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Retratos do cotidiano em Manguinhos

Portraits of everyday activities at Manguinhos

Resumo

O texto aqui comentado reconstitui o cotidiano no Instituto Oswaldo Cruz no começo do século XX com base em depoimentos de antigos funcionários. “Os escravos são as mãos e os pés do senhor do engenho” – escreveu Antonil em 1711. Cada laboratório do instituto era como um pequeno engenho onde as mãos e os pés dos pesquisadores eram seus serventes, que executavam desde as tarefas mais desqualificadas até operações bem delicadas da pesquisa científica, atualmente confiadas a técnicos formados em escolas próprias. As habilidades dos primitivos técnicos, muitos recrutados ainda meninos nas oficinas da instituição, eram adquiridas empiricamente. O instituto era moderno por suas atividades, mas as relações de trabalho traziam as marcas de uma sociedade agrária e patriarcal, recém-egressa da escravidão.

Attílio Romulo Borriello (1905-?); Francisco José Rodrigues Gomes (1911-1991); Hamlet William Aor (1910-1986); José Cunha (1911-?); Venâncio Bonfim (1916-?)

Abstract

This text reconstructs everyday routines at the Oswaldo Cruz Institute in the early twentieth century based on statements from staff at that time. As Antonil wrote in 1711, “Slaves are the hands and feet of the sugar-mill owner.” The researchers’ assistants fulfilled a similar role in the laboratories; their work ranged from unskilled tasks to extremely delicate scientific research that today requires specialized training. These early technicians, many recruited as boys in the institution’s workshops, acquired their skills empirically. While the institute carried out modern activities, labor relations there still bore the marks of an agrarian and patriarchal society that had only recently abandoned slavery.

Attílio Romulo Borriello (1905-?); Francisco José Rodrigues Gomes (1911-1991); Hamlet William Aor (1910-1986); José Cunha (1911-?); Venâncio Bonfim (1916-?)

Apresentação à reimpressão do texto

Durante a administração de Sérgio Arouca (1985-1990), um dos líderes do movimento pela reforma sanitária que levou à criação do Sistema Único de Saúde (SUS), no âmbito da redemocratização do país, a Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) sofreu profunda reestruturação, sendo um de seus aspectos a criação da Casa de Oswaldo Cruz (COC), em 1986. Os primeiros historiadores e cientistas sociais por ela recrutados, 34 anos atrás, quase nada sabiam de saúde ou medicina experimental, temas com incidência residual nos currículos das faculdades que os tinham formado. Para entender esses mundos, suas primeiras letras foram, de um lado, livros e artigos escritos por médicos e cientistas sociais alinhados à medicina social.

Leitura obrigatória para nós era George Rosen, a princípio a coletânea Da polícia médica à medicina social , já em português, e História da saúde pública , só traduzido em 1994 ( Rosen, 1980ROSEN, George. Da polícia médica à medicina social. Rio de Janeiro: Graal, 1980. , 1994ROSEN, George. Uma história da saúde pública. São Paulo: Editora Unesp; Hucitec; Abrasco, 1994. ). Como bem mostrou Elizabeth Fee (1993)FEE, Elizabeth. Public health, past and present: a shared social vision. In: Rosen, George. A history of public health. Baltimore: Johns Hopkins University Press, 1993. p.IX-LXVII. , esse livro de 1958, síntese abrangente, mas completamente centrada na Europa e nos EUA, ajudou a definir por bom tempo as fronteiras do campo. Rosen era a ponta então mais visível de uma longa tradição, a dos médicos historiadores, ou melhor, uma vertente dela que florescera em instituições alemãs e norte-americanas. Tomando caminhos que guardam certa simetria com o movimento historiográfico da chamada escola dos Annales (em referência ao periódico Annales d’histoire économique et sociale ), médicos como Rosen, Henri Sigerist e Erwin Ackerknecht produziram trabalhos muito importantes sobre as relações entre medicina, doença e sociedade. Insurgindo-se contra as tendências capitalistas, liberais e privatizantes hegemônicas nos EUA, esses autores revigoraram as tradições mais combativas da medicina social, a de Rudolph Virchow (3 nov. 1848, p.127), por exemplo, para quem “a medicina é uma ciência social e a política nada mais é que a medicina em maior escala”. Virchow encarnava o tipo ideal do sanitarista engajado na luta por uma sociedade mais justa.

Na literatura produzida no Brasil em medicina social imperavam abordagens gramscianas ou althusserianas, segundo as quais médicos e cientistas tinham desempenhado, a partir de finais do século XIX, o papel de intelectuais orgânicos da burguesia emergente, contribuindo para a superação da velha ordem agrária e a produção de ideologias cientificistas que respaldavam a instauração do capitalismo (por exemplo, Luz, 1982LUZ, Madel Therezinha. Medicina e ordem política brasileira: políticas e instituições de saúde 1850-1930. Rio de Janeiro: Graal, 1982. , 1986LUZ, Madel Therezinha. Instituições médicas no Brasil: instituição e estratégia de hegemonia. Rio de Janeiro: Graal, 1986. ). Foucault, por sua vez, influenciava (e influencia ainda) fortemente os estudos sobre a história de políticas, instituições e sobretudo discursos concernentes à saúde, vistos como expressão de um biopoder ou formas de normalização de espaços, relações e comportamentos por um saber médico de conformação em geral imprecisa (remeto, entre outros, ao clássico de Machado et al., 1978MACHADO, Roberto et al. Danação da norma: medicina social e constituição da psiquiatria no Brasil. Rio de Janeiro: Graal, 1978. ).

Por outro lado, para compreender os campos científicos coexistentes na Fiocruz, nossa principal referência era o livro de Nancy Stepan publicado no Brasil em 1976: Gênese e evolução da ciência brasileira: Oswaldo Cruz e a política de investigação científica e médica . Stepan (1976)STEPAN, Nancy. Gênese e evolução da ciência brasileira: Oswaldo Cruz e a política de investigação científica e médica. Rio de Janeiro: Artenova, 1976. fizera, pela primeira vez, análise consistente da trajetória, até a Primeira Guerra Mundial, da instituição que havia desempenhado papel fundamental na saúde pública e nas ciências biomédicas do Brasil, e que por isso era sempre mencionada nos trabalhos então disponíveis sobre a história das ciências no país. O clássico era o livro de um sociólogo da Universidade de São Paulo (USP), Fernando de Azevedo (1955)AZEVEDO, Fernando de. As ciências no Brasil. v.1-2. São Paulo: Melhoramentos, 1955.: As ciências no Brasil . Partindo de análise weberiana das condições que haviam possibilitado o sucesso da ciência em países como os EUA, enfatizava esse autor seu atraso local. Atribuía isso à tradição católica ibérica e à política cultural obscurantista de Portugal em suas colônias. Segundo Azevedo, os empreendimentos científicos só começaram a florescer com o estabelecimento das universidades nos anos 1930.

Stepan apresentou o instituto criado em 1899 como exemplo da implantação da ciência num país periférico, dependente, de industrialização tardia. Em bela análise sobre a importância desse livro para a historiografia brasileira, Kropf e Hochman (2011KROPF, Simone Petraglia; HOCHMAN, Gilberto. From the beginnings: debates on the history of science in Brazil. Hispanic American Historical Review, v.91, n.3, p.391-408, 2011. , p.391-408) relacionam seu lançamento à política científica e tecnológica adotada por Geisel, o general que então presidia o país (1974-1979). Naqueles anos de forte valorização do planejamento estatal, concedia-se aos cientistas papel importante na formulação de políticas destinadas a superar o gap entre a ciência brasileira e a internacional, a big science do pós-guerra analisada por Derek John de Solla Price (1963)PRICE, Derek John de Solla. Little science, big science. New York: Columbia University Press, 1963. , uma das referências teóricas de Stepan.

Esta última analisava a bem-sucedida trajetória do Instituto Oswaldo Cruz (IOC) à luz de modelo eurocêntrico proposto por George Basalla (1967)BASALLA, George. The spread of western science. Science, v.156, n.3775, p.611-622, 1967. para explicar a difusão de ideias científicas a países não europeus, em que distinguia três fases: na primeira, inexistiam comunidades científicas locais, sendo as regiões ultramarinas investigadas por estrangeiros; na fase colonial, coletivos locais passaram a se dedicar à ciência, mas quase nada produziram de original, permanecendo dependentes da ciência forânea; na terceira fase, países autônomos adquiriam, enfim, a capacidade de produzir ciência original.

Essa ideia foi endossada por outro livro importante dos anos 1970, Formação da comunidade científica no Brasil , de Simon Schwartzman (1979)SCHWARTZMAN, Simon. Formação da comunidade científica no Brasil. São Paulo: Editora Nacional; Finep, 1979. . Com forte influência de Merton e Ben-David, enfatizava esse autor a fragilidade da ciência na periferia no tocante à continuidade, às contribuições originais e ao real impacto econômico e social até ser profissionalizada nas universidades. O livro baseou-se em entrevistas realizadas entre 1975 e 1978 para o projeto “História da ciência no Brasil”, sob a coordenação do próprio Schwartzman. As entrevistas encontram-se disponíveis para consulta no Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil ( CPDOC, 1984CPDOC. Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil. História da ciência no Brasil: acervo de depoimentos. Apresentação de Simon Schwartzman. Rio de Janeiro: Finep, 1984. ), na Fundação Getulio Vargas, no Rio de Janeiro.

Os estudos de Stepan e Schwartzman traziam em seu âmago questões prementes nos anos 1970: como planejar e consolidar a ciência em países em desenvolvimento? Como superar os obstáculos derivados de sua formação dependente?

No começo daquela década, foram defendidas as primeiras teses de doutoramento em história da ciência no Brasil, na USP: as de Shozo Motoyama e Maria Amélia Dantes, sobre dois temas clássicos da ciência europeia: Galileu Galilei e a medicina de Paracelso. Motoyama organizou em seguida, com o botânico Mário Guimarães Ferri, coletânea intitulada História das ciências no Brasil (1979-1980), da qual Dantes participou. Procurava ela mostrar que a ciência florescera aqui muito antes do que diziam os livros aqui mencionados, em ambientes como museus, jardins botânicos e institutos dedicados a pesquisas biológicas e agronômicas. Situando essas instituições em seus contextos histórico e social, o ensaio de Dantes (1979-1980) é considerado, com justa razão, um marco na renovação da história das ciências no Brasil.

Quando surgiu a Casa de Oswaldo Cruz, havia assim certa densidade nos estudos sobre a ciência, feitos sobretudo por sociólogos, estudos de caráter institucional, pouco atentos, ainda, à dinâmica de práticas e saberes em distintos campos, sabendo-se que saúde e medicina tinham importância pequena em comparação à física, à matemática e às engenharias. Dessas áreas proveio a maioria dos participantes do primeiro Seminário Nacional de História da Ciência e da Tecnologia realizado em 1986, mesmo ano da criação da Casa de Oswaldo Cruz. O seminário foi iniciativa da Sociedade Brasileira de História da Ciência, criada em 1983, um ano após a fundação da Sociedad Latinoamericana de Historia de las Ciencias y la Tecnologia, cujo periódico, Quipu , começou a circular em 1984.

Algumas ideias vinham fertilizando o campo na região: além da ênfase na natureza contextual das práticas científicas, uma dimensão política e nacionalista muito acentuada revestia o esforço para se demonstrar que pesquisa vigorosa acontecera em localizações “periféricas” tradicionalmente vistas como incompatíveis com a ciência.1 1 Silvia Figueirôa (1998) , docente do Instituto de Geociências da Universidade de Campinas, um dos centros pulsantes da história das ciências no país, publicou um dos primeiros inventários da produção latino-americana na área. Análise crítica muito interessante do viés nacionalista na historiografia sobre a história natural na região encontra-se em Duarte (2013) . Não há melhor leitmotiv para esse programa do que o título da tese de doutorado apresentada em 1989 ao departamento de história da Universidade de Columbia por nosso colega, o historiador peruano Marcos Cueto (1989)CUETO, Marcos. Excelencia cientifica en la periferia: actividades científicas e investigación biomédica em El Peru 1890-1950. Lima: Concytec, 1989. , discípulo de Stepan: Excelencia científica en la perifería .

Tal renovação estava articulada a mudanças no panorama internacional tanto da história da ciência como da historiografia em geral. A história da ciência foi por muito tempo marcada pela divisão entre internalismo e externalismo. A história internalista incursionava pelos conceitos, interessada em entender a gênese de teorias ou racionalidades científicas. Para a história externalista, a ciência articulava-se a sistemas e interesses sociais, a instituições e políticas, privilegiando ela os fatores que favoreciam ou dificultavam a vida dos praticantes da ciência, entendidos como categoria social, sem se preocupar muito com a natureza de suas práticas dentro dos laboratórios e em campo.

