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As receitas médicas de Hannah Woolley: prática cotidiana e autoridade feminina na Inglaterra do século XVII

Resumo

O artigo retrata os interesses de uma escritora inglesa do século XVII sobre cuidados médicos, e as razões que a levaram a publicar textos sobre essa matéria. Hannah Woolley tecia orientações sobre diversos assuntos do âmbito doméstico, entre os quais receitas para preservar a beleza e a saúde. O artigo investiga os princípios que regiam o preparo dessas receitas, as intenções de Woolley ao escrever sobre o tema, e a maneira como a medicina acadêmica era traduzida e praticada por mulheres no cotidiano da época. O delineamento dessas questões ajudará a elucidar o cenário de atuação das curadoras letradas e a natureza das relações que teceram com os médicos eruditos.

Hannah Woolley (c.1623-c.1677; século XVII; livro de receitas; prática médica; mulheres curadoras

Abstract

This article describes a seventeenth-century English woman writer’s interests in medical care and the reasons that led her to publish texts on this topic. Hannah Woolley offered guidance on a wide variety of topics in the domestic sphere, including recipes for health and beauty. Here we investigate the principles that governed the preparation of these recipes, Woolley’s intentions in writing on this topic, and the way in which academic medicine was translated and practiced by women routinely during this period. Defining these issues will help shed light on the scenario in which literate female healers worked and the nature of their relationships with learned physicians.

Hannah Woolley (c.1623-c.1677; seventeenth century; recipe book; medical practice; women healers

De que maneira as teorias médicas em voga na Europa ocidental do período moderno eram incorporadas e praticadas na vida cotidiana britânica? Mais do que isso: quais ferramentas estavam disponíveis e eram empregadas no combate à doença por mulheres comuns, sem formação médica? Eis as perguntas que guiarão as páginas que seguem. Para buscar respondê-las, farei uso de um livro escrito e publicado por uma autora inglesa do século XVII, cuja obra reuniu 111 receitas médicas na seção dedicada à medicina e à cirurgia. Embora o destaque seja concedido às publicações de Hannah Woolley (c.1623-c.1677), há que ressaltar o intenso cenário de produção de receitas médicas por mulheres nesse momento, como veremos.

Para que possamos avaliar as indicações médicas prescritas por Woolley, é preciso pontuar brevemente os princípios que norteavam as ações médicas na Inglaterra seiscentista. Para as intenções deste texto, interessam-nos particularmente os procedimentos curativos amplamente empregados por médicos eruditos e empíricos, e o espaço ocupado pelas mulheres nesse cenário de atuação, fosse ele erudito ou não especializado. De igual maneira, é preciso investigar a importância dos manuais com receitas médicas e a participação das mulheres na autoria dessas obras.

Como esses livros de receitas eram voltados particularmente para as mulheres das classes mais altas, é preciso questionar o alcance de sua popularidade junto ao público feminino, mas também o possível impacto que seu conteúdo criava para os médicos licenciados. Afinal, como praticantes treinados em universidades, esses homens poderiam enxergar com desconfiança uma possível atuação empírica estimulada nessas obras, entendimento que ganhou amparo nas instituições médicas, como o College of Physicians, de Londres.

Princípios da prática médica na Europa moderna

Considerando-se o intervalo temporal que marca as fronteiras da modernidade europeia, ou seja, entre 1500 e 1800 (Burke, 2009BURKE, Peter. Popular culture in Early Modern Europe. Burlington: Ashgate, 2009., p.xiv), é preciso ressaltar o intenso fluxo comercial e deslocamentos marítimos ocorridos nesse momento. Entre 1400 e 1600 especialmente, os europeus foram protagonistas da “exploração oceânica, da abertura de novas rotas de comércio” e da edificação de “impérios terrestres” (Arnold, 2002ARNOLD, David. The age of discovery, 1400-1600. New York: Routledge, 2002., p.61). Afora os desdobramentos violentos do processo colonizador, houve outro movimento em curso: aquele referente aos intercâmbios sobre natureza, remédios e práticas de cura entre europeus e povos nativos. Doenças até então desconhecidas impulsionaram a exploração europeia de ervas e drogas estrangeiras, o que aumentou seu repertório sobre a matéria médica (Bleichmar citado em Schiebinger, Swan, 2005, p.83). Além das novas ervas medicinais incorporadas à farmacopeia, os europeus adotaram práticas como a “moxabustão” e hábitos como “fumo de tabaco e bebida de chocolate” (Lindemann, 2010LINDEMANN, Mary. Medicine and society in Early Modern Europe. Cambridge: Cambridge University Press, 2010., p.277). Sobre isso, Harold Cook (1986COOK, Harold J. The decline of the old medical regime in Stuart London. Ithaca: Cornell University Press, 1986., p.28) cunhou a expressão “mercado médico”, dada a diversidade de fontes para a compra de remédios na Inglaterra do século XVII.

Apesar das constantes mudanças no cenário externo e das novas formulações teóricas no meio acadêmico – como as descobertas anatômicas de Andreas Vesalius (1514-1564) e a da circulação sanguínea por William Harvey (1578-1657) –, as bases médicas em voga na Europa não se alteravam na essência (Conrad et al., 1995CONRAD, Lawrence I. et al. The Western medical tradition: 800 BC to AD 1800. v.1. Cambridge: Cambridge University Press, 1995., p.415). É certo que modificações no currículo médico eram feitas nesse momento, como as inovações promovidas pelos “conceitos químicos e mecânicos” (Lindemann, 2010LINDEMANN, Mary. Medicine and society in Early Modern Europe. Cambridge: Cambridge University Press, 2010., p.141), mas os princípios que regiam o ensino e a prática da medicina continuavam a ser “a teoria dos quatro humores do corpo1 1 De maneira simplificada, a “teoria dos humores” estruturada por Galeno defendia que a saúde do corpo advinha do equilíbrio entre os quatro humores (fleuma, sangue, bile amarela e bile negra). Tal equilíbrio dependia da idade e da dieta do paciente, assim como da estação do ano e do ambiente. O sistema que compreendia a relação entre os quatro humores, os quatro elementos (água, ar, fogo e terra), e as quatros estações poderia abarcar outros fatores, como os “quatro sabores, quatro cores, e, ao final da Antiguidade, os quatro temperamentos” e os signos astrológicos. Ver Nutton (2013, p.83). e a tentativa de manter seu equilíbrio” (Byrne, 2013BYRNE, Joseph P. Health and wellness in the Renaissance and Enlightenment. Santa Barbara: Greenwood, 2013., p.18).

Embora os quatro humores corporais – fleuma, bile amarela, bile negra e sangue – fossem citados em textos médicos desde, pelo menos, a Antiguidade grega, a forma como tais humores influenciavam a saúde ou a doença foi pensada de maneira sistematizada pelo médico de origem grega Cláudio Galeno (129-c.216). Foi Galeno quem se empenhou em examinar extensamente os textos hipocráticos, atuando na criação de um sistema médico sólido, amparado na tradição filosófica, em particular nas ideias platônicas. Desse modo, por volta de 650, a teoria e a prática médicas dominantes na Grécia oriental, e, depois, nas regiões islâmicas e no Ocidente latino, ficariam conhecidas como galenismo (Nutton, 2013NUTTON, Vivian. Ancient medicine. London: Routledge, 2013., p.299).

A “teoria dos humores” pode ser resumida a partir de três sustentáculos: dietética, farmacologia e cirurgia (Jouanna, 2012JOUANNA, Jacques. Greek medicine from Hippocrates to Galen: selected papers. Leiden: Brill, 2012., p.17). Importante ressaltar que a dieta para Galeno não se referia somente à comida e à bebida, mas aos fatores que caracterizavam o estilo de vida do indivíduo, como sono, exercícios e seu entorno (Nutton, 2013NUTTON, Vivian. Ancient medicine. London: Routledge, 2013., p.246). A ordem de procedimentos terapêuticos colocada acima era uma preconização de Galeno, ou seja, preferia-se a dietética como a primeira abordagem terapêutica, enquanto a cirurgia era entendida como o último recurso a ser empregado, em virtude da natureza invasiva e da experiência dolorosa gerada (p.246). Embora Woolley empregasse o termo cirurgia na sua obra, a tônica de suas indicações se referia amplamente à dietética e à farmacologia.

