Acessibilidade / Reportar erro

Coleção de modelos anatômicos do Museu da Pharmacia da Universidade Federal de Ouro Preto

The anatomical model collection at the Universidade Federal de Ouro Preto’s Museum of Pharmacy

Resumo

A Escola de Farmácia de Ouro Preto, fundada em 1839, foi a primeira da América Latina desvinculada de uma escola de medicina. No final do século XIX, contou com um acervo de modelos anatômicos franceses dos renomados Deyrolle, Dr. Auzoux e Vasseur-Tramod, muitos fabricados em cera ou papel machê. O presente trabalho teve como objetivo resgatar, identificar, higienizar, restaurar e expor os modelos. De unidades acadêmicas da Universidade Federal de Ouro Preto, 17 modelos anatômicos foram resgatados e transferidos para o Museu da Pharmacia, onde receberam o devido tratamento. Os modelos em melhores condições foram expostos no museu formando parte da coleção de ensino do curso de farmácia de Ouro Preto.

anatomia; modelos anatômicos; história; museu; farmácia

Abstract

The Ouro Preto School of Pharmacy was founded in 1839 and was the first pharmacy school in Latin America independent from a medical school. At the end of the nineteenth century, it had a collection of French anatomical models made by Deyrolle, Dr. Auzoux, and Vasseur-Tramod, many produced from wax or papier-mâché. This project involved recovering, identifying, cleaning, restoring, and exhibiting seventeen models found in various facilities from Universidade Federal de Ouro Preto. The models in good condition were exhibited in the Museum of Pharmacy (where this work was carried out) as part of the teaching collection for the Ouro Preto pharmacy course.

anatomy; anatomical models; history; museum; pharmacy

O estudo da anatomia humana é uma das práticas mais antigas das ciências básicas, tendo seu início em Alexandria, numa das primeiras escolas de anatomia de que se tem conhecimento (Siddiquey, Husain, Laila, 2009). De acordo com Malomo, Idowu, Osuagwu (2006), alguns períodos da história foram marcantes para o desenvolvimento da anatomia humana como ocorreu no Renascimento. A constante procura pelo realismo nas representações artísticas do corpo humano durante o Renascimento motivou alguns nomes, como Leonardo Da Vinci, a estudar profundamente a anatomia, inclusive com estudos em corpos humanos (Malomo, Idowu, Osuagwu, 2006). Outro marco histórico foi a publicação, em 1543, do livro de anatomia De humani corporis fabrica, de Andreas Vesalius, considerado o pai da anatomia moderna. Seu livro ilustrado explora o uso de imagens com explicações textuais e instiga o estudo da anatomia por meio da observação e dissecação, tornando-se, então, a nova referência para a anatomia humana (Nutton, 2012NUTTON, Vivian. Vesalius revised: his annotations to the 1555 Fabrica. Medical History, v.56, n.4, p.415-443, 2012.). A partir do final do século XVIII, o estudo da anatomia foi impulsionado tanto por seu valor para as artes plásticas quanto para o ensino nas escolas médicas europeias (Malomo, Idowu, Osuagwu, 2006). Historicamente, estudar em cadáveres humanos sempre foi um grande desafio (Siddiquey, Husain, Laila, 2009). Além das questões culturais e religiosas que restringiam o uso de corpos nas escolas de medicina, o estudo em cadáveres sofria com os precários recursos de conservação disponíveis no século XVIII (Siddiquey, Husain, Laila, 2009). Nesse período, um cadáver normalmente era dissecado em poucos dias, até se tornar intolerável seu estudo devido à rápida degradação dos tecidos. Substâncias conservantes de tecidos como o formaldeído, por exemplo, passaram a ser usadas amplamente para conservação de cadáveres a partir do final do século XIX (Brenner, 2014BRENNER, Erich. Human body preservation: old and new techniques. Journal of Anatomy, v.224, n.3, p.316-344, 2014.).

Com o crescimento das universidades e dos cursos de medicina, principalmente em países europeus, houve a necessidade de ampliar os recursos didáticos para o estudo prático de anatomia no século XVIII. Renomados anatomistas como Cowper (1698)COWPER, William. The anatomy of humane bodies. Oxford, 1698. Disponível em: https://www.nlm.nih.gov/exhibition/historicalanatomies/browse.html. Acesso em: 5 fev. 2021.
https://www.nlm.nih.gov/exhibition/histo...
, Gautier d’Agoty (1752)GAUTIER D’AGOTY, Jacques Fabian. Anatomie generale des viscères en situation, de grandeur et couleur naturelle, avec l’angeologie, et la nevrologie de chaque partie du corps humain. Paris, 1752. Disponível em: https://www.nlm.nih.gov/exhibition/historicalanatomies/browse.html. Acesso em: 4 fev. 2021.
https://www.nlm.nih.gov/exhibition/histo...
e Vimont (1832-1835) desenvolveram magníficos atlas que foram essenciais para a divulgação científica. No entanto, a grande inovação metodológica para o ensino de anatomia dos séculos XVIII e XIX foi a introdução dos modelos anatômicos em cera, gesso e papel machê (Malomo, Idowu, Osuagwu, 2006). Por mais de 300 anos, os modelos anatômicos ampararam o ensino prático da anatomia, e ainda podemos afirmar seu uso nos dias atuais (Lozano et al., 2017LOZANO, Maria Teresa Ugidos et al. 3D digitization and prototyping of the skull for practical use in the teaching of human anatomy. Journal of Medical Systems, v.41, n.5, p.83, 2017.). Contudo, o ensino de anatomia humana, atualmente, conta também com modernos recursos pedagógicos e tecnológicos, metodologias artísticas e ferramentas educacionais (Sousa, Cunha, 2017; Smith et al., 2018SMITH, Claire F. et al. Take away body parts! An investigation into the use of 3D printed anatomical models in undergraduate anatomy education. Anatomical Sciences Education, v.11, n.1, p.44-53, 2018.).