A mudança em curso na história das ciências nos anos 1980 e 1990 consistia justamente na proposição de fecundas alternativas àquela dicotomia. Já nos anos 1960, Thomas Kuhn rompera com ela ao analisar a estrutura das revoluções científicas, o que levaria, mais tarde, ao resgate do trabalho pioneiro, mais antigo, de Ludwick Fleck (1986)FLECK, Ludwik. La génesis y el desarrollo de un hecho científico: introducción a la teoría del estilo de pensamiento y del colectivo de pensamiento. Madrid: Alianza, 1986. .2 2 O livro de Kuhn (1970) foi publicado originalmente em 1962 como parte da International Encyclopoedia of Unified Science , editada por Otto Neurath e Rudolf Carnap. A segunda edição, como livro independente, é de 1970. O livro de Fleck, de 1935, no qual Kuhn se inspirou, teve a primeira edição em língua espanhola em 1986. Sobre a redescoberta de Fleck, ver Löwy (1994) . Enfatizaram ambos a atividade científica como prática sociocognitiva de coletivos que comungam de certos pressupostos ou estilos de pensamento no âmbito dos quais adquirem significado os fatos científicos. A chamada Escola de Edimburgo, com o programa forte de sociologia da ciência, os trabalhos inovadores de Bruno Latour e de variado naipe de autores construtivistas conduziram as ciências sociais para dentro dos laboratórios.

A primeira geração de historiadores da Casa de Oswaldo Cruz aproximou-se dessa literatura ao fazer suas pós-graduações nos anos 1990. Aquela concernente à medicina social pouco se comunicava com a história das ciências. Bebemos dessas águas no ocaso das histórias com ambições totalizantes, de cunho marxista ou estruturalista, que tinham moldado nossa formação universitária. A chamada nova história alargava consideravelmente o repertório de objetos, abordagens e fontes de pesquisa. Não apenas era desfeita a noção de que a ciência e a cultura latino-americanas foram simulacros ou passivos recipientes da ciência e cultura europeias e, depois, norte-americana, como se enfatizava o papel desempenhado por intelectuais e instituições da região em redes mais vastas, como coparticipantes do desbravamento de vários campos de conhecimento. A historiografia começou a revelar os contornos e relevos de redes formadas por cientistas e médicos, acompanhando ao mesmo tempo tendência da história social, inclusive da chamada micro-história, de reabilitar o papel de indivíduos na textura das relações sociais, de maneira a expor não apenas os constrangimentos como as contradições e brechas dos sistemas sociais normativos.3 3 Entre muitas publicações sobre o estado da arte na historiografia cito aquela organizada por Burke (1992) . Bom balanço das transformações em curso na história da saúde, nos anos 1990, encontra-se no prefácio de Fee (1993) à reedição em inglês do clássico de George Rosen, traduzido no ano seguinte para o português (sem o referido prefácio) com o título Uma história da saúde pública ( Rosen, 1994 ).

Quando foi criada a Casa de Oswaldo Cruz, havia na Fiocruz um pequeno museu dedicado ao patrono e documentação de grande valor para a história das ciências e da saúde nos mais inusitados desvãos da instituição. Um material nos atraiu de imediato: belíssimas fotografias produzidas no começo do século XX por expedições médicas enviadas ao interior do Brasil, que resultaram também em relatórios ricos em informações sobre a realidade social e sanitária das populações que lá viviam. As primeiras análises desses materiais constam em A ciência a caminho da roça ( Albuquerque et al., 1991ALBUQUERQUE, Marli Brito et al. A ciência a caminho da roça: imagens das expedições científicas do Instituto Oswaldo Cruz ao interior do Brasil entre 1911 e 1913. Rio de Janeiro: Casa de Oswaldo Cruz/Fiocruz, 1991. ), primeiro anel de um caule frondoso com estudos como os de Hochman (1998)HOCHMAN, Gilberto. A era do saneamento: as bases da política de saúde pública no Brasil. São Paulo: Hucitec; Anpocs, 1998. , Lima (1999)LIMA, Nísia T. Um sertão chamado Brasil. Rio de Janeiro: Revan; Iuperj, 1999. , Fonseca (2007)FONSECA, Cristina M. Oliveira. Saúde no governo Vargas (1930-1945): dualidade institucional de um bem público. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, 2007. e Kropf (2009)KROPF, Simone. Doença de Chagas, doença do Brasil: ciência, saúde e nação, 1909-1962. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, 2009. , referências para uma história da saúde pública atenta às relações entre estruturas econômico-sociais e de poder, políticas de Estado, instituições e profissões médicas.

Outro conjunto de fontes atraiu de imediato a atenção dos historiadores da Casa de Oswaldo Cruz. Belas fotografias da instituição desde os seus primórdios, a revelar a intenção de Oswaldo Cruz e sua equipe de documentar em detalhes a trajetória de um projeto que nascia com a ambição de marcar época. Os estudos feitos com essas e outras fontes dariam origem a outro caule frondoso, com vários trabalhos sobre instituições e personagens ligados à história das medicinas pasteuriana e tropical no Brasil, em moldura que inclui densas relações regionais e internacionais.4 4 Entre muitos trabalhos publicados nesta vertente destaco Benchimol (1990a), Benchimol e Teixeira (1993) , Britto (1995) , Teixeira (1995) , Teixeira, Sandoval, Takaoka (2004), Benchimol e Sá (2004-2007), Sá (2005) , Sá (2006) , Sá e Silva (2010) , Sá e Viana (2010) , Edler (2011) , Silva (2011) .

Esse foi por bom tempo meu percurso interligado a um objeto de pesquisa, a febre amarela, em virtude da importância que tivera para meus estudos anteriores: os movimentos sociais urbanos e a história urbana, minhas áreas de interesse após a conclusão do curso de história na Universidade Federal Fluminense, que me levaram a fazer mestrado em Planejamento Urbano e Regional na Universidade Federal do Rio de Janeiro. Em 1982, defendi dissertação depois publicada com o título Pereira Passos: um Haussmann tropical (Benchimol, 1990b). Foi esse trabalho que motivou o convite feito por Paulo Ernani Gadelha Vieira, mestre em medicina social pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro, importante liderança do movimento dos médicos residentes pela reforma sanitária e a redemocratização do país, para que eu ingressasse na Casa de Oswaldo Cruz, a nova unidade da Fiocruz que ele fora incumbido de formar.

O Projeto Manguinhos, iniciado em 1987, resultou em volumoso relatório que trazia os primeiros resultados da pesquisa, “Manguinhos: um retrato em corpo inteiro”, em três partes concluídas em 6 de junho de 1988. Participaram de sua construção a arquiteta e urbanista Sandra Branco Soares, o historiador Oswaldo Porto Rocha e, como auxiliares de pesquisa, Andréia Nunes Pereira e Fernando Sergio Dumas (Benchimol et al., 6 jun. 1988). Luiz Antônio da Silva Teixeira incorporou-se a ele na transição para o segundo relatório produzido em 1989, com três capítulos ( Benchimol et al., 1989BENCHIMOL, Jaime Larry et al. Manguinhos: uma contribuição para a história da medicina experimental e da arquitetura médico-hospitalar no Brasil. Rio de Janeiro: Casa de Oswaldo Cruz/Fiocruz, 1989. mimeo. ). No primeiro analisávamos a evolução histórica do Instituto de Manguinhos desde as suas origens, em 1899, até a promulgação do Estado Novo, em 1937. Justificávamos a escolha desses marcos por diversas razões: do ponto de vista político e administrativo, delimitavam a conquista e a perda da autonomia da instituição, então atrelada ao aparelho burocrático centralizador chefiado por Getúlio Vargas; do ponto de vista científico, correspondia ao amadurecimento e auge das pesquisas nas disciplinas clássicas da medicina pasteuriana, com suas aplicações na profilaxia das doenças humanas, animais e vegetais, e na prevenção e terapêutica por meio de soros e vacinas baseados em reações de imunidade; no final do período demarcado, disciplinas como bioquímica, biofísica, virologia e genética, e novos produtos terapêuticos, os antibióticos, colocariam desafios de outra ordem ao Instituto Oswaldo Cruz, num contexto em que as universidades e outras instituições de pesquisa desempenhariam papel cada vez mais importante. Os anos 1899-1937 correspondiam também à edificação e ao início da obsolescência do conjunto arquitetônico que seria tombado em 1981 pelo Serviço de Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, como valioso remanescente da arquitetura eclética do Rio de Janeiro. Ele foi a matéria do segundo capítulo do relatório que produzimos em 1989. O terceiro abordava a trajetória do arquiteto Luiz Moraes Junior, contemplando suas demais realizações em saúde pública e arquitetura hospitalar.

O Projeto Manguinhos começou a ser desenvolvido quando a Fundação Oswaldo Cruz era presidida ainda por Sérgio Arouca e por seu sucessor, Akira Homma (1989-1990). Um dia fui chamado ao gabinete do diretor da Casa de Oswaldo Cruz, Paulo Gadelha (1985-1997), onde estava também Paulo Marchiori Buss, então diretor (1998-2000) da Escola Nacional de Saúde Pública (Ensp). Tinham eles necessidade de uma publicação para celebrar o centenário da Fundação Oswaldo Cruz e perguntaram-me se conseguiria transformar o relatório de pesquisa em livro, rapidamente. Claro que sim, disse eu. E assim nasceu Manguinhos do sonho a vida: a ciência na belle époque (Benchimol, 1990a), com capa muito bonita criada por Miriam Struchiner, velha amiga que na época trabalhava como artista gráfica na Ensp. Ruth Martins, companheira de aventuras editoriais, ajudou na revisão do texto, que foi editorado eletronicamente – na época, uma novidade. Não lembro mais o nome de quem o fez; lembro apenas que era estatístico, funcionário do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatísica, e o primeiro monarquista que conheci.

Várias fontes foram utilizadas na construção desse livro, reimpresso em 2020 em celebração aos 120 anos da Fiocruz. Entre elas estavam depoimentos de antigos funcionários e cientistas que vinham sendo coletados por uma vertente do Programa de História Oral da Casa de Oswaldo Cruz a cargo de Nara Brito, Vanda Hamilton, Rose Ingrid Goldschimidit e, às vezes, o autor destas tortas linhas. Um subproduto de Manguinhos do sonho a vida (independente do livro) foi o artigo que publiquei com base em alguns dos depoimentos de cuja coleta participei. Com o título “Retratos do cotidiano em Manguinhos”, o artigo saiu em Cadernos da Casa de Oswaldo Cruz (Benchimol, nov. 1989), o antecessor de História, Ciências, Saúde – Manguinhos .

O primeiro número dessa publicação, impressa na própria Fiocruz, data de novembro de 1989. Na sua apresentação, o diretor da Casa de Oswaldo Cruz, Paulo Gadelha (1989GADELHA, Paulo. Apresentação. Cadernos da Casa de Oswaldo Cruz, v.1, n.1, p.2-3, nov. 1989. Rio de Janeiro: Artes Gráficas Fiocruz, mimeo. , p.2), escreveu: “A constatação de que o amplo universo que abrange a história da saúde pública e da ciência biomédica no Brasil exige maior circulação de ideias no circuito acadêmico levou os profissionais da Casa de Oswaldo Cruz a publicar os Cadernos da Casa de Oswaldo Cruz . A entrevista, o ensaio e os artigos que compõem esta primeira edição têm formato provisório; traduzem resultados iniciais de pesquisas que vêm sendo desenvolvidas”. A proposta do periódico era acolher colaboradores de fora da instituição, “criar um novo espaço – assim como os Encontros de História e Saúde – que viabilize a troca e difusão de ideias pra subsidiar o debate na comunidade científica” ( Gadelha, 1989GADELHA, Paulo. Apresentação. Cadernos da Casa de Oswaldo Cruz, v.1, n.1, p.2-3, nov. 1989. Rio de Janeiro: Artes Gráficas Fiocruz, mimeo. , p.2).

Sem periodicidade definida, os Cadernos da Casa de Oswaldo Cruz tiveram somente um segundo número, em 1992. Trazia uma seleção do material apresentado nos quatro Encontros de História e Saúde promovidos pela Casa de Oswaldo Cruz entre 1986 e 1990. Entre 1990 e 1993 foram produzidos cinco números de Estudos de História e Saúde , apostilas contendo um artigo por edição.

Tais publicações mostram bem a configuração inicial de investigadores e instituições que se dedicavam à história das ciências e da saúde e as linhas de investigação que prosperariam e se diversificariam na Casa de Oswaldo Cruz à medida que ganhava estrutura mais profissionalizada: departamentos voltados para a pesquisa; arquivos e documentação; bibliotecas físicas e virtuais; o Museu da Vida; um periódico científico conceituado, História, Ciências, Saúde – Manguinhos ; e o Programa de Pós-graduação em História das Ciências e da Saúde, que elevou tremendamente a produção de trabalhos acadêmicos na área.