Na teoria médica humoralista, o alimento desempenhava um papel crucial, uma vez que, após a ingestão, era transformado “em sangue pelo fígado, e distribuído pelo corpo através das veias” (Nutton, 2017NUTTON, Vivian (ed.). Principles of anatomy according to the opinion of Galen by Johann Guinter and Andreas Vesalius. London: Routledge, 2017., p.15). Diante disso, era fundamental conhecer as propriedades dos alimentos, como seu caráter úmido, seco, frio ou quente, com a intenção de buscar o equilíbrio humoral e restabelecer a saúde. Embora houvesse a necessidade de conhecer o temperamento de cada paciente, para o melhor encaminhamento da terapia, havia uma indicação geral muito difundida na “teoria dos humores”: a cura pelos opostos. Nesse sentido, preconizava-se a ingestão de alimentos ou bebidas com qualidades opostas às condições etiológicas apresentadas pelo paciente. Por exemplo, um estômago que estivesse patologicamente “resfriado” deveria ser “curado por uma droga quente etc.” (Donini citado em Hankinson, 2008HANKINSON, Robert J. (ed.). The Cambridge companion to Galen. Cambridge: Cambridge University Press, 2008., p.61).

De maneira geral, Galeno buscou classificar as drogas entre simples e compostas, indicando as diferenças entre a teoria farmacológica e sua aplicação prática. Desse modo, as chamadas “drogas simples” compreendiam ervas, animais ou minerais que propiciavam uma “ação única”, resultado de sua ligação com o cosmo. Por exemplo, uma substância produzida na “primeira das cinco fases da humanidade” – de acordo com a mitologia – aqueceria o corpo, eliminando, portanto, todo excesso de umidade (Glick, Livesey, Wallis, 2005, p.395). Uma vez que as drogas simples mostravam limites no combate às doenças, era necessário o emprego das drogas compostas, resultantes da mistura de ingredientes. Sua recomendação ocorria quando forças contrárias precisassem ser aplicadas simultaneamente, como em ferimentos causados por criaturas venenosas (Prioreschi, 1998PRIORESCHI, P. A history of medicine: Roman medicine. v.3. Omaha: Horatius Press, 1998., p.440).

Os livros de receitas médicas

No período em que Hannah Woolley produzia seus textos com assuntos domésticos e receitas médicas, a sociedade inglesa já testemunhava uma sólida tradição desse gênero literário. Essas obras remontam aos “livros de segredos medievais”, que reuniam “valiosas receitas médicas, alquímicas ou receitas comerciais” escritas em latim, e que circulavam entre as elites (Field citado em Down, Eckerle, 2007, p.50). Enquanto os homens eram os responsáveis pela crescente impressão desses livros, as mulheres tornavam suas receitas conhecidas “exclusivamente em manuscrito até meados do século XVII” (Field citado em Down, Eckerle, 2007, p.50). A impressão dos textos femininos, contudo, configurou-se como uma opção viável, e até mesmo lucrativa, após a Restauração monárquica em 1660. Nesse sentido, é importante lembrar que Woolley é considerada a primeira mulher a fazer dessas publicações um “empreendimento comercial” (Marchitello, Tribble, 2017, p.211), fato intimamente relacionado à popularidade desse gênero na segunda metade do século XVII.

Mulheres letradas da “classe média e elite” eram orientadas por suas mães, familiares e governantas a se instruir nas “artes domésticas”, que incluíam assuntos culinários e também médicos. Na sua autobiografia, lady Grace Mildway (c.1552-1620) lembrava que sua governanta a havia estimulado a ler a obra Herbal, de William Turner, além de um texto sobre cirurgia. Já na vida adulta, Mildway compilaria “centenas de receitas médicas”, atuando como curadora de familiares, amigos e “pessoas pobres na zona rural de Northamptonshire” (Field citado em Down, Eckerle, 2007, p.52). Desse modo, a casa se tornava o local principal para atendimento médico, e, ao mesmo tempo, o centro de autoridade feminina em questões dessa natureza (Stine, 1996STINE, Jennifer. Opening closets: the discovery of household medicine in Early Modern England. Tese (Doutorado em História) – Stanford University, Palo Alto, 1996., p.108).

O momento de produção intelectual de Woolley foi precedido por um cenário de condições favoráveis à escrita feminina. Na década de 1650, surgia uma nova geração de autores de receitas, entre os quais figuravam mulheres de origem aristocrata (Leong, 2018LEONG, Elaine. Recipes and everyday knowledge: medicine, science, and the household in Early Modern England. Chicago: The University of Chicago Press, 2018., p.150). Baseando-se em “segredos” advindos de homens e mulheres da nobreza, ou oferecendo receitas atestadas por médicos eruditos, fato é que tais obras caíram no gosto das classes letradas inglesas. O que abriu caminho para as frequentes publicações de Woolley. O gênero híbrido de seus livros – com receitas culinárias e médicas – ganharia uma tendência à especialização nos anos seguintes, processo que se firmaria no século XVIII (Marchitello, Tribble, 2017, p.211).

A popularidade desses livros devia-se tanto ao aumento da alfabetização no país quanto à diminuição do custo do papel e de outros suprimentos. As obras circulavam no formato impresso, mas também continuavam a ser manuscritas. O século XVII foi especialmente profícuo na produção desse gênero textual. Entre 1600 e 1700, os editores de livros em Londres “publicaram acima de duzentos títulos sobre receitas culinárias e médicas”, dos quais sessenta eram obras inéditas e cerca de 170 eram reimpressões. Números que faziam desse gênero “um dos mais populares de textos médicos em língua vernácula no início da Inglaterra moderna” (Leong, 2018LEONG, Elaine. Recipes and everyday knowledge: medicine, science, and the household in Early Modern England. Chicago: The University of Chicago Press, 2018., p.13).

Se não há como precisar o número de livros de receitas publicados no século XVII em toda a Inglaterra, pode-se afirmar com segurança que as mulheres eram autoras correntes desse gênero. Para o início da Inglaterra moderna, a historiadora Jennifer Stine estimou aproximadamente cem livros produzidos por mulheres. Stine (citada em Down, Eckerle, 2007, p.50) aventa, ainda, que muitos outros livros de receitas anônimos, e que permanecem em arquivos, foram escritos por mulheres. Uma das escritoras de destaque nesse gênero textual era Woolley, considerada a “mais popular escritora” sobre assuntos domésticos do final do século XVII e a “primeira mulher a publicar um livro de receitas” (Wall, 2010WALL, Wendy. Literacy and the domestic arts. Huntington Library Quarterly, v.73, n.3, p.383-412, 2010., p.394).

Não dispomos de informações precisas sobre a biografia de Woolley. Sabe-se que ainda menina, aos 14 anos, tornou-se órfã. Depois disso, suas habilidades musicais, assim como seus conhecimentos em italiano, atraíram a atenção de uma nobre senhora, que a empregou como governanta em sua casa. Foi nesse emprego que Woolley alimentou e desenvolveu seu interesse, entre outros assuntos, pela medicina.