Embora a origem dos modelos anatômicos para ensino seja incerta, a ceroplastia, para fins educacionais, provavelmente teve sua origem na Itália do século XVIII (Marković, Marković Zivković, 2010). Na França, no século XIX, a Deyrolle foi uma importante companhia que produziu modelos anatômicos, embora a anatomia humana não fosse o objeto de seu maior interesse (Talairach-Vielmas, 2014TALAIRACH-VIELMAS, Laurence. Anatomical models: a history of disappearance? Histoire, médecine et santé, n.5, p.9-20, 2014.). No mesmo período, em Paris, devido à constante falta de cadáveres para aulas práticas, o estudante de medicina Louis Thomas Jérôme Auzoux desenvolveu a técnica do papel machê, com o qual construiu uma grande coleção de modelos anatômicos de qualidade impressionante (Valdecasas et al., 2009VALDECASAS, Antonio G. et al. Understanding complex systems: lessons from Auzoux’s and von Hagens’s anatomical models. Journal of Biosciences, v.34, n.6, p.835-843, 2009.). A qualidade dos modelos franceses do século XIX foi tamanha, que seu uso se disseminou além das fronteiras da Europa, chegando até a América do Sul (Valenzuela, 2015VALENZUELA, Julio Luis Cárdenas. La estatua anatómica del Dr. Auzoux. Primer modelo anatómico de uso docente en Chile. International Journal of Morphology, v.33, n.1, p.393-399, 2015.).

Documentos disponíveis no Museu da Pharmacia (MPh) da Universidade Federal de Ouro Preto (Ufop) registram os primeiros movimentos da construção da disciplina de anatomia humana e do Anfiteatro de Anatomia da Escola de Farmácia de Ouro Preto, no final do século XIX, pela aquisição de modelos anatômicos franceses (Sousa, Borges, 2020). No século XIX, o fornecedor de modelos científicos da França, Paul Rousseau, abasteceu com modelos de ensino e equipamentos científicos a primeira escola de farmácia da America Latina, a Escola de Farmácia de Ouro Preto (Sousa, Borges, 2020).

A Escola de Farmácia de Ouro Preto foi fundada em 1839, e, em 1969, juntamente com a Escola de Minas (fundada em 1876), constituíram a fundação da Ufop (Godoy, 2019GODOY, Victor Vieira. A Escola de Farmácia de Ouro Preto: a memória sublimada. São Paulo: Metalivros, 2019.). Consequentemente, grande parte do acervo original dessas duas escolas, tais como livros, materiais didáticos, equipamentos e outros documentos, tornou-se parte da trajetória histórica da Ufop. A análise do acervo histórico referente à anatomia humana mostrou uma rica coleção de modelos anatômicos de renomados fabricantes franceses, a saber, o anatomista Louis Thomas Jérôme Auzoux (Dr. Auzoux), a companhia de taxidermia e ciências naturais Deyrolle e a oficina de modelos anatômicos Vasseur-Tramond. Até 2016, entretanto, essa coleção se encontrava dispersa em diversos setores e departamentos da Ufop, muitas vezes abandonada em meio à poeira e ao esquecimento. Essa condição colocava uma importante parte da história da anatomia brasileira e da memória da Escola de Farmácia de Ouro Preto em sério risco de desaparecimento.

Até aquele momento, nenhum trabalho fora realizado para preservar, identificar e divulgar o acervo histórico de peças e modelos anatômicos da Ufop. Dessa forma, o presente estudo teve como objetivos resgatar, identificar, restaurar e expor os modelos anatômicos históricos usados no ensino de anatomia humana da Escola de Farmácia até o século XXI. Adicionalmente, são apresentadas informações obtidas por análise documental acerca da construção da disciplina de anatomia humana na Ufop, a fim de dar reconhecimento, visibilidade e a devida valorização a esse importante acervo.

Identificação e preservação dos modelos anatômicos

A partir de registros visuais e documentais da Ufop, foi realizada uma busca por materiais didáticos históricos e modelos anatômicos de ensino, utilizados no século XIX na Escola de Farmácia de Ouro Preto. A busca foi realizada em setores da Ufop, a saber: Laboratório de Anatomia Humana, Departamento de Ciências Biológicas, MPh, Escola de Farmácia e Escola de Minas. Os setores foram identificados com base nos seguintes critérios: (1) fazer parte, direta ou indiretamente, da formação da Escola de Fármacia de Ouro Preto ou da Ufop; (2) ter vínculo com a disciplina de anatomia humana. Após a conclusão da etapa de busca e resgate, os modelos encontrados foram identificados e fichas descritivas foram construídas para cada modelo contendo as seguintes informações:

  • - Nome do modelo;

  • - Número de patrimônio;

  • - Categoria;

  • - Dimensões;

  • - País de origem;

  • - Material e técnica;

  • - Data;

  • - Fabricante;

  • - Marcas e inscrições;

  • - Função e funcionamento;

  • - Foto do modelo.

Os critérios para identificação de um modelo anatômico de relevância histórica foram: (1) data de fabricação anterior a 1969 (data de fundação da Ufop); (2) material de composição das peças em cera, papel machê, madeira, tecido ou resina, materiais tipicamente usados no século XIX; (3) registro documental ou fotográfico indicando a existência do material no período anterior a 1969. Foram considerados modelos históricos aqueles que se enquadraram em, pelo menos, um dos critérios acima citados.

Não foram consideradas, então, peças desprovidas de registro de data de fabricação produzidas em polietileno, polipropileno, plástico, borracha, acrílico ou outro material sintético usado nos atuais modelos anatômicos de ensino.

O processo de higienização foi detalhadamente documentado por fotos do antes e depois, como exemplificado na Figura 1, painéis A, B, C e D. Todas as etapas foram realizadas no MPh. Os técnicos envolvidos no processo usaram equipamentos de proteção individual e tomaram medidas necessárias e adequadas para evitar danos aos modelos. Os modelos foram higienizados mecanicamente com o auxílio de trinchas de diferentes tamanhos, de cerdas macias e espátulas de madeira e algodão (Figura 1, painéis E e F). Em seguida, os modelos foram quimicamente higienizados, utilizando carboxila metilcelulose diluída a 20% em água. Foram retiradas as etiquetas de papel coladas nas bases com o auxílio de bisturi e, após a limpeza, as partes em madeira foram tratadas com fipronil.

Figura 1
Fotos exemplificando o processo de higienização mecânica. A e B mostram o antes e depois do processo de higienização de um modelo fabricado basicamente em papel machê por Dr. Auzoux. C e D mostram o antes e depois de um modelo em cera e base em madeira do fabricante Vasseur-Tramond. E exemplifica o processo de higienização com uma espátula de madeira e algodão na extremidade. F exemplifica o processo de higienização usando uma trincha de cerdas macias (Acervo do Museu da Pharmacia da Ufop)

Os modelos em cera do sistema nervoso central (encéfalos) foram restaurados. Os modelos originais possuíam um adorno em tecido aveludado na cor roxa entre o modelo e sua base de madeira. Devido ao ressecamento e à descoloração do tecido original, foi realizada a substituição por outro de cor e textura semelhantes. Os outros modelos não foram submetidos ao processo de restauração, pois apresentavam bom estado de preservação. Os modelos higienizados e restaurados foram então utilizados na exposição descrita em “Exposição dos modelos anatômicos”.