As entrevistas utilizadas em “Retratos do cotidiano em Manguinhos” pertencem ao acervo de história oral da Casa de Oswaldo Cruz, sob a guarda de seu Departamento de Arquivo e Documentação, mais especificamente aquele produzido pelo projeto “Memória de Manguinhos”, que transcorreu de janeiro de 1986 a outubro de 1989 e que resultou na produção de trinta depoimentos pelos quais se buscou reconstituir a história do Instituto Oswaldo Cruz a partir da vivência de alguns de seus cientistas, auxiliares e administradores, focalizando questões relativas a ensino, pesquisa, políticas institucional e governamental, produção de terapêuticos e desenvolvimento da ciência. Utilizei especificamente as entrevistas concedidas por Attílio Borriello, Francisco Gomes; Hamlet Aor, José Cunha e Venâncio Bonfim.

Fiz pequenas correções de erros tipográficos e de ortografia no texto originalmente publicado em Cadernos da Casa de Oswaldo Cruz (v.1, n.1, p.19-31, novembro de 1989) para esta reimpressão. Junto com a reedição de Manguinhos do sonho à vida: a ciência na belle époque, pela Editora Fiocruz, “Retratos do cotidiano em Manguinhos” vem tardiamente juntar-se às celebrações dos 120 anos da Fiocruz, num momento tão difícil para os brasileiros em que a instituição volta a se colocar como valoroso baluarte da ciência e da vida.

RETRATOS DO COTIDIANO EM MANGUINHOS

Introdução

O artigo que publicamos sob o título “Retratos do cotidiano em Manguinhos” é parte de um primeiro relatório de pesquisa, concluído recentemente pela equipe do projeto Manguinhos, que procura recuperar a história do Instituto Oswaldo Cruz desde a sua criação, em 1900, até a sua completa subordinação à política administrativa centralizadora de Getúlio Vargas, em 1937. Neste relatório, além das fontes históricas tradicionais, utilizamos parte do acervo de depoimento já acumulados pelos Programas de História Oral da Casa de Oswaldo Cruz, em particular aqueles concedidos por antigos auxiliares de laboratório e operários de Manguinhos.

As histórias narradas por estes funcionários, orgulhosos, que aqui ingressaram na década de 1920, ainda meninos, para só saírem com a aposentadoria e os cabelos brancos, transportam-nos para o acervo da imagem austera que os livros, os documentos, as noções de senso comum e a própria monumentalidade arquitetônica projetam do Instituto Oswaldo Cruz; devolvem certos mitos acerca do trabalho científico à sua carnagem mais humana; ilustram aquelas relações miúdas do dia a dia, nos laboratórios, nas oficinas, nos biotérios, no refeitório, que configuram o cotidiano de Manguinhos; remetem-nos, enfim, ao universo de trabalhos essenciais à logística da medicina experimental praticada nesta instituição.

Antes de introduzimos os depoimentos, que passaram pelo crivo de uma seleção e reedição para se adequarem aos fins deste artigo, julgamos oportuno apresentar ao leitor um quadro sucinto da evolução do Instituto Oswaldo Cruz no período a que eles se referem.

Esboço histórico do Instituto de Manguinhos

O instituto foi criado em 1899, pela municipalidade do Rio de Janeiro, com a finalidade exclusiva de produzir soros e vacinas contra a peste bubônica, que fora detectada no porto de Santos e batia às portas da capital da República, onde há décadas já se faziam sentir os efeitos devastadores da febre amarela, varíola, tuberculose e outras doenças infecciosas. A grande reviravolta nos destinos desta modesta repartição decorreu da indicação do seu diretor, Oswaldo Cruz, em 23 de março de 1903, para chefiar a Diretoria Geral de Saúde Pública à qual ela fora subordinada antes mesmo de ser inaugurada. Tirando partido dos poderes que o governo lhe concedeu para executar as campanhas contra febre amarela, varíola e peste bubônica no Rio de Janeiro, então a capital brasileira, Oswaldo Cruz proporcionou as condições técnicas e materiais para que o Instituto de Manguinhos rapidamente sobrepujasse sua conformação original e passasse a operar em moldes análogos ao do instituto fundado por Pasteur em Paris. Com as sobras das verbas destinadas à sua diretoria, iniciou as construções monumentais projetadas pelo engenheiro Luiz de Morais Junior e a expansão acelerada de três vertentes de atividade: a fabricação de produtos biológicos, as pesquisas médico-experimentais e o ensino da microbiologia.

Antes de se completarem as sofisticadas instalações do instituto, este teve sua produção industrial diversificada, inclusive com produtos que resultaram de descobertas inovadoras de seus cientistas, como a vacina conta peste da manqueira (1906). Iniciaram-se, também, pesquisas no campo da bacteriologia, hematologia, entomologia, protozoologia, anatomia patológica etc., das quais resultaram os primeiros trabalhos científicos originais, cuja publicação começou a tornar conhecidos os pesquisadores do “Instituto de Manguinhos”. Por outro lado, aumentava a afluência de doutorandos em busca de temas para suas dissertações nas novas áreas de conhecimento que não eram contempladas pelo anacrônico currículo da Faculdade de Medicina.

Ano decisivo para a legitimação desse projeto institucional foi 1907, quando Afonso Pena, que iniciava seu mandato presidencial, garantiu a permanência de Oswaldo Cruz à frente da Saúde Pública. Respaldado pelo sucesso obtido com a campanha contra febre amarela no Rio de Janeiro e pela obtenção do primeiro prêmio na Exposição de Higiene e Demografia, realizada em Berlim, Oswaldo Cruz conseguiu que o Congresso sacramentasse as atribuições que o instituto, na prática, já exercia. Em 12 de dezembro, Afonso Pena sancionou o decreto que transformou o Instituto Soroterápico em Instituto de Patologia Experimental, rebatizado de Instituto Oswaldo Cruz em março do ano seguinte.

O decreto e o novo regulamento que o acompanhou não só legitimaram o referido tripé que ainda hoje define o perfil da Fiocruz como lhe concederam prerrogativas inéditas para uma instituição pública, garantindo-lhe a necessária autonomia para sobreviver às oscilações conjunturais do país. Entre estas prerrogativas, destaca-se a arrecadação de rendas próprias com a venda de seus produtos biológicos, o que foi importantíssimo para a sua história subsequente, pois lhe permitiu sobreviver à penúria de recursos orçamentários em condições muito mais favoráveis do que outro estabelecimento congênere no país.

Esse formato institucional perdurou por toda a Primeira República e subsistiu nos primeiros anos posteriores à Revolução de 1930. Resguardado das reviravoltas políticas, o instituto desfrutou da estabilidade proporcionada por direções vitalícias, exercidas por cientistas que iniciaram suas atividades em Manguinhos, e que ascenderam ao cargo sob relativo consenso interno, como legítimos herdeiros de Oswaldo Cruz, que faleceu em 1917: Carlos Chagas o sucedeu e dirigiu o instituto também até a sua morte, em 1934. Na gestão de Antônio Cardoso Pontes (1934-1942), a política centralizadora inaugurada pelo Estado Novo pôs fim à autonomia de Manguinhos, retirando-lhe, inclusive, as rendas próprias.

Pessoal e seções do Instituto Oswaldo Cruz

O quadro de pessoal definido pelo primeiro Regulamento, de 1908, distinguia três categorias funcionais: o pessoal técnico-científico compunha-se do diretor, de dois chefes de serviço (escolhidos entre os cientistas) e seis assistentes, admitidos mediante concurso, exceto nas primeiras nomeações, de modo a aproveitar os pesquisadores já em serviço; o pessoal burocrático resumia-se ao zelador, ao almoxarife, ao escriturário e a um desenhista; o pessoal subalterno era constituído por um chefe de cocheiras, oito serventes, cinco ajudantes, dois maquinistas e dois foguistas.

O quadro de pessoal era, evidentemente, muito escasso para atender às necessidades daquele centro de medicina experimental que se estava edificando em Manguinhos. Na verdade, foi a “verba da manqueira”, arrecadada pelo instituto, que custeou a contratação de pesquisadores de outras instituições nacionais, a vinda de cientistas estrangeiros, assim como as viagens de estudo ao exterior dos pesquisadores de Manguinhos, visando à sua especialização em diferentes domínios da medicina experimental.

Em 1919, às vésperas da criação do Departamento Nacional de Saúde Pública, chefiado por Chagas até 1926, o Instituto Oswaldo Cruz foi provido de um novo regulamento que, além de determinar a criação de novos serviços, remanejou o quadro de pessoal, cuja despesa total ascendia, então, a 449:000$000, dos quais apenas 191:240$000 provinham do orçamento, e o restante, da renda própria de Manguinhos. O novo regulamento elevou para 498:000$000 a despesa orçamentária com pessoal, aumentando de 4 para 16 o número de cargos ligados aos serviços burocráticos e de 18 para 42 o número de funcionários “subalternos”. O corpo científico passou a ser constituído pelo diretor, um secretário, seis chefes de serviço, nove assistentes e sete adjuntos de assistentes, conservando-se, no entanto, um chefe de serviço, um assistente e um adjunto com os vencimentos pagos pela verba da manqueira.

Em 1926, o instituto ganhou o terceiro regulamento que introduziu novas modificações no quadro de pessoal, em particular o técnico-científico: mantinham-se as figuras do diretor, do secretário, dos chefes de serviços – de seis passaram a sete – e dos assistentes – que se elevaram a 24, incorporando os adjuntos e mais oito cientistas que trabalhavam como contratados. A principal novidade deste regulamento é que, pela primeira vez, discriminava não apenas “cargos” como “seções” científicas, administrativas e auxiliares. Os pesquisadores que, até então, eram distribuídos conforme suas “especialidades” filiavam-se às seções de bacteriologia e imunidade, zoologia médica, micologia e fitopatologia, anatomia patológica, hospitais e química aplicada. As seções administrativas incluíam secretaria, zeladoria, almoxarifado e arquivo. As seções auxiliares reuniam biblioteca, museu, desenho, fotografia e microfotografia, tipografia, esterilização e preparo de meios de cultura, distribuição de soros e vacinas, biotécnicas e cavalariças, mecânica e eletricidade, carpintaria, conservação de imóveis e estradas, oficinas de encadernação e de preparação de ampolas e aparelhos de vidro.

Na prática, a divisão dos trabalhos científicos do instituto não correspondia exatamente às seções relacionadas no regulamento: as de protozoologia e de fisiologia, criadas em 1926, não constavam do organograma, e os pesquisadores que se intitulavam chefes de laboratório desenvolviam serviços de rotina e pesquisas que não se enquadravam na distribuição formal dos trabalhos do instituto.

Por sua vez, muitas das seções auxiliares designadas em 1926 já funcionavam, subordinadas ao zelador, desde a origem do instituto, revelando a preocupação de Oswaldo Cruz e também de Carlos Chagas de provê-lo de um conjunto de atividades que lhe garantissem a maior autossuficiência possível.

O serviço de fotografia, por exemplo, foi um dos primeiros a serem organizados, ainda em 1903, para documentar, com o recurso mais moderno da época, não só os trabalhos científicos como a grande metamorfose física do instituto, desde os seus primeiros alicerces. Instalou-se depois no castelo mourisco onde J. Pinto trabalhou até sua morte, produzindo, todos os anos, centenas de fotografias, ampliações, fotocópias, microfotografias de lâminas delicadas, diapositivos para as explanações do Curso de Aplicação e até filmes cinematográficos. Outra seção muito importante para os laboratórios de pesquisa era a de desenho, cujos artistas manipulavam uma diversidade notável de técnicas: desenhos em cores de culturas e cortes, desenhos a pena de criaturas microscópicas, trabalhos em aquarela e nanquim, gráficos, quadros murais etc. A biblioteca, um dos serviços basilares de Manguinhos, começou a funcionar em 1903, num chalé improvisado que dividia com o gabinete fotográfico. Transferiu-se para o castelo mourisco com os primeiros laboratórios, em 1911, ocupando as suas dependências mais esmeradas em termos ornamentais. Com um acervo ímpar, esteve a cargo do holandês Assuerus Overmeer, homem culto e poliglota, contratado em 1909 e que ali trabalhou até a sua morte, em 1944, com o auxílio de apenas dois bibliotecários auxiliares.

O universo das oficinas

À medida que iam sendo concluídas as construções de Manguinhos, muitos dos operários especializados que o mestre de obra Basílio Aor havia recrutado foram aproveitados por Oswaldo Cruz para compor outros serviços auxiliares do instituto. Foi o caso do pintor, mecânico, bombeiro, eletricista e pedreiro Fructuoso Gandara Martinez, que, em 1926, assumiu a chefia de todas as oficinas relacionadas à conservação dos imóveis, do campus e dos maquinismos de Manguinhos.

Entre os serviços que se instalaram no edifício principal logo que este entrou em funcionamento figurava a tipografia que, em 1912, começou a imprimir as sofisticadas Memórias do Instituto Oswaldo Cruz e uma infinidade de itens como rótulos, embalagens, papéis timbrados etc. Nela ingressou como aprendiz, em 1920, com apenas 10 anos de idade, Willian Hamlet Aor, filho de Basílio Aor, recentemente falecido.