Por volta dos 24 anos, ela se casou com Benjamin Woolley, professor numa escola em Essex, com quem teve quatro filhos. Apesar dos afazeres domésticos e das atribuições com cerca de sessenta pupilos, ela não se restringiu a tais tarefas: passou a dedicar-se à escrita e à publicação de livros sobre culinária. O seu primeiro livro de receitas seria publicado em 1661, sob o título The ladies’ directory. Três anos mais tarde, seria a vez de The cook’s guide, também voltado para o público feminino (Hartley, 2003HARTLEY, Cathy (ed.). A historical dictionary of British women. New York: Taylor and Francis, 2003., p.950). Após a morte de seu primeiro marido, Woolley enxergou na publicação de receitas uma forma de ganhar dinheiro e apoiar sua família (Shanahan, 2015SHANAHAN, Madeline. Manuscript recipe books as archaeological objects: text and food in the Early Modern World. Lanham: Lexington Books, 2015., p.87). O resultado pode ser visto nos textos publicados nas décadas de 1660 e 1670.

Apesar de ter se casado novamente em 1666, Woolley não abandonou sua carreira como escritora. Foi durante esse período que sua produção intelectual ganhou maior intensidade. Data dessa época um de seus livros mais conhecidos sobre administração doméstica. The queen-like closet, de 1670, ganhou outras quatro edições em inglês e uma tradução para o alemão em 1674 (Hartley, 2003HARTLEY, Cathy (ed.). A historical dictionary of British women. New York: Taylor and Francis, 2003., p.465). Além de indicar que o livro era resultado dos conhecimentos adquiridos em sua própria experiência, Woolley não deixava de ressaltar a base científica em que se assentava a obra. Numa receita de geleia para “um estômago fraco”, ela citava sua conversa com um médico, em que questionava o interlocutor sobre o odor do almíscar e do âmbar cinza (Woolley, 1675b, p.110). Nesse momento e em outros da obra, a alusão a tais referências servia para dar suporte às suas recomendações.

Outro livro popular publicado nessa época, e cuja autoria foi atribuída a Woolley,2 2 Elaine Hobby colocou em dúvida a autoria desse livro, especialmente em razão de uma seção autobiográfica do texto que se assemelharia mais às convenções do romance do que ao tipo de narrativa das mulheres que escreviam após a Restauração. Sobre isso, ver Hobby citado em MacLean (1995, p.179-200). é The gentlewoman’s companion, que buscava ser um “guia para as mulheres”. No início do texto, afirmava-se que era “tão raro para uma mulher” ser escritora, que consistia num “empreendimento ousado” (Woolley, 1673WOOLLEY, Hannah. The gentlewoman’s companion; or, a Guide to the female sex. London: Printed by A. Maxwell for Dorman Newman, 1673., p.10). A obra de 1673 contava com capítulos dedicados a remédios para toda sorte de doenças ou outros inconvenientes femininos. Fosse sangramento nasal, dor de estômago ou problemas com a produção de leite materno, Woolley propunha indicações para amenizar o sofrimento daquelas que liam os seus conselhos ou dos doentes que porventura elas visitariam. Afinal, era impossível lidar com o doente “sem algum conhecimento em medicina e sobre os vários procedimentos com ervas e especiarias” (p.161).

A sua preocupação com a educação feminina extrapolava os intentos médicos. Para ela, a educação das mulheres era negligenciada em toda parte, como escreveu em The gentlewoman’s companion (Woolley, 1673WOOLLEY, Hannah. The gentlewoman’s companion; or, a Guide to the female sex. London: Printed by A. Maxwell for Dorman Newman, 1673., p.1). E, ainda que ela não quisesse causar uma rebelião feminina, defendia o cultivo dos saberes para as mulheres com vistas a educar suas próprias crianças. Lembremos que ela mesma havia recebido o apoio de uma nobre senhora após tornar-se órfã. Por isso, uma mãe ou uma governanta deveriam conhecer bem a natureza e disposição das crianças para melhor educá-las (p.5). O caráter feminista dos seus textos também se referia ao desequilíbrio das relações entre os gêneros. Não havia diferença de origem entre a alma do homem e a da mulher, afirmava. Portanto, as mulheres eram tão capazes de progresso quanto os homens, por meio da “boa educação” (p.1).

Em meio ao sucesso de seus livros, Woolley se tornou viúva mais uma vez. Assim, em 1674, passou a viver na casa de Richard Woolley, provavelmente seu filho. Nesse período, passou a vender remédios a “custos razoáveis”, e a se dedicar ao treinamento de senhoras nobres que desejassem participar desse serviço (Hartley, 2003HARTLEY, Cathy (ed.). A historical dictionary of British women. New York: Taylor and Francis, 2003., p.950). Como se poderá verificar no livro que será objeto deste artigo, sua intenção era propiciar às mulheres as habilidades necessárias ao preparo e, possivelmente, à venda dos remédios mencionados no texto. Para tanto, a quantidade exata dos ingredientes e o modo de preparo seriam ensinados em cada uma das receitas. Além do conteúdo, o trabalho de Woolley foi considerado referência também no formato. A maior parte de seus livros oferecia sumário, o que seria adotado por escritoras de culinária do século XVIII, como Elizabeth Raffald, Eliza Smith e Martha Bradley (Wall citado em Smith, Wilson, 2011, p.171).

A obra publicada em 1675, sob o título The accomplish’d lady’s delight, in preserving physick, beautifying, and cookery, foi dividida em três partes e trazia receitas culinárias, preparações médicas e orientações domésticas (Woolley, 1675a).3 3 Após a conclusão do artigo, tomei conhecimento de alguns autores que questionam a autoria dessa obra. De todo modo, isso não inviabiliza a discussão sobre receitas médicas nem sobre o papel das curadoras femininas, uma vez que o artigo se baseia em outras publicações do período. Ademais, o uso do nome de Woolley no livro atesta a popularidade da autora no cenário de publicação de receitas médicas. A primeira parte se refere ao preparo de xaropes e geleias a partir de frutas e flores. Trata-se do mesmo princípio que rege a organização da terceira parte, na qual um guia para o preparo de alimentos foi indicado. É na segunda parte, em especial, que se concentra o interesse pela saúde, com a apresentação de receitas médicas que se estendem por mais de quarenta páginas. Embora a especialização médica seja tratada principalmente na parte dois, menções curativas foram feitas em outros momentos da obra, e poderão, portanto, nos ajudar a entender os seus intentos ao publicar o texto.

Princípios antigos e modernos nas receitas médicas

A segunda parte do livro, intitulada “The physical cabinet”, inicia-se com a seguinte descrição: “excelentes receitas em medicina e cirurgia”; além de “algumas raras águas embelezadoras, óleos, pomadas e pós, para adornar e adicionar beleza à face e ao corpo”. Buscarei examinar os conselhos e receitas médicas endereçados às mulheres, a fim de verificar o papel desempenhado por elas nas curas cotidianas e o que tais funções femininas podem nos revelar sobre a medicina em voga na Inglaterra na segunda metade do século XVII.

A leitura das receitas médicas nos sugere não apenas o emprego de ingredientes correntes na culinária, mas também a indicação de procedimentos comuns à teoria hipocrático-galênica. A primeira menção aos humores pode ser lida na receita de xarope de vinagre. Embora estivesse alocado na seção de receitas culinárias, Woolley deixava evidente o propósito de seu uso. Era recomendado para corpos saturados de fleuma ou humores resistentes, pois atuava na desobstrução de estômago, fígado, baço e rins, permitindo que a fleuma e a bile amarela fossem expelidas (Woolley, 1675a, p.82). No texto, a bile amarela foi nomeada de “cólera”, em referência à palavra grega antiga choli, o que revela a relação entre este humor e o temperamento colérico (Fountoulakis, 2015FOUNTOULAKIS, Kostas N. Bipolar disorder: an evidence-based guide to manic depression. Heidelberg: Springer, 2015., p.163). Importante ressaltar que o vinagre era um dos ingredientes mais citados na obra, e uma de suas indicações era contra a peste, doença que ainda assolava a Inglaterra no século XVII.