Análise documental

Inicialmente, os documentos selecionados nos arquivos físicos do MPh foram aqueles que apresentavam declaração escrita, oficialmente reconhecida, do registro ou da relação direta com o ensino de anatomia humana, com os modelos de ensino ou com seus fabricantes e distribuidores. Os documentos foram fotografados e selecionados de acordo com as seguintes categorias:

  • - datados entre 1839 (fundação da Escola de Pharmacia) e 1969 (Fundação da Ufop);

  • - registro indicando o estudo de anatomia da Escola de Farmácia;

  • - registro indicando atividade no antigo Anfiteatro de Anatomia da Escola de Farmácia;

  • - registro de pedido ou recibo de compra de modelos anatômicos;

  • - registro nos livros de ponto ou de frequência dos professores de anatomia;

  • - registro fotográfico indicando o estudo (teórico ou prático) de anatomia humana;

  • - registro em trabalhos de conclusão de curso, monografias, artigos ou outro documento acadêmico relacionado à anatomia humana.

Exposição dos modelos anatômicos

Após identificação e higienização dos modelos anatômicos, foi planejada e realizada a exposição no MPh, localizado no centro histórico de Ouro Preto (MG). Foram utilizadas duas vitrinas horizontais de dimensões iguais (Figuras 5 e 6) e uma vertical, sendo todas em madeira e vidro. O mobiliário também era acervo do MPh, até então localizado em reserva técnica. Todos os modelos expostos foram identificados individualmente com etiqueta padronizada contendo o motivo anatômico (função e funcionalidade), fabricante, data da fabricação, país de origem e breve descrição anatômica. Também foram confecionados painéis com breve biografia dos fabricantes Deyrolle, Dr. Auzoux e Vasseur-Tramond. A lógica da organização da exposição seguiu a descrição da anatomia humana em sistemas orgânicos e sentidos especiais: visão, audição, equilíbrio, olfato e gustação.

Figura 5
Estante com modelos anatômicos na primeira exposição da anatomia humana no Museu da Pharmacia no centro histórico de Ouro Preto (MG). Em exposição nesse mobiliário: (1) dente, (2) hemiface, (3) laringe e traqueia, (4) crânio, (5) orelha completa desmontada (Acervo do Museu da Pharmacia da Ufop)

Figura 6
Modelos de anatomia animal (à esquerda, uma cabeça de cobra) e vegetal (à direita, quatro modelos vegetais) da exposição Anatomia (Acervo do Museu da Pharmacia da Ufop)

Resultados

Identificação dos modelos anatômicos

Foram identificados 17 modelos anatômicos históricos fabricados predominantemente em cera, papel machê, madeira e tecido (Quadro 1). Os dados foram coletados nos próprios modelos, nos catálogos originais (Auzoux, 1841AUZOUX. Catalogue of preparations of artifical anatomy of Dr. Auzoux, 1841. Disponível em: https://collections.nlm.nih.gow/ext/mh1/101170613/PDF/101170613.pdf. Acesso em: 21 ago. 2020.
https://collections.nlm.nih.gow/ext/mh1/...
) e em artigos científicos (Valdecasas et al., 2009VALDECASAS, Antonio G. et al. Understanding complex systems: lessons from Auzoux’s and von Hagens’s anatomical models. Journal of Biosciences, v.34, n.6, p.835-843, 2009.; Marković, Marković Zivković, 2010; Gomis, Ruiz-Berdún, 2016).

Quadro 1
Descrição dos modelos anatômicos de origem francesa em exposição ou em reserva técnica no Museu da Pharmacia/Ufop

Considerando as regiões corporais (segmentos corporais), verificamos que a coleção de modelos anatômicos é formada em sua maior parte por peças que representam estruturas da cabeça e pescoço em 11 modelos. Nesse cenário, os órgãos dos sentidos foram representados seis vezes em diferentes modelos, tais como: o olho ampliado em peça única; o olho como parte do modelo de corpo inteiro, sendo pequeno, desmontável e contendo detalhamento de estruturas internas do globo ocular; os ossos temporais que representam as estruturas ósseas dos órgãos da audição e equilíbrio, além de mostrar um dos ossículos denominado estribo; a hemiface em cera apresentando de forma detalhada a inervação da língua; as estruturas associadas ao olfato foram representadas no modelo ampliado da cavidade nasal; os órgãos da audição e do equilíbrio foram representados nas orelhas ampliadas.

O sistema muscular está representado, quase em sua totalidade, no modelo de corpo inteiro, que mostra em detalhes os músculos e tendões. Os músculos estão como peças destacáveis para visualização de estruturas profundas como vasos, nervos ou órgãos. O sistema circulatório foi identificado no modelo de coração e pulmões como peças isoladas, e também no modelo de corpo inteiro, onde vasos sanguíneos estão detalhadamente representados. O sistema esquelético está representado apenas por modelos da cabeça e pescoço, principalmente pelo crânio desarticulado de acordo com a técnica de Beauchêne. A Figura 2 mostra a frequência da representação sistêmica da coleção de modelos do presente estudo.

Figura 2
Gráfico da frequência com que os sistemas orgânicos são representados nos modelos anatômicos do Museu da Pharmacia. Alguns modelos, devido a sua complexidade, representam estruturas de mais de um sistema orgânico (S = sistema) (Fonte: elaborado pelos autores)

Um dos modelos anatômicos de maior destaque é o corpo humano completo, utilizado nas aulas práticas para retratar praticamente todos os sistemas orgânicos, com destaque para músculos esqueléticos, vasos e nervos. Esse modelo anatômico masculino produzido por Louis Thomas Jerome Auzoux entre 1833 e 1866, na França, é considerado um clássico dos trabalhos em papel machê. Os músculos esqueléticos estão bem detalhados, assim como nervos e vasos superficiais. A parede abdominal destacável expõe os órgãos internos.

Os sistemas renal, reprodutor, digestório, bem como o sistema nervoso autônomo e os nervos periféricos estão presentes apenas no modelo de corpo inteiro, sem detalhamentos.

