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Covid-19 como tema de memória, verdade e justiça: entrevista com Deisy Ventura

Resumo

Entrevista com Deisy Ventura, professora titular da Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo, que discute a dimensão política da pandemia de covid-19 no Brasil. A pesquisadora se tornou uma das principais referências no assunto por seu amplo conhecimento de direito internacional com foco em saúde. Na entrevista, ela apresenta reflexões relacionadas à saúde global, além de discutir a gestão da pandemia no país e suas implicações para os direitos humanos. De acordo com a pesquisadora, houve no Brasil uma política governamental sistemática de disseminação do vírus, e a pandemia deveria ser tratada como uma questão de memória, verdade e justiça.

Covid-19; Saúde global; Direitos humanos; Memória

Abstract

This interview with Deisy Ventura, professor at the Faculty of Public Health of the Universidade de São Paulo, discusses the political dimension of the covid-19 pandemic in Brazil. She has become a leading reference on the subject due to her extensive knowledge of international law, with a focus on health. In this interview, Deisy Ventura offers some reflections on global health and discusses the handling of the pandemic in Brazil and its human rights implications. According to Ventura, the Brazilian government had a systematic policy for the spread of the virus, and the pandemic should be treated as a matter of memory, truth, and justice.

Covid-19; Global health; Human rights; Memory

A crítica e as pesquisas de Deisy de Freitas de Lima Ventura, professora titular de ética da Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo (FSP/USP), têm sido referência fundamental sobre a pandemia de covid-19 no Brasil. Ela mostrou com evidências a política sistemática governamental de disseminação do coronavírus no Brasil. Nesta entrevista, Deisy Ventura conta sobre sua carreira, suas valiosas pesquisas relacionadas à saúde global, aos direitos humanos e à pandemia de covid-19 e os vínculos essenciais entre a memória, a história e a justiça. Além disso, fornece referências fundamentais para entender a dimensão política da pandemia no Brasil.

Marcos Cueto: Você é consultada por jornais e revistas para fazer declarações e ao mesmo tempo conseguiu inserir rapidamente no debate assuntos cruciais, como as normas legais feitas pelo governo brasileiro para disseminar o vírus, e os crimes de lesa-humanidade. Você poderia falar como começou a sua pesquisa em covid-19 em 2020?

Sobre o início da pesquisa em 2020, talvez o mais importante seja esclarecer que eu tenho uma formação tradicional em direito e, especificamente, em direito internacional. Comecei a minha carreira tratando de questões de integração latino-americana. Sou do extremo sul do Brasil. Nasci em Santa Maria, cidade que fica a duas horas do Uruguai, e sempre tive mais afinidade cultural com colegas da Argentina ou Uruguai do que com os de São Paulo, Rio de Janeiro ou Brasília. Quando começou o Mercosul, em 1991, a Universidade Federal de Santa Maria (UFSM), onde me formei, criou um mestrado em integração latino-americana. Já como professora da UFSM, a partir de 1992, passei a me engajar no processo de integração regional. Na época, acreditávamos muito no Mercosul e no papel que o Rio Grande do Sul tinha a desempenhar. Eu comecei a minha carreira de docente e pesquisadora trabalhando com questões jurídicas da integração regional. Fui para Paris fazer mestrado e doutorado por causa disso, pensando em como seria esse quadro jurídico da integração, porque a Europa tinha avançado muito nas questões jurídicas complexas que envolvem a eliminação das fronteiras comerciais entre os países, e em outras formas avançadas de cooperação. O motor da minha carreira acadêmica foi esse interesse pela integração regional. Quando voltei de meus estudos do doutorado na França, em 2002, trabalhei três anos na Secretaria do Mercosul, em Monevidéu, como assessora jurídica nas negociações do Mercosul, e lá conheci o Geraldo Lucchese, consultor legislativo da Câmara dos Deputados brasileira, que na época liderava as negociações de saúde.1 1 Uma versão em espanhol de minha tese, publicada pelo escritório do Uruguai da Fundação Konrad Adenauer, está disponível no site da Universidad Nacional Autónoma de México (ver Ventura, 2004). Lá em Montevidéu também estava a saudosa Ana Paula Jucá, que atuava na Agência Nacional de Vigilância Sanitária do Brasil, e outros excelentes sanitaristas da região. Eu me aproximei do Geraldo, da Ana e de outros negociadores da saúde que nos acolheram, ao passo que os diplomatas, não. Fui uma das quatro primeiras funcionárias internacionais do Mercosul. Até então, a Secretaria funcionava a partir da cedência de funcionários nacionais, sobretudo uruguaios. Após um concurso público que teve centenas de candidatos, foram selecionados os primeiros funcionários do bloco: o jurista argentino Alejandro Perotti, os economistas Oscar Stark Robledo, paraguaio; Marcel Vaillant Alcalde, uruguaio; e eu. A gente tinha muita dificuldade em conversar com os diplomatas, mas o pessoal da saúde se interessou em pensar na qualidade jurídica daquelas normas, o que significavam, e eu fui me apaixonando pelas questões de saúde. Claro que eu trabalhava também em outras negociações. Por exemplo, ajudei a fazer o regulamento da Reunião de Altas Autoridades de Direitos Humanos do Mercosul. Eu trabalhava em diversas frentes, mas as de saúde me cativaram. Nessa época também conheci a Sueli Dallari, que é uma das pioneiras do direito sanitário no Brasil. Ela criou essa disciplina e o Centro de Estudos e Pesquisas de Direito Sanitário (Cepedisa), onde estou hoje, com o Fernando Aith, também professor titular, e outros pesquisadores, aqui na FSP/USP. Eu comecei a escrever com a Sueli sobre temas que eram uma interface entre integração e saúde, como o princípio da precaução e normas sanitárias sobre saúde com impacto na integração regional (Dallari, Ventura, 2002). E fui fazendo esse percurso até o momento em que achei que já tinha dito tudo sobre direito da integração regional, porque o Mercosul infelizmente, por razões políticas, ficou estagnado, não foi adiante.