A outra menção aos humores foi retomada na segunda parte do livro. Trata-se da receita número 28 contra o “mal do rei”. O ingrediente principal dessa formulação era a flor de giesta, preparada em forma de destilado. O paciente deveria ingerir tal bebida pela manhã, em jejum, pois ajudaria a “purgar o mau humor”, secando as escrófulas internamente (Woolley, 1675a, p.137). Lembremos que a doença chamada mal do rei se referia às escrófulas – um tipo de manifestação da tuberculose, cuja causa microbiana seria descoberta no século XIX pelo alemão Robert Koch (Bertolli Filho, 2001, p.38). Desde o período medieval, os reis da França e da Inglaterra mantinham a prática de tocar nas escrófulas com a intenção de curá-las. Mas foi na modernidade que o toque régio assumiu “lugar determinado entre as pompas, minuciosamente regradas, das quais se cercavam as monarquias absolutas” (Bloch, 1993BLOCH, Marc. Os reis taumaturgos: o caráter sobrenatural do poder régio, França e Inglaterra. Tradução Júlia Mainardi. São Paulo: Companhia das Letras, 1993., p.91).

Outra evidência da autoridade médica antiga era uma receita cujo nome, acredita-se, remetia ao médico grego Hipócrates (c.460-377 a.C.): hipocra. Consistia num preparo à base de vinho e especiarias, difundido desde o fim do período medieval. O vinum Hippocraticum, como ficaria conhecido entre médicos e farmacêuticos, era considerado uma forma agradável de “melhorar a saúde” (Goldstein, 2015GOLDSTEIN, Darra (ed.). The Oxford companion sugar and sweets. Oxford: Oxford University Press, 2015., p.333). No livro de Woolley, havia duas receitas desse preparo. Uma vez que a autora inserira tais receitas na parte um, dedicada a preparos culinários diversos, não constam indicações médicas para seu uso. De qualquer modo, o licor, assim nomeado pela autora, resultava da mistura de vinho com ingredientes similares nas duas receitas: açúcar, canela, gengibre e cravos (Woolley, 1675a, p.6-7, 37-38). O hipocra poderia ser usado ao final das refeições, em razão de seu alegado caráter digestivo, ou até mesmo prescrito com intenções afrodisíacas, como faziam alguns médicos setecentistas (Jianu, Barbu, 2018, p.362).

Os preparos líquidos são receitas recorrentes no livro. Além da prescrição constante do vinho, outra formulação comum na medicina desse período eram os cordiais, bebidas destiladas que poderiam ser diluídas em água antes de serem servidas. Com provável origem na Itália do século XIII, esses licores teriam chegado à Inglaterra no século XV, nomeados de “águas cordiais destiladas” (Bamforth, Ward, 2014, p.306). Os benefícios médicos dos cordiais não se restringiam à saúde do coração, como sugere a palavra em latim, cordis. Suas propriedades medicinais eram receitadas para o tratamento de inúmeras doenças. Certamente por isso, o “mais excelente cordial” recomendado por Woolley, o “Catholicon” – universal em grego –, não trazia indicações de uso, uma vez que se resumia a uma panaceia.

Outra variante dos cordiais era o julepo. Embora haja uma única menção a esse xarope (receita número 54), os cordiais foram citados uma dezena de vezes no livro. O julepo tinha origem na palavra árabe julāb, que remete ao persa gul (rosa) e āb (água), e contava originalmente com três ingredientes: água, açúcar e destilado de rosas (Bouras-Vallianatos, 2020BOURAS-VALLIANATOS, Petros. Innovation in Byzantine medicine: the writings of John Zacharias Aktouarios (c.1275-c.1330). Oxford: Oxford University Press, 2020., p.165). As rosas eram empregadas como medicamento desde a Antiguidade. Já a água de rosas, extensamente comercializada pelos árabes, foi introduzida na Europa por volta da segunda metade do século X (Touw, 1982TOUW, Mia. Roses in the Middle Ages. Economic Botany, v.36, n.1, p.71-83, 1982., p.72). Considerando a quantidade de vezes em que as rosas foram mencionadas – ao menos vinte vezes nas partes um e dois –, e o aumento do cultivo doméstico de flores na Inglaterra desde o século XVI (Thomas, 1984THOMAS, Keith. Man and the natural world: changing attitudes in England, 1500-1800. London: Penguin, 1984., p.223), é possível considerar que se tratasse de um ingrediente corrente na medicina popular.

A expansão comercial e colonizadora no início da modernidade deu “origem a um novo mundo de interação entre europeus, asiáticos, africanos e ameríndios”, com o consequente intercâmbio de novas drogas e ingredientes em “mercados da Ásia e Europa” (Chakrabarti, 2014CHAKRABARTI, Pratik. Medicine and Empire: 1600-1960. Basingstoke: Palgrave Macmillan, 2014., p.2). Entre esses ingredientes estrangeiros, figuravam as especiarias que, em virtude da diminuição dos preços, eram cada vez mais consumidas na Europa. Portugal teve papel especialmente importante nesse processo, transportando sementes e plantas entre o Oriente e o Ocidente (Algranti, 2012ALGRANTI, Leila Mezan. Saberes culinários e a botica doméstica: beberagens, elixires e mezinhas no Império Português (séculos XVI-XVIII). SÆculum: Revista de História, n.27, p.13-30, 2012., p.13).4 4 Sobre a presença das especiarias nas receitas médicas, ver Polónia et al. (2016). Isso teve impacto direto nas formulações médicas, que passaram a somar “múltiplas especiarias de uma só vez” (Azevedo, 2017AZEVEDO, Jillian. Tastes of the Empire: foreign foods in seventeenth century England. Jefferson, NC: McFarland, 2017., p.101). Na “teoria dos humores”, as especiarias eram consideradas quentes e secas, e, portanto, deveriam ser empregadas contra doenças frias e úmidas (p.101).

Uma das receitas a incorporar especiarias era a “água do Dr. Steven”, preparo bastante popular no século XVII e que contava com canela, gengibre, galanga, cravo e pimenta-da-guiné. Embora a autora mencione essa receita na parte um, sem apontar possíveis indicações de uso (Woolley, 1675a, p.12), é importante lembrar o caráter curativo do preparo. A “água do Dr. Steven” era encontrada em receitas publicadas antes e depois dessa obra de Woolley. No livro anônimo de 1667, The ladies cabinet enlarged and opened, explicava-se que o “principal uso desta água” era contra todas as doenças relacionadas ao frio. O texto afirmava ainda que o próprio doutor Steven, que ficara acamado por dez dias, havia se curado por meio desse preparo, vivendo até os 98 anos (Azevedo, 2017AZEVEDO, Jillian. Tastes of the Empire: foreign foods in seventeenth century England. Jefferson, NC: McFarland, 2017., p.103).

Prescrição similar era feita sobre a “água do Dr. Stephen”. Tratava-se de mais uma panaceia “frequentemente registrada nas coleções de receitas” (Stobart, 2016STOBART, Anne. Household medicine in seventeenth-century England. London: Bloomsbury Academic, 2016., p.40). As especiarias também faziam parte dessa formulação, que era indicada para confortar os “espíritos vitais”, e para combater “doenças internas” causadas pelo frio. Além disso, a autora afirmava que a bebida ajudava na concepção de mulheres estéreis, combatia vermes no corpo, curava tosse, dor de dente e dor de estômago (Woolley, 1675a, p.160).

Por fim, havia a “aqua mirabilis” do Dr. Willoughby (Woolley, 1675a, p.161), em provável menção ao médico irlandês da segunda metade do século XVII.5 5 Informações sobre data e local de nascimento de Charles Willoughby são incertas. Percy Kirkpatrick (1923) defende que ele foi admitido na Universidade de Pádua em 1663-1664 para a obtenção do título de doutor em medicina e, um ano mais tarde, teria voltado a Oxford. Essa “água milagrosa” era uma panaceia, feita à base de especiarias adicionadas ao vinho, que data do século XIII (Allen, 2016ALLEN, Katherine. Hobby and craft: distilling household medicine in eighteenth-century England. Early Modern Women, v.11, n.1, p.90-114, 2016. Disponível em: https://www.journals.uchicago.edu/doi/10.1353/emw.2016.0045?cookieSet=1. Acesso em: 2 fev. 2021.
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, p.101). Uma receita de “aqua mirabilis” já havia sido apresentada na parte um do livro (Woolley, 1675a, p.12) e contava com ingredientes frequentes nas receitas apontadas anteriormente, como cravo, galanga, cardamomo, noz-moscada e gengibre.