Análise documental e material

Os registros bibliográficos e documentais encontrados indicam que a anatomia humana entrou na matriz curricular do curso de farmácia próximo de 1893, com o nome de anatomia descritiva, como encontrado em um diário de classe do mesmo período de aquisição dos materiais didáticos e da criação do Anfiteatro de Anatomia (De Paula, 2010DE PAULA, Leandro. Políticas públicas e a escola de farmácia de Ouro Preto: entre a mudança e a resistência (1891-1910). CSOnline – Revista Eletrônica de Ciências Sociais, n.8, 2010.; Granato, Lourenço, 2010). Dotações financeiras destinadas à Escola de Farmácia pelo governo republicano no final do século XIX (Granato, Lourenço, 2010; Godoy, 2019GODOY, Victor Vieira. A Escola de Farmácia de Ouro Preto: a memória sublimada. São Paulo: Metalivros, 2019.) indicam a aquisição de material didático da Europa, incluindo grande parte dos modelos anatômicos, pois na documentação consta a aquisição proveniente da Deyrolle, companhia francesa conhecida por produzir equipamentos científicos e modelos anatômicos, tanto humanos quanto animais e vegetais (Granato, Lourenço, 2010). Identificamos também documento de solicitação para a aquisição de materiais de laboratório da Casa Paul Rousseau (Paris), o mesmo identificado em algumas etiquetas dos modelos anatômicos do presente estudo. Um documento que exemplifica o empenho na aquisição dos modelos anatômicos é a carta destinada ao então presidente do estado de Minas Gerais, em 1892 solicitando uma “terceira prestação” ao representante da Casa Paul Rousseau destinada aos laboratórios da Escola de Farmácia, com os seguintes dizeres:

Rogo a Vexa que digne ordenar ao V. Diretor do Tesouro a terceira prestação de 1220 francos e 85 centimes a despesa esta feita com os Laboratorios d’esta Escola, ao Sen. Charles Vautelet agente da Casa Paul Rousseau de Paris e que reside ... no Rio de Janeiro (Termo de solicitação, 12 jan. 1892).

O modelo do corpo humano completo esteve em pleno uso nas aulas práticas de anatomia até meados de 2016, quando foi resgatado para preservação e exposição. Como demonstração documental do uso desse modelo, a fotografia de Luiz Fontana (1897-1968), do início do século XX (Figura 3) retrata o modelo de corpo inteiro como parte integrante do laboratório de biologia da Escola de Farmácia na época, hoje prédio do MPh.

Figura 3
Fotografia do laboratório de biologia da Escola de Farmácia no início do século XX. A seta preta aponta a presença do modelo anatômico de corpo inteiro (Dr. Auzoux) indicando a prática de anatomia no início daquele século (Foto de Luiz Fontana, Acervo do Museu da Pharmacia da Ufop)

Um diário de classe, com os pontos de aulas, ditos como “lições” de anatomia humana (Figura 4), retrata o conteúdo abordado, bem como a frequência semanal das aulas durante o final do século XIX e início do XX na Escola de Farmácia de Ouro Preto. No período em questão, os anos letivos eram contados de março a março. Nesse documento foi observado que os conteúdos mais abordados na anatomia foram: osteologia, principalmente da cabeça e coluna vertebral; sistema circulatório, especificamente o coração; tórax; músculos e ossos dos membros; sistema respiratório; vísceras abdominais (estômago, fígado, intestino delgado, intestino grosso, pâncreas) e sistema nervoso central. Apesar de o documento não descrever o local da aula nem categorizar aulas teóricas ou práticas, o diário mostra uma frequência de duas a três aulas semanais de anatomia. Observamos que houve mais cuidado e detalhamento nas anotações das aulas de anatomia dos anos iniciais (1893 e 1894).

Figura 4
Diário de classe com informações das aulas de anatomia humana ministradas entre 1893 e 1901 pelo professor doutor Cornélio Vaz de Mello (Acervo do Museu da Pharmacia da Ufop)

O professor (descrito como “lente”) responsável pela cadeira de anatomia descritiva que fez anotações entre 1893 e 1901 chamava-se Cornélio Vaz de Mello. No diário da disciplina descreveu os assuntos das aulas usando o termo “lições” e outras informações adicionais como frequência dos alunos. O documento em questão demonstra grande dedicação no ensino dos ossos do crânio, com apresentação das lições para cada osso em dias separados. Também observamos lições isoladas para órgãos como coração, pulmões e fígado. No diário referente a 1893 constatamos 23 lições para ossos do crânio, seis lições para vísceras torácicas (coração, pulmões e aorta), cinco para vísceras abdominais (fígado, estômago, útero e ovário), dez lições sobre sistema nervoso central e duas sobre braço e antebraço. Entre as lições desenvolvidas em 1894 constatamos oito sobre coluna vertebral, três sobre ossos do tórax, sete sobre ossos e músculos do membro superior, 15 sobre sistema respiratório (faringe, laringe, traqueia, pulmões e mediastino), oito sobre sistema digestório (estômago, esôfago, intestino delgado, intestino grosso, fígado e pâncreas), e 11 sobre ossos do crânio. No diário de lições de 1896 encontramos apenas seis lições sobre ossos do crânio. No de 1897 encontramos duas anotações de lições sobre ossos do crânio e uma sobre artéria aorta e tronco pulmonar. Nas anotações de 1899 consta apenas uma nota sobre “1ª lição tratando da osteologia”. Também verificamos uma anotação dos nomes dos alunos matriculados na disciplina de anatomia descritiva referente a 1901.

Sobre o provável uso de cadáveres no final do século XIX, uma curta anotação referente a uma lição do dia 9 de março de 1894 menciona a palavra “cadavérico”. Outro documento que reforça essa possibilidade é um termo de contrato de 1895, que expressa a solicitação de armários de madeira e duas mesas de mármore para o Anfiteatro de Anatomia Humana, que deveriam ser iguais às da Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro, provavelmente para trabalhos de dissecação. Quanto à mesa de mármore, uma com as mesmas caracterísricas descritas no documento se encontra em exposição no MPh. No entanto, nenhuma outra informação foi encontrada sobre o uso de cadáveres nas aulas de anatomia.

Exposição dos modelos anatômicos

Durante aproximadamente 12 meses duas exposições da anatomia humana foram idealizadas, planejadas e realizadas. Para a primeira exposição os modelos anatômicos escolhidos para exibição foram os que já estavam higienizados e restaurados (Figura 5), sem considerar a lógica anatômica ou biológica, devido aos poucos modelos disponíveis naquele momento. A segunda exposição, intitulada Anatomia, consistiu em uma reestruturação da primeira e foi inaugurada em março de 2019, no dia da comemoração dos 180 anos da Escola de Farmácia, apresentando 15 modelos anatômicos (Figura 6), respeitando os seguintes critérios anatômicos:

  • - conjunto de modelos anatômicos dos órgãos dos sentidos;

  • - conjunto de modelos anatômicos do sistema nervoso central e crânio;

  • - modelo de corpo inteiro.