“Como minha mãe tinha conhecimentos, ela pediu, e nós fomos admitidos. Meu irmão Waldemar, que era mais velho do que eu dois anos, foi trabalhar na encadernação, no terceiro andar, encostada à biblioteca. E eu lá embaixo, no andar térreo, na tipografia. Bom, eu era um garoto esquisito. A tipografia tem umas caixas, onde se colocam os tipos de chumbo. Aquilo é salteado: são vários buraquinhos numa gaveta, e cada buraco daqueles, cada quadradinho, tem uma letra. Então, a gente começa por ali a decorar onde é o A, o B, o C, o D... o alfabeto todo, os pontos, os espaços etc.”

“Eu era garoto de calça curta ainda. Era a primeira vez que pisava numa oficina. Via as máquinas trabalhando: uma imprimindo, a outra compondo; aquele cheiro de tinta, toda aquela atividade e eu, feito um índio, que nunca tinha vindo à cidade, olhando para um lado e para o outro, procurando me ambientar. Foi quando, lá pelas 10 horas, o subchefe, um mulato alto e magro chamado Tertuliano, chegou perto de mim e disse: ‘Vamos ver o que você já sabe. Onde é o A, o B etc.’ É claro que eu não ia dizer tudo certo. Eu estava cheio de dedos ainda. Então ele disse para mim: ‘Depois do almoço eu venho aqui outra vez. Se tu não me der essa caixa decorada, vou te cortar as orelhas com esta tesoura.’ Eu disse: ‘E eu lhe dou com esse ferro na cabeça.’ Passei a mão no ferro que tinha lá, que eu nem sabia o que era. ‘Garoto abusado,’ ele disse. Mas eu fiquei revoltado com aquilo. O pessoal ficou olhando, pensando: ‘Ih, esse é bravo’.”

“Na tipografia, o aprendizado era autodidata. Não havia um professor escalado para ensinar. Nós éramos ensinados pelos antigos profissionais. A primeira coisa que se fazia ao entrar numa tipografia era decorar aquela caixa de tipos. Depois passei para a máquina, para aprender a margear, a botar e tirar papel, atividade que precisa de uma prática muito grande. Fiquei na tipografia até trabalhar numa máquina nova com um cilindro que eles compraram. Ai já era outra maneira de trabalhar. Na tipografia... Aquilo rodava como se fosse uma empresa particular. Eram oito horas: 45 minutos de almoço, 15 minutos para café, de tarde, e volta para pegar no serviço.”

“Depois de trabalhar dois anos na tipografia, surgiu um aborrecimento com o chefe, um advogado. Naquela época batiam! Eu apanhei. Ah, aí já era demais. Eu disse a ele: ‘Vá bater na sua mãe, porque eu não sou seu filho!’ Ele então me mandou embora. ‘Não vou sem ordem do diretor,’ falei. Eu também era fraco abusado. Não deixava as coisas em brancas nuvens. Levava a pior sempre, é lógico. Não sei o que ele arrumou, fui mandado para outro setor: o de embalagem de soros e vacinas. Nessa época, o instituto já exportava até para o Uruguai e a Argentina a vacina contra a peste da manqueira, os soros etc. O trabalho era embrulhar aquelas ampolinhas e encaixotar. Fiquei ali. O encarregado era um português, seu Álvaro.”

Na seção de embalagens trabalhavam umas oito pessoas, com as ampolas que vinham da seção de enchimento e fechamento, ambas no primeiro pavimento do castelo. “Mas um dia, não sei por que motivo, o encarregado, o português, também achou que devia dar uns berros comigo e eu me revoltei e abandonei tudo. No dia seguinte, em vez de ir para Manguinhos trabalhar, eu nem disse nada para minha mãe. Tomei outro rumo e fui procurar emprego.”

William Hamlet trabalhou, então, numa tipografia, na rua da Misericórdia, no Mercado Municipal, na loja de um italiano, e depois numa fábrica de ampolas que o zelador do Instituto Oswaldo Cruz fundara no Riachuelo.

“Aí, um dia, conversando com antigos colegas de Manguinhos, disse que já sabia fazer ampola. Voltei lá por minha conta, falei com o encarregado, um português antigo em Manguinhos, o Coelho. ‘Ô Coelho, você não arranja de eu vir para cá?’ Respondeu: ‘Não sei não, não posso garantir. Tu fala aí com...’ Aí fui falar com o almoxarife, seu Tião. Eu não quis falar com o Gomes, o zelador, porque vinha da fábrica dele, né? Então ele me arrumou. Voltei para a seção de fabricação de ampolas, onde ganhávamos por empreitada, um tanto por cada ampola. Tinha um salário, mas era irrisório, parece que 60 mil réis por mês. Aquilo não dava para nada, era só o complemento. Agora, para fazer um ordenado tínhamos que trabalhar de manhã à noite. Quantas vezes fiquei até de madrugada trabalhando. Primeiro no castelo, onde fica hoje a sala 25, depois no prédio do Quinino, numa salinha onde foram montados os maçaricos. Nós fazíamos tubos de ensaio, pipetas de Pasteur em forma de bola, umas pecinhas lá para soldar... tudo... sem professor! Coisa de autodidata. Íamos manuseando o vidro, com habilidades e curiosidade, fazendo e aprendendo. Professor, mesmo, só fui pegar depois de burro velho, na faculdade, quando organizaram esse curso.”

“Manguinhos tinha uma oficina quase completa: o doutor Oswaldo trouxera da Alemanha um vidreiro, que ensinou um italiano, que veio para cá garoto, o Nicola. Nicola tornou-se um ótimo vidreiro. Quando o alemão foi não sei para onde, o Nicola permaneceu em Manguinhos. Depois o Gomes o carregou para sua fábrica, onde produzia os tubos de vidro com que fazíamos as ampolas.”

“Como eu disse, naquela época tínhamos um pequeno ordenado e um percentual por peça feita. Assim, conseguíamos um ordenado de 400 ou 500 mil réis por mês. Um belo dia começaram a faltar aquelas varas de vidro. Nós ficamos parados, sem poder trabalhar. O instituto comprava também as ampolas do seu Gomes. Eu falei com os colegas – éramos uns oito – para irmos ao doutor Chagas contar o que estava se passando. Eles ficaram com medo do Gomes e pediram para não envolvê-los. Eu disse: ‘Se vocês estão com medo, eu não estou. Vou falar com o doutor Chagas!’ Subi ao segundo andar, doutor Carlos Chagas estava atendendo um cientista e eu fiquei esperando na porta. Ele me mandou entrar e eu disse: ‘O senhor não me conhece, naturalmente, mas eu trabalho na seção de fabricação de ampolas. Como o senhor sabe, nós ganhamos por empreitada, por peça, e já vai para dois ou três meses que não temos trabalho. Mas o instituto está comprando ampola fora. Será que fica mais barato do que fazendo aqui? O senhor procure saber, porque nós estamos sendo prejudicados. Eu preciso de dinheiro. Preciso ajudar minha família. Tenho irmãos pequenos em casa’.”

“Ele disse: ‘Está bem. Chame o doutor secretário aí do lado (que era o vice-diretor, doutor Leocádio [Chaves]). Depois, chame seu Gomes e seu Teófilo, o almoxarife, para virem todos falar comigo.’ Eu saí, fui atrás dos três e disse que o doutor Chagas queria falar com eles, mas não disse a ninguém o que era. Doutor Chagas chamou o Teófilo: ‘Seu Teófilo, de hoje diante o seu Gomes não tem mais nada a ver com a fabricação de ampolas. Ele não se mete mais nisso. O senhor é responsável pela fabricação de ampolas aqui no instituto. Providencie hoje mesmo os tubos para essa gente trabalhar.’ Quando o secretário disse que era preciso acabar com a seção, ele afirmou que se ela desse prejuízo, acabava, mas se não desse, ia continuar. Então eu expliquei: ‘Tem que dar lucro, não é doutor? Aqui, o mesmo preço que eles pagam pela vara de vidro, o instituto paga. Aqui não tem caixa especial para embalagens. A mesma caixa que vai de nossa seção – porque somos nós que embalamos – vai para a seção de enchimento e volta vazia, para encher outra vez. Não tem esse problema de nota fiscal, não tem nada disso, tem que ficar mais barato!’ O doutor Chagas disse que já estava tudo providenciado. Isso foi de manhã, não me lembro a data. De tarde, até carroça de carregar capim foi buscar vidro lá em São Cristóvão. O Gomes ficou doido da vida comigo. Quando voltei para a minha seção, disse para os colegas: ‘Olha aí, seus medrosos, eu fui e falei com o homem. Vocês estão pensando que o homem é alguma fera? Não é nada disso, não’.”

O universo dos laboratórios

A complexa rotina dos laboratórios de Manguinhos dependia, em larga medida, do concurso de uma categoria muito especial de funcionários, os auxiliares de laboratórios, em sua maioria, recrutados pelos cientistas entre serventes que trabalhavam nas oficinas. Na verdade, o quadro funcional do instituto não contemplava ainda a figura do auxiliar ou técnico de laboratório – como “técnicos” eram designados os cientistas, e como subalternos, mais precisamente como serventes, seus auxiliares. Contudo, para estes funcionários, ingressar no laboratório significava galgar um patamar privilegiado nas relações de hierarquia funcional e enveredar por um novo universo de experiência de vida e trabalho.

Assim como Willian Hamlet, Attílio Borrielo ingressou no instituto pela tipografia, em maio de 1921, com 15 anos de idade. Nascido em São Luiz do Paraitinga, cidade natal de Oswaldo Cruz, Attílio já tinha dois irmãos que trabalhavam em Manguinhos, Antônio e Benedito, ambos no almoxarifado. Vieram depois José e Salvador, para completar a “oligarquia dos Barrielo”.

Attílio permaneceu algum tempo na tipografia e foi deslocado para o almoxarifado, até ser escolhido por Henrique Aragão, em 1926, para ser auxiliar do laboratório de protozoologia.

“Porque o indivíduo entrava como aprendiz de carpinteiro, ia fazer umas caixinhas para manqueira. Mas começava a demonstrar aptidão, assiduidade, então, amanhã ou depois, uma vaguinha no laboratório, aproveitava-se esse menino. Quem decidia isso eram os chefes de laboratórios. Mandavam muito, muito mesmo! Um chefe de laboratório, um médico, mandava demais! A distância hierárquica dele para o auxiliar era muito grande! Tanto que ele chamava o meu servente.”

“O auxiliar, cada degrauzinho que subia, custava muito! Ele precisava demonstrar aptidão. Personalidade, compreendeu? Para ir subindo. Eu, por exemplo, cheguei ao máximo como auxiliar. Eu falava com um médico de cabeça erguida. Porque o meu comportamento permitiu durante trinta e tantos anos isso.”

Falar com um médico de cabeça erguida era um privilégio de que os auxiliares desfrutavam. Hamlet, que pertencia ao mundo das oficinas, conta que “os cientistas só falavam com a gente quando tinham interesse num certo serviço. Fora disso, não tinham razão de falar nada. E a gente, quando via um homem daquele, tomava todo o cuidado. A conclusão que tirei, devido à pouca convivência que tive com ele, é que os cientistas de Manguinhos viviam exclusivamente para a pesquisa cientifica. Havia um respeito assim temeroso. Por exemplo, se tivesse um grupo de funcionários na hora do almoço, ou fora de almoço, num agrupamentozinho, numa esquina, numa calçada por ali, batendo papo, quando aparecia um homem de blusa branca, um guarda-pó branco, a turma dizia: ‘Lá vem o homem aí’.”

Interessante é que, em todos os depoimentos dos antigos funcionários, tanto a hora do almoço como o guarda-pó revestem-se de um significado especial no que concerne às relações de hierarquia em Manguinhos. Attílio Borrielo, por exemplo, declara: “Até o avental era de cor diferente. O indivíduo tinha um avental pardinho, era servente. Depois, quando ia subindo de posição, passava a usar avental branco. E isto era um orgulho! Era uma categoria média. Tinha o refeitório dos humildes e tinha o caramanchão. Eu saí daqui comendo no caramanchão. Era uma vaidade tola, mas a gente sentia-se bem.”

Outra vaidade de Attílio era ler muito, sem orientação de ninguém. Embora fosse pouco ou nenhum o grau de instrução formal dos auxiliares de laboratório, entre estes e os cientistas estabelecia-se uma relação de total confiança.

“Sem que o auxiliar corresponda ao pedido do cientista, ele não faz grande sucesso. Ele tem que confiar naquilo que mandou fazer. O auxiliar, quando ele era bom, o médico agarrava para o resto da vida. Porque se afeiçoava, correspondia. Sempre fiz direito e sempre evoluí. O Dr. Aristides e o Dr. Muniz diziam: ‘Ô Attílio, vamos fazer isto.’ Eu perguntava: ‘Pra quê?’ Era um pouco de ousadia. ‘É porque vamos esclarecer este fato, aquele e aquele outro.’ Então, me sentia pesquisador também; eu não era nada, mas como tinham me dado aquela liberdade, me sentia dentro da pesquisa. Fazia aquilo com amor, com carinho. Porque me julgava, também, alguma coisa na vida. Eu não era nada, mas era um auxiliar dileto. Isso já me satisfazia, compreendeu?”

