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Entre procedimento e substância: participação política e sentidos da democracia1 1 Somos gratas ao Instituto da Democracia e da Democratização da Comunicação (INCT - IDDC) e aos seus financiadores, Fapemig (APQ-03612-17), CNPq (465535/2014-3) e Capes, pelo apoio que concederam ao projeto que possibilitou a eleboração deste artigo. Agradecemos, especialmente, aos atentos comentários da professora Luciana Tatagiba, durante o 12° Encontro da Associação Brasileira de Ciência Política (ABCP). Também manifestamos nossos agradecimentos aos pareceristas anônimos pela leitura instigante deste artigo.

Between procedure and substance: political participation and the meanings of democracy

Entre el procedimiento y el fondo: la participación política y los sentidos de la democracia

Entre la procédure et le fonds: la participation politique et les sens de la démocratie

Dentre os estudos de cultura política e experiências participativas, a participação política comumente tem sido relacionada a valores democráticos e ao aprofundamento da democracia. No entanto, ainda existe uma lacuna explicativa sobre como ativistas de diferentes setores da sociedade civil pensam e concebem a democracia. Ancorado na pergunta: “Como pessoas com diferentes trajetórias de ativismo entendem a democracia?”, este artigo visa fornecer subsídios teóricos e empíricos sobre como cidadãs e cidadãos com experiências participativas diversas compreendem a democracia e, alternativamente, como concebem regimes não democráticos. A partir de análises das conversas produzidas por grupo focais realizados em Belo Horizonte, Porto Alegre e Montes Claros, entre os meses de março e setembro de 2019, o artigo demonstra como os entendimentos sobre democracia variam a depender do perfil e dos vínculos dos participantes.

participação; democracia; cultura política


Abstract

Among the literature on political culture and participatory experiences, participation has commonly been related to democratic values and the deepening of democracy. However, there is still an explanatory gap regarding how activists from different sectors of civil society think about and conceive democracy. Anchored in the question, “How do people with different trajectories of activism understand democracy?”, this article aims to provide a theoretical and empirical explanation of how citizens with different participatory experiences understand democracy and, alternatively, how they conceive non-democratic regimes. Based on analysis of the conversations produced by focus groups held in Belo Horizonte, Porto Alegre, and Montes Claros, from March to September 2019, the article will demonstrate how understandings about democracy vary depending on the profile and the links of the participants.

participation; democracy; political culture

Resumen

Entre los estudios de cultura política y experiencias participativas, la participación se ha relacionado comúnmente con los valores democráticos y la profundización de la democracia. Sin embargo, todavía existe una brecha explicativa sobre cómo los activistas de diferentes sectores de la sociedad civil piensan y conciben la democracia. Anclado en la pregunta: “¿Cómo entienden la democracia las personas con diferentes trayectorias de activismo?”, este artículo tiene como objetivo brindar subsidios teóricos y empíricos sobre cómo los ciudadanos con diversas experiencias participativas entienden la democracia y, alternativamente, cómo conciben regímenes no democráticos. A partir del análisis de las conversaciones producidas a través de grupos focales realizados en Belo Horizonte, Puerto Alegre y Montes Claros, entre marzo y septiembre de 2019, el artículo demostrará cómo los entendimientos sobre la democracia varían en función del perfil y los vínculos de los participantes.

participación; democracia; cultura política

Résumé

Parmi les études sur la culture politique et les expériences participatives, la participation a généralement été liée aux valeurs démocratiques et à l'approfondissement de la démocratie. Cependant, il existe encore un écart explicatif sur la façon dont les militants de différents secteurs de la société civile pensent et conçoivent la démocratie. Ancré dans la question “Comment les personnes ayant des trajectoires d'activisme différentes comprennent-elles la démocratie ?”, cet article vise à fournir un soutien théorique et empirique sur la façon dont les citoyens ayant différentes expériences participatives comprennent la démocratie et, alternativement, comment ils conçoivent les régimes non démocratiques. A partir de l'analyse des conversations réalisées par des groupes de discussion tenus à Belo Horizonte, Porto Alegre et Montes Claros, entre mars et septembre 2019, l'article démontrera comment les compréhensions de la démocratie varient en fonction du profil et des liens des participants.

participation; démocratie; culture politique

Introdução

A participação política é tema recorrente na sociologia política e na ciência política. É apontada como importante valor democrático no campo da cultura política (Almond; Verba, 1963Almond, G.; Verba, S. The civic culture. New York: Princeton University Press, 1963.; Putnam, 1994Putnam, R. D. Making democracy work. Princeton. New Jersey: Princeton University Press, 1994.) e vista como fator significativo para o aprofundamento da democracia entre estudiosos da teoria democrática (Pateman, 1992Pateman, C. Participação e teoria democrática. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1992.). O papel da vida associativa para a democracia, discutido desde Rousseau e Tocqueville, foi recentemente retomado por autores que buscam especificar os efeitos democráticos gerados por diferentes tipos de associações (Warren, 2001Warren, M. Democracy and association. Princeton, New Jersey: Princeton University Press, 2001.; Luchmann, 2014Lüchmann, L. H. “Abordagens teóricas sobre o associativismo e seus efeitos democráticos”. Revista Brasileira de Ciências Sociais, vol. 29, nº 85, p. 159-178, 2014.). Em paralelo, estudos sobre ativismos vêm se interessando pelas concepções de democracia defendidas e praticadas por movimentos sociais (Dagnino et al., 1998Dagnino, E., et al. “Cultura democrática e cidadania”. Opinião Pública, vol. 5, nº 1, p. 20-71, 1998.; Della Porta, 2009Della Porta, D. (ed.). Democracy in social movements. London: Palgrave Macmillan UK, 2009.) e por ativistas que promovem protestos (Mendonça, 2018Mendonça, R. F. “Dimensões democráticas nas jornadas de junho: reflexões sobre a compreensão de democracia entre manifestantes de 2013”. Revista Brasileira de Ciências Sociais, vol. 33, nº 98, 2018.). Por outro lado, emerge também uma literatura crítica a visões estritamente positivas da relação entre participação e democracia, apontando que o ativismo não produz necessariamente comunidades fortes, mas sim vinculações plurais e sobrepostas, que podem ou não gerar resultados democráticos (Foley; Edwards, 1996Foley, M. W.; Edwards, B. “The paradox of civil society”. Journal of Democracy, vol. 7, nº 3, p. 38-52, 1996.; Chambers; Kopstein, 2001Chambers, S.; Kopstein, J. “Bad civil society”. Political Theory, vol. 29, nº 6, p. 837-865, 2001.; Warren, 2001Warren, M. Democracy and association. Princeton, New Jersey: Princeton University Press, 2001.; Armony, 2004Armony, A. The dubious link: civic engagement and democratization. Stanford: Stanford University Press, 2004.; Airneil, 2006).

No Brasil, estudos sobre cultura política e atitudes democráticas têm apontado para a persistência de altas taxas de desconfiança nas instituições democráticas (Moisés, 2010Moisés, J. A. “Os significados da democracia segundo os brasileiros”. Opinião Pública, vol. 16, nº 2, p. 269-309, 2010.; IDDC, 2018) bem como para a existência de uma cultura política passiva e anômica (Baquero; González, 2016Baquero, M.; González, R. S. “Cultura política, mudanças econômicas e democracia inercial. Uma análise pós-eleições de 2014”. Opinião Pública, vol. 22, nº 3, p. 492-523, 2016.), identificando, por vezes, seus efeitos sobre a participação política (Ribeiro; Borba, 2015Ribeiro, E.; Borba, J. “Protesto político na América Latina: tendências recentes e determinantes individuais”. Opinião Pública, vol. 21, nº 1, p. 188-216, 2015.; Fuks et al., 2017Fuks, M.; Casalecchi, G. A.; Araújo, M. M. “Os democratas insatisfeitos são críticos? Reavaliando o conceito de cidadão crítico”. Opinião Pública, vol. 23, nº 2, p. 316-333, 2017.). Por outro lado, desde a promulgação da Constituição Federal de 1988 até meados dos anos 2000, consolidou-se uma trajetória considerável de experiências participativas e associativas (Avritzer, 2006Avritzer, L. “New public spheres in Brazil: local democracy and deliberative politics”. International Journal of Urban and Regional Research, vol. 30, nº 3, p. 623-637, 2006.; Lavalle, 2011Lavalle, A. G. “Participação: valor, utilidade, efeitos e causa”. In: Pires R. R. C. (org.). Efetividade das instituições participativas no Brasil: estratégias de avaliação. Brasília: IPEA/ENAP, vol. 7, p. 33-42, 2011.). Embora as práticas de participação tenham sido bem estudadas, há ainda lacunas para a compreensão da capacidade dessas experiências de afetarem valores democráticos das pessoas que nelas se engajam, especialmente em momentos de instabilidade política.

Este artigo busca contribuir com esses debates abordando entendimentos sobre democracia entre pessoas com experiências participativas diversas. A pesquisa é orientada pelas seguintes questões: Como pessoas com diferentes trajetórias de ativismo entendem democracia e, alternativamente, como concebem regimes não democráticos? Perguntamos, em especial: Quando discutem democracia, as pessoas se referem a elementos procedimentais ou a elementos substantivos, e quais? Os sentidos conferidos à democracia variam a depender do tipo de participação ou associativismo?

Para responder a essas perguntas, foi feita análise de conversas sobre democracia entre pessoas com engajamento em conselhos de direitos, em movimentos sociais de base popular, em movimentos sindicais, e em associações de perfis diversos. Considerou-se a hipótese de que os entendimentos sobre democracia variam a depender do perfil participativo. A pesquisa lança mão de grupos focais como técnica qualitativa de coleta de dados, entendendo que essa técnica, embora pouco utilizada nos estudos sobre cultura política, participação e ativismo no Brasil, é capaz de fornecer informações aprofundadas sobre percepções relativas à democracia, uma vez que as pessoas elaboram argumentos e formulam compreensões em interação umas com as outras. Os grupos foram realizados entre março e setembro de 2019 e organizados de modo a colocar em diálogo pessoas com experiências participativas similares, nas seguintes cidades: Porto Alegre, São Paulo, Belo Horizonte e Montes Claros (MG). O corpus produzido a partir das degravações dos grupos foi codificado e analisado com o auxílio do software Atlas.ti.

A primeira parte deste artigo traz uma revisão teórica sobre democracia e participação, com ênfase nos campos da cultura política e da participação. A segunda trata da metodologia e apresenta as categorias de análise. Ela é seguida pela análise dos diálogos, organizada por perfil participativo dos grupos, e por uma discussão dos resultados que encerra o artigo.