Os ingredientes importados apareciam em mais duas formulações prescritas no livro. Uma delas era o “pó da condessa de Kents”, que atuava “contra todas as doenças malignas e pestilentas” (Woolley, 1675a, p.133). A condessa de Kent era Elizabeth Grey (1581-1651), autora do livro A choice manual, or, rare and select secrets in physick and chirurgery, de 1653. Esse preparo fazia referência, por sua vez, a um “professor de medicina” não nomeado (Grey, 1653GREY, Elizabeth, countess of Kent. A choice manual, or, rare and select secrets in physick and chirurgery collected, and practised by the right honourable, the countesse of Kent, late deceased. The second edition. London: Printed by G.D. and are to be sold by William Shears, 1653., p.198). Fato que nos alerta para a circulação de saberes entre médicos licenciados e mulheres letradas das classes altas. Além de finos ingredientes indicados, como pérolas e coral, Woolley mencionava o emprego do “bezoar oriental” e do almíscar.6 6 Bezoares são aglomerados formados a partir de material não digerido, que ocorrem nos organismos de mamíferos, répteis e mesmo de peixes. De acordo com Maria do Sameiro Barroso (2013), os bezoares se tornaram conhecidos na medicina ocidental por meio de médicos árabes por volta do século XII. Seus poderes curativos, em especial contra febres, criaram uma aura mágica ao redor desses objetos. Interessante verificar que o pó se destinava a homens e crianças, o que pode nos atestar, mais uma vez, a função curadora das mulheres na visão da autora.

A outra menção era o “pó de Gascoigne”, uma panaceia indicada contra febres, sarampo, peste e melancolia. Já o público a quem se dirigia era mais restrito, dado o alto custo de seus ingredientes. Além do bezoar oriental, olhos de caranguejo e pérola compunham o preparo. Embora Woolley tenha citado os dois pós como receitas distintas, é importante ressaltar que o chamado “pó de Gascoigne” era conhecido como “pó da Condessa de Kent”, como afirma a historiadora Lucy Moore (2018MOORE, Lucy. Lady fanshawe’s receipt book: an englishwoman’s life during the Civil War. London: Atlantic Books, 2018., p.4).

Além das já citadas panaceias com especiarias, o texto trazia uma receita farmacológica muito conhecida desde a Antiguidade: a teriaga. O preparo foi mencionado tanto na parte um quanto na parte dois, e seu nome foi grafado de duas maneiras: treacle e Theriacal extraction. A teriaga remonta ao período de atuação de Galeno e tornou-se uma droga composta muito disseminada entre árabes-muçulmanos e cristãos nos séculos seguintes. Usada por via oral ou como pomada, acreditava-se, originalmente, que a teriaga combatia venenos. Mas, com o tempo, o preparo tornou-se uma panaceia e foi administrado até, pelo menos, o século XIX (Prioreschi, 1998PRIORESCHI, P. A history of medicine: Roman medicine. v.3. Omaha: Horatius Press, 1998., p.441).

Veneza era um dos celebrados locais de produção da teriaga, cujo preparo foi lembrado por Woolley na parte dois: Como fazer “água medicinal” contra a peste (receita número 52). Indicação similar havia sido impressa na parte um (receita número 98), também contra a peste. Nesse caso, Woolley ressaltava a teriaga de Andrômaco, nome do médico que atuava na corte de Nero e criador da teriaga, de acordo com Galeno (Vogt citado em Hankinson, 2008HANKINSON, Robert J. (ed.). The Cambridge companion to Galen. Cambridge: Cambridge University Press, 2008., p.312). A receita que levava o nome desse médico era também conhecida como teriaga de Veneza ou “galena” (Flanagan, 2001FLANAGAN, Robert. Antidotes: principles and clinical applications. London: Taylor and Francis, 2001., p.12). Portanto, supõe-se que Woolley estivesse se referindo ao mesmo preparo.

Como vimos, várias dessas águas curativas vinham acompanhadas da indicação de seus autores. A citação dos nomes de médicos não era gratuita. Relacionar o remédio em questão ao seu autor era uma forma de demonstrar sua “confiança e sua longa história de comprovada eficácia” (Allen, 2016ALLEN, Katherine. Hobby and craft: distilling household medicine in eighteenth-century England. Early Modern Women, v.11, n.1, p.90-114, 2016. Disponível em: https://www.journals.uchicago.edu/doi/10.1353/emw.2016.0045?cookieSet=1. Acesso em: 2 fev. 2021.
https://www.journals.uchicago.edu/doi/10...
, p.101). Além de reforçar a credibilidade das receitas, Woolley se utilizou de uma prática corrente nos livros de receitas médicas: a anotação do termo probatum ou proved. Embora remetesse a uma tradição medieval, mais preocupada com o apelo teórico do que com o prático (Stobart, 2016STOBART, Anne. Household medicine in seventeenth-century England. London: Bloomsbury Academic, 2016., p.48), e não necessariamente atestasse o conhecimento experiencial dos autores das obras, é preciso reconhecer a carga de confiança que tal indicação poderia incitar nos leitores.

Além de purgativos e panaceias, uma terapia amplamente disseminada na teoria humoral eram os banhos. Sobre isso, Woolley apresentava uma receita na parte dois: um banho seguido do uso de um tampão para a cura de hemorroidas. O banho contava com mais um ingrediente estrangeiro, a cássia-imperial, e endereçava-se às mães no puerpério. Além dessa planta asiática, o preparo para o banho contava com absinto e vinho, e deveria ser usado após a mulher dar à luz. Depois disso, um tampão com pó de aloé, misturado ao óleo de menta, deveria ser usado nas partes íntimas. Os pessários eram receitados ao público feminino pelo menos desde a Grécia Antiga (Miles, 2004MILES, Steven H. The Hippocratic oath and the ethics of medicine. Oxford: Oxford University Press, 2004., p.82). Embora Galeno tenha descrito mais tratamentos voltados para os homens, havia terapias especialmente dedicadas às mulheres, como o citado emprego de pessários. Por ser de uso íntimo, era comum que o pessário ficasse a cargo das parteiras, profissionais que poderiam estar entre os grupos leitores de Woolley.

Outra terapia amplamente empregada na medicina antiga clássica, com provável origem no Egito, era o clister ou enema (Prioreschi, 1996PRIORESCHI, P. A history of medicine: primitive and ancient medicine. v.3. Omaha: Horatius Press, 1996., p.403). O clister consiste numa limpeza intestinal por meio da introdução de líquido no orifício retal. Esse processo era indicado na receita número quatro, concernente a problemas nas vísceras. Importante ressaltar que Woolley compunha essa receita com elementos usados na culinária – como anis, erva-doce, romã, gema de ovo –, somados ao láudano, medicamento desenvolvido na Europa renascentista.

Ainda que a autora se baseie amplamente nas indicações médicas de origem hipocrático-galênica, é possível encontrar abordagens advindas das inovações médicas ocorridas no início da modernidade. Entre essas, estava o uso de preparações químicas, como o láudano, propostas por Philippus Aureolus Theophrastus Bombastus, ou Paracelso (c.1493-1541). Como afirmado, esse medicamento é citado na receita número quatro, indicado para problemas intestinais. O termo láudano, do latim laudare, era usado desde o século XVI por Paracelso (Porter, 2006PORTER, Roy (ed.). The Cambridge illustrated history of medicine. Cambridge: Cambridge University Press, 2006., p.258). De modo geral, o preparo consistia numa mistura de ópio com álcool e era administrado para uma variedade de circunstâncias (Miller, 2014MILLER, Richard J. Drugged: the science and culture behind psychotropic drugs. Oxford, UK: Oxford University Press, 2014., p.167). No caso da receita de Woolley (1675a, p.128), este deveria ser dissolvido num destilado de menta e tinha o objetivo de ser usado como clister.