Na segunda exposição, os modelos foram distribuídos em três estantes (mobiliário histórico) seguindo o critério de classificação por sistemas orgânicos: uma estante com órgãos dos sentidos, outra com sistema nervoso e uma terceira com o modelo de corpo inteiro. Etiquetas foram desenvolvidas para cada modelo da anatomia humana contendo as seguintes informações: fabricante, país de origem, material de fabricação predominante e informações sobre a anatomia representada.

Complementando a exposição, foram desenvolvidos materiais impressos com breve descrição dos fabricantes Deyrolle, Dr. Auzoux e Vasseur-Tramond. Em conjunto com os modelos anatômicos foram colocados livros históricos de anatomia e outros modelos de anatomia animal e vegetal (Figura 7). Dessa forma, a exposição Anatomia representa uma parte do conteúdo de biologia ofertado no final do século XIX e início do século XX. Essa mostra passou a integrar o circuito de longa duração do MPh (Figuras 6 e 7), o que permitiu novas atividades extensionistas para o público jovem de Ouro Preto. A qualidade das peças também atraiu o interesse do público adulto visitante.

Figura 7
Vitrina com os modelos de anatomia humana da exposição Anatomia. Os modelos expostos representam os órgãos dos sentidos (Acervo do Museu da Pharmacia da Ufop)

Discussão

O acervo de modelos anatômicos da Ufop é de relevância histórica para o estudo da anatomia humana brasileira, pois contém exemplos de um período de inovação e crescimento no campo pedagógico no Brasil e no mundo. Para o curso de farmácia, os modelos retratam a busca pela excelência de uma escola independente e inovadora. O acervo contribuiu para o ensino do curso de farmácia do final do século XIX e, até recentemente, para os demais cursos de saúde da Ufop. Todos os modelos anatômicos identificados no projeto passaram pelo processo de higienização e preservação, quando necessário, possibilitando a exposição permanente desde acervo no MPh da Ufop.

A Escola de Farmácia de Ouro Preto, fundada em 1839, foi pioneira no ensino das ciências farmacêuticas da América Latina (Dias, 1989DIAS, José Ramos. Apontamentos históricos do sesquicentenário da Escola de Farmácia de Ouro Preto. Ouro Preto: Universidade Federal de Ouro Preto, 1989.). Deveria ser um esforço do governo, tendo em vista a precária qualidade de vida da população de Minas Gerais, mas a formação da escola sofreu graves restrições políticas (Dias, 1989DIAS, José Ramos. Apontamentos históricos do sesquicentenário da Escola de Farmácia de Ouro Preto. Ouro Preto: Universidade Federal de Ouro Preto, 1989.). Somente com o advento da República, a Escola de Farmácia recebeu recursos para consolidar e ampliar suas atividades (Dias, 1989DIAS, José Ramos. Apontamentos históricos do sesquicentenário da Escola de Farmácia de Ouro Preto. Ouro Preto: Universidade Federal de Ouro Preto, 1989.). Parte desses recursos possivelmente foi destinada à aquisição de material didático para o ensino de anatomia humana. A partir da instauração da República, ocorreu uma mudança em relação ao que seria ministrado, com ampliação do ensino anatômico, fazendo com que os alunos tivessem contato com novos laboratórios e experimentações. O uso de modelos anatômicos permitia o contato manual, a compreensão funcional das juntas do esqueleto e o estudo dos sentidos orgânicos, fugindo do conhecimento adquirido apenas por meio dos livros e de forma mnemônica. O estudo aprofundado das partes do corpo utilizando modelos provou-se mais didático que nos livros, tornando-os, assim, os melhores instrumentos de ensino da época.

Segundo Cameski (2016)CAMESKI, Andrezza. A história dos modelos anatômicos nos ginásios paulistas (1858-1935). Trabalho apresentado no IV Seminário Internacional Cultura Material e Patrimônio da Ciência e Tecnologia, 4., Rio de Janeiro, 2016., os modelos de ensino reproduzem a realidade, pois expõem as funcionalidades do corpo e, ainda, há a relevância de tais objetos trazerem em si algo a ser desvelado, considerando as teorias vigentes na época de aquisição. Para uma escola de farmácia do século XIX, desvinculada de um curso de medicina, o advento da disciplina de anatomia humana ampliaria os horizontes do corpo discente e as possbilidades de ensino e discussão científica conduzidas pelo professor. Atualmente, os modelos de ensino complementam os recursos pedagógicos, permitem o manuseio seguro (sem contato com subsâncias químicas), são alternativas ao uso do cadáver e possibilitam a reprodução (ampliada) de regiões anatômicas complexas.

De acordo com nossos resultados, dados coletados em documentos históricos do MPh apontam que um dos primeiros professores, senão o primeiro, de anatomia da Escola de Farmácia de Ouro Preto, foi o médico cirurgião Cornélio Vaz de Melo. Segundo Godoy (2019GODOY, Victor Vieira. A Escola de Farmácia de Ouro Preto: a memória sublimada. São Paulo: Metalivros, 2019., p.192), Vaz de Melo foi médico da Santa Casa de Ouro Preto e ministrou anatomia descritiva e história natural médica no quarto ano do curso de farmácia. Mais tarde, envolveu-se com a política e tornou-se prefeito de Belo Horizonte (1914-1918) e ajudou a fundar a Faculadade de Medicina de Belo Horizonte (MG) (p.234).