Quando vim para a USP em 2007, já estava decidida a trabalhar com saúde e negociações internacionais de saúde. Estudando o tema, fiquei fascinada com a literatura sobre pandemias, e a Sueli Dallari teve papel fundamental nessa escolha, de diversas formas. Em julho de 2009, escrevemos juntas um artigo sobre a gripe AH1N1 que afirmava: “tratar a pandemia gripal em curso como um espetáculo pontual é um grande equívoco” e “a deplorável desigualdade econômica mundial distribui também desigualmente o peso das urgências sanitárias. Os pobres portam o fardo mais pesado” (Dallari, Ventura, 31 jul. 2009). Poucos dias depois, ela pediu que eu a substituísse em uma sessão extraordinária da Câmara dos Deputados para discutir a pandemia de influenza AH1N1, que aconteceu em agosto de 2009, na presença do ministro da Saúde José Gomes Temporão. Michel Temer era o presidente da Câmara. Osmar Terra, o “terraplanista” (pessoa que nega a evidência científica) que teve um papel odioso no gabinete paralelo de Jair Bolsonaro, era secretário de Saúde do Rio Grande do Sul. Algumas figuras que se tornaram bastante importantes nessa pandemia estavam lá em posições totalmente diferentes. Era outra época. O ministro da Saúde foi à Câmara conversar com os deputados e dar respostas, e eu participei dessa sessão representando o Centro de Estudos e Pesquisas de Direito Sanitário da Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo. Eu tinha entrado na USP há pouco tempo e fiquei muito impressionada não tanto com a gripe AH1N1, porque ela não teve a dimensão, obviamente, que a covid-19 teve, mas com o que podia acontecer dentro do Parlamento, observando a posição de cada um. Ali tinha, por exemplo, um deputado propondo que fosse proibido o aperto de mão no Brasil. Eu tive uma oportunidade pessoal extraordinária de testemunhar a loucura que poderia ocorrer numa pandemia de maior dimensão. Ao mesmo tempo, estava lá o Temporão, que era muito competente. Estar naquela audiência foi uma experiência decisiva para mim, constitutiva do meu olhar sobre as crises sanitárias.

Meu tema principal passou a ser pandemia. No direito, ninguém entendeu. Meus colegas pensaram que eu havia enlouquecido, virado hippie. Parecia algo distante. Eu fiz a minha tese de livre-docência no Instituto de Relações Internacionais da USP, onde eu lecionava na época e do qual sou hoje vice-diretora, sobre a gripe AH1N1. O pessoal da saúde, apesar de certa desconfiança por eu ser advogada, demonstrou interesse. Poucos colegas do direito tiveram interesse, mas eu segui trabalhando. Eu tinha outras agendas de pesquisa também, principalmente migrações e refúgio, sempre sob a perspectiva dos direitos humanos. Justamente em razão dos direitos dos migrantes, acompanhei com grande atenção a literatura sobre segurança da saúde global. Em 2013, foi criado o Programa de Pós-graduação em Saúde Global e Sustentabilidade, aqui na FSP/USP, liderado por Helena Ribeiro e pelo saudoso Paulo Fortes. Apesar da quase indiferença dos meus colegas do direito, encontrei espaço na área de relações internacionais, que passou a se interessar paulatinamente por essa temática, e na saúde pública. Na área acadêmica da saúde coletiva ainda falta muito para que as questões internacionais sejam reconhecidas como um tema importante, mas na FSP/USP a discussão sobre emergências estava muito mais avançada, e o clima era mais acolhedor do que no direito.

Em janeiro de 2020, eu certamente estava entre os poucos juristas dedicados a essas questões, e não apenas no Brasil. Quando a Organização Mundial da Saúde (OMS) declarou a emergência, surgiu o caso do resgate dos brasileiros em Wuhan, China, e esse foi o motor da lei n.13.979 adotada em 6 de fevereiro de 2020 (Brasil, 6 fev. 2020). Não é que o presidente Bolsonaro tivesse maturidade e reconhecesse a importância de uma legislação epidemiológica avançada. Ele primeiro declarou que não iria trazer os brasileiros. A declaração repercutiu mal, e ele resolveu trazê-los. Aí o pessoal do Ministério da Saúde, o então ministro Luiz Henrique Mandetta, disse algo assim: se trouxermos esses brasileiros e os confinarmos, eles vão para a Justiça e conseguirão sair, porque não há legislação específica que sustente esse confinamento. Havia então o risco de dizerem que, ao repatriar os brasileiros que estavam na China, o presidente havia deixado entrar a covid-19 no Brasil. Essa é a explicação para o projeto de lei que o ministro da Saúde mandou ao Congresso. O projeto ficou três dias em regime de urgência no Congresso, porque o governo desejava trazer rapidamente esses brasileiros da China em uma grande operação militar e de propaganda batizada pela Força Aérea Brasileira como “Operação Regresso à Pátria Amada Brasil”.

Após a adoção do Regulamento Sanitário Internacional, no âmbito da OMS, em 2005, o Brasil passou por um longo processo de preparação, que foi ainda mais relevante em razão dos grandes eventos internacionais que o Brasil sediou, como a Copa do Mundo em 2014 e os Jogos Olímpicos em 2016. Em um artigo de 2021, Fernando Aith, Danielle Rached e eu explicamos em detalhes como estava a legislação epidemiológica brasileira quando a pandemia chegou (Ventura, Aith, Rached, 2021). Em síntese, afirmamos que a lei de 2020 mantém os traços essenciais da legislação precedente. Em lugar de antecipar os fenômenos, elabora normas de forma reativa e casuística. O resultado é a fragmentação do direito da saúde em uma plêiade de normas legais e infralegais, podendo gerar incoerência e conflitos de hierarquia entre normas. Também falta o debate democrático sobre as normas de saúde, e muitos temas fundamentais ainda não foram regulamentados. Ou seja, o Poder Executivo deveria regular mais e melhor as emergências internacionais. Fato é que havia muita resistência na área da saúde pública em relação a medidas como quarentena, isolamento e tratamento obrigatório, o que explica a hesitação dos governos em regulá-las. Com o avanço da covid-19, porém, todos entenderam que era muito importante cuidar das questões jurídicas relacionadas à pandemia, e não apenas em âmbito nacional, mas também no plano internacional. Lembro que muitos me perguntavam o que a OMS poderia fazer, a nosso favor ou “contra nós”.