Outros preparos químicos recomendados no livro empregavam absinto e terebintina. A planta de absinto era conhecida desde a Antiguidade, em especial, por seu caráter vermífugo. O termo em inglês usado por Woolley (wormwood), fazia referência a essa propriedade. Foi durante o Renascimento que a bebida de absinto se tornou mais difundida na Europa. Além do uso recreativo, o avanço do processo de destilação permitiu que o sabor da bebida se tornasse “purificado e concentrado”, o que ampliou sua comercialização bem como a prescrição por parte de médicos e boticários (Choffnes, 2016CHOFFNES, Dan. Nature’s pharmacopeia: a world of medicinal plants. New York: Columbia University Press, 2016., p.116). Já a terebintina, um extrato obtido a partir de árvores coníferas, foi citada em quatro preparos. Na receita para prevenção de aborto, Woolley (1675a, p.134) recomendou a “terebintina de Veneza”, cidade que produzia o destilado desde o período medieval, e que se tornou “um dos principais mercados dessa droga” (Bilia et al., 2014BILIA, Anna Rita et al. Essential oils loaded in nanosystems: a developing strategy for a successful therapeutic approach. Hindawi, v.2014, p.1-14, 2014. Disponível em: https://www.hindawi.com/journals/ecam/2014/651593/. Acesso em: 2 fev. 2021.
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, p.1).

Como muitas receitas culinárias e médicas circulavam de forma manuscrita e, muito frequentemente, sem indicação de autoria, é difícil rastrear as citações dos livros de Woolley. Contudo, ainda no século XVII, um manuscrito de Margaret Baker revelaria similaridades com o livro analisado aqui. A receita de óleo de erva-doce, por exemplo, foi escrita por Baker de forma quase idêntica ao que se lê em Woolley (Jeans, 2019JEANS, Hannah. Women’s reading habits and gendered genres, c.1600-1700. Tese (Doutorado em História) – University of York, York, 2019., p.141). Uma vez que Woolley era publicada e conhecida no final do século XVII, levanta-se a suspeita de que Baker tenha copiado a receita em questão.

Cuidados médicos femininos

As receitas médicas propostas por Woolley trazem à tona um tema importante da prática médica desse período: a função atribuída aos gêneros. No caso das mulheres, a atenção deve se voltar para dois fatores: a forma como eram atendidas enquanto pacientes e sua atuação como curadoras. Tais funções, por sua vez, estavam atreladas à sua classe social. Afinal, mulheres com certo recurso financeiro poderiam externar alguma opção de escolha nesse cenário – fosse o acesso a uma consulta com médicos eruditos ou o aprendizado de receitas médicas. O que se revelava bem mais restritivo se considerarmos as mulheres de classes populares.

Embora as mulheres pudessem ser acometidas de doenças várias, Woolley se preocupou em indicar recursos para combater as “doenças femininas”, isto é, aquelas enfermidades referentes às condições obstétricas e ginecológicas. Uma vez que as mulheres poderiam se sentir desconfortáveis quanto ao exame de seus corpos por mãos masculinas (Code, 2000CODE, Lorraine (ed.). Encyclopedia of feminist theories. New York: Routledge, 2000., p.233), o seu texto tinha por objetivo apontar soluções para que os cuidados femininos fossem operados por elas mesmas. Pois, além dos próprios tabus em relação ao exame do corpo feminino pelas mãos masculinas, deve-se ponderar que a consulta médica especializada não era a primeira opção de muitos pacientes nesse momento. Sobre isso, é preciso considerar que os cuidados feitos em âmbito doméstico consistiam na “única forma de medicina disponível para a maioria das pessoas no início da Inglaterra moderna” (Wall, 2002WALL, Wendy. Staging domesticity: household work and English identity in Early Modern drama. Cambridge: Cambridge University Press, 2002., p.165).

Ainda que Woolley não empregue literalmente termos como praticantes ou curadoras, fica evidente que as receitas deveriam ser preparadas pelas próprias mulheres e utilizadas por elas ou por seus pacientes. Isso pode ser exemplificado por um trecho do início do livro, pois Woolley (1675a, s.p.) indicava que as senhoras encontrariam ali um guia para “ajudar na sua prática”. Das receitas destinadas ao corpo feminino, podemos agrupar as prescrições em três grandes áreas: cuidados menstruais; remédios destinados à concepção, à prevenção de abortos e ao puerpério; e doenças frequentes, como o câncer. A autora dedicou-se ainda a anotar orientações sobre enfermidades e condições correntes na infância, como vermes, febres e o início da dentição. Havia, por fim, uma única indicação destinada às amas de leite, com o intuito de combater a febre em bebês (Woolley, 1675a, p.130). Como essas cuidadoras desempenhavam papel importante na manutenção da saúde infantil, havia grande preocupação com sua escolha, como atestam os manuais com conselhos sobre amas de leite desse período (Harrison, 2016HARRISON, Laura. Brown bodies, white babies: the politics of cross-racial surrogacy. New York: New York University Press, 2016., p.93).

Como naquele momento a febre era entendida mais como uma doença do que como sintoma de uma enfermidade, Woolley se dedicou a tecer orientações especialmente voltadas para febres e mesmo para a malária em crianças. Novamente, é possível verificar a presença de ingredientes muito correntes na medicina hipocrático-galênica. Nesse caso, as orientações deveriam ser seguidas pela ama de leite e pela criança. Para aquela, um recurso há muito recomendado: o vinho, ao qual um pó de cristal seria adicionado. Como o vinho era considerado quente e úmido, características idênticas àquelas verificadas nas crianças, estas não deveriam consumir a bebida. Para elas propunha-se uma receita tópica: a raiz da planta conhecida como “mordida-do-diabo” deveria ser amarrada ao seu pescoço (Woolley, 1675a, p.130).

Atrelado ao autocuidado feminino, fica evidente que Woolley buscava instruir as mulheres que precisavam prestar assistência a pessoas de sua família ou de sua comunidade. A palavra paciente foi empregada em 18 receitas, e o termo doente foi registrado em mais duas receitas. Na parte um, o termo paciente é citado na indicação de um xarope para tosse (Woolley, 1675a, p.153). Na parte dois, as instruções compreendiam preparos variados, que combatiam desde febre e tosse seca até pleurisia e cegueira recente em homens (p.164). Nesse livro, não há indicação de funções curativas femininas, contudo, isso foi feito em outra obra. Em The gentlewoman’s companion, citava-se um “remédio das parteiras de Londres aprovado” para curar feridas nos seios femininos (Woolley, 1673WOOLLEY, Hannah. The gentlewoman’s companion; or, a Guide to the female sex. London: Printed by A. Maxwell for Dorman Newman, 1673., p.169).

Percebe-se que as fontes de conhecimento médico de Woolley advinham tanto de saberes empíricos quanto eruditos, uma vez que nomes de médicos, assim como suas indicações terapêuticas, são correntes no livro de 1675 e no texto de 1673. Além disso, como ela própria defendia o direito à educação das mulheres, a influência feminina também foi ressaltada em sua obra, como na receita do “pó da Condessa de Kents” (Woolley, 1675a, p.132). Por fim, e de grande importância, é preciso salientar o seu próprio aprendizado na arte de curar. A sua formação empírica nessa matéria estava textualmente expressa em The gentlewoman’s companion. Embora reconhecesse a excelência de muitos autores nos assuntos abordados nesse livro – incluindo os seus nomes nas receitas médicas –, Woolley (1673WOOLLEY, Hannah. The gentlewoman’s companion; or, a Guide to the female sex. London: Printed by A. Maxwell for Dorman Newman, 1673., s.p.) alegava que tal texto era produto de seus “trinta anos de observações e experiência”.