Quanto aos modelos anatômicos, grande parte do acervo histórico da Escola de Farmácia, como consta nos nossos resultados, contempla as regiões corporais da cabeça e do pescoço, como orelhas, olhos, dentes, nervos e músculos. Essa coleção de modelos anatômicos de estruturas, predominantemente, da cabeça e do pescoço, além de contribuir na formação dos primeiros farmacêuticos de Ouro Preto, possivelmente colaborou na formação de alunos do curso local de odontologia (Godoy, 2019GODOY, Victor Vieira. A Escola de Farmácia de Ouro Preto: a memória sublimada. São Paulo: Metalivros, 2019., p.236-237), que era anexo à Escola de Farmácia desde 1915 e se estendeu até 1927 (Santos, 2011SANTOS, Adilson Pereira. Políticas de Ação Afirmativa, novo ingrediente na luta pela democratização do Ensino Superior: a experiência da Universidade Federal de Ouro Preto. Dissertação (Mestrado em Educação, Cultura e Comunicação) – Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2011.). Apesar de não haver registros de aquisição de modelos anatômicos destinados especificamente ao curso de odontologia, é provável que alguns modelos, como dentes e cabeça, tenham sido adquiridos para essa finalidade, pois, no primeiro ano do curso, existia a cadeira de anatomia descritiva da cabeça, ministrada por João Baptista Ferreira Velloso (Godoy, 2019GODOY, Victor Vieira. A Escola de Farmácia de Ouro Preto: a memória sublimada. São Paulo: Metalivros, 2019., p.237). Constatamos que os conteúdos apresentados (regiões corpóreas) no diário do professor Cornélio Vaz de Melo, do final do século XIX, tinham condições de ser ministrados em aulas teóricas ou práticas, tomando como base o acervo apresentado no presente trabalho. As aulas provavelmente ocorreram no Anfiteatro de Anatomia após 1893. No diário de Vaz de Melo constam, por exemplo, lições sobre o sistema nervoso, órgãos internos do tórax, abdome e músculos dos membros. Certamente, essas lições poderiam ser ministradas usando os modelos de corpo inteiro, de sistema nervoso de Auzoux ou o modelo em cera de pulmões e coração da Deyrolle.

A anatomia também se fez presente como parte fundamental da produção teórica científica dos bacharéis. Para formação de bacharel em ciências naturais e farmacêuticas era necessária uma defesa de tese, publicada no periódico Jornal de Ciências e Farmácia, em diferentes áreas da saúde, entre elas, a de anatomia humana, especificamente sobre coração, pulmão no adulto e no feto, fígado, rins, cérebro e medula espinal (Dias, 1989DIAS, José Ramos. Apontamentos históricos do sesquicentenário da Escola de Farmácia de Ouro Preto. Ouro Preto: Universidade Federal de Ouro Preto, 1989.; De Paula, 2010DE PAULA, Leandro. Políticas públicas e a escola de farmácia de Ouro Preto: entre a mudança e a resistência (1891-1910). CSOnline – Revista Eletrônica de Ciências Sociais, n.8, 2010.). O diploma de bacharel surgiu após a reorganização do curso de farmácia, que passou a ser regido por um novo regulamento com o decreto n.600, de 2 de janeiro de 1882 (De Paula, 2010DE PAULA, Leandro. Políticas públicas e a escola de farmácia de Ouro Preto: entre a mudança e a resistência (1891-1910). CSOnline – Revista Eletrônica de Ciências Sociais, n.8, 2010.).

Em 1901, o então presidente do Brasil, Campos Salles, com o apoio de Epitácio Pessoa, aprovou o código dos Institutos Oficiais de Ensino Superior e Secundário, por meio do decreto n.3.890. A Escola de Farmácia de Ouro Preto estava num período de grandes concretizações antes da reforma de Epitácio Pessoa. Após o decreto n.3.890, entretanto, a escola reduziu a grade curricular do curso, provocando revolta nos alunos e professores (Godoy, 2019GODOY, Victor Vieira. A Escola de Farmácia de Ouro Preto: a memória sublimada. São Paulo: Metalivros, 2019.). Por causa da reforma do curso de farmácia, a disciplina de anatomia descritiva foi retirada da grade curricular em 1907 (De Paula, 2010DE PAULA, Leandro. Políticas públicas e a escola de farmácia de Ouro Preto: entre a mudança e a resistência (1891-1910). CSOnline – Revista Eletrônica de Ciências Sociais, n.8, 2010.). Os documentos, entretanto, não registram a extinção da anatomia da grade do curso de odontologia, que, possivelmente, perdurou até 1927, quando esse curso foi encerrado em Ouro Preto.

A Ufop foi fundada em 1969, com a união da Escola de Farmácia e da Escola de Minas. Após 1980, outros cursos da área de saúde foram criados, todos contemplando anatomia humana na grade curricular. A anatomia humana na história recente da Ufop foi ganhando espaço, com formação de novos laboratórios, aquisição de novos modelos anatômicos sintéticos e uso regular de peças cadavéricas. No entanto, o ensino de anatomia não se desvinculou por completo de suas origens, pois até recentemente alguns dos antigos modelos faziam parte do acervo de materiais de ensino do Laboratório de Anatomia da universidade.

Apesar de o ensino de anatomia em cadáveres humanos ser considerado padrão ouro, restrições religiosas ou culturais e falta de cadáveres nos séculos XVIII e XIX impulsionaram a criação e utilização de modelos anatômicos sintéticos para suprir tal demanda acadêmica (Valdecasas et al., 2009VALDECASAS, Antonio G. et al. Understanding complex systems: lessons from Auzoux’s and von Hagens’s anatomical models. Journal of Biosciences, v.34, n.6, p.835-843, 2009.; Talamoni, Bertolli Filho, 2014). De fato, esses modelos artesanais em cera e papel machê se mostraram uma solução para a época. Algumas características foram capitais para o uso acadêmico dos modelos do século XIX, como o realismo e a fidelidade ao original, proporcionalidade nas relações topológicas e espaciais, nível de detalhamento, resolução e mobilidade das estruturas corporais. Essas características influíram diretamente no aprendizado e na transmissão do conhecimento acadêmico, e os modelos sintéticos supriram, em parte, a dificuldade em adquirir cadáveres ao longo dos séculos XIX e XX (Valdecasas et al., 2009VALDECASAS, Antonio G. et al. Understanding complex systems: lessons from Auzoux’s and von Hagens’s anatomical models. Journal of Biosciences, v.34, n.6, p.835-843, 2009.). Tal metodologia vem sendo retomada nos últimos anos aliada ao estudo em cadáveres. Os modelos anatômicos permitem grande exploração didática, possibilitando seu uso em diferentes ambientes acadêmicos. Hoje, novas estratégias didáticas utilizam como recursos os modelos anatômicos sintéticos, desde modelos artesanais fabricados por alunos com materiais de baixo custo até complexos modelos produzidos por impressoras 3D (Carvacho, Pinto e Silva, Mello, 2008; Smith et al., 2018SMITH, Claire F. et al. Take away body parts! An investigation into the use of 3D printed anatomical models in undergraduate anatomy education. Anatomical Sciences Education, v.11, n.1, p.44-53, 2018.; Lozano et al., 2017LOZANO, Maria Teresa Ugidos et al. 3D digitization and prototyping of the skull for practical use in the teaching of human anatomy. Journal of Medical Systems, v.41, n.5, p.83, 2017.). Ou seja, os modelos anatômicos ainda estão presentes nas aulas práticas de anatomia, porém atrelados a modernos recursos pedagógicos e tecnológicos e, obviamente, às peças naturais cadavéricas.