Nesse momento, início de 2020, as minhas primeiras falas públicas sobre o tema foram em defesa do Sistema Único de Saúde (SUS – um dos maiores sistemas de saúde pública do mundo, com décadas de trabalho), destacando dois aspectos. Em primeiro lugar, com base no estudo das emergências anteriores e na literatura sobre segurança sanitária internacional, estava convencida de que a verdadeira segurança só seria possível por meio dos sistemas públicos de saúde (Ventura, 31 jan. 2020). Então, era necessário reforçar o SUS. Nós já temos o que precisamos ter, mas o sistema vem sendo sucateado, vem sendo enfraquecido, então era preciso fortalecê-lo imediatamente antes de chegar o primeiro caso. Tínhamos a estrutura necessária – uma grande rede capilarizada, capaz de reproduzir protocolos em todo o território nacional –, estávamos bem posicionados graças a anos de preparação, mas precisávamos de uma grande injeção de recursos e uma ampla valorização dos profissionais. Seria necessário aproveitar a pandemia e já de início mudar o padrão salarial, conceder direitos aos trabalhadores de saúde e enfrentar a precarização. Em segundo lugar, até na GloboNews (Especialista..., 12 mar. 2020), para a minha surpresa, eu pude falar que, enquanto o Ministério da Saúde estivesse à frente da resposta, nós podíamos ter confiança, mas quando o comando da resposta se deslocasse para outros órgãos do governo federal deveríamos ficar muito preocupados. A sociedade teria que tomar a dianteira, criar um comitê científico, os governadores precisariam fazer uma frente, porque, se o comando da resposta à pandemia saísse do Ministério da Saúde, haveria uma catástrofe. Basta estudar as emergências de saúde anteriores para saber disso, e eu fui uma das poucas pessoas que o fez sob uma perspectiva jurídica.

Poucos dias depois dessa entrevista, as estruturas de coordenação da resposta à pandemia lideradas pelo Ministério da Saúde passaram a ser subordinadas a um Comitê de Crise coordenado pela Casa Civil (um órgão com status de ministério diretamente ligado ao presidente, podendo ser comparado à figura do primeiro-ministro de governos de outros países). Por fazer parte da estrutura do Poder Executivo, pode ter esse status de ministério. Era composto por 27 autoridades entre as quais apenas duas vinculadas ao Ministério da Saúde. Por meio de uma série de decretos, o novo comitê passou a contar com seu próprio centro de operações e se tornou o principal órgão de deliberação sobre a resposta à covid-19. O primeiro parágrafo do estudo que fizemos para a Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI), criada em 13 de abril de 2021 e instalada no Senado Federal em 27 de abril de 2021, conhecida como a CPI da Pandemia e que tinha como objetivo apurar as ações e omissões do governo federal no enfrentamento da pandemia da covid-19 no Brasil, começa com esse evento em que a coordenação da resposta brasileira à pandemia, institucionalmente, passa a ser da Casa Civil.2 2 O estudo A linha de tempo da estratégia federal de disseminação da covid-19 foi elaborado no âmbito do projeto de pesquisa “Mapeamento e análise das normas jurídicas de resposta à covid-19 no Brasil”, da Cepedisa/FSP/USP, e solicitado pela Comissão Parlamentar de Inquérito criada pelos Requerimentos do Senado Federal de 2021 (Cepedisa/FSP/USP, 28 maio 2021). Telefonei para o Fernando Aith, professor do Departamento de Política, Gestão e Saúde da FSP/USP, e disse que o Bolsonaro, provavelmente, seguiria a linha do Viktor Orban, primeiro-ministro da Hungria, e tentaria fechar o Congresso, sob o pretexto de conter a doença. Naquele momento, estava muito forte a mobilização em Brasília contra o Supremo Tribunal Federal (STF). Fevereiro, março de 2020 é um momento muito especial, muito forte de ascensão do bolsonarismo anti-institucional. Eu temia que o bolsonarismo aproveitasse a resposta à pandemia para instituir um regime de exceção, restringindo os direitos fundamentais e a democracia. Que ilusão. Achei que Bolsonaro colocaria a polícia na rua, o Exército na rua, diria que as instituições não poderiam funcionar em condições normais em razão da emergência e ainda tentaria usar o SUS como trunfo. O ministro da Saúde, Mandetta, já estava dizendo isso. Até então adversário declarado do sistema, Mandetta passou a aparecer de colete do SUS em entrevistas dizendo “graças a Deus nós temos o SUS”. Fernando Aith e eu concluímos que era preciso ler o Diário Oficial todos os dias, da União e dos estados também, e acompanhar o que eles iriam fazer no sistema normativo para, primeiro, denunciar o potencial de violação de direitos humanos dessas normas, e, depois, quando a pandemia terminasse, mostrar o que ficaria do regime de exceção no ordenamento. Fernando conta essa conversa no documentário Eles poderiam estar vivos (resenhado neste dossiê da revista História, Ciências, Saúde – Manguinhos) do qual participamos bastante. Mas obviamente não tínhamos dinheiro para fazer essa pesquisa.