No suplemento ao The queen-like closet, podemos avaliar melhor esse processo de aprendizagem médica e prática de cura percorrido por ela. A autora afirmava que exercia a função de “médica e cirurgiã” em sua própria casa e em benefício de seus vizinhos (Woolley, 1684WOOLLEY, Hannah. A supplement to the queen-like closet, or a Little of everything presented to all ingenious ladies, and gentlewomen. London: Printed for R. Chiswel, 1684., s.p.). E revelava que a linhagem de aprendizagem tinha origem em sua mãe e irmãs mais velhas, que eram “muito hábeis em Medicina e Cirurgia” e com quem havia aprendido um pouco dessa arte (p.8). O período em que atuou como governanta mereceu destaque, uma vez que Woolley (p.8) desfrutava da possibilidade de comprar ingredientes necessários para o preparo de “bálsamo, pomadas, unguentos, água para feridas, óleos, cordiais etc.”. Ademais, a senhora em questão procurava se instruir junto a seus médicos e cirurgiões, com vistas a dirimir dúvidas de Woolley, além de comprar-lhe livros sobre o assunto. Essas atuações empíricas – atreladas aos seus estudos de medicina – justificavam, portanto, as curas que ela propunha e o título que ela usava nesse texto: o de praticante (p.8).

Dentre suas atuações, figurava aquela corrente entre as mulheres nesse período: a de parteira. Ainda jovem, aos 22 anos, Woolley lembra que foi chamada para atender uma mulher em trabalho de parto. Esta mostrava muito cansaço em razão das dores, e caíra em “fortes ataques de convulsão” (Woolley, 1684, p.9), o que colocava em risco a vida da mãe e do bebê. Entretanto, graças aos remédios ministrados, as dores cessaram e o nascimento seguiu seu curso. Após seu primeiro casamento com um professor, Woolley exercia seu ofício entre as crianças da escola, onde tratava doenças como febres, malária e varíola. E complementava com a observação: caso os pensionistas não estivessem “gravemente doentes”, seus pais confiavam no seu trabalho, sem que houvesse a necessidade de consultar “qualquer médico ou cirurgião” (p.9).

A lista de casos citada por Woolley nos revela dois pontos importantes. Embora boa parte de seus atendimentos se endereçasse às mulheres, nota-se que o seu trabalho terapêutico também abarcava os homens. Exemplos de cuidados dispensados a pacientes homens, fossem eles de classes baixas ou da aristocracia, foram citados no suplemento de The queen-like closet (Woolley, 1684WOOLLEY, Hannah. A supplement to the queen-like closet, or a Little of everything presented to all ingenious ladies, and gentlewomen. London: Printed for R. Chiswel, 1684., p.10). O segundo aspecto se refere às suas habilidades cirúrgicas. A intervenção no corpo do paciente era a última proposta terapêutica na teoria humoral, em virtude dos possíveis males que poderia causar, e sua execução não era indicada amplamente mesmo por médicos eruditos. Contudo, a urgência dos casos e a falta de recursos de seus pacientes contribuíram para que Woolley “adquirisse habilidades cirúrgicas” (Nagy, 1988NAGY, Doreen Evenden. Popular medicine in seventeenth-century England. Ohio: Bowling Green State University Popular Press, 1988., p.63) e buscasse amparar aqueles que a procuravam.

Como já mencionado, a escritora consultava os saberes dos médicos eruditos e os citou nominalmente ao longo do texto de 1675 (The accomplish’d lady’s delight...). Já no suplemento de The queen-like closet, médicos fundamentais na construção e na prática da medicina então em voga foram apontados. Galeno, Hipócrates e Paracelso foram tomados como os “mais sábios filósofos” (Woolley, 1684WOOLLEY, Hannah. A supplement to the queen-like closet, or a Little of everything presented to all ingenious ladies, and gentlewomen. London: Printed for R. Chiswel, 1684., s.p.). Ainda que fosse assim, é preciso lembrar que Woolley era uma praticante empírica, sem formação acadêmica, e, como tal, fazia parte de um grupo há muito visto com desconfiança pelos médicos licenciados.

Os médicos treinados em universidades não raramente enxergavam as praticantes femininas como charlatãs, que geravam mais danos do que benefícios aos pacientes (Whaley, 2011WHALEY, Leigh. Women and the practice of medical care in Early Modern Europe, 1400-1800. New York: Palgrave Macmillan, 2011., p.131). Entre essas curadoras, estavam as parteiras. Importante ressaltar que, até o século XIX, as parteiras poderiam ser subdivididas em dois grupos: o urbano e o tradicional. Enquanto o primeiro grupo recebia algum grau de aprendizagem, o segundo não possuía qualquer “treinamento formal” (Whaley, 2011WHALEY, Leigh. Women and the practice of medical care in Early Modern Europe, 1400-1800. New York: Palgrave Macmillan, 2011., p.92). Na Inglaterra do século XVII, a licença de atuação das parteiras ficava a cargo dos bispos, que somente permitiam a atividade daquelas que obtivessem um certificado dos capelães da Igreja. A exigência recaía muito mais na retidão do caráter e na ortodoxia da fé do que nas suas habilidades médicas. Embora não seja possível apontar com maia precisão o número de parteiras na Inglaterra no século XVII, supõe-se que muitas atendentes, em especial, na zona rural, não possuíssem “licença”. Eram essas mulheres que estavam mais vulneráveis a possíveis denúncias de manipular poderes mágicos.

As mulheres que possuíam conhecimentos e experiência em preparar plantas medicinais não eram somente vistas como ignorantes pelos médicos eruditos, mas também estavam sujeitas a sofrer perseguições das autoridades estatais e religiosas. Embora essas mulheres sábias – e, por vezes, homens – desempenhassem importante papel na cura tradicional, desde o Renascimento iniciou-se o esforço para remover esses grupos da atuação médica. Assim, com a supressão da “dimensão espiritual” na medicina e nas ciências, os “curadores, mágicos, e bruxas perdiam sua pretensão de manipular as forças espirituais do mundo”, e o terreno era “preparado para uma mecanização da imagem do mundo” (Ruggiero, 1993RUGGIERO, Guido. Binding passions: tales of magic, marriage, and power at the end of the Renaissance. Oxford: Oxford University Press, 1993., p.17).

Embora Woolley não fosse médica licenciada, a sua atuação na prática cotidiana parecia se dar num cenário bem mais favorável do que aquele enfrentado por curadoras pobres, iletradas e moradoras de áreas afastadas das cidades grandes. Fato é que havia um reconhecimento social que relacionava os afazeres culinários domésticos à arte de preparar remédios. Em outras palavras, esperava-se da “boa esposa” que fizesse provisões para a manutenção da saúde de sua família. Dessa rede de saberes participavam “mães, parentes, vizinhos, praticantes médicos” e, naturalmente, os livros de receitas (Wear, 2000WEAR, Andrew. Knowledge and practice in English medicine, 1550-1680. Cambridge: Cambridge University Press, 2000., p.52). Nesse sentido, a medicina com origem nos médicos letrados poderia ser apropriada e transformada no uso doméstico; exercício que vimos extensamente nos livros de Woolley. Isso pode nos ajudar a entender a ausência de qualquer depoimento dessa autora quanto a acusações ou perseguições por parte de médicos letrados ou de instituições médicas.

Considerações finais

Embora Hannah Woolley (1675a, s.p.) reconhecesse que muitos livros sobre o tema culinário e médico fossem publicados no momento em que ela escrevia, sua proposta era ousada: oferecer “todas as realizações necessárias para as senhoras”. Além de reunir dicas e conselhos sobre beleza, o seu texto focava a habilidade feminina de curar, a si e aos outros, por meio de instruções escritas. Para não perder de vista o cenário desse tipo de produção, é preciso acrescentar que o gênero de receitas culinárias e médicas trazia à tona a autoridade feminina, permitindo a expressão de sua individualidade numa “sociedade profundamente religiosa” que desencorajava a identidade individual ou a “autocelebração” (Field citado em Down, Eckerle, 2007, p.59). Portanto, há que notar a importância do protagonismo feminino tanto na publicização dos saberes quanto na execução prática desses conhecimentos.