Interseções entre democracia, cultura política e participação

Visões de democracia e cultura política

O conhecimento sobre as percepções e atitudes das pessoas em relação à democracia e à participação política no Brasil vem sendo construído principalmente a partir de pesquisas de opinião como o World Values Survey, o Latinobarômetro, o Estudo Eleitoral Brasileiro (ESEB), entre outras, que permitem observação ao longo do tempo, em diferentes países ou regiões de um país. Análises a partir dessas bases proporcionaram avanços na compreensão da participação eleitoral (Paiva et al., 2007Paiva, D.; Braga, M. S.; Pimentel, J. “Eleitorado e partidos políticos no Brasil”. Opinião Pública, Campinas, vol. 13, nº 2, p. 388-408, 2007.; Castro; Nunes, 2014Castro, M. M. M.; Nunes, F. “Candidatos corruptos são punidos?: accountability na eleição brasileira de 2006”. Opinião Pública, vol. 20 nº 1, 26-48, 2014.), dos efeitos dos sentimentos partidários sobre o comportamento político e sobre as atitudes democráticas (Ribeiro et al., 2016Ribeiro, E.; Carreirão, Y.; Borba, J. “Sentimentos partidários e antipetismo: condicionantes e covariantes”. Opinião Pública, vol. 22, nº 3, p. 603-637, 2016.; Fuks et al., 2021Fuks, M.; Ribeiro, E. A.; Borba, J. “From antipetismo to generalized antipartisanship: the impact of rejection of political parties on the 2018 vote for Bolsonaro”. Brazilian Political Science Review, vol. 15, nº 1, p. 1-28, 2021.), além de conhecimentos sobre como e quanto as pessoas participam politicamente (Ribeiro; Borba, 2015Ribeiro, E.; Borba, J. “Protesto político na América Latina: tendências recentes e determinantes individuais”. Opinião Pública, vol. 21, nº 1, p. 188-216, 2015.; Bonifácio; Castro, 2018Bonifácio, R.; Castro, M. M. M. “Mapeando a participação política nas Américas e no Caribe: discussão conceitual e aproximações empíricas”. Sociedade e Cultura, vol. 20, p. 240-267, 2018.). Construiu-se também um quadro da cultura política no Brasil a partir do mapeamento periódico dos dados sobre confiança nas instituições e valores democráticos (Baquero, 2015Baquero, M. “Corruption, political culture and negative social capital in Brazil”. Revista Debates, vol. 9, nº 2, p. 139-157, 2015.; Baquero; González, 2016Baquero, M.; González, R. S. “Cultura política, mudanças econômicas e democracia inercial. Uma análise pós-eleições de 2014”. Opinião Pública, vol. 22, nº 3, p. 492-523, 2016.), com avanços na identificação de seus efeitos sobre a participação política (Fuks et al., 2017Fuks, M.; Casalecchi, G. A.; Araújo, M. M. “Os democratas insatisfeitos são críticos? Reavaliando o conceito de cidadão crítico”. Opinião Pública, vol. 23, nº 2, p. 316-333, 2017.; Russo et al., 2018Russo, G. A.; Azzi, R. G.; Faveri, C. “Confiança nas instituições políticas: diferenças e interdependência nas opiniões de jovens e população brasileira”. Opinião Pública, vol. 24, nº 2, p. 365-404, 2018.). Todavia, a compreensão desses fenômenos pode ser ampliada com a realização de pesquisas qualitativas sobre atitudes democráticas, ainda pouco utilizadas no Brasil (Veiga; Godin, 2001), mas cada vez mais utilizadas internacionalmente (Perrin, 2006; White, 2011; Deuchesne et al., 2013; Sanders; Klandermans, 2020).

No Brasil, Moisés (2010)Moisés, J. A. “Os significados da democracia segundo os brasileiros”. Opinião Pública, vol. 16, nº 2, p. 269-309, 2010. analisou significados da democracia em um momento em que crescia a adesão de cidadãos e cidadãs a esse regime, enquanto a desconfiança nas instituições democráticas seguia em níveis altos. O autor sistematizou respostas à questão aberta “Para você, o que é democracia?”, em pesquisas realizadas entre 1989 e 2006, e concluiu que “brasileiros associam a democracia majoritariamente a uma noção normativa fundamental, relativa às liberdades, mas, também, com os procedimentos desse regime” (Moisés, 2010Moisés, J. A. “Os significados da democracia segundo os brasileiros”. Opinião Pública, vol. 16, nº 2, p. 269-309, 2010., p. 274). A dimensão substantiva da democracia, relativa aos seus conteúdos e resultados em termos de igualdade ou desempenho, esteve presente, mas recebeu pouco peso entre as respostas.

Moisés toma como base as dimensões da democracia sintetizadas por Diamond e Morlino (2004)Diamond, L.; Morlino, L. “The quality of democracy: an overview”. Journal of Democracy, vol. 15, nº 4, p. 20-31, 2004.. Oriunda dos estudos sobre qualidade da democracia, essa base conceitual proporciona uma visão ampla sobre democracia ao considerar aspectos procedimentais e substantivos que, em geral, aparecem separados nas vertentes da teoria democrática. Trata-se, em síntese, de modelo composto por oito itens (na versão de Morlino, 2015), sendo cinco dimensões relativas a regras e procedimentos, que incluem o primado da lei (ou Estado de direito), accountability eleitoral, accountability interinstitucional, participação e competição; duas dimensões substantivas, que passam por liberdades civis e direitos políticos, ao lado de igualdade política, social e econômica; e uma última dimensão, a da responsividade de governos e políticos eleitos aos desejos dos cidadãos, integra procedimentos e substância. O modelo de Diamond e Morlino tem como propósito analisar e comparar democracias reais, incluindo as que se espalharam pelo globo, especialmente após a década de 1970, e será usado como base para a análise dos debates dos grupos focais.

Em paralelo aos trabalhos do comportamento político, o tema é abordado na teoria democrática e na literatura participacionista.

Participação, associativismo e democracia

A teoria democrática aponta a importância da vida associativa para a democracia desde Rousseau e Tocqueville. Essa tradição foi retomada por autores que, contrapondo-se aos modelos de democracia procedimental que foram hegemônicos até meados do século 20, resgataram a necessidade de engajamento para a formação de cidadãos nas democracias modernas, para garantir a inclusão de setores da população e de temas nas decisões públicas (Pateman, 1992Pateman, C. Participação e teoria democrática. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1992.). Enquanto alguns enfatizaram a participação direta e institucionalizada (Avritzer; Santos, 2002Avritzer, L.; Santos, B. de S. Para ampliar o cânone democrático. In: Santos, B. de S. (org.). Democratizar a democracia. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2002, p. 39-77.), outros priorizaram a qualidade da deliberação (Cohen, 1997Cohen, J. Procedure and substance in deliberative democracy. In: Bohman J.; Regh, W. (eds.). Deliberative democracy. Cambridge: MIT Press, p. 407-438, 1997.).

No interior da literatura simpática à ideia de que associações são importantes para a democracia, tem havido esforços no sentido de estudar as potencialidades democráticas (e antidemocráticas) de diferentes tipos de associações e das variadas concepções de democracia que engendram. Warren (2001)Warren, M. Democracy and association. Princeton, New Jersey: Princeton University Press, 2001. sistematiza três tipos de efeitos democráticos potenciais das associações: a) no desenvolvimento individual dos cidadãos, isto é, na formação de pessoas capazes de formular julgamentos autônomos; b) em termos de opinião pública, ampliando opiniões e temas na esfera pública; e c) no fortalecimento das instituições representativas ou de canais participativos para produção de decisões legítimas. Propõe, assim, a compreensão de uma “ecologia das associações” que leve em conta agentes (seus recursos, perfil, trajetórias e propostas), mas também contextos e relações políticas e sociais (Lüchmann, 2014Lüchmann, L. H. “Abordagens teóricas sobre o associativismo e seus efeitos democráticos”. Revista Brasileira de Ciências Sociais, vol. 29, nº 85, p. 159-178, 2014.).

Já as pesquisas sobre ativismo e movimentos sociais têm estado atentas à participação política na forma de ações coletivas de protestos, organizações de movimentos sociais, espaços institucionais de participação social, bem como a interações entre sociedade civil e Estado. Contribuem para a compreensão da construção e do funcionamento de espaços participativos ao longo das últimas décadas (Avritzer, 2011Avritzer, L. A qualidade da democracia e a questão da efetividade da participação: mapeando o debate. In: Pires, R. R. C. (org.). Efetividade das instituições participativas no Brasil: estratégias de avaliação. Brasília: IPEA, p. 13-25, 2011.; Lavalle, 2016); da atuação dos movimentos sociais em diversas áreas e seus efeitos para as políticas públicas (Lavalle et al., 2018Lavalle, A. G., et al. Movimentos sociais e institucionalização: políticas sociais, raça e gênero no Brasil pós-transição. Rio de Janeiro: EdUERJ, 2018.; Tatagiba; Abers; Silva, 2018); dos ciclos de protesto no Brasil e suas características (Alonso, 2016; Tatagiba; Galvão, 2019Tatagiba, L. F.; Galvão, A. “Os protestos no Brasil em tempos de crise (2011-2016)”. Opinião Pública, vol. 25, nº 1, p. 63-96. 2019.); e, mais recentemente, têm avançado na compreensão da participação e do ativismo na internet (Ruskowksi et al., 2020Ruskowksi, B., et al. “Tecnologias de informação e comunicação, ativismo e movimentos sociais”. Compolítica, [online], v.10, n. 2, p. 43-84, 23 set. 2020.). As pesquisas nesse campo de estudos permitiram conhecer de forma robusta as estratégias de participação utilizadas por diferentes agentes ao longo do tempo. Contudo, embora se tenha conhecimento significativo sobre o perfil de ativistas, suas trajetórias, redes e estratégias para influenciar a política, tem-se menos informações sobre os significados que atribuem à democracia.

É importante considerar ainda um conjunto de estudos que têm apontado na direção oposta da sociedade civil como uma possível “escola de virtudes”. Os argumentos amparados na abordagem tocquevilleana de uma sociedade civil virtuosa são bastante questionáveis e deram origem a diferentes estudos e casos empíricos que refutam essa relação causal e positiva entre participação e atitudes democráticas. Para Brennan (2007), a ampliação da participação não necessariamente enobrece as pessoas ou as torna mais qualificadas. Segundo o autor, alguns modos de participação podem deixar os “cidadãos mudos e passivos, enquanto outros poderiam torná-los afiados e ativos” (Brennan, 2007, p.7). Em outras palavras, a participação poderia tanto resolver problemas como criar novos, dependendo, dentre outros fatores, do próprio perfil dos cidadãos.

Nessa mesma linha argumentativa, Chambers e Jeffrey Kopstein (2001) advogam que existe uma “bad civil society”, que não necessariamente produz laços de confiança e solidariedade. Chambers e Kopstein utilizam o exemplo de Amy Gutmann (1998)Gutmann, A. (ed.). Freedom of association. Princeton University Press, 1998. ao citar a Ku Klux Klan, em que os laços que unem seus participantes estão mais próximos ao ódio e à degradação do que à solidariedade. Outros autores, como Armony (2004)Armony, A. The dubious link: civic engagement and democratization. Stanford: Stanford University Press, 2004. e Arneil (2006)Arneil, B. Diverse communities: the problem with social capital. Cambridge University Press, 2006., demonstram que há formas de confiança que podem minar a democracia, pois os vínculos participativos são construídos com base na identidade apenas entre os próprios participantes dos grupos, limitando o vínculo entre os indivíduos a critérios de raça, etnia, gênero etc. Assim, é possível identificar grupos que não são favoráveis à democracia, como grupos racistas, de ódio, de interesses privados que “fazem jus às suspeitas de facciosismos levantadas por Madison e Rousseau em suas preocupações com o ideal do bem comum” (Warren, 2001Warren, M. Democracy and association. Princeton, New Jersey: Princeton University Press, 2001., p. 10). Armony (2004)Armony, A. The dubious link: civic engagement and democratization. Stanford: Stanford University Press, 2004. desconstrói, por meio de exemplos históricos, o círculo virtuoso proposto por Putnam, formado pelo associativismo cívico, capital social e fortalecimento democrático. Nos casos estudados pelo autor, a robusta vida associativa existente tanto na República de Weimar, da Alemanha, quanto no regime de segregação racial dos Estados Unidos fomentou a propagação de ideias nazistas e racistas, respectivamente. Armony não apenas reafirma a heterogeneidade presente nas diferentes formas de participação e engajamento político, como também admite a subversão dos valores democráticos. Segundo o autor, é necessário analisar todas as condições que moldam o engajamento cívico, tanto nas esferas institucionais do estado quanto sociais. Fatores políticos e econômicos não devem ser negligenciados, uma vez que são tão importantes quanto a forma e os atores que interagem. Armony retoma o pensamento de Berman (1997)Berman, S. “Civil society and the collapse of the Weimar Republic”. World politics, vol. 49, nº 3, p. 401-429, 1997. para destacar a necessidade de se observar a postura do Estado ao analisar os resultados democráticos ou antidemocráticos que a sociedade civil pode produzir. Nessa perspectiva, a legitimidade das instituições estatais torna-se variável explicativa fundamental para o potencial democrático das práticas participativas.