Mandamos o projeto para a Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp – uma das principais agências de fomento à pesquisa científica e tecnológica do país), e a agência respondeu meses depois, apesar de dois pareceres apontando a excelência da proposta, que ela seria supostamente inexequível, em um processo de avaliação que mereceria, aliás, uma apuração mais detida. Mas não tínhamos tempo para isso. Falamos com a Conectas Direitos Humanos (uma organização não governamental que luta pelos direitos humanos a partir de um olhar do Sul Global), que entendeu imediatamente o que estava em jogo e nos ofereceu quatro excelentes estagiários. Rossana Reis, na época professora do Departamento de Ciência Política da USP, e a internacionalista Camila Asano, da Conectas, compuseram a coordenação junto conosco. Fizemos um formulário de avaliação qualitativa de cada norma. Eu não queria um robô, não queria algo somente quantitativo, queria pessoas que lessem cada norma e identificassem o tipo de norma, a autoridade executora, o tema envolvido, o potencial de restrição de direitos, o potencial de atingir grupos vulneráveis. Fizemos um banco de dados dessas normas. Treinamos a equipe para essa tarefa e tudo o que eles identificavam, nos passavam. Decidimos fazer o boletim Direitos na Pandemia para divulgar os resultados parciais do estudo, também financiado pela Conectas, e muito rápido nos demos conta de que o governo estava contribuindo para espalhar o vírus. Estávamos diante de outro tipo de autoritarismo, mais complexo. Também nos demos conta de que a sociedade brasileira acreditava na tese do jogo duplo, que depois foi sustentada pelo então ministro da Saúde Eduardo Pazuello na CPI. Ou seja, a ideia de que o presidente falava bobagens para a internet, mas, na verdade, fazia outra coisa, combatia a doença, apesar de suas limitações. Essa é uma tese que prevaleceu durante todo o ano de 2020, de que o presidente era um irresponsável, um incompetente, que falava bobagens para os seus apoiadores, mas dizia uma coisa e fazia outra. E nós afirmamos que, ao contrário, ele estava fazendo exatamente o que dizia estar fazendo. Claro que havia resistência ao que ele fazia, mas isso é outra coisa. Algumas instituições resistiam. Mas ele estava sendo coerente e existia uma estratégia do Estado. A primeira pessoa a publicar nossa tese, que para nós não é uma tese, era a realidade, foi a Eliane Brum (22 jul. 2020), grande jornalista, premiadíssima, que teve a coragem de publicar no El País Brasil uma entrevista em que eu dizia que estava acontecendo um crime contra a humanidade no Brasil. Gilmar Mendes, renomado jurista e ministro do STF, já havia falado explicitamente em genocídio, mas nós duas fomos criticadíssimas, taxadas de militantes.

Foi só com aquele horror que aconteceu em Manaus em meados de janeiro de 2021, quando a capital do estado de Amazonas, com hospitais lotados e sem oxigênio, virou capital mundial da covid-19, que deixamos de ser vistos como militantes e passamos a ser reconhecidos como pesquisadores. Pensamos em como poderíamos apresentar os resultados da nossa pesquisa, porque é muito difícil despertar o interesse sobre normas, escritas em um jargão muito restrito e cujos efeitos podem ser velados. Decidimos fazer uma linha do tempo com a classificação: “atos de governo”, “atos normativos” e “propaganda contra a saúde pública”. Mesmo não se interessando tanto por vetos presidenciais, portarias ou decretos, qualquer pessoa podia constatar o alinhamento dessas normas com as decisões de gestão e as declarações do Bolsonaro. Só então conseguimos traduzir a nossa pesquisa de uma forma que foi compreendida3 3 Ela foi publicada pela primeira vez em janeiro de 2021 (ver Ventura, Reis, 2021). e teve grande repercussão. Senadores que queriam fazer a CPI da Covid, como Randolfe Rodrigues, Humberto Costa e Alessandro Vieira, entraram em contato, pediram mais detalhes do estudo.4 4 Em seu livro sobre os bastidores da CPI, os senadores Randolfe Rodrigues e Humberto Costa reconhecem o papel do estudo como inspiração para a CPI (Costa, Rodrigues, 2022, p.31-32). A CPI nos encomendou uma atualização, que foi entregue em maio de 2021. O estudo também foi traduzido para o inglês graças ao professor Octavio Ferraz, do Transnational Law Institute do King’s College London (Ver Ventura et al., 5 ago 2021). Mesmo assim, trata-se de uma síntese, porque são milhares e milhares de normas e despachos que encontramos no Diário Oficial. A Conectas deixou de nos financiar em 2021 porque entendeu que a iniciativa já tinha cumprido o seu papel, e começamos a trabalhar com o Conselho Nacional de Secretários de Saúde, a fim de consolidar e ampliar a base de dados. Essencialmente, a ideia inicial do nosso estudo era acompanhar a evolução do ordenamento jurídico brasileiro, e particularmente as violações de direitos humanos, achando que haveria um fechamento. Mas o que constatamos foi uma ideia ultraliberal, que pode ser chamada de neoliberalismo epidemiológico, que é simplesmente o deixar morrer, que é o que eu acredito ser um elemento importante da singularidade brasileira na resposta à pandemia.

Carlos Henrique Assunção Paiva: Eu gostaria de agradecer a Deisy e de perguntar o seguinte: não se pode dizer que o advento da pandemia de covid-19 tenha sido algo inesperado. Várias agências internacionais já lidavam com essa possibilidade, inclusive com relação à emergência de um coronavírus com potencial pandêmico, não é? Considerando isso, em termos gerais, como é que você avalia a resposta internacional à pandemia de covid-19?

Sempre brinco que sou a única pessoa que lê os documentos da OMS, leio tudo. Falando sério, esta pergunta é muito importante. Há uma abundância de documentos preparatórios para emergências de saúde. Mais do que isso, há um Regulamento Sanitário Internacional, aprovado em 2005 e vigente em 196 Estados. Podemos nem sempre concordar com as recomendações da OMS, mas há uma estrutura que oferece em caráter permanente padrões, evidências científicas, recomendações, concordemos ou não com algumas delas, mas fato é que ela oferece padrões e orientações confiáveis para emergências. Não foi apenas a OMS que se preparou detalhadamente para episódios como esse, mas também outras organizações internacionais. O Banco Mundial, por exemplo, tem um fundo de financiamento de preparação para pandemias. Eu não concordo com o enfoque, porque é baseado em seguros, um grande mercado pandêmico de seguros, como disseram Felix Stein e Devi Sridhar (2017). Mas fato é que eles existem, já existiam muitos anos antes. É absolutamente desonesto dizer que as organizações internacionais não alertaram para a iminência de emergências desse tipo. Mas depois de avisarem, é importante pensar o que essas organizações foram capazes de fazer diante do fato consumado. São duas coisas bem diferentes. Uma é oferecer instrumentos de preparação com os quais podemos concordar ou não. Outra é saber quais são os limites dessas organizações internacionais quando acontece um evento desse tipo, porque não basta avisar. Quando acontece, as organizações internacionais, e particularmente a OMS, têm um papel a desempenhar.