Considerando o acervo da Escola de Farmácia, vários modelos anatômicos apresentam grande valor histórico para o estudo da anatomia humana bem como para o curso de farmácia da Ufop. Peças do renomado Dr. Auzoux apresentam estimado valor histórico para a disciplina de anatomia, visto seu reconhecimento internacional (Valdecasas et al., 2009VALDECASAS, Antonio G. et al. Understanding complex systems: lessons from Auzoux’s and von Hagens’s anatomical models. Journal of Biosciences, v.34, n.6, p.835-843, 2009.). Os modelos de olho, laringe, sistema nervoso e orelha, todos fabricados por Dr. Auzoux, também fazem parte do MPh de Ouro Preto. Esses modelos são fantásticos exemplos da genialidade de Auzoux, que combinou grande fidelidade anatômica com partes removíveis de órgãos e estruturas (Valdecasas et al., 2009VALDECASAS, Antonio G. et al. Understanding complex systems: lessons from Auzoux’s and von Hagens’s anatomical models. Journal of Biosciences, v.34, n.6, p.835-843, 2009.). A possibilidade de remover partes dos modelos chegou a ser mencionada como uma dissecação virtual do corpo humano (Valdecasas et al., 2009VALDECASAS, Antonio G. et al. Understanding complex systems: lessons from Auzoux’s and von Hagens’s anatomical models. Journal of Biosciences, v.34, n.6, p.835-843, 2009.), uma experiência singular para estudantes de farmácia do século XIX.

Outra importante coleção da anatomia da Ufop é a dos modelos em cera de cortes encefálicos. Dados recentes mostram que os modelos encefálicos do MPh representam fielmente estruturas anatômicas do sistema nervoso (Sousa et al., no prelo). No total, são quatro placas com vários cortes cerebrais, representando estruturas internas, como núcleos encefálicos, e estruturas externas. Os modelos do sistema nervoso são raros exemplos preservados no MPh, pois não foram encontrados modelos semelhantes citados na literatura. Os modelos anatômicos oriundos da Deyrolle são raridade não somente pelas variáveis temporal e histórica, mas, também, por um incêndio ocorrido em fevereiro de 2008, que destruiu 90% de toda a coleção e mobiliários salvaguardados pelo fabricante. A própria Deyrolle não possui nenhum dos modelos de sua fabricação presentes no acervo histórico da anatomia da Ufop.

Esse acervo hoje se encontra no MPh, onde passou pelo processo de higienização, restauração, preservação e está em fase de exposição. Apesar dos mais de 130 anos de existência, esses modelos “sobreviveram” às transformações políticas, culturais e pedagógicas, atravessando gerações de estudantes e professores. O presente projeto permitiu o resgate de um valioso acervo, possibilitando a construção de uma exposição permanente e a preservação da memória cultural e científica da anatomia humana no renomado MPh.

As coleções do MPh têm características singulares. O destaque dado às exposições de modelos de ensino de anatomia humana, animal e vegetal mostra a intencionalidade de construção de um curso de farmácia de qualidade. Em outros museus de farmácia de Minas Gerais, não observamos acervos de anatomia semelhantes ao do MPh. Na cidade de Juiz de Fora (MG), o curso de farmácia foi fundado em 1904, e, hoje, a Universidade Federal de Juiz de Fora conta com um rico acervo que compõe o Museu Professor Lucas Marques do Amaram; no entanto, sem descrições sobre modelos anatômicos (Granato, Lourenço, 2010). Outro importante acervo da história farmacêutica encontra-se no Centro de Meória da Farmácia da Universidade Federal de Minas Gerais, que conta com objetos, materiais didáticos e equipamentos, mas onde não constam modelos anatômicos (Bicalho, 2014BICALHO, Lucinéia Maria. Centro de memória da farmácia da UFMG: uma experiência interdisciplinar. Trabalho apresentado no Encontro Nacional de Pesquisa em Ciência da Informação, 14., Belo Horizonte, 2014.). Dessa forma, é possível perceber que o acervo do MPh representa o início de um processo de desenvolvimento nos estudos da saúde de forma multidisciplinar, abordando conceitos das ciências básicas, como a anatomia, e do campo de atuação profissional.

O MPh foi criado na década de 1960, passou por vários momentos de dificuldades por falta de apoio e de espaço, ficando a maior parte do tempo fechado. Foi reaberto em 2011, possibilitando ao público conhecer a história do ensino farmacêutico. A partir de então, cresceram as visitações espontâneas e as atividades relacionadas ao setor educativo do museu. As exposições com as peças da anatomia, em particular, têm proporcionado um ganho ao setor educativo desde a chegada do acervo ao museu. Outros museus também utilizam seus espaços para o desenvolvimento de atividades de ensino, com o propósito de fortalecer os laços entre a comunidade e a universidade, como ocorre na Faculdade de Veterinária da Universidade Complutense de Madri (Espanha) (Fernández, Rodríguez, 2017). Constatamos, então, as possibilidades de coleções científicas serem usadas para o ensino de qualidade e como ferramenta de estímulo ao ingresso nas carreiras científicas.

Dessa forma, destacamos o potencial desse tipo de acervo, que pode ser base para futuras pesquisas sobre história brasileira da anatomia humana. Os antigos modelos anatômicos devem ser vistos não somente como parte de uma ciência arcaica, mas como testemunhas de uma era de intensas descobertas e inovações para a anatomia humana.

AGRADECIMENTOS

Agradecemos o apoio do Museu da Pharmacia, da Universidade Federal de Ouro Preto e do financiamento Fapemig (processo APQ-00082-18 e processo APQ-03458-13).