Em trabalho pioneiro, publicado na revista Opinião Pública, Dagnino et al. (1998)Dagnino, E., et al. “Cultura democrática e cidadania”. Opinião Pública, vol. 5, nº 1, p. 20-71, 1998. investigaram concepções de democracia e cidadania entre participantes de movimentos populares urbanos (por moradia, saúde), movimentos sociais (de mulheres, negros, ecológicos), sindicatos, associações empresariais e vereadores. Foram aplicados 52 questionários, com questões abertas e fechadas, em 1993. A dimensão democrática mais importante para entrevistados de todos os perfis foi “tratamento igual para brancos, negros, homens, mulheres, ricos e pobres”. O resultado contrariou a hipótese inicial, que previa ênfase na inclusão econômica, e indicou preocupação com a superação do autoritarismo social, percebido como obstáculo à democracia. A ênfase nessa dimensão foi mais forte entre movimentos sociais (70%), seguidos por sindicatos (60%) e associações (50%). Por outro lado, membros dos movimentos e de sindicatos atribuíram relevância praticamente nula aos partidos como elementos centrais à democracia. As autoras concluíram que a pouca ênfase dada às dimensões clássicas da democracia liberal (liberdade de expressão, de organização e partidos) indicaria a percepção de que elas estariam asseguradas, deslocando o destaque para a construção de uma sociedade democrática, para além do regime político.

Dagnino et al. (1998)Dagnino, E., et al. “Cultura democrática e cidadania”. Opinião Pública, vol. 5, nº 1, p. 20-71, 1998. identificaram, ainda, uma concepção ampliada de política que destaca a sociedade civil e a participação, fenômeno mais acentuado entre movimentos e sindicatos de trabalhadores do que entre associações empresariais e sindicatos de profissões de classes médias - que apresentaram visão “mais restrita e tradicional” da política. Os grupos compartilhavam imagens negativas do Estado e dos políticos, mas não dos partidos - apesar da percepção positiva da autonomia das organizações da sociedade civil em relação a eles. A valorização da democracia direta aliada a uma visão crítica da institucionalidade, porém, não significou “desprezo à democracia representativa, mas sim a necessidade de torná-la efetivamente democrática” (Dagnino et al., 1998Dagnino, E., et al. “Cultura democrática e cidadania”. Opinião Pública, vol. 5, nº 1, p. 20-71, 1998., p.38). De forma geral, a pesquisa encontrou homogeneidade nas percepções sobre democracia entre membros de movimentos populares urbanos, de movimentos sociais e de sindicatos de trabalhadores, grupos que conformavam um “campo ético-político” forjado na experiência de transição democrática e que estavam articulados entre si. Também concluiu que esse grupo se diferenciava de outro, formado por associações “tradicionais” e por sindicatos de profissões liberais.

Às preocupações deste artigo, essa literatura indica a necessidade de atenção aos impactos dos diferentes formatos organizativos na análise das conexões entre associativismo e democracia. Ainda que o foco não esteja nos efeitos democráticos das associações, mas nos significados que pessoas engajadas na vida associativa atribuem à democracia, com base nessa literatura pode-se esperar que ativistas de organizações distintas mobilizem sentidos específicos ao falar sobre democracia. E isso aponta para a necessidade de um desenho de pesquisa que leve em conta a presença de participantes com engajamentos em diferentes formatos associativos. Além da relação entre formas de associação e concepções de democracia, o estudo de Dagnino et al. (1998)Dagnino, E., et al. “Cultura democrática e cidadania”. Opinião Pública, vol. 5, nº 1, p. 20-71, 1998. também foi importante ao apontar como o “campo ético-político” é relevante para demarcar diferentes percepções sobre democracia, notadamente entre o campo com uma visão mais “restrita e transicional” sobre política e o campo de movimentos populares e sindicatos de trabalhadores articulados em rede.

Uma década depois, outros trabalhos retomaram a atenção às percepções de ativistas sobre democracia. Della Porta (2009)Della Porta, D. (ed.). Democracy in social movements. London: Palgrave Macmillan UK, 2009. interessou-se pelas concepções e práticas de democracia entre organizações europeias que compõem o Movimento de Justiça Global (MJG). Entendendo organizações como “agentes de mobilização e espaços de deliberação e construção de valores” (Della Porta, 2009Della Porta, D. (ed.). Democracy in social movements. London: Palgrave Macmillan UK, 2009., p.3), o estudo identificou sentidos diferentes sobre participação, deliberação e democracia entre organizações de perfis distintos, por meio de survey e entrevistas. Em consonância com a literatura que já identificava, entre movimentos sociais, uma crítica aos mecanismos limitados de participação direta nas democracias contemporâneas (Offe, 1985Offe, C. “New social movements: changing boundaries of the political”. Social Research, vol. 52, nº 4, p. 817-868, 1985.), Della Porta observa a relevância da participação nos entendimentos de diferentes grupos que compõem o MJG5 5 No geral, grupos da “velha esquerda” (partidos, sindicatos) não veem incompatibilidade entre participação e delegação; grupos da “nova esquerda” associam participação a auto-organização e democracia direta. Grupos de solidariedade, por fim, percebem suas práticas como pré-figurativas, sendo o ativismo mesmo uma “escola de democracia” (Della Porta, 2009). sobre democracia, bem como a defesa de práticas deliberativas, tanto no interior das organizações como nas sociedades democráticas. Como síntese explicativa, sugere um modelo que cruza dimensões participativas e deliberativas. O eixo da participação varia da inclusão da delegação (baixa participação) à inclusão de iguais (alta participação). O eixo da deliberação varia entre a prevalência da decisão por voto e a defesa da discussão pública (debate público, bem comum, argumentação racional e transformação das preferências). Do cruzamento das dimensões emergem quatro tipos democráticos defendidos e praticados pelas organizações: associativo (delegação e voto), deliberativo-representativo (delegação e consenso), assembleista (participação e voto) e deliberativo-participativo (participação e consenso). As diferenças entre eles são explicadas por elementos como as tradições políticas dos grupos - se associados à esquerda tradicional ou à nova esquerda, a movimentos pacifistas, etc. -, ao lado de elementos como a idade das organizações e seus perfis - se são grupos locais, partidos, sindicatos, ongs, cooperativas, etc. (Della Porta, 2009Della Porta, D. (ed.). Democracy in social movements. London: Palgrave Macmillan UK, 2009.). Mais uma vez, aqui, a literatura indica como os formatos organizativos e posicionamentos político-ideológicos se relacionam com as práticas e definições democráticas manifestados nas pesquisas, em um intrincado jogo de causas e efeitos.

No Brasil, Mendonça (2018)Mendonça, R. F. “Dimensões democráticas nas jornadas de junho: reflexões sobre a compreensão de democracia entre manifestantes de 2013”. Revista Brasileira de Ciências Sociais, vol. 33, nº 98, 2018. analisa entendimentos sobre democracia em entrevistas realizadas com ativistas dos protestos de junho de 2013. A partir da teoria democrática, mas sem se prender a modelos de democracia, o autor define um conjunto de sete dimensões da democracia a partir do qual analisa o corpus empírico: (1) autorização para exercício do poder político; (2) participação e autogoverno; (3) monitoramento do poder político; (4) promoção da igualdade e defesa de grupos minorizados; (5) competição política e pluralismo; (6) discussão e debate de opiniões; e (7) defesa do bem comum.

Como resultado, Mendonça (2018)Mendonça, R. F. “Dimensões democráticas nas jornadas de junho: reflexões sobre a compreensão de democracia entre manifestantes de 2013”. Revista Brasileira de Ciências Sociais, vol. 33, nº 98, 2018. encontra ênfase das pessoas entrevistadas nas dimensões de participação, horizontalidade, autorização e igualdade, e pouca preocupação com temas como monitoramento, bem comum, competição política e pluralismo. A igualdade - econômica, de gênero, de acesso à cidade - é vista como ideal normativo democrático fundamental: sem ela, não há democracia plena. Os resultados dialogam com o que encontraram Dagnino et al. (1998)Dagnino, E., et al. “Cultura democrática e cidadania”. Opinião Pública, vol. 5, nº 1, p. 20-71, 1998. na preocupação igualitária e na pouca ênfase conferida às instituições democráticas. No entanto, 30 anos depois, a baixa preocupação com as regras e instituições é lida pelo autor com preocupação. Ativistas de junho de 2013 fazem fortes críticas ao funcionamento do sistema político, à atuação de representantes e às eleições, apontando para percepções de esgotamento do sistema representativo e de demandas por democratização. Ao contrário, democracia direta e autogoverno são elementos recorrentes e ativistas defendem ideias de autogestão, horizontalidade e coletividade - apesar dos problemas para implementação desses modelos.

Em síntese, este artigo compartilha dos esforços de Dagnino et al. (1998)Dagnino, E., et al. “Cultura democrática e cidadania”. Opinião Pública, vol. 5, nº 1, p. 20-71, 1998. quanto ao foco nos significados que pessoas engajadas na vida associativa atribuem à democracia. Se, naquele estudo, ficou evidente que pessoas com diferentes perfis de ativismo apresentaram percepções particulares de democracia, cabe a esta pesquisa perguntar se o mesmo padrão se mantém mais de 20 anos depois. Mendonça (2018)Mendonça, R. F. “Dimensões democráticas nas jornadas de junho: reflexões sobre a compreensão de democracia entre manifestantes de 2013”. Revista Brasileira de Ciências Sociais, vol. 33, nº 98, 2018., apesar de ter um foco empírico um pouco distinto ao investigar participantes de protestos, oferece algumas pistas para essa atualização: estaria mantida a ênfase igualitária, mas, no lugar da pouca ênfase às instituições democráticas, agora haveria um cenário de críticas a elas. O livro de Donatella Della Porta (2009)Della Porta, D. (ed.). Democracy in social movements. London: Palgrave Macmillan UK, 2009. aponta não haver exatamente um jogo de causas e efeitos diretos entre perfil de participação e democracia, sugerindo que as organizações e movimentos são espaços relevantes para a construção de valores compartilhados. No entanto, o trabalho dessa autora é distinto do aqui apresentado na medida em que os eixos que identifica para explicar a variação nas percepções de democracia - variações em termos de como entendem a deliberação e a participação - são bastante particulares do contexto do movimento de justiça global europeu. Se entre o MJG europeu e o Brasil de 2019 há - usando os termos de Lüchmann (2014)Lüchmann, L. H. “Abordagens teóricas sobre o associativismo e seus efeitos democráticos”. Revista Brasileira de Ciências Sociais, vol. 29, nº 85, p. 159-178, 2014. - diferentes “ecologias de associações”, cabe, portanto, investigar se, no Brasil contemporâneo, é possível identificar eixos que organizam os debates sobre democracia entre pessoas que participam e quais seriam eles. Por fim, à luz da literatura que refuta a correlação direta e positiva entre participação e atitudes democráticas, cabe o cuidado de evitar uma expectativa de que a participação signifique, automaticamente, maior apreço à democracia. Ainda que o foco deste artigo não seja a adesão a esse regime, mas as imagens de democracia encontradas nos grupos, cabe seguir com atenção às pistas de que nem sempre a participação precisa estar associada a uma visão positiva da democracia.