Nessa pandemia aconteceu algo importante. Comparando a covid-19 com a crise do ebola de 2014-2015, houve uma valorização da OMS. Na crise do ebola a comunidade internacional e, particularmente, o então presidente dos EUA, Barack Obama (governante no período 2009-2017), deixaram a OMS de lado, não enxergaram a OMS como capaz de coordenar aquela resposta. Foi criada uma missão das Nações Unidas de caráter sanitário (Missão das Nações Unidas de Resposta à Emergência do Ebola), que coordenou a ação internacional, recebeu os recursos e assumiu a frente da resposta, sob os auspícios do Conselho de Segurança da ONU. E a OMS ficou como assessora técnica da missão que agiu no epicentro da crise na África Central, principalmente Libéria, Serra Leoa e Guiné, com milhares de soldados norte-americanos, com o representante do secretário-geral da ONU, na época Ban Ki-moon, e o forte protagonismo do Obama para, via Nações Unidas, por meio dessa missão, assumir a coordenação da resposta. Ao mesmo tempo, havia um processo muito forte de ascensão de Donald Trump dentro dos EUA (presidente no período 2017-2021), com Trump atacando fortemente Obama, acusando-o de deixar o ebola entrar no país, a partir do caso de um cidadão norte-americano com a doença que foi repatriado. O ebola foi um importante instrumento de manipulação política da extrema-direita. Porém, se as emergências de saúde passassem a ser conduzidas via Conselho de Segurança, isso seria um péssimo sinal, sinal de securitização dos temas de saúde pública (Ventura, 2016VENTURA, Deisy de Freitas Lima. Do ebola ao zika: as emergências internacionais e a securitização da saúde global. Cadernos de Saúde Pública, v.32, n.4, 2016. Disponível em: https://doi.org/10.1590/0102-311X00033316. Acesso em: 8 jan. 2023.
https://doi.org/10.1590/0102-311X0003331...
). Ou seja, de tratar os temas de saúde como temas de segurança internacional, olhando mais a contenção da propagação da doença em direção ao mundo desenvolvido do que os seus efeitos sobre as populações atingidas.

Depois, veio a emergência da síndrome congênita do vírus zika (SCZ), em 2015 e 2016, que teve o Brasil como epicentro, com características completamente diferentes do ebola. A OMS veio aqui, elogiou o trabalho do Brasil. Não somente o governo brasileiro concordou com a declaração da emergência internacional da SCZ como forma de fortalecer internamente a estratégia de resposta, como teve também a questão dos Jogos Olímpicos e Paraolímpicos no país, que foi decisiva para a declaração dessa emergência. Por isso é difícil comparar. Mas quando chega um fenômeno da magnitude da covid-19 é muito importante que a OMS tenha a centralidade da resposta internacional. Esse é um elemento analítico positivo. A OMS conseguiu ser a coordenadora, conseguiu estar à frente. Isso custou ataques que chegaram a ponto de os EUA saírem da OMS. Trump notificou a saída, Joe Biden (eleito presidente ao final de 2020) reverteu quando tomou posse em janeiro de 2021. Isso chegou a acontecer, é impressionante. Do ponto de vista histórico, e vocês sabem muito melhor que eu, a outra retirada que tivemos entre 1949 e 1955 foi dos países soviéticos, porque a OMS seria pró-norte-americana. E foi o brasileiro Marcolino Candau, diretor-geral da OMS na época, que trouxe de volta esse pessoal. Mas é incrível os soviéticos saírem por essa razão décadas atrás, e, diante da covid-19, os EUA renunciarem ao protagonismo que conquistaram e se retirarem da OMS. O governo de extrema-direita do Brasil também criticou a OMS, assim como outros extremistas criticaram.

É inegável que a organização teve uma centralidade na resposta à pandemia, mas ela tem limites enormes, que poderíamos tentar resumir na questão do financiamento, problema crônico da organização. Quer dizer, a OMS tem poucos recursos, que são condicionados às prioridades dos doadores. Há um segundo problema que são os limites regulamentares de atuação, porque as recomendações da OMS não são obrigatórias, e os mecanismos de controle do cumprimento das obrigações dos Estados pela OMS são mecanismos frágeis, essencialmente assentados na autoavaliação. Esses dois elementos, tanto o financiamento como a ausência de mecanismos de cobrança mais efetivos, podem ser expressos em uma única frase; que é a falta de vontade política dos Estados de dar à OMS maior capacidade de atuação. Imaginando outro cenário que não o da ascensão da extrema-direita no mundo e o recuo do multilateralismo, o natural seria que os Estados dessem mais força à OMS, mas o momento não é esse, é de retração do multilateralismo. Não havia essa força política que poderia ter dado mais recursos para que a OMS, de forma mais livre, pudesse estabelecer suas prioridades e também impor mais constrangimento aos Estados para que obedecessem às suas recomendações. E aí se soma talvez a face mais clara da incapacidade da OMS de estar à altura de uma emergência desse tipo: o acesso às vacinas. Finalmente, a direção-geral da OMS afirmou que é preciso flexibilizar os direitos de propriedade intelectual durante uma pandemia. Seu diretor-geral, Tedros Adhanom, falou em “apartheid sanitário” para descrever a acumulação irracional de vacinas nos países ricos. É uma expressão muito forte para um funcionário internacional, que não costuma usar esse tipo de vocabulário. Apartheid não é somente uma referência à história de África do Sul, mas é um crime contra a humanidade previsto no Estatuto de Roma; um tratado que estabeleceu o Tribunal Penal Internacional, sediado em Haia (Países Baixos), em 1998. Mas Tedros não teve força política suficiente. O que ele conseguiu fazer, por enquanto, foi criar um órgão de negociação de um acordo internacional sobre pandemias.

Supostamente, esse acordo de pandemias trará disposições sobre propriedade intelectual, mas, pelo que está se perfilando em termos de posição dos Estados, eu não acho que teremos sucesso em dar tangibilidade a essa flexibilização prevista no direito internacional. Faz muita falta a liderança brasileira, porque o Brasil, junto com a Índia e outros países, em anos anteriores, como por exemplo em 2001, com a Declaração de Doha, que reconhecia a importância dos genéricos dos antirretrovirais, já havia conseguido o reconhecimento de que a saúde pública justifica exceções ao direito de propriedade intelectual. Com a mudança de governo no Brasil, o país deve assumir a frente dessa agenda, retomar os princípios de Doha e tentar colocar a medida nesse tratado sobre pandemias. Acho que essa precisa ser a grande posição do Brasil, articular o Sul Global a esse favor.