A relação de confiança era tão grande, que até o recebimento de seus vencimentos os cientistas confiavam aos auxiliares. “Eu fui procurador mensal, cheguei a ser procurador de 18 médicos de Manguinhos. Eles não queriam sair de Manguinhos, e o Valdemiro, que mandava em mim, porque era filho de São Luiz do Paraitinga e conhecido de Oswaldo Cruz, dizia: ‘Attílio, você vai ser o procurador de fulano.’ Esse trabalho era receber o vencimento. Então, eu ia no Tesouro assinar a folha, lá no Centro, na Av. Passos, onde existe hoje um terreno baldio. Ali era o Tesouro velho. Pegava no livro, os indivíduos atrás querendo assinar, e eu toca a assinar, assinar, assinar... O caixa contando dinheiro, e eu pondo no bolso. Naquele tempo, não havia assalto... Vinha, com 30, 40 contos. Os cientistas ganhavam dois contos, cada um.”

Willian Hamlet que foi, de certa forma, uma exceção entre os seus contemporâneos, por seu espírito altivo e rebelde, confirma também: “Os serventes que se tornavam técnicos granjeavam a confiança absoluta dos cientistas, a ponto de serem levados para onde estes fossem. O dr. Costa Cruz, no Pavilhão da Peste, tinha um servente, um senhor totalmente analfabeto. Ele só comprava jornal quando tinha fotografia. Se a fotografia viesse de cabeça para baixo, ele botava o jornal de cabeça para baixo. Mas tinha uma coisa: o que o homem quisesse, um meio de cultura, um repique, uma semeadura, podia confiar porque saía dentro do figurino. Esse pessoal se dedicava muito! Como o Attílio e outros mais.”

Entre estes outros auxiliares incluía-se Francisco Gomes, recrutado no princípio da década de 1920, ainda menino, nos sertões de Minas Gerais, onde Carlos Chagas realizava pesquisas de campo relacionadas à doença transmitida pelo “barbeiro”, que ele havia descoberto em 1907, quando estivera em Lassance, a serviço da Central do Brasil, para executar a profilaxia da malária na região.

“Eu tinha um tio que acompanhava Carlos Chagas em todas as expedições que ele fazia a Lassance, né, quando estava no princípio da descoberta da doença de Chagas. Numa das ocasiões, este tio foi a minha casa para visitar a família, e eu estava nessa época com 7 anos de idade, muito magrinho... E como lá se dizia que se o sujeito mudasse de ares, comesse frutas, melhorava, então ele achou por bem falar com minha mãe e me levar para Lassance. Quando cheguei no acampamento, o Carlos Chagas ficou bravo com ele: ‘Então você traz uma criança para um lugar desse, você não sabe a extensão dessa doença aqui?’ ‘Ah, o menino tava magrinho e tal,’ alegou meu tio. ‘Bem, mas na próxima viagem você leva ele de volta,’ disse o Chagas. Aí ficou combinado assim. Então meu tio teve que armar uma rede numa barraca pequena para mim, separada das três barracas do acampamento. Enquanto iam para o mato de manhã bater cacua – cacua é aquela casa de sapê – procurar doente, procurar animais possivelmente portadores de Trypanosoma cruzi , eu ficava tomando conta das panelas, da comida. E na segunda noite logo, um gambá fez ninho na árvore onde estava amarrada minha rede e me perturbou a noite inteira. Eu não conseguia dormir. Amanhã, vou pegar esse bicho haja o que houver. Então, no dia seguinte, eles foram para o mato e eu fiz uma forquilha, fui nos arreios dos cavalos, desmanchei a corda, fiz um barbante comprido, uma laçada e subi com a forquilha e a cordinha. Cheguei lá em cima, estava a gambá dormindo, e, quando me viu, se espantou, ficou brava, agressiva, e eu aí consegui imprensar ela contra o tronco da árvore, meti a laçada e vim descendo – ela esperneando, eu vim descendo a árvore. Foi quando eles já vinham voltando do mato para almoçar e eu atrapalhado com a gambá. O Chagas: ‘Ih cuidado, cuidado com esse bicho, muito cuidado, cuidado!’ Ao mesmo tempo dizia: ‘Não deixa ele fugir.’ Eu digo: ‘Não ele não foge.’ ‘Tem jeito de pegar?’ ‘Tem.’ Aí foi quando ele correu para a barraca, foi apanhar a bandeja de material – lâmina, tesoura etc. Imprensei a cabeça do gambá com a forquilha no chão, consegui segurar as patas traseiras, e ele veio correndo e deu um pique na orelha, tirou uma gota, botou na lâmina, saiu correndo para a barraca e foi para o microscópio. Quando olhou no microscópio, deu um tremendo berro, que aquilo ecoou, ressonância, por aquele campo afora. Foi o segundo animal que tinha descoberto como hospedeiro do Trypanosoma cruzi . O primeiro era o tatu, ele já tinha descoberto, e o segundo foi esse gambá. Então ele chamou o pessoal todo para ver e tal, daí ele já mudou a ideia de me mandar embora. Disse: ‘Você vai ficar, eu vou te ensinar a ler, escrever e você vai ficar. Quando eu for, eu levo você para o instituto.’ Aí eu fiquei caçando gambá, caçando cotia, fazendo o que se chamava chiqueiro naquele tempo, armadilhas com um alçapão e isca ali na ponta do pau. Pegava vários bichos, e ele ficava feliz com aquela coisa. Então começou a me ensinar a ler de noite – era luz de lampião – eu aprendi tudo, desde a primeira letra (não sabia nem o que era o A, né?). Isso tudo com aquele espírito paternal, porque como eu perdi meu pai muito cedo, fui fazendo transferência de afeto para ele. Ele me ensinava, com aquela delicadeza de sempre, como sempre foi, uma delicadeza tremenda. Aí, ele voltou, mas eu fiquei. Quando vim para Manguinhos, já estava com 12 anos – fiquei cinco anos em Lassance.”

Em Manguinhos, Francisco Gomes fez seu estágio nas oficinas. Trabalhou na carpintaria, na fabricação de ampolas e, depois de um certo tempo, foi enviado por Chagas para o instituto filial de Belo Horizonte, onde teria mais facilidades para estudar. Lá permaneceu até os 18 anos de idade e já cursava os preparatórios para ingressar na faculdade quando o falecimento de Chagas, em 1934, o obrigou a regressar a Manguinhos, tornando-se, então, auxiliar no laboratório de fisiologia, onde trabalhou com Miguel Osório e Thales Martins. No Rio de Janeiro, Francisco Gomes ainda frequentou um colégio à noite, mas as exigências do serviço o impediram de completar a sua instrução. Foi a prática que o transformou num exímio técnico de laboratório.”

“A formação do técnico era feita nos próprios laboratórios, porque revezávamos de laboratório para laboratório e se aprendia então todas as coisas, da microbiologia para a imunologia, da imunologia para a protozoologia, a entomologia, a bioquímica, a fisiologia... Assim a gente acabava formando um técnico de conhecimento mais ou menos geral. Mas não havia curso assim específico para a formação de técnico de laboratório.

“Os novos que chegavam, a gente tinha que ensinar, e a gente fazia aquilo com muito prazer – ensinar aos colegas novos tudo aquilo que tínhamos aprendido. Depois os pesquisadores da época eram formidáveis. Eles chamavam a gente, ensinavam o porquê, o como era, o como se fazia, levavam a gente para o microscópio, ensinavam tudo – não é deixar a gente fazendo uma coisa numa rotina e ficar naquilo não – eles tinham orgulho de que a gente aprendesse e se tornasse bons técnicos de laboratório. Então ensinavam mesmo, para valer; não se escondia o jogo, como se diz na gíria. Tudo que eles estavam fazendo, a gente tomava conhecimento. Então, nós éramos técnicos de laboratório completos e versáteis. A experiência adquirida nas oficinas também era importante. O conserto de uma gaiola, uma coisa qualquer de emergência, a gente tinha habilidade para fazer, porque tinha passado pelas oficinas, o que não acontece agora. Hoje, se chamar um técnico de laboratório para manipular um cavalo, o sujeito não sabe, tem medo.”

Francisco Gomes, em seu processo de aprendizado, tomou muitas lições de um veterano, Joaquim Venâncio Fernandes, que era auxiliar de laboratório do Adolpho Lutz, e que viria a se tornar o personagem símbolo dessa geração de técnicos autodidatas que Manguinhos formou.

“Joaquim Venâncio era o meu guru. Muita coisa aprendi com ele: quando tinha dificuldade, ia no guru e o guru me ensinava. Aquele sabia tudo. Era de uma inteligência fora do comum. Essa reação para diagnóstico de gravidez que se fazia em Bufos marinus foi o Joaquim que descobriu. Ele trabalhava com o dr. Lutz, e o Joaquim, muito sagaz, fazia exame de urina. Então, um dia, uma senhora aí do morro que estava em período de gravidez e que tinha aversão a sapo, enquanto o Joaquim examinava no microscópio o sedimento da urina dela, pegou um daqueles vidros com um bufo marinho grande – a tampa era de tela – e jogou a urina em cima do bufo, sabe? O Joaquim colhia também protozoariozinhos que o dr. Lutz queria identificar. Quando chegou no dia seguinte, ele fez a punção na cloaca do sapo, colheu a urina, foi para o microscópio e viu aquele montão de espermatozoides. Ficou intrigado com a coisa. Disse: ‘Uai!’ Aí quando foi ver, notou que embaixo (porque o sapo ficava sobre uma placazinha dentro do vidro) que embaixo tinha urina – aí deu um estalo na cabeça dele. Mandou que a moça trouxesse uma nova urina e, mais que depressa, injetou 10cm3 3 Entre muitas publicações sobre o estado da arte na historiografia cito aquela organizada por Burke (1992) . Bom balanço das transformações em curso na história da saúde, nos anos 1990, encontra-se no prefácio de Fee (1993) à reedição em inglês do clássico de George Rosen, traduzido no ano seguinte para o português (sem o referido prefácio) com o título Uma história da saúde pública ( Rosen, 1994 ). daquilo no sapo. Uma hora depois ele colheu o material, já estava lá a espermatorreia do sapo. Fez mais vezes, né? Injetou a urina dele, não dava nada; injetava a urina de uma pessoa que não estava grávida, não dava nada; injetava de mulher em estado de gravidez, dava. Aí contou o que tinha descoberto ao dr. Lutz, que desenvolveu a coisa toda, deu a noção científica que era gonadotrofina coriônica, que liberava o espermatozoide no sapo.”

“O Joaquim era demais inteligente: um embaixador alemão mandou uma carta para o diretor pedindo ao instituto para enviar para a Alemanha 12 exemplares de um tipo de perereca estranha que tinha no Brasil, muito rara. Mandaram a carta lá para o laboratório – ‘não, só quem pode resolver isso é o Venâncio. Quem sou eu para saber de perereca. Sei lá de perereca!’ Então o diretor chamou o Joaquim, se ele podia satisfazer esse pedido do governo alemão. ‘Ah, pois não.’ Então ele saiu em campo, vestiu as botas e o traje de pântano e conseguiu exatamente o tipo. Mandou tudo determinado: espécie, tipo, habitat , escreveu tudo e eu fui levar lá na embaixada da Alemanha, ali em Laranjeiras. O embaixador ficou maravilhado por ele ter conseguido tão rapidamente um tipo de batráquio tão raro. Ele já sabia onde existia tal perereca. Ele reconhecia pelo ouvido. É. Pelo coaxar do bicho ele sabia onde estava e que tipo de bicho era, ia lá diretinho. Então o dr. Lutz tinha uma certa afeição ao Joaquim, que o ajudava mesmo.”

“O Joaquim teve coisas aqui espetaculares. Um dia, eu estava com Thales Martins, que era super, ultraexigente: ele queria uma coisa já, não queria saber como a gente ia conseguir. Eu fui o que mais aguentei o Thales Martins; porque ninguém aguentava; ficava dois meses, três meses, caía fora. Mas sofri o diabo com ele. Ele ensinava, era bom porque ensinava tudo, mas era exigente. Pois bem, cismou que eu tinha que arranjar camaleão grande para uma experiência que ia começar. ‘Mas como é que eu vou fazer para pegar camaleão, doutor? Vou andar subindo em cima das pedras?’ ‘Você dá um jeito, que eu quero os camaleões.’ Digo: vou no meu guru, é o jeito. ‘Ô, Joaquim, estou com um problema: o dr. Thales exigiu que eu arranje um camaleão de qualquer jeito. Que eu vou fazer?’ ‘É fácil, é fácil. Amanhã nós vamos naquela pedreira (tinha uma pedreira aqui no porto de Maria Angu), vamos pegar muito camaleão.’ Então, vê a argúcia do Joaquim. Naquele tempo não existia fio de nylon , mas o rabo de cavalo é como um fio de nylon , tem resistência, arma. Então fomos no rabo do cavalo, cortamos uns fios compridos, ele armou uma laçada e completou com linha preta. E pegamos uma barata viva, amarrou a barata pela cabeça dentro da laçada. Fomos lá para a pedreira, e aquilo na ponta de uma vara de bambu bem comprida. Aí o camaleão aparecia lá na pedra, ia arriando assim aquela barata, ia encostando perto do camaleão, ele ficava ouriçado e quando pulava, ficava preso, dançando no laço. Olha, só no primeiro dia pegamos quarenta e tantos camaleões. ‘Agora tu não diz a ele como pegou, não. Você só diz que os camaleões estão aí.’ Quando cheguei com aquele caixote, o Thales Martins quase caiu para trás. ‘Como é que você conseguiu fazer isso?’ Eu disse: ‘Não sei. O senhor não queria camaleão? Tá aí o camaleão.’ Ele disse: ‘Mas isso é uma coisa incrível! Eu te pedi isso ontem, você hoje já me chega com esse montão de camaleão.’ ‘E se o senhor quiser mais, eu trago’.”

