfera, pois não possuía suficiente conhecimento para formular leis consistentes sobre a percepção, a sensação ou a natureza da consciência ( Araki, 2009ARAKI, Mauro Junji. Filosofia e psicologia em William James. Dissertação (Mestrado em Filosofia) – Universidade Federal de São Carlos, São Carlos, 2009. ).
  • 29
    Estudo da vida e desenvolvimento das crianças.
  • 30
    O alemão Hugo Münsterberg (1863-1916)), médico formado em psicologia experimental no laboratório de Wundt, foi convidado por William James para trabalhar em Harvard, nos EUA. Pesquisou e escreveu sobre: hipnose, jogos de azar, detecção de mentiras, comunicação com os mortos, entre outros temas. Contribuiu para o crescimento da psicologia experimental no país. Interessou-se, entretanto, mais pela psicologia aplicada do que pela de laboratório. Nesse campo se voltou para a psicologia legal e industrial ( Goodwin, 2005GOODWIN, C. James. História da psicologia moderna. Tradução Marta Rosa. São Paulo: Cultrix, 2005. ).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    15 Abr 2022
  • Data do Fascículo
    Jan-Mar 2022

Histórico

  • Recebido
    5 Maio 2020
  • Aceito
    5 Ago 2020
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