Acredito que a resposta internacional foi comprometida pelos limites que os Estados impuseram historicamente à OMS e continuam impondo. Para a falta de vontade política de fortalecimento da OMS pode haver uma explicação via cultura “soberanista” dos Estados, a ideia de que não querem ceder competências a organismos internacionais, mas, no meu entendimento, mais forte que isso, há algo mais simples. Ao lermos o Regulamento Sanitário Internacional, e pouquíssimas pessoas no mundo o leram, vamos concluir que, para cumprir aqueles compromissos, de verdade, é preciso ter um sistema público de saúde de acesso universal, para cumprir as capacidades: regulação, políticas públicas, fronteiras, recursos humanos, comunicação de risco, rede de laboratórios etc. Onde temos isso? Em um grande sistema público de saúde. A resposta a uma pandemia ou a qualquer outra emergência internacional só será eficaz quando existir acesso universal à saúde, e esse é um problema porque temos forças políticas agindo em sentido oposto em todos os níveis. Durante uma emergência, a OMS vai fazer o que fez agora, vai fazer recomendações, vai apontar que os Estados não estão sendo eficientes na resposta, mas com muito cuidado, já que se trata de uma organização internacional que depende dos Estados. Mesmo assim, no caso do Brasil, em diversas coletivas de imprensa, a OMS apontou que estava preocupada com o país, que imunidade de rebanho por contágio era eticamente inaceitável e cientificamente falsa. Nas próximas emergências, caso a regulamentação não mude, a OMS continuará tentando articular iniciativas de cooperação, como a Covax, uma iniciativa da OMS para distribuição equitativa de vacinas contra a covid-19, mas elas são limitadas pelos interesses de certos Estados. A pergunta é como vamos evitar novas emergências; e aí temos duas grandes questões, essa que eu já mencionei, dos sistemas de saúde nacionais, e a segunda é a questão ambiental. As origens ambientais das emergências são evidentes, como a invasão de habitat naturais, no caso do ebola; o saneamento básico incipiente, no caso da SCZ, ou ainda a pecuária intensiva no caso da gripe AH1N1, que começou em locais de criação de suínos nos EUA e no México. Em nosso Programa de Saúde Global e Sustentabilidade da FSP/USP estamos explorando justamente a interface entre os temas ambientais e de saúde global, que é vasta e complexa. Voltando às críticas que são feitas à OMS, são muito superficiais porque desconhecem o funcionamento da organização, que é vinculado às posições dos Estados, desconhecem o momento político muito difícil de recuo do multilateralismo e desconhecem também que precisamos de investimento público em saúde e de uma mudança de viés político na percepção da saúde para controlar emergências. Ou iremos apenas enxugar gelo a cada emergência que surgir.

Quanto ao Regulamento Sanitário Internacional, são pouquíssimas as pessoas que trabalham esse tema com uma perspectiva crítica. A reforma desse regulamento está em curso, e os países ricos parecem agir da seguinte forma: “vamos identificar logo quando algo no mundo pobre puder entrar aqui no mundo rico, para podermos fechar as fronteiras rapidamente”. Nessa conjuntura internacional que estamos vivendo, há o risco, concreto e tangível, de que se aposte em sistemas de vigilância, no sentido securitário da expressão, e não no fortalecimento das capacidades nacionais de resposta. Segurança pode ter um sentido emancipatório. Quando dizemos que o SUS é fundamental para a segurança da população brasileira, estamos usando a palavra segurança no sentido emancipatório, de proteção à vida, mas quando os EUA e outros países desenvolvidos focam na forma de detectar, e não de garantir a saúde para todos, não necessariamente o uso da palavra segurança é emancipatório. Muitas vezes corresponde simplesmente à ideia de que os pobres são uma ameaça para os ricos.

Carlos Henrique Assunção Paiva: Gostaria de chamar atenção para a peripécia, no caso brasileiro, de se criar um Sistema Universal de Saúde em um contexto internacional muito adverso, durante as gestões de Ronald Reagan e Margaret Thatcher. Do ponto de vista ideológico, político e econômico, era um cenário internacional bastante hostil. Enfim, foi tudo muito difícil e precisamos reconhecer que o SUS tem problemas, digamos assim, no seu DNA, a começar por uma questão que a Deisy levantou, que é o financiamento. O financiamento que temos não é nada compatível com um sistema universal para cobrir um país desse tamanho. Assim, convocando um cenário doméstico, qual o balanço possível para avaliarmos esse Sistema Único de Saúde em um contexto marcado por grandes especificidades? Gostaria que você olhasse especificamente para esse sistema de saúde e pensasse sobre como foi a sua operação e sobre o balanço que podemos fazer, por exemplo, considerando questões federativas, outro problema que não é novo, uma vez que já estava colocado no âmbito do SUS há muito tempo. Deisy, eu fico com a impressão de que a pandemia nos permitiu ver com cores mais intensas problemas já crônicos do funcionamento do SUS.

Tentando ser sintética, eu diria que o Sistema Único de Saúde enxuga o gelo do nosso sistema econômico. Ou seja, vejo o SUS como um dos únicos sistemas de justiça redistributiva que o Brasil já teve. Para mim, o SUS é o grande florão da democracia brasileira. Estou falando de democracia material, de acesso à saúde. A pessoa não tem dinheiro para pagar um tratamento, mas ela não vai morrer sem assistência. Os programas de imunização, as políticas públicas de saúde, a atenção primária à saúde, com todas as deficiências que esses programas possam ter, são democracia material, com todos os seus limites, são redistribuição. Ao mesmo tempo em que se trata de uma expressão democrática e de consagração de direitos, esse sistema torna possível que uma ordem econômica muito violenta se mantenha, porque ameniza o efeito nefasto sobre a integridade física e mental das pessoas. O SUS funciona como um amortecedor do capitalismo selvagem brutal que se implantou no Brasil, associado a outras formas de autoritarismo, e que no governo de Bolsonaro chegou ao nível da rapina, são saqueadores das verbas públicas, não apenas por corrupção, mas pelo mau uso de recursos públicos.