“Era formidável o Joaquim. Qualquer dificuldade que eu tinha, ia ao meu guru, e ele me dava as coordenadas todas, me tirava do sufoco.”

Como se pode observar nas histórias narradas até aqui, havia várias linhagens familiares entre os serventes de Manguinhos, e os laços de compadrio com os cientistas contribuíram muito para lhes abrir as portas do instituto. Já mencionamos Hamlet e o irmão, filhos do mestre de obras Basílio Aor; os irmãos Borriello, conterrâneos de Oswaldo Cruz; e Francisco Gomes, que chega ao instituto pelas mãos do tio e por um vínculo quase filial com Chagas. Joaquim Venâncio, que era irmão do administrador da fazenda da família de Chagas, em Minas, trouxe também para o instituto o sobrinho, Venâncio Bonfim. Como muitos outros funcionários, Joaquim Venâncio residia no campus de Manguinhos e possuía até um pequeno rebanho de vacas leiteiras, que entregou aos cuidados de Venancinho. Quando o instituto adquiriu as vacas, este continuou a tomar conta delas, recebendo agora um pequeno salário pela verba de manqueira.

“Comecei a apelar, que eu queria sair desse serviço” – conta Venancinho. “Aí me jogaram na cozinha, o chefe era um alemão, Sr. Otto, cabo da Primeira Guerra. Aquela sala grande onde é o Gravatão (não é assim que vocês chamam?) era a sala dos funcionários! Onze horas, meio-dia, todo mundo estava almoçando ali. Agora, de mesa posta. Toalha, cumbuquinha de manteiga, pãozinho, copeiro servindo. Onde é o quiosque era a sala dos médicos e do pessoal da administração. Bem mais tarde, à uma hora, era o almoço deles. A refeição era gratuita para todo mundo. Havia uma horta muito grande, no prolongamento de onde é hoje a carpintaria: tudo aquilo era uma horta de que um português, o velho Amadeu, cuidava em benefício do instituto.”

“Trabalhei na cozinha não mais que dois anos. Porque aí já estou indo à escola, já estou querendo sair desse serviço. Então eu comecei a pedir a um, a outro. ‘Você não tem uma maneira de me arranjar uma vaga?’ Comecei a pedir a todo mundo, rapaz. Chegou um médico de São Paulo, dr. Oscar Dutra [e Silva], chegou sozinho, quis trabalhar com ele, não consegui. Quis trabalhar com o professor Lauro Travassos, porque ele viajava muito e eu sempre gostei de viagem. Também não consegui. A um cidadão por nome Rômulo Monte dos Santos, que trabalhava com o dr. Genésio Pacheco, pedi. Ele disse para mim assim: ‘Olha, você apareça lá logo mais que eu vou fala com dr. Genésio.’ Estou morando aí no Pombal, terminou o serviço às duas horas, tomei um banho, botei aquela roupinha melhor e vim falar com o dr. Genésio, mais ou menos três e meia, quatro horas.”

“O Genésio atendia todo mundo do morro de Manguinhos [morro do Amorim], que ele era médico, receitava. Então dr. Genésio está pensando que eu sou um desses que vou me consultar. Atendia no próprio laboratório. Aí eu disse: ‘Dr. Genésio, eu sou aquele rapaz de que o seu Rômulo falou com o senhor.’ Ele era muito austero, sabe. Disse: ‘Olha, o Rômulo não me falou nada.’ Aí já fiquei com medo. Ele perguntou: ‘Você falou com o seu chefe?’ Aí que vem minha falta. Respondi: ‘Ah, falei, sim senhor.’ Não tinha falado com ninguém. Comecei a trabalhar de tarde. Quando o dr. Genésio saiu, me entregou a responsabilidade. ‘Olha, não quero aqui mentiroso.’ Olha só, eu já tinha mentido para ele. ‘Não quero mentiroso, não quero quebrador de material e não quero ladrão aqui no meu laboratório.’ Foi logo botando as condições, assim que ele era. Aí eu estou com aquele medo. No outro dia me levanto, vou para a cozinha. Chega um amigo, eu conto para ele. ‘Não, mas você está errado. Primeiro você tem que falar com seu Otto, e o Otto leva isso ao seu Ilio (era o zelador, Ilio Tamoio Prado) e então o Ilio vai liberar você.’ Aí com mais medo eu fui ficando. O medo foi tomando conta de mim. Chega o Otto, conto o que aconteceu. Ele diz: ‘Ó, não pode. Tem primeiro que levar o processo para o senhor Ilio.’ Aí fiquei trabalhando na cozinha e, de repente, lembrei que o dr. Genésio me deu a chave do laboratório. Minha gente! Voltei ao senhor Otto, disse: ‘O senhor nem me acusa nem me defende.’ Saí correndo igual um louco, fui para o laboratório do Genésio. Entrei, limpei o piso, limpei tudo. Não havia biotério. As gaiolas dos animais ficavam cá fora do pátio. Limpei aquilo tudo, rapaz, fiz uma solução de água de hipoclorito para desinfetar, ficar bem cheirosinho, botei ração balanceada para os animais, aí fui àquela cocheira (essa que vocês chamam de cavalariça). Tinha lá o velho Antônio Duarte, que era o responsável pela sangria dos animais. Pedi emprestado uma faca de capim. ‘Olha vai tirar e botar no mesmo lugar.’ Onde é o biotério – hoje está o Hugo de Souza Lopes, aquilo era um capinzal. Cheguei ali, cortei um capim verdinho, vim correndo, entreguei a faca para o seu Antônio, botei o capim para os animais, entrei no laboratório, me enclausurei. Então falei para o meu colega, Jorge Rodrigues: ‘Jorge você me faz um sanduíche, eu não estou muito bem, não quero almoçar.’ Comi dentro do laboratório e fui passando aquele dia. Cinco horas o Genésio saiu, aí eu saí também.”

Venancinho, ex-vaqueiro, ex-ajudante de cozinha, começa a descrever seu aprendizado das coisas de biologia.

“O nosso trabalho era bacteriologia geral, vamos dizer assim. O dr. Genésio tinha uma coleção de microrganismos muito grande, inclusive vindos do estrangeiro, que era para você ter chance, se porventura aqui isolasse uma bactéria, de compará-la, testá-la e fazer os soros que fossem necessários. Havia um homem só para cuidar dessa coleção, Rômulo Mônico dos Santos. Era pegar tubo de cultura, examinar se elas estavam puras ou não, repicar para os outros meios de cultura e conservar essa coleção. E nós outros a cuidar de tubos, preparo de material para o dr. Genésio, aplicar vacina humana... e cuidar daquela parte mais simples de lavar tubo de cultura, esterilização, fabrico de meios de cultura. Era muita coisa. Dr. Genésio trabalhava muito. Ele dominava. Era um homem terrível para trabalhar. E publicava muito. Dedicava-se ao estudo geral, trabalhava com salmonelas, com anaeróbicos, com soro gangrenoso, com vírus antirrábico e foi para São Paulo estudar o vírus da pistocose, que ataca os papagaios. Ele dizia para nós: ‘Olha, eu tenho um grande defeito, não aprendo a pesquisar uma área só. Eu fui educado na escola alemã. Não me adapto a pesquisar uma área só’.”

“No tempo da guerra, foi convidado para produzir o soro antigangrenoso. Eu dormia aí para aplicar o remédio nos cavalos, obter a imunidade e aproveitar o soro deles. Porque o soro antigangrenoso é muito difícil. Então o Genésio abraçou isso. Ele e o dr. Gobert [Araújo Costa] saíam do gabinete para ir à cocheira inocular cavalo. Ele, eu, todo mundo. Ele botou a mão na massa mesmo. Para fazer esse soro você tem que extrair o princípio ativo da bactéria. Depois você transforma isso em toxoide. Porque, se inocular a bactéria diretamente, você pode intoxicar o animal. Você então desintoxica esse toxoide, aí vai inocular o cavalo para promover nele a imunidade e, posteriormente, tirar o seu soro com princípio ativo e neutralizar a ação da bactéria no homem.”

“Eram vários soros espalhados pelos laboratórios do instituto. Um fazia soro antitetânico, o outro fazia soro antidiftérico... O dr. Oswaldo Cruz Filho foi encarregado, durante muito tempo, de produzir o soro antitetânico. Você não pode agrupar no laboratório várias pesquisas. Isso é contra a saúde pública. Se você está produzindo difteria, não pode produzir tétano, que tem de ser produzido em outra parte. Na seção do dr. Genésio, fazia-se também a maleína. Antes de você pegar um lote de cavalos para submeter à produção desses soros humanos, você submetia à maleína. Só servia aquele que não apresentasse nenhuma anomalia. Quem fazia era o dr. Laerte de Andrade, microbiologista, subordinado ao Genésio.”

“Convivendo com o dr. Genésio comecei a aplicar injeções em todo mundo aí. Havia aqui um porto por nome de Maria Angu. Até lá eu ia. Ia a Nova Iguaçu, a São João de Meriti, Caxias. Depois comecei a frequentar [rua] Marquês de São Vicente, [rua] Visconde de Pirajá, [bairro da] Vila Militar. Trabalhei num laboratório particular também. Daí eu fiquei versátil. Saía do instituto de madrugada, trabalhava no laboratório, depois voltava para o instituto. Eu fazia com gosto, queria aprender. Apliquei vacina contra brucelose em todo mundo. Aí já é outra coisa, porque a brucela a gente começa com dose mínima, micrograma, para desintoxicar o cara. Chama-se sensibilizar o fulano. Isso eu fiz muito. Fiz muitas amizades.”

O depoimento de Venancinho nos permite discernir diferenças marcantes entre as formas como se organizavam os trabalhos científicos no Instituto Oswaldo Cruz e na unidade que, de 1935 a 1950, a Fundação Rockefeller manteve no campus de Manguinhos para abrigar as pesquisas, os estudos epidemiológicos e as campanhas profiláticas contra a febre amarela no Brasil. É nítido o contraste entre a rígida especialização de funções no instituto norte-americano e a divisão técnica pouco nítida dos trabalhos em Manguinhos, onde cada chefe de laboratório repartia seu tempo produtivo entre as tarefas de rotina (produção) e um leque diversificado de temas de pesquisas, e onde o auxiliar combinava uma elevada capacitação, adquirida empiricamente, com as funções mais subalternas de um servente.

“O auxiliar trabalhava sempre no laboratório” – declara Venancinho –, “mas sujeito a todo tipo de serviço. Todo! Inclusive limpar o piso. Não havia assim essa separação. Isso só mudou com a vinda da Rockefeller para o Instituto Oswaldo Cruz, em 1950. Aí eles tinham mais... precisão sobre como formar o quadro. É preciso saber que no Instituto Oswaldo Cruz, naqueles tempos, não se falava em técnicos de laboratório. A não ser a pessoa formada em qualquer coisa – farmácia ou veterinária. Se o senhor pegar um livro de Oswaldo Cruz, ele diz lá que o técnico era ele. Ele e mais uns dois ou três. O resto todo era gente contratada. Inclusive o velho Adolpho Lutz. Eles achavam que o técnico era aquela pessoa preparada para pegar esse copo e discernir: esse copo é uma matéria composta disso, disso... Então, o auxiliar, ele não era assim tão importante que não pudesse limpar o piso, por exemplo. Coisa que o americano achou estranho. O auxiliar de laboratório da Rockefeller tinha um uniforme todo branco, sapato de borracha. Se não fosse assim, não podia. Deu para sentir que o povo lá tinha mais, assim, gabarito. Agora, de conhecimento intrínseco, isso é o que o americano estranhou. Como é que um homem que está aqui limpando o piso, daqui a pouco pega aí uma lâmina, olha e vai dizer o que é? Porque lá, o afiador de navalhas para a área de cortes só fazia isso. O esterilizador de material só esterilizava material. Mas também tem uma coisa, se você era médico, precisava de tantas seringas, fazia o pedido, tinha de ter. Aqui cada laboratório tinha sua parte. Funcionava também. Nós tínhamos que preparar nosso material; o outro, o dele, e assim por diante. Havia, por exemplo, o meio de cultura, onde aliás trabalhei um tempo, que fornecia garrafas para colher a vacina. O técnico recebeu, trabalhou, tinha que descontaminar e lavar aquilo e entregar limpo. O tubo de ensaio, a pipeta, era tudo lá com o laboratorista.”