Metodologia

Pesquisas com grupos focais se aproximam das situações em que as pessoas discutem política no seu dia a dia (Gamson, 1992Gamson, W. A. Talking politics. New York: Cambridge University Press, 1992.) e nos ajudam a compreender a construção intersubjetiva de sentido para as definições e interpretações que orientam as ações das pessoas (Stanley, 2016). Resultados dessas pesquisas tendem a ser análises interpretativas sobre falas individuais dos participantes e sobre as interações por meio das quais as pessoas explicitam pontos de vista, constroem explicações e, por vezes, negociam sentidos e chegam a redefinições (Barbour; Kitzinger, 1998Barbour, R.; Kitzinger, J. Developing focus group research. Politics, theory and practice. London: Sage, 1998.). Grande parte das pesquisas qualitativas sobre ativismo utiliza entrevistas em profundidade com ativistas. Este artigo é inovador na medida em que os dados qualitativos foram produzidos a partir de grupos focais, nos quais se deram discussões entre pessoas com experiência associativa e participativa, que não apenas responderam às questões do roteiro, mas ponderaram seus pontos de vista e seus argumentos à luz dos argumentos dos outros.

Com base nas indicações teóricas de que diferentes formatos de participação tendem a apresentar diferentes entendimentos e práticas sobre democracia, os grupos focais reuniram ativistas com três perfis de ativismo: participação em movimentos sociais e sindicais, participação em conselhos de direitos e participação em associações diversas. As associações garantem a presença de um tipo de ativismo mais tradicional e que tem se reavivado no Brasil contemporâneo; grupos de militantes de movimentos e sindicatos buscam acesso a um perfil de ativismo que configurou, de acordo com Dagnino et al. (1998)Dagnino, E., et al. “Cultura democrática e cidadania”. Opinião Pública, vol. 5, nº 1, p. 20-71, 1998., um campo-ético-político específico, a partir da democratização. Os grupos de conselheiros e conselheiras incluem um formato de participação institucional e ativistas que não necessariamente estão ligados a organizações e associações, com distintos perfis econômicos e políticos.

Ainda que a distinção entre os grupos com base no tipo de ativismo tenha sido uma escolha metodológica justificada pela pergunta de pesquisa, é necessário fazer uma ressalva para reconhecer o caráter de múltiplo engajamento (Mische, 2018) encontrado em vários dos ativistas que participaram da pesquisa - ativistas que estão simultaneamente engajados em movimentos sociais, militância partidária e instituições participativas, como conselhos de direitos e orçamentos participativos. Todavia, o reconhecimento de que as pessoas têm múltiplas filiações não impede que, como estratégia de pesquisa, se opte por separar os grupos por áreas de atuação predominante e estimular conversas entre pessoas com esses perfis. Assim, foi possível garantir perfis majoritários (indicados na Tabela 1), pois, ao realizar os convites, foi solicitado que as pessoas estivessem no grupo correspondente à sua atuação participativa principal.

Assim, considerando a pergunta central que a pesquisa buscou responder: como o ativismo em diferentes formatos de associação se relaciona com diferentes concepções de democracia?, optamos por formar grupos compostos por indivíduos com alguma trajetória de participação. Essa opção é distinta de um desenho de pesquisa que busca capturar a percepção de pessoas ativistas e não ativistas sobre participação política, comparando as duas. Em pesquisa conduzida com esse objetivo, Penna e Rosa (2021)Penna, C.; Rosa, M. Political education as a problem and solution: discussing participation in Brazil. In: Saunders, C.; Klandermans, B. (orgs.). When citizens talk about politics. New York: Routledge, 2021. utilizaram uma forma de recrutamento menos dirigida e ativa, que considerava apenas critérios de idade e de educação como agregadores. Essa pesquisa concluiu que, dentre as diferentes formas de participação política, votar é considerada a mais importante e legítima; e o protesto aparece como uma forma de controle dos representantes eleitos pelo voto (Penna et al., 2017Penna, C.; Rosa, M. C.; Pereyra, S. “Vote and protest in Argentina and Brazil: contemporary research based reflections on political participation”. Sociologies in Dialogue, vol. 3, nº 2, p. 96-117, 2017.). É importante frisar que os objetivos da pesquisa que originou o presente artigo foram distintos: buscou-se averiguar como diferentes tipos de participação se relacionam com diferentes concepções de democracia. Não nos propusemos a contrastar diferentes visões sobre participação política entre pessoas ativistas e não ativistas, de diferentes idades e rendas, tampouco sua adesão à democracia.

Com base nas possibilidades logísticas e orçamentárias do projeto “A Cara da Democracia no Brasil” desenvolvido pelo Instituto da Democracia e da Democratização da Comunicação (INCT IDDC, 2018), que originou este artigo, foram realizados grupos focais em uma capital do Sul e duas do Sudeste (Belo Horizonte, São Paulo e Porto Alegre) e em uma cidade de médio porte no norte de Minas Gerais (Montes Claros). O recrutamento se deu com o auxílio de recrutadores profissionais e por meio das redes interpessoais das pesquisadoras envolvidas na pesquisa. Entre março e setembro de 2019, foram realizados três grupos compostos por pessoas com experiência de participação em conselhos, um em cada capital; três grupos compostos por pessoas ativistas em diferentes tipos de movimentos sociais (incluindo movimento sindical e movimento estudantil), um em cada uma das seguintes cidades: Porto Alegre, São Paulo e Montes Claros; e dois grupos compostos por pessoas que participam de associações diversas, como associações desportivas (São Paulo) e associações assistenciais (Belo Horizonte).

No processo de recrutamento, procurou-se contar com a presença de pessoas com perfis ideológicos diversos6 6 A identificação de ideologia foi feita de duas formas: em questionário antes da reunião, participantes apontaram posicionamento ideológico com valor entre 1 (mais à esquerda) e 10 (mais à direita). Além disso, durante os grupos pedimos para indicar pessoas públicas em quem confiavam, com figuras de diversos perfis ideológicos. , adotando, quando possível, estratégias como a utilização de redes interpessoais não vinculadas à universidade e a realização dos grupos em espaços físicos diversos. Contudo, no contexto de polarização crescente pós-eleições de 2018, foi um desafio recrutar pessoas para a pesquisa qualitativa que tivessem, ao mesmo tempo, experiência de participação e que não se identificassem como de esquerda. Com efeito, recebemos algumas negativas por parte de indivíduos que identificavam a universidade pública como lugar “esquerdista” ou que declararam não querer ajudar a produzir dados para pesquisadores com esse perfil. Apesar disso, foi possível recrutar pessoas com perfil ideológico amplo nos grupos de conselheiros e de associações, sendo que entre estes últimos houve maior número de participantes posicionados mais à direita no espectro político-partidário. A maioria dos participantes tinha entre 30 e 60 anos, exceto nos grupos realizados em Montes Claros, cujos membros eram estudantes universitários do movimento estudantil, e no grupo de associações de São Paulo, que contou com a participação de jovens. O Quadro 1 apresenta os grupos, que reuniram 47 pessoas, no total:

Quadro 1
: Perfil associativo dos grupos focais

De forma a garantir a padronização necessária à comparação dos grupos (van Bezow et al., 2019), a moderação foi feita pelas três autoras, de forma alternada, adotando o mesmo estilo de moderação: não incisivo e buscando interferir o mínimo possível no debate. Os grupos focais tiveram duração aproximada de duas horas cada e foram estruturados por um roteiro com perguntas gerais sobre democracia e sobre democracia no Brasil. O corpus composto pela transcrição completa dos oito grupos foi codificado com auxílio do software Atlas.ti. A técnica de análise de conteúdo utilizada foi análise categorial temática (Bardin, 2016Bardin, L. Análise de conteúdo. São Paulo: Edições 70, 2016 [1977].), na qual unidade de registro (categoria) é o tema, não a palavra ou expressão. Nesse tipo de análise, é codificado todo o trecho de diálogo que faz referência a determinado tema/categoria. Para a definição das categorias ou temas, fez-se uma pré-análise de todo o material, por meio da leitura completa e conjunta das degravações de todos os grupos. Nessa etapa, foi possível identificar que existiam diferentes concepções de democracia, expressadas ao longo das conversas e concentradas principalmente em três das perguntas do roteiro: “Quando a gente fala sobre democracia, qual é a primeira coisa que vem na cabeça de vocês?”; “Tem um político inglês que diz que a democracia é a pior forma de governo, com exceção de todas as outras, o que vocês acham disso?”; “Vocês, em alguma situação, acham que valeria à pena trocar esse sistema que a gente tem, que é o sistema político democrático, por um sistema não democrático?”7 7 As outras perguntas eram: i. Ao falar em democracia no Brasil, qual é a primeira coisa que lhes vem à mente? - Que sentimentos lhes desperta? ii. Se fôssemos fazer um balanço do funcionamento da democracia no Brasil desde a década de 1980, qual o seu grau de satisfação? Por quê? iii. Algumas pessoas me disseram que, sob certas circunstâncias, seria justificado que haja um golpe militar. O que você acha? Sob que circunstâncias? a. Corrupção no governo; b. Crise econômica; c. Crise política; d. Alto desemprego; e. Protestos sociais; f. Insegurança; iv. Você trocaria a democracia por outra forma de governo? Qual? Por quê? v. (Perguntar para estimular debate). Quais motivos te levariam a isso? Com quem você conversa sobre esses assuntos?; vi. Agora vamos pedir para vocês olharem a lista e nos dizerem em quais dessas pessoas vocês confiam; e, em uma palavra, explicar por que confiam; vii. Aqui temos uma lista de instituições, vamos perguntar em quais confiam. E também pedir para vocês dizerem em uma frase - no que confia – e uma frase para dizer no que não confia, por que não confia; vii. Como você avalia partidos políticos no Brasil? Que coisas positivas você vê? E negativas? Você se identifica com algum? Por quê?; ix. Os políticos contribuem para melhorar a vida da população? x. Dessa conversa, o que fica para você? .

Como forma de sistematizar o tratamento dos dados, foram codificados apenas os diálogos provocados por essas três perguntas, o que foi feito por uma equipe de codificadores supervisionados pelas autoras do artigo. A codificação consistiu da atribuição de categorias aos trechos nos quais cada tema aparecia. Cada tema corresponde a uma categoria, como explicado acima. A grelha de categorias, a partir das quais se deu a codificação do texto, foi definida de antemão, de forma dedutiva, a partir de um balanço dos achados de outras pesquisas. Interessava à pesquisa dialogar com estudos que diferenciam dimensões ou aspectos da democracia (Moisés, 2010Moisés, J. A. “Os significados da democracia segundo os brasileiros”. Opinião Pública, vol. 16, nº 2, p. 269-309, 2010.; Morlino, 2015; Mendonça, 2018Mendonça, R. F. “Dimensões democráticas nas jornadas de junho: reflexões sobre a compreensão de democracia entre manifestantes de 2013”. Revista Brasileira de Ciências Sociais, vol. 33, nº 98, 2018.). Com base nas diferentes dimensões apontadas por esses autores, e levando em consideração as características do corpus da pesquisa, a partir de uma pré-análise, foi então laborada a grelha de categorias (Tabela 2). Ela foi montada com o propósito de buscar capturar as nuances de significados associados à democracia e que, ao mesmo tempo, permitissem um diálogo com a literatura já existente sobre o tema. Dessa forma, manteve-se a diferenciação clássica na teoria democrática entre dimensões substantiva e procedimental, que também orienta as formulações de Morlino (2015) e a pesquisa de Moisés (2010)Moisés, J. A. “Os significados da democracia segundo os brasileiros”. Opinião Pública, vol. 16, nº 2, p. 269-309, 2010.. Na dimensão procedimental, levando em consideração o debate entre as diferentes correntes contemporâneas da teoria democrática, foram considerados três formatos diferentes por meio dos quais as pessoas concebem democracia nos grupos focais: eleição de governantes; participação direta; e deliberação. Essas três categorias também encontram paralelo nas categorias empregadas por Mendonça (2018)Mendonça, R. F. “Dimensões democráticas nas jornadas de junho: reflexões sobre a compreensão de democracia entre manifestantes de 2013”. Revista Brasileira de Ciências Sociais, vol. 33, nº 98, 2018., que especificou, na dimensão procedimental: autorização para exercício do poder político, participação e autogoverno e discussão e debate de opiniões. Esses itens, em Morlino (2015), estão agregados sob a categoria “participação”.