Também foi assim com a pandemia de covid-19. Eu acredito que o governo federal tinha bem presente isso e almejou o crime perfeito, sabia que o SUS evitaria milhões de mortes. Apostou equivocadamente em um número “aceitável” de óbitos. Sabia que os governadores e, principalmente, os prefeitos, em ano eleitoral, não queriam caminhões do Exército cheios de cadáveres nem valas comuns. E isso infelizmente aconteceu, mas em uma medida muito menor do que seria na ausência do SUS. Há casos que precisam ser estudados. Algo que me fascina, por exemplo, é a resposta de Santa Catarina, um estado majoritariamente bolsonarista. Li uma reportagem que falava sobre o “toque de recolher” em Santa Catarina. Aí o governo do estado negava: “Não, não, aqui não tem toque de recolher. Aqui só não pode circular entre meia-noite e cinco da manhã, mas não tem toque de recolher” (Caldas, 6 dez. 2020). Ou seja, alguns estados e municípios, de fato, viveram essa contradição entre o alinhamento com o governo federal e a necessidade de evitar números ainda piores e situações como a que ocorreu em Manaus.

Manaus foi o retrato do que estava sendo feito. Mas eu tenho certeza de que o governo federal contou, em seu cálculo, que os prefeitos não iriam deixar morrer, que abririam mais leitos de UTI, e que não chegaríamos ao nível do escândalo. Mas chegamos ao nível do escândalo em Manaus, e ali o Brasil viu por algumas semanas o que estava acontecendo. Sempre digo que apanhamos muito, fomos chamados de militantes, como se o nosso trabalho não fosse científico, como se não tivesse base o que estávamos dizendo. Mas um dos dias mais felizes da minha vida e da minha carreira foi quando vi um apresentador de TV afirmar que não era necessário um estudo de grupo de pesquisa da USP para constatar que o governo estava espalhando o vírus. Nesse momento, percebemos que o nosso papel tinha sido cumprido. No entanto, o tema foi caindo no esquecimento e acabou quase totalmente silenciado durante a campanha eleitoral. Houve uma naturalização do comportamento criminoso de Bolsonaro. Eu vejo o SUS como um grande trunfo democrático, mas, por força dos limites que são impostos a ele, também como um amortecedor dessa violência estrutural.

Claudia Agostoni: Muito interessante tudo isso que você está falando, para mim também, que moro no México. Você tem comparado a colaboração internacional ou as respostas internacionais com outros países da América Latina, ou do Cone Sul, como Paraguai e Argentina? Aqui no México tivemos uma resposta, ou uma não resposta, e também a disseminação do vírus, disputas entre o governo federal e os estados, ocultação do número e a circulação neoliberal do vírus, sobre a qual você falou. Gostaria de saber se você tem visto outros panoramas semelhantes.

Infelizmente, não. Gostaria muito, mas não tivemos pernas para comparar. Tenho muita vontade, particularmente, de estudar o México. Estudei anteriormente a resposta mexicana em relação à gripe H1N1, mas não tenho falado do México na covid-19 justamente por ainda não termos estudado em profundidade esse caso. Se algum parceiro se dispuser a fazer um estudo comparado com o Brasil, temos todo o interesse.

Carlos Henrique Assunção Paiva: Uma coisa que me chamou atenção é como os historiadores foram convocados junto com os cientistas, inclusive e especialmente pela chamada grande mídia, para tentar dar algum parâmetro histórico sobre um evento que parecia ser de todo novo. Eu mesmo, que nunca fui um estudioso de pandemias, me vi no desafio de tentar me aproximar, de fazer comparações para pensar um pouco a memória pública que temos sobre outras experiências que vivemos. Essa convocação dos historiadores foi maior no início, diante de um cenário de incertezas. Mas a essa altura dos fatos, já entrando no terceiro ano da pandemia, daqui em diante, como você imagina o papel dos historiadores profissionais nesse processo de diálogo com a memória coletiva da pandemia?

Essa pergunta é uma parte importante da minha agenda de pesquisa. Eu tenho defendido que a pandemia é um tema de memória, verdade e justiça. É uma questão elementar para quem tem formação em direito internacional, e já estudou crimes de guerra, crimes contra a humanidade, ainda mais para quem trabalha com direito internacional na perspectiva dos direitos humanos, como eu. Essa base foi crucial para a percepção que tivemos na pandemia, principalmente o envolvimento que eu tive na luta pela responsabilização dos militares pelas graves violações de direitos humanos cometidos no Brasil durante o regime militar (1964-1985). Aprendi muito com o advogado Paulo Abrão e tantos outros juristas extraordinários com quem convivi, principalmente entre 2008 e 2014, época em que foi criada a Comissão Nacional da Verdade, mais tarde liderada pelo advogado Pedro Dallari. Justamente por ter estudado crimes contra a humanidade, violações praticadas pelo Estado, acho que o nosso olhar estava afiado para perceber a dimensão histórica do que estava acontecendo. Por exemplo, identificar a ideia do plano sistemático contra a população civil, que é requisito para configuração de um crime contra a humanidade. Um plano sistemático contra a população civil não é só fuzilar pessoas em um paredão, é também divulgar informações falsas que façam com que as pessoas se exponham e exponham outras pessoas ao risco. Isso se encontra na jurisprudência internacional que interpretou episódios dramáticos da história recente como, por exemplo, o papel da Rádio Mille Collines no genocídio de Ruanda entre 1993 e 1994, incitando a população à violência.

Por tudo isso, não tenho a menor dúvida de que a covid-19 no Brasil tem que ser tratada dessa forma, com políticas de memória. Precisamos ter instrumentos para contar o que aconteceu, para dar voz às vítimas. Existem pelo menos três associações de vítimas da covid-19, que estão aí tentando lutar por algum reconhecimento. Essas associações foram totalmente silenciadas durante a campanha eleitoral. E o nosso relatório para a CPI, um instrumento de memória muito importante, mas que, com a blindagem política, teve impedido o avanço do processo de responsabilização. Porém, esses são crimes imprescritíveis. Um dia pode haver uma conjuntura favorável, e precisamos ter todas essas provas. Então é preciso política de memória e de verdade, para que mais adiante se faça justiça.