REFERÊNCIAS

  • AUZOUX. Catalogue of preparations of artifical anatomy of Dr. Auzoux, 1841. Disponível em: https://collections.nlm.nih.gow/ext/mh1/101170613/PDF/101170613.pdf Acesso em: 21 ago. 2020.
    » https://collections.nlm.nih.gow/ext/mh1/101170613/PDF/101170613.pdf
  • BICALHO, Lucinéia Maria. Centro de memória da farmácia da UFMG: uma experiência interdisciplinar. Trabalho apresentado no Encontro Nacional de Pesquisa em Ciência da Informação, 14., Belo Horizonte, 2014.
  • BRENNER, Erich. Human body preservation: old and new techniques. Journal of Anatomy, v.224, n.3, p.316-344, 2014.
  • CAMESKI, Andrezza. A história dos modelos anatômicos nos ginásios paulistas (1858-1935). Trabalho apresentado no IV Seminário Internacional Cultura Material e Patrimônio da Ciência e Tecnologia, 4., Rio de Janeiro, 2016.
  • CARVACHO, Ingrid Espejo; PINTO E SILVA, João Luiz; MELLO, Maeve Brito de. Conhecimento de adolescentes grávidas sobre anatomia e fisiologia da reprodução. Revista da Associação Médica Brasileira, v.54, n.1, p.29-35, 2008.
  • COWPER, William. The anatomy of humane bodies. Oxford, 1698. Disponível em: https://www.nlm.nih.gov/exhibition/historicalanatomies/browse.html Acesso em: 5 fev. 2021.
    » https://www.nlm.nih.gov/exhibition/historicalanatomies/browse.html
  • DE PAULA, Leandro. Políticas públicas e a escola de farmácia de Ouro Preto: entre a mudança e a resistência (1891-1910). CSOnline – Revista Eletrônica de Ciências Sociais, n.8, 2010.
  • DIAS, José Ramos. Apontamentos históricos do sesquicentenário da Escola de Farmácia de Ouro Preto Ouro Preto: Universidade Federal de Ouro Preto, 1989.
  • FERNÁNDEZ, Isabel García; RODRÍGUEZ, María Eugenia Blázquez. Academic heritage as a tool for the development of future scientific careers Roma: Università di Roma, 2017.
  • GAUTIER D’AGOTY, Jacques Fabian. Anatomie generale des viscères en situation, de grandeur et couleur naturelle, avec l’angeologie, et la nevrologie de chaque partie du corps humain Paris, 1752. Disponível em: https://www.nlm.nih.gov/exhibition/historicalanatomies/browse.html Acesso em: 4 fev. 2021.
    » https://www.nlm.nih.gov/exhibition/historicalanatomies/browse.html
  • GODOY, Victor Vieira. A Escola de Farmácia de Ouro Preto: a memória sublimada São Paulo: Metalivros, 2019.
  • GOMIS, Alberto; RUIZ-BERDÚN, Dolores. Clastic models of Dr. Auzoux, from the classroom to the museum. Real Sociedad Española de Historia Natural, Sección Aula, Museos y Colecciones, v.3, p.39-52, 2016.
  • GRANATO, Marcus; LOURENÇO, Marta C. (ed.). Coleções científicas luso-brasileiras: patrimônio a ser descoberto Rio de Janeiro: Mast, 2010.
  • LOZANO, Maria Teresa Ugidos et al. 3D digitization and prototyping of the skull for practical use in the teaching of human anatomy. Journal of Medical Systems, v.41, n.5, p.83, 2017.
  • MALOMO, Adelfolarin.; IDOWU, Olufemi Emmanuel; OSUAGWU, Ferdnand. Lessons from history: human anatomy, from the origin to the renaissance. International Journal of Morphology, v.24, n.1, p.99-104, 2006.
  • MARKOVIĆ, Danica; MARKOVIĆ ŽIVKOVIĆ, Bojana. Development of anatomical models-chronology. Acta Medica Medianae, v.49, n.2, p.56-61, 2010.
  • NUTTON, Vivian. Vesalius revised: his annotations to the 1555 Fabrica. Medical History, v.56, n.4, p.415-443, 2012.
  • SANTOS, Adilson Pereira. Políticas de Ação Afirmativa, novo ingrediente na luta pela democratização do Ensino Superior: a experiência da Universidade Federal de Ouro Preto. Dissertação (Mestrado em Educação, Cultura e Comunicação) – Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2011.
  • SIDDIQUEY, Shamsuddin; HUSAIN, Shahzaman; LAILA, Syeda Zamila Hasan. History of anatomy. Bangladesh Journal of Anatomy, v.7, n.1, p.1-3, 2009.
  • SMITH, Claire F. et al. Take away body parts! An investigation into the use of 3D printed anatomical models in undergraduate anatomy education. Anatomical Sciences Education, v.11, n.1, p.44-53, 2018.
  • SOUSA, Luiz Eduardo; BORGES, Ingrid da Silva. Os modelos anatômicos do Dr. Auzoux na Universidade Federal de Ouro Preto. ALEMUR, v.5, n.1, p.76-82, 2020.
  • SOUSA, Luiz Eduardo; CUNHA, Thiago Rodrigues Araujo. Anatomia e arte do mestre Aleijadinho: uma ferramenta metodológica para o ensino de anatomia humana. Educere – Revista da Educação da Unipar, v.17, n.1, p.65-78, 2017.
  • SOUSA, Luiz Eduardo et al. Anatomical description of brain wax models of pharmacy museum of Ouro Preto, Brazil. International Journal of Mophology, no prelo.
  • TALAIRACH-VIELMAS, Laurence. Anatomical models: a history of disappearance? Histoire, médecine et santé, n.5, p.9-20, 2014.
  • TALAMONI, Ana Carolina Biscalquini; BERTOLLI FILHO, Claudio. A anatomia e o ensino de anatomia no Brasil: a escola boveriana. História, Ciências, Saúde – Manguinhos, v.21, n.4, p.1301-1322, 2014.
  • TERMO DE SOLICITAÇÃO. Termo solicitando ao então Presidente do Estado de Minas a compra de equipamentos para a Escola de Farmácia junto ao representante da Casa Paul Rousseau de Paris (Arquivo do Museu da Pharmacia, Ouro Preto). 12 jan. 1892.
  • VALDECASAS, Antonio G. et al. Understanding complex systems: lessons from Auzoux’s and von Hagens’s anatomical models. Journal of Biosciences, v.34, n.6, p.835-843, 2009.
  • VALENZUELA, Julio Luis Cárdenas. La estatua anatómica del Dr. Auzoux. Primer modelo anatómico de uso docente en Chile. International Journal of Morphology, v.33, n.1, p.393-399, 2015.
  • VIMONT, Joseph. Traité de phrénologie humaine et comparée Paris, J.B. Baillière, 1832-1835. Disponível em: https://www.nlm.nih.gov/exhibition/historicalanatomies/browse.html Acesso em: 5 fev. 2021.
    » https://www.nlm.nih.gov/exhibition/historicalanatomies/browse.html

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    19 Dez 2022
  • Data do Fascículo
    Oct-Dec 2022

Histórico

  • Recebido
    8 Mar 2021
  • Aceito
    8 Maio 2021
Casa de Oswaldo Cruz, Fundação Oswaldo Cruz Av. Brasil, 4365, 21040-900 , Tel: +55 (21) 3865-2208/2195/2196 - Rio de Janeiro - RJ - Brazil
E-mail: hscience@fiocruz.br