Além dessas três categorias, foram incorporados dentre os elementos procedimentais: Estado de direito (para capturar as menções à democracia como funcionamento correto das instituições) e prestação de contas (para capturar as associações de democracia com transparência e responsividade dos governantes). Em síntese, a dimensão procedimental foi dividida em cinco itens: eleição de governantes, participação direta, deliberação, Estado de direito e prestação de contas.8 8 Mendonça (2018) diferencia suas dimensões daquelas propostas por Morlino (2015), afirmando estar mais interessado nos sentidos - historicamente situados e variáveis - apresentados pelos ativistas, enquanto o colega propôs categorias para a avaliação da democracia em funcionamento. Dado se tratar de olhares para o mesmo fenômeno - a democracia - e o precedente do emprego das categorias de Morlino por Moisés (2010), considerou-se possível articular as propostas.

A dimensão substantiva foi dividida em três conteúdos associados à democracia: direitos civis (que compreendem as liberdades individuais como liberdade de pensamento e de expressão, liberdade de ir e vir); direitos políticos (direito de votar, se filiar a partidos, se candidatar) e direitos sociais (igualdade econômica e igualdade social).

É importante notar que a divisão categorial proposta é um recurso heurístico. Como se verá adiante, nas formulações que aparecem ao longo do diálogo, as dimensões procedimentais e substantivas estão conectadas e sobrepostas. O Quadro 2 apresenta as categorias que utilizamos para a codificação do debate sobre democracia e as situa em comparação com as categorias de Mendonça (2018)Mendonça, R. F. “Dimensões democráticas nas jornadas de junho: reflexões sobre a compreensão de democracia entre manifestantes de 2013”. Revista Brasileira de Ciências Sociais, vol. 33, nº 98, 2018. e Morlino (2015) que serão retomadas na seção de discussão.

Quadro 2
: Síntese das categorias analíticas utilizadas

Resultados

A seguir, são apresentados os resultados da análise das conversas sobre democracia que se seguiram às três questões explicitadas na seção anterior. Para apreender os significados associados à democracia, foram codificados não só os trechos nos quais as pessoas discutem o que é democracia, mas também as discussões sobre o que as pessoas consideram não ser democracia. Esse diálogo foi provocado pela terceira pergunta, que questiona sobre a possibilidade de substituição da democracia por outras formas de governo. Entende-se que os termos nos quais as pessoas debatem situações que seriam a antítese da democracia e ponderam sobre as condições que justificariam sua substituição são elucidativos das concepções que têm sobre democracia. Na discussão a seguir, os resultados por perfis de grupo foram agregados, considerando os três tipos de participação ou de associativismo que serviram como critério de seleção para o recrutamento e organização dos grupos focais.

Conselhos

Os três grupos de conselhos foram recrutados por meio de redes interpessoais, em São Paulo e Belo Horizonte, e com auxílio de uma recrutadora profissional, em Porto Alegre. Nesta cidade, houve a presença marcante de pessoas com perfil de participação em conselhos municipais diversos, com trajetória político-partidária de esquerda, algumas com participação no processo de construção do Orçamento Participativo na cidade. Em Belo Horizonte, o perfil foi de pessoas com trajetória de participação em conselhos municipais de educação, meio ambiente, idoso e pessoa com deficiência. Com exceção de um participante situado à direita e um ao centro no espectro político, os participantes do grupo tinham perfil de esquerda e um deles era também ativista de movimento social rural. Em São Paulo, o recrutamento também se deu por meio de redes interpessoais e os participantes atuavam em conselhos diversos, predominantemente conselhos de saúde. Também neste grupo, o perfil predominante era de esquerda, com exceção de um dos conselheiros.

Nesses três grupos, quando perguntados sobre o que os vinha à mente quando ouviam a palavra democracia, os participantes demonstraram uma concepção de democracia como algo próximo, cotidiano. Foram comuns referências a experiências cotidianas, a casos ocorridos em espaços participativos ou a eventos na esfera familiar que exemplificam, de forma prática, o que seria democracia. Em nenhum dos três grupos esteve presente a concepção de democracia como algo distante, sobre o qual não se tem controle ou não se pode influenciar. Quando os participantes discutiram a democracia representativa, eles a avaliaram em termos críticos, ponderando as dificuldades na prestação de contas e no exercício do controle social, por exemplo, e a possibilidade de participação, mesmo indireta, continuava no horizonte.

Atreladas às discussões sobre o formato da democracia estão as considerações sobre seus aspectos substantivos, notadamente direitos civis e sociais. Ou seja, quando discutiram democracia, as pessoas nesses grupos a associaram à liberdade de expressão e ao direito de ir e vir, e também a associaram a divisão da riqueza e redução das desigualdades sociais. É interessante notar que não apareceram, na discussão desses grupos, concepções de democracia como alternância no poder ou como competição eleitoral. A ausência ou fragilidade dos direitos sociais foi uma fala recorrente em todos os três grupos e atravessou as considerações sobre a democracia como procedimento, servindo como um tipo de parâmetro para avaliar se ela de fato existe ou não.

Nas conversas a seguir, é possível visualizar concepções de democracia associadas ao procedimento deliberativo. Nelas também estão presentes considerações substantivas sobre a necessidade de liberdade de expressão.

Participante C1 (Belo Horizonte): (...) Então eu acho que a dificuldade da democracia é exatamente você coordenar um grupo e ter que ouvir e sopesar tudo. E claro que eu acho que, em momento nenhum, nada justifica a gente acabar com a democracia, em momento nenhum. A gente que tem que aprender a viver verdadeiramente nela e não ter a tentação de sermos nós o ditador (...).

Participante C2 (Belo Horizonte): Pra mim, a democracia é assim: ela começa... Eu procuro começar dentro da minha casa, porque, pra eu poder levar pra fora, eu tenho que viver primeiro com quem eu estou mais próxima, né?! (...) Então, se eu não tenho dentro de casa a minha liberdade de expressar, lá fora eu vou me sentir retraída. Isso me acontece às vezes, porque eu tenho, a gente tem uma liderança, uma hierarquia dentro do movimento; que eles falam assim, no nosso material (...) que é metal, que é sucata, é sucata, entendeu? Então, às vezes, eu me retraio. E eu tenho trabalhado muito isso, porque eu tenho o direito de me expressar. Mesmo estando errada, eu tenho o direito de falar aquilo que eu penso. Dentro daquilo que a colega disse: mesmo a gente estando errada, mas eu tenho o direito de falar o que eu penso. E, hoje, a gente tem essa dificuldade de falar qual partido você quer, ou qual time você torce (...).

Participante C3 (Belo Horizonte): Gosto muito de falar em democracia falando que, pra mim, sintetiza bem, chama “nós”. “Nós” é muito importante, porque nós estamos todos na mesma nave, né? Então, a gente tem que entender isso, que a gente não tem que agredir ninguém, cada um defende o entendimento. Qual é o melhor entendimento? Eu acho que é o meu, por isso que eu defendo. O colega já acha que é o dele. Ela, que conheço há mais tempo, nósnós temos tanta coisa em comum como nós também temos as nossas divergências e nem por isso nós estamos em lados opostos, na maioria da nossa trajetória. Então isso é democracia. Nós temos que realmente qualificar o processo democrático.

Na conversa acima, as falas iniciais são exemplos de como democracia é entendida como algo próximo, que se faz no dia a dia, e associada à participação e ao diálogo. Chama à atenção a preocupação com a possibilidade de se expressar, mesmo em caso de discordância. Essa concepção de democracia também está presente na fala abaixo, retirada do grupo de São Paulo:

Participante C4 (São Paulo): Eu acho... a democracia pra mim, é hoje, agora, nesse momento. E isso desde o momento que eu entrei aqui nessa reunião. É tão gostoso quando você está participando de uma atividade, de uma reunião, onde você fala e o que você fala é respeitado. As pessoas que estão ali respeitam o que você falou, independente se eu estou certo ou não. E tenho participado de várias reuniões onde as pessoas não têm direito de falar, porque o que ele fala a outra parte não respeita. Democracia, eu acho que é respeitar a camisa que eu estou vestindo, o que eu estou carregando na minha camisa, um bótom, um adesivo.

Na conversa a seguir, de um grupo composto por pessoas com trajetórias vinculadas à construção de experiências como o Orçamento Participativo e, em sua maioria, militantes do Partido dos Trabalhadores, a associação entre democracia, diálogo e liberdade de expressão também é visível. Percebe-se uma (auto)crítica ao caráter elitizado de alguns espaços participativos, o que também foi tematizado em pesquisas sobre o tema (Fuks; Perissinoto, 2006; Almeida, 2012Almeida, D. R. Representação política e conferências: os desafios da inclusão da pluralidade. Texto para Discussão, 2012.).

Participante C5 (Porto Alegre): A primeira característica para mim é a acessibilidade para a linguagem. É a grande crítica que eu faço desde que eu tenho participado de todos os espaços participativos. A maneira como a linguagem formal acaba excluindo as pessoas menos favorecidas, e acaba concentrando uma elite intelectual. Seja dentro da comunidade ou dentro da academia (...). Não é... a democracia, não é democrática. Penso nisso assim. Já passei por algumas experiências de ter que decodificar, por exemplo, materiais para que as pessoas conseguissem minimamente entender do que se fala.

Participante C6 (Porto Alegre): É, eu queria complementar. Acho que o principal disso é a liberdade de expressão (...). Linguagem acessível, né? Liberdade de expressão, acessibilidade, linguagem compatível. Mas eu tenho um pequeno senão. Eu acho que o OP ensinou muitas coisas, a linguagem muitas vezes é hermética, mas as pessoas vão participar, foram... se qualificaram. O processo é mais importante do que qualquer coisa, mesmo com um conhecimento, às vezes, inacessível, não tendo grau de estudo. (...)

Participante C7 (Porto Alegre): Eu ia corroborar a fala dele, porque é no processo que a gente acha que avançou no período, embora haja alguns recursos, que é... a democracia que inclua instâncias de participação no processo de deliberação, além das de representação, que são mais usuais no carácter republicano. E que possa ser nessa etapa da representação já, mas também para a participação direta do ponto de vista da definição de prioridades, inclusiva e respeitadora das diferenças.

Ainda na dimensão procedimental, em outros momentos da conversa entre os participantes desses três grupos, é visível a concepção de democracia como um procedimento que envolve a participação direta, entendida novamente como algo próximo, tangível, para além do voto. Os diálogos seguintes expressam a concepção de democracia trazendo a noção de soberania popular e de poder do povo.