Attílio Borrielo, Francisco Gomes, Venancinho tiveram como companheiro de trabalho outro menino habilidoso e inteligente, José Cunha, que ingressou direto no mundo dos laboratórios, sem passar pelas oficinas.

“Quando entrei no Instituto, tinha acabado de fazer o primário, já estava trabalhando. Resolvi fazer curso de admissão de noite, num colégio, onde conheci o dr. Genésio Pacheco. E, não sei por que cargas d’água, considerava a gente muito carente, achou por bem dar um emprego melhor aos meninos que se colocassem em primeiro lugar. Então, três de nós conseguiram emprego. Eu fui para o instituto, tirei o primeiro lugar. O outro para a Light. E o terceiro, foi ser boy de uma atacadista. A última vez que vi este rapaz ele era dono do atacado. Eu não consegui nem ser diretor do instituto.”

“Então, fui trabalhar com o Genésio Pacheco, no laboratório de bacteriologia, no dia 24 de novembro de 1924. Lembro-me bem disso, porque tinha acabado de fazer 13 anos. Mesmo sendo muito pequenino, preparava qualquer tipo de material. Eu já conhecia Manguinhos porque quando soltava papagaio no morro da Mangueira onde sempre morei, via o castelo... Diziam que era mal-assombrado. Mal sabia que um dia trabalharia lá. Depois contava aos meus colegas: ‘Não é mal-assombrado não, são laboratórios, eu trabalho lá,’ Meu chefe, o Júlio Muniz, é que achava que o instituto devia ser deitado. Porque é muito alto: ‘Por que não deitam o instituto? Toma muito espaço’.

“O Genésio Pacheco e o Júlio Muniz – esse que foi meu chefe por muitos anos – acharam por bem me trocar de laboratório. Trabalhava com doenças muitas perigosas como o tifo, febre tifoide. Bom, mas eu já sabia cultivar os paratifos, e o Júlio Muniz me levou para o laboratório que fazia estudos de protozoários de vida livre, quer dizer, sem perigo nenhum. Lá na protozoologia fiquei até ele morrer. Eles faziam muita sistemática de protozoários, quer dizer, procuravam espécies, criavam uma espécie, criavam outra, aqueles desenhos. Nisso tornei-me apto, não para desenhar, mas para fazer os preparados, corar com os devidos contrastes. Quando apareceu o Attílio para rotular essas lâminas com letrinhas divinas, letras pequeninas... que bem que ele fazia!”

“O Júlio Muniz não ensinava. Ele insinuava. Não me lembro que um dia dissesse: faz assim ou assado. Mas dava dicas e eu só ficava olhando, ajudando. ‘Me dá uma pinça, me dá isso.’ No outro dia, ele dizia: ‘Faz!’, e me confiava o serviço. Lembro a primeira vez que cultivou a riquétsia, que é o agente etiológico do tipo exantemático. A primeira vez, acho que fui eu que cultivei, inoculando ovo. O homem trouxe cultura e tecido da Alemanha, um outro que trabalhou conosco, o Aristides Marques da Cunha. Ele disse: ‘Repica esse ovo aí.’ Eu já recortei o ovo, repiquei e, no fim de um período, fiz riquétsias. Lá era assim. Quando fui trabalhar com o Júlio Muniz, comecei a ajudar o melhor de meus amigos, porque era carinhoso. Eu ia na casa dele brincar com a filha dele, não tinha essa maldade.”

“Ah, sempre gostei do meu trabalho! Parece que fui talhado para isso. Gostava de laboratório e tomava parte de todos os trabalhos científicos publicados na minha época pelo meu chefe. Eu que fazia as coisas. Tive um chefe, Aristides Marques da Cunha, que disse em palestra que eu era as mãos dele. Isso assim, em público. De fato, ele era muito pouco habilidoso, nervoso, trêmulo. Eu não, eu sabia das coisas. Se o sujeito queria fazer uma pesquisa sobre qualquer coisa – moléstia de Chagas, digamos – quem inoculava os bichos, quem sangrava os bichos, quem fazia as reações sempre éramos nós.”

“No nosso tempo a gente aprendia fazendo. Como é que a gente aprendia a injetar na orelha da coelha? Injetando. Hoje tem um aparelho que isola o coelho. Naquele tempo, não. Eu pegava três macacos. Ou senão o rhesus. Dois numa mão e um na outra, para facilitar o técnico, me lembro disso muito bem. Agora, o Attílio advoga que o sujeito de Manguinhos é excepcional. Mas não concordo muito não. Naturalmente, ele é um bom técnico; numa terra de cegos, sobressaiu.”

Na verdade, foram muito poucos os que conseguiram vencer as barreiras sociais que impediam o acesso à educação formal, não obstante isso fosse uma aspiração partilhada por todos aqueles que sobressaíram em Manguinhos, por sua competência e autodidatismo. Em seu depoimento, Venancinho assinala os limites que se colocavam à carreira do técnico.

“A pessoa se sentia bem aqui dentro. Para estudar principalmente. Quem gostasse de estudar, biblioteca imensa, um campo vasto... O laboratorista não tinha muita chance, tendo em vista não ter um preparo básico. Mas ele se dedicava a práticas que às vezes até surpreendiam os médicos. A gente entrava para o laboratório sem uma base de escola, muitos até sem o ginásio. Mas houve quem chegasse até a médico. Ernani de Moura Caldas foi auxiliar e chegou a médico; Gustavo Pinho trabalhou aqui com o dr. Cássio Miranda, chegou a médico; o Djalma Mendonça era escriturário, mas chegou a médico; Floriano Lauro trabalhava com o dr. Nicanor Botafogo, chegou a médico. Então, quem tinha base, tinha mais chance. Agora, quem não tinha, não está na hora agora de querer usufruir uma faculdade, né?”

E, no entanto, muitos tentaram adquirir esta escolaridade, mas tiveram de desistir, não só pelas exigências do trabalho no instituto como pela necessidade de complementar seus parcos salários com serviços externos, à noite, em geral em laboratórios particulares fundados por pesquisadores de Manguinhos na década de 1920, quando o acentuado declínio de seus vencimentos os empurrou, também, para o duplo emprego. Francisco Gomes saía de Manguinhos às cinco da tarde para o Laboratório de Quimioterapia de Nicanor Gonçalves, em Botafogo, onde trabalhava até as dez da noite.

José Cunha viveu essa odisseia a partir de 1929, quando resolveu casar-se e adquirir uma casa própria. “Fiz o diabo. Trabalhava em laboratório fazendo parasitologia, fiz tudo, qualquer coisa que rendesse dinheiro. À noite, tomava conta do laboratório particular do Júlio Muniz, que fazia três tipos de vacina veterinária. E antes desse laboratório teve outro, de pesquisas, ele com Olympio [da Fonseca Filho] e Aristides [Marques da Cunha]. Foi também onde aprendi muito. Pediam para examinar escarro. ‘Seu Cunha, tem cinco escarros para você.’ Ia lá à noite e examinava escarro. ‘Tem uma urina ou um sangue para fazer...’ A propósito, naquele tempo as coisas eram muito mais difíceis. Para fazer uma reação para ver gravidez era preciso ter uma coelha virgem, fazer uma cirurgia na coelha, ver o ovário, injetar a urina na orelha da coelha, depois fazer uma segunda cirurgia para diagnóstico. Hoje, se faz com uma gota dentro de um reativo. Attílio Borrielo também trabalhou em laboratório de Júlio Muniz; Amaro, outro auxiliar de Manguinhos, no de Osvino Pena. Aragão chegou a ter um instituto em Mangueira: não um laboratório de análises clínicas, não, um grande instituto industrial.”

É no final dos anos 1920 e, especialmente, na década de 1930, que se observa mais claramente o desaparecimento da dedicação exclusiva ao trabalho do instituto, tanto por parte dos pesquisadores como de seus auxiliares. Esta foi uma manifestação da prolongada crise que a instituição atravessou em consequência do estrangulamento dos recursos orçamentários, cujos efeitos só não foram mais traumáticos porque ela dispunha das rendas que lhe proporcionavam a venda da vacina contra a peste da manqueira e, em menor escala, de outros produtos biológicos. Até então, era comum os pesquisadores estenderem suas jornadas de trabalho até altas horas, pernoitando muitas vezes nos quartos que Oswaldo Cruz fizera construir no castelo com essa finalidade. Para os auxiliares de laboratório, os serões não eram fatos episódicos, mas uma rotina, até porque, para muitos deles, Manguinhos não era tão somente o lugar de trabalho, mas o espaço de moradia. Essa conjugação entre moradia e trabalho constituía um dos aspectos mais marcantes do cotidiano de Manguinhos nas primeiras décadas deste século.

“O ambiente aqui era o mais fraternal possível” – declara Francisco Gomes. “Nós vivíamos como uma família, como irmãos de uma família, porque a maioria dormia aqui, tinha apego ao serviço. Os pesquisadores, por necessidade, às vezes dormiam aqui também, e nós ficávamos até altas horas da noite trabalhando no laboratório. Nós comíamos e dormíamos aqui e, no fim de semana, íamos para casa.”

“A moradia era para os filhos do interior, que vinham para o Rio de Janeiro e não tinham para onde ir,” – conta Attílio Borrielo. “De modo geral, os paulistas, os mineiros; então o administrador dizia: apanha uma cama no hospital, apanha um travesseiro, toalha de banho, e a gente, no primeiro dia lá ia, apanhava a roupa de cama, ficava por ali.”

Attílio morou durante muitos anos com os irmãos numa casa dos tempos do Soroterápico, derrubada em 1935 para dar lugar ao prédio construído pela Fundação Rockefeller. Lá viviam duas outras famílias, a de José Dias Paredes, encarregado dos meios de cultura, e a de José de Vasconcellos, chefe da mesma seção, com a mulher e três filhos.

“Desde o tempo das obras, funcionários moraram dentro do Instituto” – confirma William Hamlet. “Organizavam um mutirão, com feijoada no domingo, e erguiam umas paredes, um telhado. O Attílio morou lá. E havia vigias que faziam a ronda. Nos terrenos de Manguinhos, em determinados pontos, tinha um relógio no qual o vigia era obrigado a dar corda de tantos em tantos minutos.”

Um destes vigias foi Joaquim Venâncio, que morou, com a mulher e depois com o sobrinho, Venâncio Cunha, numa casa que o instituto construíra para ele. Quando saía à noite, com o rifle às costas, detinha-se sempre para uma prosa com o pessoal que tratava dos cavalos usados na fabricação dos soros e que morava nas próprias cocheiras, ou com os trabalhadores que habitavam o sótão do pavilhão da peste.

Em seu depoimento, Attílio Borrielo conta vários episódios do dia a dia em Manguinhos. Relembra, por exemplo, os banhos e as pescarias nas águas limpas do Faria-Timbó: “Em meia hora, com uma vara de pescar, arranjava peixe para o meu almoço aos domingos. Cada um big de peixe! E havia árvores grandes por aí. Mangueiras muito boas. Eu não fazia outra coisa senão, de quatro até a noite, apanhar manga. No meu quarto tinham caixotes e caixotes de manga. Diz que a manga é indigesta. Eu já era para ter morrido. Caju, goiaba, coco... Nós trabalhávamos muito, todos nós. Muito respeito! E muita brincadeira. Os que moravam aqui, brincavam muito. Mas era uma amizade, uma coisa. Tínhamos café da manhã, almoço, café da tarde, jantar e dormir.”

“Comida, como eles foram cortando aos poucos, nós nos defendíamos lá no refeitório, nós que morávamos aqui, tínhamos habilidade de abrir armário sem fazer escândalos. Tinham aqueles pratos de marmelada, goiabada, manteiga. O Nogueira, um espanhol, era o copeiro, então sobrava e ele guardava. Então nós íamos... Vamos admitir, um prato tinha cinco fatias de goiabada, daquele prato tirava uma; outro prato tinha oito, tirava duas! Daqueles pratos todos, a gente fazia o farnel e, no outro dia, Nogueira não desconfiava. Recentemente, quando subi com o meu filho, eu disse: ‘Tá vendo aquela janela do refeitório amarelo, tá vendo aquela janelinha ali? O teu pai pulou aquilo para tirar comida de dentro, dezenas e dezenas de vezes!’.”

As mudanças político-administrativas ocorridas após a revolução de 1930, sobretudo durante o Estado Novo, interfeririam nessa ambiência que os técnicos definem como “cordial” e “familiar”, ao introduzirem mediações de caráter burocrático em relações que transcorriam até então numa órbita privada. A moradia nos terrenos de Manguinhos foi, aos poucos, tornando-se inviável depois que a Diretoria do Patrimônio, criada em 1932, passou a exigir que a direção do instituto descontasse em folha de pagamento aluguéis pelo uso de próprios nacionais. Por sua vez, as relações de trabalho, que se estribavam na sujeição incondicional à autoridade prussiana ou à condescendência paternal dos chefes, passaram a transcorrer em outras bases com a instituição do ponto pelo Departamento Administrativo do Serviço Público (Dasp), criado em 1938, Attílio refere-se a esta mudança.