Encontramos dificuldade para o processamento desses crimes dentro da jurisdição brasileira, mas podemos buscar as internacionais. Existe o Tribunal Penal Internacional. Essa busca da verdade tem que ser feita. Temos também os mecanismos de reparação, porque as pessoas que morreram por ação ou inação do Estado precisam ser indenizadas. Existem já diversas ações judiciais. Esse é um processo muito lento, mas é um processo que precisa ser apoiado, encorajado e difundido. Faz parte do que se chama justiça de transição. Em debate com alguns colegas advogados estrangeiros, eles dizem que para falar em justiça de transição é preciso haver uma mudança de regime. Eu não estou dizendo que vamos fazer uma justiça de transição para a pandemia. Estou dizendo que vamos nos valer de mecanismos que foram criados para a justiça de transição, que já conhecemos de outros processos históricos e podem ser adaptados para o que é, inclusive, o lema da justiça de transição: “Para que não se esqueça, para que nunca mais aconteça”. Sem políticas de memória, verdade e justiça em relação à covid-19, a próxima pandemia será muito pior. Não tenho nenhuma dúvida sobre o papel decisivo dos historiadores para a consolidação dessa memória, que é muito frágil. As pessoas já se esqueceram da pandemia. Foi um tema marginal na campanha eleitoral, deveria ser o tema mais importante. Quando Bolsonaro foi ao Jornal Nacional, na TV Globo, na série de entrevistas com os candidatos à Presidência, foi um dos dias mais tristes da minha vida, porque ele foi normalizado. Esteve em um dos programas mais importantes do telejornalismo brasileiro, transmitido ao vivo, e não foi interpelado. Alguém deveria ter dito: “O senhor disseminou a covid-19 no Brasil”. Essa cobrança não houve.

O desastroso ex-ministro da Saúde Eduardo Pazuello, ministro entre 2020 e 2021, foi um dos candidatos mais votados nas eleições de outubro de 2022! Essa é uma evidência do quanto é preciso memória, verdade e justiça. Reforço que o Pazuello disse na CPI algo muito importante, que o presidente tinha um discurso para a internet, mas as políticas do Estado eram outras. Isso é mentira, eram as mesmas políticas. Caso os historiadores do presente e do futuro comprem essa tese de que a atuação do Estado brasileiro durante a pandemia foi uma atuação exclusivamente de propaganda nós vamos consolidar algo que não foi verdade. É preciso olhar para os documentos. Acho que o papel da história é fundamental, e o que nós tentamos fazer foi preservar esses instrumentos todos para que os historiadores pudessem trabalhar.

Claudia Agostoni: A questão do esquecimento, da amnésia coletiva é surpreendente, porque a pandemia ainda não terminou. Acho que como historiadores temos muito o que dizer sobre esse tema em particular. Mas o esquecimento, o ato de ignorar, de não estar mais, já vimos esse problema muitas vezes.

Carlos Henrique Assunção Paiva: Eu desconfio que o governo de Bolsonaro realmente tenha tido a intenção de um apagamento da memória, mas a pandemia tem uma memória latente, difusa, embora mal organizada coletivamente. Mas o que me vem à mente é que, caso Bolsonaro tivesse escutado os técnicos do SUS e deixado eles fazerem o que sabem fazer, ele teria ganho a eleição no primeiro turno. Não tenho muita dúvida disso, mesmo com as barbaridades que lhe são peculiares. Em vez disso, apostou no ultraliberalismo, produzindo assim muita dor coletiva; ainda não de todo registrada. E, apesar de tudo que ele fez, chegou num segundo turno com Lula, num contexto de um ainda fortíssimo antipetismo. Quantas coisas ainda temos que avaliar.

A CPI teve um papel essencial. Alguns dizem que não deu em nada, mas não é verdade. A CPI manteve a pandemia em pauta no Parlamento e nas mídias durante meses, quando já começava a ser esquecida; deu voz a testemunhas, vítimas e familiares; compilou provas e produziu novas evidências; e principalmente tratou o que ocorreu no Brasil como o que de fato é: um conjunto de crimes que causaram a morte evitável de centenas de milhares de pessoas e que precisam ser investigados, processados e julgados, e que jamais devem se repetir.

Marcos Cueto: Muito obrigado, Deisy. Muito importantes e valiosos seus comentários para nós e para os leitores de História, Ciências, Saúde – Manguinhos.

REFERÊNCIAS

NOTAS

  • 1
    Uma versão em espanhol de minha tese, publicada pelo escritório do Uruguai da Fundação Konrad Adenauer, está disponível no site da Universidad Nacional Autónoma de México (ver Ventura, 2004VENTURA, Deisy de Freitas Lima. Las asimetrías entre el Mercosur y la Unión Europea. Montevideo: Fundação Konrad Adenauer, 2004. Disponível em: http://ru.juridicas.unam.mx/xmlui/handle/123456789/11152. Acesso em: 7 jan. 2023.
    http://ru.juridicas.unam.mx/xmlui/handle...
    ).
  • 2
    O estudo A linha de tempo da estratégia federal de disseminação da covid-19 foi elaborado no âmbito do projeto de pesquisa “Mapeamento e análise das normas jurídicas de resposta à covid-19 no Brasil”, da Cepedisa/FSP/USP, e solicitado pela Comissão Parlamentar de Inquérito criada pelos Requerimentos do Senado Federal de 2021 (Cepedisa/FSP/USP, 28 maio 2021).
  • 3
    Ela foi publicada pela primeira vez em janeiro de 2021 (ver Ventura, Reis, 2021).
  • 4
    Em seu livro sobre os bastidores da CPI, os senadores Randolfe Rodrigues e Humberto Costa reconhecem o papel do estudo como inspiração para a CPI (Costa, Rodrigues, 2022, p.31-32).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    23 Out 2023
  • Data do Fascículo
    Set 2023

Histórico

  • Recebido
    13 Out 2022
  • Aceito
    31 Jan 2023
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