Participante C8 (São Paulo): A primeira coisa que me vem de democracia é a participação. Está aqui, essa participação... E ela nem sempre se dá de acordo com a democracia, porque o que é democracia não chega até essa participação. (...) Isso é o que me vem na cabeça (...). Numa escola tem democracia? No posto de saúde que eu frequento tem democracia? Tem, né? Se for falar tem, só que a gente chega, os gestores estão com toda a pauta ali feita, e a gente vai concordar ou discordar só. Mas não foi conversado com todos os usuários, não foi defendido o que trabalhar... Quer dizer, complicado. Então você vai, você participa de tudo isso e é a primeira coisa que me vem.

Participante C9 (São Paulo): E, não obstantes todas as definições e conceitos, eu sempre gosto de tratar democracia como soberania popular, como poder do povo, e aí depois a gente vai discutir as formas de exercer esse poder. Eu sempre gosto de explanar dessa forma, porque fica mais próximo da gente, de como chegar, de como exercer, de como fazer democracia, porque democracia é algo que a gente tem que fazer a todo instante. Não é um corpo morto, mas é algo dinâmico que eu vou ter que aprender a lidar com esse poder e a forma de exercer.

Participante C10 (Porto Alegre): Poder do povo. Participação.

Participante C6 (Porto Alegre): Poder para o povo, pelo povo e com o povo. Essa é a democracia.

Participante C11 (Porto Alegre): E eu acho que tu falando isso também. Ela é cotidiana, ela não é pontual. Aquilo que a gente, muitas vezes, tem o equívoco de que a democracia é o voto. A democracia não é só o voto. A democracia, ela é, segundo o que tu falaste, e acrescentando, a democracia ela é cotidiana. E ela só vai ser democrática se ela for cotidiana.

Participante C10 (Porto Alegre): O coletivo, o bem comum.

Participante C11 (Porto Alegre): O público.

Participante C10 (Porto Alegre): O público.

Participante C5 (Porto Alegre): E... perdão. Desculpa. Só me vem uma frase assim né: só se aprende a participar, participando. Eu acredito nisso.

Quando consideramos as dimensões substantivas, percebemos que as formulações que aparecem nesses grupos sobre participação direta e sobre deliberação estão atravessadas pela associação entre democracia e direitos sociais. Em outras palavras, a possibilidade de existência de uma democracia (participativa) estaria atrelada à redução das desigualdades econômicas e sociais que dificultariam a isonomia entre as pessoas.

Além das menções à liberdade de expressão como dimensão substantiva, boa parte da conversa sobre democracia nesses três grupos foi atravessada por uma discussão sobre direitos sociais, notadamente sobre distribuição da riqueza e sobre igualdade social no sentido mais amplo. Nas análises dos participantes dos grupos, a ausência desses direitos afetaria a possibilidade de existência da democracia. A conversa a seguir, ocorrida no grupo de Belo Horizonte, ilustra como essa dimensão substantiva da igualdade econômica aparece relacionada à própria possibilidade de participação direta:

Participante C12 (Belo Horizonte): Voltando um pouco no que estávamos refletindo antes, pra mim democracia é um sistema, uma forma da gente organizar a sociedade que todos têm acesso ao acúmulo, que é um acúmulo histórico, que é construído pelos seres humanos (...) A outra coisa é isso. Eu sei que estou chovendo no molhado para muitos de vocês aqui, mas é isso também. Do ponto de vista da riqueza, nós todos participamos da criação dela. Então, pra mim, se não tiver isso na democracia, o acesso a essa riqueza acumulada, tanto cultural como material, vamos ficar nessa dificuldade, porque alguns acessam mais e têm condições de acumular e defendem o projeto que explorar o outro é justo, é permitido. Bom, é isso que eu penso da democracia, e, é lógico, a melhor forma seria a participação direta, né?! Os gregos, nas suas praças e tal, ensaiavam e tal, talvez a gente chegue um dia nesse ponto.

Participante C14 (Belo Horizonte): Eu consigo dar condições às pessoas pra que elas cheguem no mesmo lugar, mas eu olho todas as pessoas.

Participante C1 (Belo Horizonte): É tratar os iguais de forma igual, o diferente.

Participante C14 (Belo Horizonte):... de forma diferente. É.

Participante C15 (Belo Horizonte): Tem um termo pra isso, é discriminação positiva.

Participante C14 (Belo Horizonte): É, eu busco esse ideal. (...)

A conexão entre democracia deliberativa como procedimento e o aspecto substantivo relacionado à igualdade racial e econômica é visível na conversa abaixo, que volta ao exemplo do Orçamento Participativo para evidenciar a dificuldade de uma participação igualitária no contexto de uma desigualdade estrutural:

Participante C10 (Porto Alegre): Uma democracia ideal, na minha visão, é a possibilidade de tu contestar qualquer coisa. De tu ter a possibilidade de contestar e não ser tolhido. Porque, por exemplo, eu sou da comunidade, eu nasci em uma vila. Se um neguinho da vila for contestar alguma coisa, ele é esculachado, toma um tapa na cara (...). Agora, se um cara que é filho de um empresário ali, do bairro Montserrat é pego vendendo drogas em um posto de gasolina, eles não botam nem que o cara é traficante, no jornal. Eles botam assim: ah o cara se explicou, ele era distribuidor de drogas. Então, assim, tem muita diferença dentro da possibilidade de contestação que nós temos na democracia hoje, né, que a gente tem vivido, que não se assemelha da ideal. Tem uma diferença muito grande na possibilidade de contestação e isso para mim é um ingrediente sine qua non para que uma democracia exista (...)

Participante C11 (Porto Alegre): Eu vou pegar um pouco o que a Participante C10 falou, que eu acho que é extremamente importante. Eu só acho que a gente vai ter uma democracia plena e não uma democracia burguesa, quando a gente tiver alguns direitos mínimos igualitários para todos. Ou seja, toda a educação deveria ser pública, dentro dessa análise. Quer dizer, aí a gente está partindo de uma democracia de sociedade e não de uma democracia que a gente está... Tudo bem, não tiro nada que os meus companheiros aqui em frente falaram do orçamento participativo, muito pelo contrário, ajudei a construir o orçamento participativo, a descentralização da cultura. São pontos que a gente teve para democratizar mais recursos também, que a gente tem. Mas uma questão estrutural. Se a gente está falando de uma democracia estrutural, a gente só vai ter uma democracia mesmo quando toda a educação for pública.

No grupo de São Paulo, os participantes elaboraram sobre como a desigualdade social dificulta o funcionamento da democracia, entendida como um procedimento que envolve participação cotidiana. Mais especificamente, discutem como os empecilhos materiais (horários de reunião, dificuldade de acessibilidade, falta de condições financeiras para participar) prejudicam a existência de uma verdadeira democracia nesses espaços. Esses problemas vão ao encontro do que foi identificado pela literatura como um dos problemas relacionados à representação nas instituições participativas (Almeida, 2014Almeida, D. R. “Pluralização da representação política e legitimidade democrática: lições das instituições participativas no Brasil”. Opinião Pública, vol. 20, nº 1, p. 96-117, 2014.).

Participante C16 (São Paulo): (...). Então você precisa se colocar. As pessoas não participam, as pessoas não se colocam.Que democracia é essa? O que está acontecendo com a nossa democracia? Ela é nova? Ela é nova, ela é recente, há toda uma justificativa aí. (...) O quanto que eu tenho que lutar, por exemplo, pra estar numa ABNT? Eu fui a uma [reunião da] Associação Brasileira de Normas Técnicas no ano passado, pra fazer normas técnicas para as pessoas com deficiência, pra construção de ônibus. Eu fui e, meu, é desgastante. Eu era a única mulher numa mesa de 40 homens - cadeirantes, empresários e gestores. Vocês imaginam o que eles olharam pra minha cara, né? Então, quer dizer, não é fácil você estar nesses meios, se colocar e exigir. Então, a participação é essencial, mas os meios para participação precisam ser dados.

Participante C8 (São Paulo): Existe a democracia, né? Mas cadê?

Participante C17 (São Paulo): (...) Aí volta aquela questão que eu falo pra vocês: marcar uma reunião, às 10h, numa quarta-feira. Estes que são usuários que vão representar.Será que eles estão representando o todo do bairro? Será que eles têm capilaridade de representar esse todo?(...) Então, eu acho que a democracia no Brasil ela tem que muito caminhar. A percepção das pessoas, em geral, está muito aquém. A maioria do meu bairro..., acho que seu Jeremias também, “quanto o senhor está ganhando lá na associação?”. Você não faz de graça, você não faz. Você entende? (...)

Participante C8 (São Paulo): Só pra completar. Pegar uma coisinha que ele falou sobre a participação nas Unidades Básicas de Saúde [UBS] nesses conselhos e tal. Sobre o horário dessas reuniões, é uma coisa que eu tenho lutado, mas eu só escuto assim: “isso não é um assunto que dá pra discutir porque as reuniões têm que ser feitas dentro do horário que a UBS trabalha porque fora desse horário nós vamos ter um gasto a mais”. (…). Então é complicado, porque quando você coloca [que] quem participa nessas reuniões tem representatividade, eu gostaria que tivesse 10, 15 pessoas lá trabalhando, lá na UBS, e representando a população também...

Participante C17 (São Paulo): E são decisões importantes. Dependendo do conselho, você aprova ali, como sociedade civil, a remoção de uma comunidade inteira.

Participante C8 (São Paulo): É, é deliberativo ali. Mas, as pessoas estão onde? Trabalhando. Muitas pessoas falam “eu não posso ir, esse horário eu não posso, se for mais tarde”. Então acho que... como funciona essa democracia?

A conversa sobre regimes não democráticos também propiciou formulações ricas para a apreensão das concepções nativas de democracia no grupo de Porto Alegre. Quando os presentes falaram sobre regimes não democráticos, enfatizaram o que se perde com eles, tendo emergido nas falas tanto dimensões procedimentais como dimensões substantivas. A dimensão substantiva enfatizada foi a dos direitos civis, o que reafirma a preocupação com a liberdade de expressão já identificada nos debates sobre democracia.

Participante C18 (Porto Alegre): É, até porque nós aqui somos pessoas participativas, contestadoras, opiniáticas. Eu jamais ia querer viver em uma ditadura, porque eu não ia poder falar nada. Ia ficar na minha ali.

Em termos de procedimentos, o debate sobre autoritarismo saiu das dimensões mais ligadas à participação e enfatizou elementos institucionais e a existência de competição eleitoral: melhor ter partidos do que não ter, o que tende a ocorrer em regimes autoritários. Apareceu também a ideia de que já se vive uma ditadura em comunidades (favelas), em trecho no qual alguém associava o autoritarismo a militares, armas: um participante usou o termo “bélico”, outro participante completou, incluindo “miliciano”. Os argumentos, no breve diálogo, acabaram aproximando-se dos debates do Brasil atual. Porém, deixam entrever a preocupação com a ausência do Estado de direito – uso desmedido da força, ausência do domínio do Estado em partes do território – no regime democrático, o que seria, na opinião do participante, piorado em um regime autoritário.

Em síntese, quando discutiram democracia, os três grupos de participantes de conselhos se debruçaram predominantemente sobre aspectos procedimentais, associando democracia à participação direta e à deliberação. As ponderações sobre direitos sociais e desigualdade econômica foram trazidas à tona para qualificar as críticas ao funcionamento desses dois procedimentos associados à democracia. Em suma, as reflexões desses grupos, a partir de sua experiência de participação, se aproximam das reflexões da literatura que estuda espaços participativos.