“O médico, arrumando o seu paletó, dizia: ‘Acende esta autoclave, e esteriliza isto e faz aquilo.’ E o indivíduo ficava até as sete, oito, nove horas da noite. Não tinha ponto. No outro dia, chegava meia hora atrasado, uma hora atrasado, não tinha ponto! Ele não era punido; tirava seu paletozinho e começava a trabalhar. Também não recebia por aquelas horas que trabalhou a mais, porém, se ele ficasse doente, era amparado. Eu contei que Chagas mandou funcionários até para Belo Horizonte para se refazer. Então ele retribuía, dando tudo de si para a repartição. Muito bem! Veio o Dasp, criou o ponto. Entra um funcionário administrativo e diz: ‘O senhor tem que entrar às nove horas; às 9:05h ponto cancelado.’ Chegava de tarde, dizia o médico: ‘Faz isto.’ E o servente: ‘Não senhor! Olha aqui, tá chegando a minha hora, quatro horas.’ E ia embora. Se exigiam hora de entrada, ele também tinha o direito de exigir a hora de saída.”

José Cunha também detecta uma grande mudança na ambiência do instituto nesses anos. “O povo do instituto era uma família mesmo. Depois não. Piorou. Eu pelo menos conheci a mulher, a mãe, os filhos de todos que trabalharam comigo. E eles também conheceram a minha mãe e minha mulher, mais tarde meus filhos. Minha irmã, já está velha, foi muitas vezes lá me ajudar tratar de ratos, aos domingos. E trabalhava até tarde. Até meia-noite eu trabalhei na febre amarela, em 1928. Tinha até medo de ir sozinho para casa. Ficava esperando a hora da enfermeira, para vir com ela.”

Mas discorda de seu colega Attílio na avaliação do ponto: “Depois do ponto, não. Aí os direitos eram iguais. Daí a razão de eu achar que o diretor Aragão foi um grande sujeito. Ponto é uma disciplina, uma coisa lógica. Concordo plenamente. Com o ponto eu tinha que trabalhar tantas horas quanto a minha carga horária. Mas não trabalhar a critério do chefe. Isso era uma das barbaridades no instituto. Cada chefe era um deusinho. E bárbaros! Eles tinham o funcionário como empregado. O próprio dr. Aristides Marques da Cunha se referia a nós outros como empregados. Pequenos deuses, todos eles eram. Quase sem exceção.”

Conclusão

Os depoimentos que acabamos de ler encerram um elenco muito rico de questões relacionadas à história do Instituto Oswaldo Cruz e as características da atividade científica nas primeiras décadas deste século.

Os laboratórios de Manguinhos conectavam-se a um complexo de atividades que nos sugerem a imagem de uma célula viva: os trabalhos de rotina prolongavam-se nos biotérios, aquários, cavalariças e pastos. Das máquinas geradoras provinha a energia elétrica, o vapor e o ar aquecido para acionar os maquinismos, as instalações e os instrumentos que os pesquisadores manipulavam. Do sistema de esgotos extraía-se adubo para as pastagens e biogás para iluminar algumas dependências do instituto. Os gabinetes de fotografia e desenho proporcionavam aos cientistas os meios mais preciosos para a representação dos organismos que seus microscópios perscrutavam. A biblioteca colocava-os em sintonia com as fronteiras do conhecimento médico de sua época e com o universo das instituições que se conformavam à comunidade científica internacional. A tipografia confeccionava as publicações que lhes asseguravam legitimidade perante seus pares. Os meios de cultura, a vidraria e outros artefatos indispensáveis aos trabalhos executados nos laboratórios eram produzidos também em Manguinhos. Outras seções encarregavam-se de envasar, rotular, acondicionar e expedir os produtos biológicos fabricados no instituto, de conservar suas instalações e equipamentos e até de prover a cozinha dos funcionários de hortaliças.

Essa complexa especialização de funções entre os serviços de apoio tinha, como contrapartida, uma divisão de trabalho pouco nítida no âmbito dos laboratórios, cujos chefes dedicavam-se simultaneamente à produção de soros e vacinas, ao ensino dos doutorandos de medicina e a uma gama diversificada de temas de pesquisa. Nesse sentido, cada laboratório era um pequeno mundo, e as “mãos do pesquisador” – para usar a expressão feliz de José Cunha – eram as de seus serventes, que executavam desde as tarefas mais desqualificadas até as operações mais engenhosas e sofisticadas. No texto, chamamos atenção para o contraste entre este padrão e os critérios tayloristas de organização do trabalho que regiam os serviços de febre amarela criados pela Fundação Rockefeller no campus de Manguinhos, onde cada indivíduo tinha uma tarefa precisa em engrenagens nitidamente diferenciadas e hierarquizadas.

As múltiplas habilidades do técnico de Manguinhos aliadas à sua intimidade com os assuntos pesquisados nos laboratórios eram adquiridas empiricamente, por processos informais de aprendizado – a observação direta, o ensaio e o erro – que exigiam do técnico não só muita destreza manual como uma grande dose de curiosidade e inteligência para assimilar os conceitos e objetivos com que operava o cientista.

Manguinhos não foi uma escola apenas para seus técnicos, recrutados ainda meninos no universo das oficinas. Com algumas exceções, formou também os quadros de suas primeiras gerações de cientistas, os quais, não obstante a titulação acadêmica adquirida na Faculdade de Medicina, capacitaram-se para medicina experimental no âmbito e à custa do instituto: em seu curso de bacteriologia, na prática de laboratório e nas viagens de estudo financiadas pela verba da manqueira.

Manguinhos é um microcosmo socialmente hierarquizado, onde convivem dois mundos: o dos pesquisadores e o dos subalternos. Entre eles interpõem-se relações de hierarquia muito bem definidas que, no entanto, aparecem eivadas de ambiguidade na convivência dos cientistas com seus auxiliares técnicos. Disso dão provas os depoimentos que acabamos de ler: a condição do auxiliar reflete o profundo dilaceramento entre a identidade do subalterno, que ele, em parte, superou, e a identidade do outro, do cientista, que jamais alcançará. O sentimento de sua diferença em relação ao mundo das oficinas traduz-se em pequenas vaidades, como usar o mesmo avental do cientista, sentar-se com ele à hora das refeições e lhe dirigir a palavra de cabeça erguida. E são reais as diferenças: o ingresso nos laboratórios abre-lhe a possibilidade de mobilidade social, de penetrar nos códigos de uma cultura que sua condição de classe tornava inacessível.

Perguntando e lendo, torna-se capaz de compreender o sentido das operações que executa e de inventar também. Ainda assim, o acesso à instrução formal e aos canais que lhe franqueariam verdadeiramente o caminho ao mundo dos cientistas permaneceria para ele vedado. O auxiliar é indispensável ao cientista, e esta relação de confiança irrestrita extrapola, muitas vezes, o âmbito do trabalho para a vida pessoal. Ela é, entretanto, marcada por uma contradição que as entrevistas revelam e cujos polos são a prepotência, que faz dos pesquisadores “pequenos deuses” e devolve o auxiliar à sua condição subalterna, e a cordialidade, que torna essa convivência semelhante à de uma “grande família”.

Não obstante Manguinhos fosse, pela natureza de suas atividades, uma instituição moderna em seu tempo, as relações de trabalho que vigoravam no âmbito das oficinas e laboratórios traziam as marcas inconfundíveis de uma sociedade agrária e patriarcal, recém-egressa da escravidão. Estas marcas são visíveis nos relatos acerca do recrutamento, da profissionalização, da jornada de trabalho e das condições de moradia.

A instituição do ponto assinalou a primeira ruptura nas bases patrimoniais da convivência entre o mundo dos cientistas e dos subalternos. A adoção da legislação trabalhista, ainda no Estado Novo, a criação de escolas para profissionalização de técnicos, muito mais tarde, aliadas ao desenvolvimento de campos científicos novos e mais complexos contribuíram para engendrar outros tipos de relações de trabalho em Manguinhos.

REFERÊNCIAS

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  • VIRCHOW, R. Der Armenarzt. Die Medicinische Reform, n.18, p.125-127, 3 nov. 1848.

NOTAS

  • 1
    Silvia Figueirôa (1998)FIGUEIRÔA, Silvia Fernanda de Mendonça. Mundialização da ciência e respostas locais: sobre a institucionalização das ciências naturais no Brasil. Asclepio, v.50, n.2, p.107-123, 1998. , docente do Instituto de Geociências da Universidade de Campinas, um dos centros pulsantes da história das ciências no país, publicou um dos primeiros inventários da produção latino-americana na área. Análise crítica muito interessante do viés nacionalista na historiografia sobre a história natural na região encontra-se em Duarte (2013)DUARTE, Regina Horta. Between the national and the universal: natural history networks in Latin America in the nineteenth and twentieth centuries. Isis, v.104, n.4, p.777-787, 2013. .
  • 2
    O livro de Kuhn (1970)KUHN, Thomas. The structure of scientific revolution. Chicago: The University of Chicago Press, 1970. foi publicado originalmente em 1962 como parte da International Encyclopoedia of Unified Science , editada por Otto Neurath e Rudolf Carnap. A segunda edição, como livro independente, é de 1970. O livro de Fleck, de 1935, no qual Kuhn se inspirou, teve a primeira edição em língua espanhola em 1986. Sobre a redescoberta de Fleck, ver Löwy (1994)LÖWY, Ilana. Ludwik Fleck e a presente história das ciências. História, Ciências, Saúde – Manguinhos, v.1, n.1, p.7-18, 1994. .
  • 3
    Entre muitas publicações sobre o estado da arte na historiografia cito aquela organizada por Burke (1992)BURKE, Peter (org.). A escrita da história. Novas perspectivas. São Paulo: Ed. Unesp, 1992. . Bom balanço das transformações em curso na história da saúde, nos anos 1990, encontra-se no prefácio de Fee (1993)FEE, Elizabeth. Public health, past and present: a shared social vision. In: Rosen, George. A history of public health. Baltimore: Johns Hopkins University Press, 1993. p.IX-LXVII. à reedição em inglês do clássico de George Rosen, traduzido no ano seguinte para o português (sem o referido prefácio) com o título Uma história da saúde pública ( Rosen, 1994ROSEN, George. Uma história da saúde pública. São Paulo: Editora Unesp; Hucitec; Abrasco, 1994. ).
  • 4
    Entre muitos trabalhos publicados nesta vertente destaco Benchimol (1990a), Benchimol e Teixeira (1993)BENCHIMOL, Jaime Larry; TEIXEIRA, Luiz Antônio. Cobras, lagartos e outros bichos: uma história comparativa dos institutos Butantã e Oswaldo Cruz. Rio de Janeiro: Fiocruz; Editora da UFRJ, 1993. , Britto (1995)BRITTO, Nara. Oswaldo Cruz: a construção de um mito na ciência brasileira. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, 1995. , Teixeira (1995)TEIXEIRA, Luiz Antônio. Ciência e saúde na terra dos bandeirantes: a trajetória do Instituto Pasteur de São Paulo no período de 1903-1916. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, 1995. , Teixeira, Sandoval, Takaoka (2004), Benchimol e Sá (2004-2007), Sá (2005)SÁ, Magali Romero. The tropical medicine in Brazil: the discovery of Trypanosoma cruzi in the German School of Protozoology. Parassitologia, v.47, p.309-317, 2005. , Sá (2006)SÁ, Dominichi Miranda de. A ciência como profissão: médicos, bacharéis e cientistas no Brasil (1895-1935). Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, 2006. , Sá e Silva (2010)SÁ, Magali Romero; SILVA, André Felipe Cândido da. La Revista Médica de Hamburgo y la Revista Médica Germano-Ibero-Americana: diseminación de la medicina germánica en España y América Latina (1920-1933). Asclepio, v.62, p.7-34, 2010. , Sá e Viana (2010)SÁ, Magali Romero; VIANA, Larissa. La science médicale entre la France et le Brésil: stratégies d’échange scientifique dans la période de l’entre-deux guerres. Cahiers des Amériques Latines, v.65, p.65-88, 2010. , Edler (2011)EDLER, Flavio Coelho. A medicina no Brasil Imperial: clima, parasitas e patologia tropical. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, 2011. , Silva (2011)SILVA, André Felipe Cândido da. A trajetória científica de Henrique da Rocha Lima e as relações Brasil-Alemanha (1901-1956). Tese (Doutorado em História das Ciências e da Saúde) – Casa de Oswaldo Cruz/Fiocruz, Rio de Janeiro, 2011. .

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    15 Abr 2022
  • Data do Fascículo
    Jan-Mar 2022

Histórico

  • Recebido
    10 Abr 2020
  • Aceito
    5 Ago 2020
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