Não obstante a proposição de ferramentas para a construção desses saberes médicos por parte das mulheres, não é possível minimizar o turbulento cenário de atuação dos praticantes empíricos na Inglaterra do século XVII. Em 1684, o presidente do College of Physicians, doutor Charles Goodall, escreveu um livro especialmente dedicado a combater os “praticantes empíricos e não licenciados” (MacLennan, Pendry, 2011, p.6), o que nos indica que o número desses grupos era alto o suficiente para incitar resposta das instituições médicas. Embora Woolley acumulasse funções equivalentes às de médica, cirurgiã, boticária e parteira, nenhuma palavra foi escrita sobre possíveis sanções ou perseguições. Nem mesmo a venda de remédios praticada por Woolley teria se tornado questão de disputa com os médicos eruditos, personagens interessados na regulação dessa atividade comercial contra o avanço de praticantes leigos (Marchitello, Tribble, 2017, p.212). Como já se defendeu nesse texto, é possível que sua classe social, assim como os princípios médicos vigentes adotados por ela, tenha servido como impeditivo contra comportamentos hostis.

Nesse sentido, é preciso ter cautela com a tese de que o conhecimento médico tradicional feminino fosse essencialmente diferente da medicina normativa, e que tais mulheres eram amplamente “suprimidas por médicos homens” (Ehrenreich, English citadas em Weber, 2003WEBER, A. S. Women’s Early Modern medical almanacs in historical context. English Literary Renaissance, v.33, n.3, p.358-402, 2003., p.359). Tais posições não se sustentam a partir do que lemos nos textos de Woolley. Ao contrário: as receitas e os tratamentos indicados mostram sintonia com os preceitos médicos hipocrático-galênicos, mas também revelam a influência da medicina química moderna, como vimos em algumas receitas. Portanto, é preciso considerar o impacto que as teorias difundidas nas universidades médicas alcançavam na medicina popular, e, sobretudo, considerar a possibilidade de um intercâmbio de ideias e terapias entre os médicos eruditos e os praticantes letrados sem formação acadêmica.

Importante fazer uma ressalva quanto ao emprego de teorias médicas com pressupostos tão distintos. Por mais que Paracelso se opusesse à medicina antiga e aos princípios da teoria galênica, a vertente química ganhou adeptos entre os médicos na Inglaterra ao longo do século XVII. Então, ao lado da presença dos fundamentos filosóficos da medicina galênica, era possível notar o surgimento de novos grupos, que defendiam uma “abordagem experimental, química, matemática e mecânica sobre a natureza” (Wear, 2000WEAR, Andrew. Knowledge and practice in English medicine, 1550-1680. Cambridge: Cambridge University Press, 2000., p.358). Isso nos ajuda a entender uma possível combinação entre terapias galenistas e paracelsistas por parte de alguns médicos e praticantes empíricos, sem que notassem necessariamente uma contradição entre tais teorias.

Por fim, é preciso lembrar o papel crucial que as mulheres desempenhavam em sua comunidade e na sociedade de sua época. Woolley e outras praticantes empíricas ocupavam um espaço de atuação em que a presença de médicos eruditos era menos frequente. Embora houvesse médicos que atendessem pacientes por valores reduzidos, documentos da época mostram “poucos exemplos de doutores que não cobravam honorários dos pacientes pobres” (Nagy, 1988NAGY, Doreen Evenden. Popular medicine in seventeenth-century England. Ohio: Bowling Green State University Popular Press, 1988., p.30). Aqueles que não podiam pagar pelos serviços de um médico licenciado, ou que estivessem descontentes com as soluções propostas por tais profissionais, estavam entre os pacientes assistidos por ela. Woolley deixava isso evidente no suplemento ao The queen-like closet. Como ela afirmou, havia curado a perna machucada de um pedreiro, pois, “como ele era pobre, seu cirurgião desistira” do tratamento (Woolley, 1684WOOLLEY, Hannah. A supplement to the queen-like closet, or a Little of everything presented to all ingenious ladies, and gentlewomen. London: Printed for R. Chiswel, 1684., p.12). Ademais, prestara atendimento a uma “pobre mulher” que estava com um ferimento na perna, e que havia sido aconselhada pelo cirurgião que amputasse o membro (p.12).

São somente dois exemplos dos inúmeros casos relatados por Woolley. Ela era mais uma personagem desse importante grupo de curadoras, advindas de diferentes classes sociais e atuando nos mais variados seguimentos de cura – do parto ao puerpério, da manipulação de ervas ao tratamento na beira do leito. Todas essas mulheres estavam permanentemente “engajadas na cura, na assistência ao parto, e no conforto aos moribundos” (Mack, 1992MACK, Phyllis. Visionary women: ecstatic prophecy in seventeenth-century England. Berkeley: University of California Press, 1992., p.29). Atividades vitais para a manutenção da vida, mas, ao mesmo tempo, assustadoras.

REFERÊNCIAS

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NOTAS

  • 1
    De maneira simplificada, a “teoria dos humores” estruturada por Galeno defendia que a saúde do corpo advinha do equilíbrio entre os quatro humores (fleuma, sangue, bile amarela e bile negra). Tal equilíbrio dependia da idade e da dieta do paciente, assim como da estação do ano e do ambiente. O sistema que compreendia a relação entre os quatro humores, os quatro elementos (água, ar, fogo e terra), e as quatros estações poderia abarcar outros fatores, como os “quatro sabores, quatro cores, e, ao final da Antiguidade, os quatro temperamentos” e os signos astrológicos. Ver Nutton (2013NUTTON, Vivian. Ancient medicine. London: Routledge, 2013., p.83).
  • 2
    Elaine Hobby colocou em dúvida a autoria desse livro, especialmente em razão de uma seção autobiográfica do texto que se assemelharia mais às convenções do romance do que ao tipo de narrativa das mulheres que escreviam após a Restauração. Sobre isso, ver Hobby citado em MacLean (1995MACLEAN, Gerald (ed.). Culture and society in the Stuart Restoration: literature, drama, history. Cambridge: Cambridge University Press, 1995., p.179-200).
  • 3
    Após a conclusão do artigo, tomei conhecimento de alguns autores que questionam a autoria dessa obra. De todo modo, isso não inviabiliza a discussão sobre receitas médicas nem sobre o papel das curadoras femininas, uma vez que o artigo se baseia em outras publicações do período. Ademais, o uso do nome de Woolley no livro atesta a popularidade da autora no cenário de publicação de receitas médicas.
  • 4
    Sobre a presença das especiarias nas receitas médicas, ver Polónia et al. (2016)POLÓNIA, Amélia et al. (org.). Ciência e poder na primeira Idade Global. Porto: Faculdade de Letras da Universidade do Porto, 2016..
  • 5
    Informações sobre data e local de nascimento de Charles Willoughby são incertas. Percy Kirkpatrick (1923) defende que ele foi admitido na Universidade de Pádua em 1663-1664 para a obtenção do título de doutor em medicina e, um ano mais tarde, teria voltado a Oxford.
  • 6
    Bezoares são aglomerados formados a partir de material não digerido, que ocorrem nos organismos de mamíferos, répteis e mesmo de peixes. De acordo com Maria do Sameiro Barroso (2013)BARROSO, Maria do Sameiro. Bezoar stones, magic, science and art. Geological Society London Special Publications, v.375, n.1, p.193-207, 2013., os bezoares se tornaram conhecidos na medicina ocidental por meio de médicos árabes por volta do século XII. Seus poderes curativos, em especial contra febres, criaram uma aura mágica ao redor desses objetos.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    03 Abr 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    4 Fev 2021
  • Aceito
    1 Ago 2021
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