Movimentos

Os grupos de movimentos tinham algumas importantes diferenças de perfil. O de Montes Claros, recrutado por meio de contatos interpessoais, era composto por estudantes universitários, integrantes do movimento estudantil e com um perfil de centro-esquerda e esquerda. O grupo de Porto Alegre foi recrutado por uma profissional e contava com pessoas com trajetória político-partidária em partidos e movimentos populares, além do movimento sindical. O grupo de Belo Horizonte, recrutado por redes interpessoais, era composto por ativistas em movimentos diversos do campo da esquerda, como movimento de moradia, movimento negro e movimentos religiosos.

Em comparação com os grupos anteriores, os três grupos compostos por pessoas com perfil de participação em movimentos tiveram como traço distintivo a predominância das dimensões substantivas da democracia, notadamente direitos sociais e direitos civis (liberdade de expressão). Há, ainda em comparação com os grupos anteriores, menos referências a procedimentos. Ainda assim, quando foram feitas referências à democracia como procedimento, essas referências associavam democracia a alguma forma de participação direta, mesmo que de forma genérica. Apenas no grupo realizado em Porto Alegre, no qual estavam presentes ativistas do movimento sindical, houve um longo debate sobre democracia e participação no local de trabalho.

No horizonte normativo dos participantes desses três grupos, há uma percepção de que a democracia deveria, de alguma forma, levar à justiça social. Quando perguntados sobre se, em algumas circunstâncias, um governo autoritário poderia ser preferível a um democrático, os participantes refletiram novamente nessa chave, pensando na dimensão substantiva da democracia e a tomando como parâmetro para avaliar sua existência concreta. Foi nesses termos que os participantes ponderaram sobre em que circunstâncias a democracia deveria ser substituída por outra forma de governo. Eles levantaram a questão de que essa democracia já não existe de fato, na medida em que boa parte da população estaria excluída.

A conversa a seguir demonstra como a concepção de democracia está atrelada à existência de direitos sociais e civis. As duas primeiras falas tematizam o direito à participação na distribuição da riqueza, problematizando a existência de uma democracia real no Brasil, face à pobreza e a uma enorme desigualdade econômica. Na última fala, pondera-se sobre a possibilidade de uma democracia sem direitos civis para a população negra. Em todo o diálogo, é possível observar como os participantes refletem sobre a democracia a partir de aspectos substantivos. Assim, mesmo quando há uma intervenção para chamar a atenção ao procedimento de escolha como positivo e necessário, fazendo da democracia “a pior forma, exceto todas as outras”, o diálogo ainda é dominado por considerações sobre a substância.

Participante M19 (Belo Horizonte): (...) Há essa democracia, esse direito de participar e etc., com as limitações, com as contradições e de alguma forma ele ainda está aí. Mas nós, enquanto sociedade brasileira, nós não passamos por um outro lado da democracia que ainda não se discute muito, que é [o] da participação da riqueza das pessoas no país, naquilo que ela produz pra um país. Democracia formal, mas uma desigualdade social brutal que mais uma vez se aprofunda. Um país rico, um país que tem uma riqueza econômica muito grande e que pouquíssimas pessoas participam; um grau de exploração enorme, de precarização do trabalho, de falta de acesso ao trabalho muito grande, e que aí coloca em xeque essa democracia, né? Embora formalmente ela esteja aí, com as contradições que ela tem, mas isso traz essa outra dimensão da democracia, que é a socialização das riquezas. Como que a gente fala de democracia, que conceito é esse de democracia que não compreende o direito de ter um lugar pra morar com dignidade. Eu penso que a democracia é isso, mas eu defendo a democracia, sem dúvida. Mas falta ainda esse debate aprofundado da socialização da riqueza, dos bens; participar com todo mundo nessa dimensão.

Participante M20 (Belo Horizonte): Uma polêmica que eu vejo de democracia, por isso que eu pedi pra ela ler a pergunta; só pra ter a dimensão, democracia, que a gente fala, que nome comprido (...) eu tenho uma decepção sobre a democracia, que se eu fosse olhar ela eu não viria, eu ia amarrar uma corda no pescoço e ia... Então o que eu vejo de democracia? E eu pergunto (...) nós estamos na democracia? Porque se tiver, eu não vou não. Eu consigo falar que eu vivo em democracia? Eu não vou levar essa consciência pra mim não. (...) Quando você não pode participar dos direitos de valor, então você não faz a democracia. Porque eu estou falando aqui do Estado e do Brasil, porque eu conheço também gente que tem um montão de coisas, e outros não têm nada. Eu conheço alguém que tem muito aí e os outros estão morrendo de fome. É esse que nós estamos falando.

Participante M21 (Belo Horizonte): Se eu entendi bem o seu Participante M20, eu acho que a gente concorda num ponto de que a desigualdade dificulta a democracia, dificulta o acesso aos bens, o acesso à saúde, à cultura, ao lazer, à educação. Mas... não sei se mas é o termo correto, mas ainda [risos] é a única forma de se estabelecer uma sociedade, em que ainda por mais que exista desigualdade, as limitações e dificuldades que ainda... que têm a possibilidade de reverter isso aí. Então na disputa sobre democratizar os meios de comunicação, democratizar o acesso à escola, enfim, isso tudo é possível por estarmos inseridos na “pior forma possível exceto todas as outras”, o regime de governo, né?

Participante M22 (Belo Horizonte): O fato de você ser negro já um problema democrático. Eu não posso ir em qualquer shopping da cidade. Se eu entrar com as minhas vestimentas, sempre vai haver um segurança, e geralmente um segurança negro, atrás de mim. Você não está sendo representado dentro dos setores da educação: é só olhar a quantidade de negros que estão nas universidades públicas e quantas pessoas que aderiram a dizer que são negros para conseguir a cota racial, e não são negros. Você não é representado nas instituições de governo: só olhar a quantidade de negros que nós temos representando o nosso povo (...) democrática eu acho que falta isso, a conscientização de que somos um povo. E, quando nós tomarmos coragem, todo mundo vai pra rua, independente de qual classe, qual partido, qual igreja, eu tô na rua.

Participante M20 (Belo Horizonte): Acabar com as divisões.

Ao ponderarem sobre a possibilidade de substituição da democracia por outra forma de governo, os participantes do grupo em Porto Alegre, composto por ativistas do movimento sindical e de movimentos populares, também fazem uma correlação entre as condições de existência de uma democracia efetiva e a presença de direitos sociais, associando democracia e distribuição da riqueza.

Participante M23 (Porto Alegre): Eu tenho a impressão de que em nenhum caso seria aceitável um governo autoritário. Mas a questão se a gente for pensar se é possível conquistar uma igualdade social só na base do consenso, só na base da conversa ou as pessoas que são os detentores do 1% não vão abrir mão disso de nenhuma forma se não houver algum tipo de coerção que os obrigue a abrir mão disso. Esse é um ponto que eu me pergunto, entendes? Em princípio, eu acho que não tem, eu acho que todos os governos têm que ser.... não tem uma forma autoritária que se justifique. Mas eu fico com essa interrogação: será que os sujeitos vão abrir mão, o 1% vai abrir mão de ser donos de tudo e dos outros? Acho que essa é uma grande questão.

Participante M24 (Porto Alegre): (...) Não acho que democracia só de nome seja de fato uma democracia. E autoritarismo não é só autoritarismo só porque o mercado diz que é. (...) Não, não existe uma forma autoritária de governo que se justifique, mas o que é autoritarismo? Acho que a definição que a gente tem que pensar é essa, sabe? Não, eu não acredito que o 1% vai abrir mão só porque a gente pede com educação, ou porque a gente faça acordos. Isso já se provou.

No grupo de Montes Claros, composto por participantes do movimento estudantil, também houve uma associação entre democracia e seus aspectos substantivos, notadamente direitos sociais e direitos civis. A última fala da conversa a seguir é um exemplo contundente de como o conteúdo (direitos sociais) serve como parâmetro para avaliação da forma (democracia representativa), levando a uma conclusão de que não existe democracia para todos no Brasil:

Moderador: Quando a gente fala sobre democracia, qual é a primeira coisa que vem na cabeça de vocês?

Participante M25 (Montes Claros): Respeito às opiniões diversas.

Participante M26 (Montes Claros): Igualdade.

Participante M27 (Montes Claros): Ordem.

Participante M28 (Montes Claros): Acho que o que vem à minha cabeça, que deveria ser, né, o governo do povo. (...)

Participante M25 (Montes Claros): Pra mim, funciona da seguinte maneira: a partir do momento que a gente vive num Estado democrático, a gente admite que existem pessoas que pensam diferente, que têm ideias diferentes, que vão ter soluções diferentes para problemas diferentes, essa é a verdade. Então, eu acho que, assim, o grande ponto da democracia é que uma ideia, às vezes, ela pode complementar outra, ela pode ajudar neste tipo de situação. Então, pra mim, quando uma sociedade, ela consegue existir dessa maneira, ela consegue ter um princípio de... ordem como Participante C27 falou - mas não é simplesmente a ordem. Ela está atrelada também a uma... a um respeito entre as pessoas, que elas têm entre si opiniões diversas. Apesar de que não é muito isso que a gente vê hoje em dia, mas tudo bem.

Participante M26 (Montes Claros): Acho que, na minha visão (...) não é questão da igualdade em si, mas uma menor desigualdade. Porque mais que na teoria, exista a igualdade. Na realidade tem gente que não exerce isso.

Participante M28 (Montes Claros): Bom, eu falei governo do povo, né? É... mas isso é... até de certa forma utópico, né? Eu acredito que a democracia, como governo do povo, no Brasil, é... - e na maioria dos países da América - ela não existiu, nunca existiu. Porque, por exemplo, na nossa democracia é uma democracia de representatividade, no caso a gente vai eleger representantes, pessoas que deveriam, né, representar o povo. Mas a gente sabe que não é isso que acontece, porque, no caso, a maioria de vereadores, deputados, sem falar do poder executivo, mas falando do legislativo, tanto em âmbito municipal, quanto estadual, quanto federal, é troca de favores. Se... se for num bairro, aí você vai falar “ah não! eu apoiei tal fulano”, você vai ver as pessoas falando “eu apoiei fulano tal, em tal ano, porque aí ele ia me dar um emprego em tal lugar, aí ele ia conversar com fulano que é dono de tal empresa e arrumar um jeito lá pra mim”, é isso. E essas pessoas, elas não estão preocupadas em representar o povo. A Câmara dos Deputados: você tira uns dez daquele monte que tem lá que estão preocupados em representar quem mora na favela, quem...

Outra dimensão substantiva central e recorrente nesses grupos é a associação entre democracia e direitos civis. Ela está presente na conversa anterior e também pode ser visualizada na conversa abaixo.

Participante M29 (Porto Alegre): Eu, pra mim, democracia é liberdade. De expressão, liberdade de ir e vir, liberdade de tudo, né?! Que hoje está sendo tirado isso da gente. A gente não tem mais liberdade para nada, digamos assim. Que não pode inventar uma coisa assim que já é interpretada mal. Que não tem o direito de ir e vir. Como eu que sou uma mulher negra, a nossa cor incomoda muito. Nós somos mais atingidos porque também entra feminicídio, entra a violência contra os jovens da periferia. Então democracia pra mim é direito de ter direito, que a gente não está tendo mais.

Participante M23 (Porto Alegre): Democracia é liberdade. Possibilidade de escolher, de fazer as coisas do jeito que se entende e se poder, inclusive, se organizar pra fazer aquilo que ele vê que deve ser feito.

Participante M30 (Porto Alegre): Liberdade, não tem outra denominação. Isso é liberdade. De tudo, né?! Liberdade de se expressar, liberdade de reivindicar, liberdade de dizer o que pensa, de ouvir também as outras pessoas, o que as pessoas pensam. Liberdade de chegar em um debate e poder se expressar sem ter medo de ser rechaçado ou perseguido. Então não tem outra denominação sem ser liberdade.

Assim como nesse debate em Porto Alegre, no grupo de Belo Horizonte falou-se muito sobre limites da democracia. E esses limites estão associados às dimensões substantivas. Os participantes compartilharam uma ênfase na igualdade – econômica e social – quando argumentaram sobre não haver democracia de fato no Brasil, momento em que trouxeram ao debate, espontaneamente, reflexões sobre o que torna um regime não democrático. É interessante notar que esse foi um tema recorrente, trazido especialmente por ativistas de movimentos que são também moradores de bairros pobres ou de favelas (comunidades), e por pessoas negras, e que o tema se repetiu em diversos grupos (vide, por exemplo, as falas de Participante M20 e Participante M22). Nelas, houve referências a toques de recolher em comunidades – indicando ausência do Estado de direito – e à falta de acesso a direitos e a espaços públicos, em consequência de um racismo fortemente arraigado.

Participante M32 (Belo Horizonte): Mas algumas coisas a gente tira por base de como a nossa história passou, né? A gente é um povo de oralidade, povo de tradição. Então, pra gente saber o que vai acontecer no futuro, a gente precisa olhar um pouquinho pro passado. (...) Então, falando disso pra definir hoje, eu sinto uma angústia, não só porque eu sou preto de pele, mas uma forma de consciência negra, consciência afro-brasileira, de entendimento que morar em comunidade hoje, a gente pode falar que a gente está em um estado democrático, a gente pode até falar isso. A partir de tal horário, a gente tem alguns [...] que oferecem medo para as pessoas. Sabe, a gente está num estado democrático, sem dúvida. Agora, como ela é aplicada, como a democracia é aplicada é um pouco complicado (...).

Dentre os grupos com perfil de participantes de movimentos sociais, o que mais elaborou sobre aspectos procedimentais associados à democracia foi o grupo de Porto Alegre, no qual houve a participação de ativistas do movimento sindical e uma associação entre democracia e participação no local de trabalho:

Participante M23 (Porto Alegre): Acho que outro aspecto assim, que é estranho a gente pensar, mas não é só democracia política, que a democracia acaba quando entra dentro de uma fábrica. Na rua, tu tens liberdade, dentro do teu trabalho, do teu emprego não tem liberdade de expressão, não pode dizer o que tu pensas. Enfim, então pensar uma democracia nesse sentido de cidadania, do poder se expressar inclusive no local de trabalho; não o ato de ser oprimido, onde se tu disseres qualquer coisa, podes perder o emprego ou ser punido. Enfim, então eu acho que esse aspecto da democracia não é só na democracia política, de votação, etc. Mas são relações democráticas que se estabeleçam com igualdade de direitos mesmo. Não, pelo fato de ser o dono da empresa, vai impor que todos aí obedeçam como tal ou fazer o que ele determina. A ideia de poder confrontar e conversar dentro de um local como esse acho que é fundamental.

Participante M33 (Porto Alegre): É como o companheiro que falou, né?! Acho que como a gente tem a liberdade aqui fora, a gente deveria ter dentro das empresas. Porque eu trabalhei a vida inteira dentro de uma empresa privada também, onde eu já tinha uma certa liberdade, porque eu me impus essa condição, sabe? Eu era de um certo partido e eu fazia que meu ex-patrão me respeitasse por eu ser daquele partido. Então, eles foram ao longo dos anos... - eu trabalhei 30 anos para essa empresa -, então, ao longo dos anos, eles foram vendo que eu não ia fazer o que eles quisessem. (...) Então eu tinha liberdade de levar quem eu quisesse lá pra fazer política lá dentro, com os trabalhadores em tempo de eleição, né. Então a gente tem que quebrar isso. Não só aqui fora e do portão pra dentro não pode fazer mais nada, fica reprimida. Então a liberdade tu tens que ter tanto aqui fora como dentro. E a liberdade que a gente quer é fazer essa cobrança dos governos e ter o direito de se manifestar, direito de gritar, de fazer o que a gente faz sempre, sem a repressão policial pra cima da gente. A gente sofreu muito com isso né? Então acho que a gente tem o direito de ter esse direito de exigir os nossos direitos. Porque, a maioria das vezes, não somos nós que botamos aquele governante lá e a gente tem que estar passando por tudo isso.

Participante M24 (Porto Alegre): Eu meio que já tinha dado... entrado nessa linha na pergunta anterior. Que é isso, eu não acredito nisso que tu falaste , sabe, de ter a liberdade não só na rua, mas dentro dos locais de trabalho. Isso passa pelo fim dessa lógica capitalista predatória que a gente vive, sabe. Não tem como a gente pensar em democracia se meia dúzia detém a renda do resto e o resto se vira com 10% de toda a renda produzida. Não tem como pensar em um país democrático se a maior parte da população não consegue, não tem jeito de dizer o que pensa dentro do local de trabalho porque tem medo de perder o emprego. Isso quando tem emprego, porque enfim... precarização a mil e tudo que a gente já sabe. Então não dá pra pensar em democracia sem acesso ao trabalho, sem acesso à renda, sem acesso à saúde, a uma vida digna, alimentação e todos esses aspectos.

A democracia associada a procedimentos também aparece no grupo de Montes Claros, em que estavam militantes do movimento estudantil. Eles debateram sobre procedimentos de participação direta e necessidade de organização nas bases:

Participante M25 (Montes Claros): Acredito que outro ponto importante seja... o direito não só de falar, mas o direito a tomar decisões, através de plebiscito de... de... esqueci o outro tipo de...

Participante M27 (Montes Claros): Referendo?

Participante M25 (Montes Claros): Referendo, isso! Então assim, eu acho que também é importante ter mão da população dentro das decisões que são tomadas no país, entende?

Participante M27 (Montes Claros): E respeitar. Eu acredito, as estruturas democráticas são importantes, porque, por exemplo, o processo de impeachment foi um processo muito... não ficou tão claro, faltou transparência. (...) Então é importante que exista transparência dentro da democracia.

Participante M28 (Montes Claros): Eu creio que... pra ter uma democracia que funcione, a gente tem que ter participação popular. Como ele disse, o respeito às instituições, como ela disse e... essa organização, no meu ponto de vista, essa participação popular não só a nível de referendo, de... como que chama o outro?

Participante M25 (Montes Claros): Plebiscito.

Participante M28 (Montes Claros): Plebiscito, é, plebiscitos... Mas, por exemplo, organizações dentro das cidades, sabe? Começando no bairro, do bairro pra cidade, da cidade pra região, da região pro estado. Não, tipo... se, por exemplo, eu moro num bairro, aí não tem organização política nenhuma. Por exemplo, se eu quiser reclamar de alguma coisa eu tenho que ir lá na porta da prefeitura reclamar, tipo, porque ninguém vai até me atender, vai me mandar me tirar de lá, e aí fica nessa aí... eu acho que tem que ter organização...

Participante M25 (Montes Claros): de base.

Participante M28 (Montes Claros): organização de base, isso. Organização das massas.

Também nesse grupo de participantes mais jovens, a contraposição entre regimes autoritários e democráticos se fundamentou em preocupações tanto com aspectos substantivos quanto procedimentais, não raro articulando essas diferentes dimensões. Em termos de procedimento, os estudantes universitários associaram regimes autoritários a lideranças que fecharam o Congresso, usando exemplos de lideranças internacionais como Orbán, na Hungria, e Erdogan, na Turquia. Em termos de conteúdo, enfatizaram a ausência de direitos civis em regimes autoritários, mencionando tanto a falta de liberdade de expressão como criminalização de grupos e preconceito contra populações específicas marcadas por diferenças de orientação sexual e racializadas. Uma jovem defendeu a ideia de que parlamentares expressando posições racistas, homofóbicas, misóginas, no Congresso, seria destrutivo para a democracia, na medida em que essas poderiam até ser opiniões pessoais, mas não a tônica dos debates públicos.

Os grupos de movimentos em Montes Claros e em Porto Alegre compartilharam uma preocupação com a legitimidade de regimes autoritários entre a população, associando-a à percepção de que havia maior segurança (“e que era melhor naquele tempo... justifica por isso, né?”). Em Montes Claros, os participantes analisaram que pessoas que defendem regimes militares os associam a ideias como uma nação forte, poderio militar, guerreiros, heróis, ídolos portadores de virilidade e força. Esse tema está, ainda, associado à capacidade de reprimir o crime ou pessoas indesejáveis.

Como síntese, entre os grupos de movimentos tem-se a discussão da democracia como algo substantivo, sustentada por objetivos e resultados em termos de inclusão social e igualdade, que aparece sobreposta a uma concepção de democracia como atrelada a direitos civis e a direitos sociais, sem os quais a própria democracia só existiria formalmente. De fato, nesses grupos apareceu de modo particularmente forte a ideia de que a democracia não existe de fato, na medida em que o Estado não está presente ou não funciona segundo as regras em diversas áreas ou para populações negras do país. Por fim, um elemento importante que aparece nos três grupos de movimentos é a menção à necessidade de organização e de mobilização, seja na base, no bairro ou no local de trabalho. Esse tema não aparece associado à democracia em nenhum outro grupo.

Associações

Os grupos com perfil de participação em associações reuniram pessoas com vínculos a organizações com características diversas: um coletivo desportivo, uma ONG ambientalista, cooperativas de trabalho, maçonaria, grupo religioso. Nesses grupos, participaram as pessoas ideologicamente localizadas mais ao centro e à direita. No grupo realizado em Belo Horizonte, buscamos reunir um público de prática associativa mais ligada à assistência direta entre participantes e tivemos também a presença de uma pessoa ligada a ativismo religioso. No grupo realizado na periferia de São Paulo, buscamos jovens articulados em associações e recrutamos pessoas engajadas em associações desportivas e uma associada a uma organização ambientalista internacional. Vários desses jovens tinham também participado de protestos de rua a partir de 2013.

Em que pese a diferença dos perfis, inclusive econômicos, entre os dois grupos focais realizados, não foi difícil, na análise, encontrar alguns padrões nos debates: a predominância de uma visão procedimental de democracia, à qual se referem como algo distante e associado à escolha de governantes; e a marginalidade do tema direitos sociais como aspecto substantivo da democracia, havendo prevalência de conteúdos relacionados a direitos civis e direitos políticos. Outro aspecto distintivo desses dois grupos foi a discussão de democracia associada ao Estado de direito.

Também se sobressaiu, nesses grupos, a relevância das ideologias políticas para as percepções sobre democracia. Em Belo Horizonte, o participante de grupo religioso evangélico tinha um posicionamento ideológico de esquerda e suas falas, por vezes, aproximavam-se daquelas encontradas nos grupos focais com conselheiros, enfatizando mecanismos de democracia direta e de participação. Em São Paulo, a ativista ambiental também se mostrou mais à esquerda do que seus colegas, trazendo temas como a representação de diversidades como centrais para a democracia. A presença de pessoas com opiniões diferentes gerou pontos de tensionamento e a necessidade de alguns participantes melhor explicarem seus argumentos e pontos de vista. A interação entre os participantes tornou visível a relevância dos posicionamentos ideológicos para entendimentos sobre democracia no Brasil contemporâneo, para além dos perfis de participação, nos levando a olhar com mais cuidado também para o posicionamento político-ideológico dos outros grupos.

A visão de democracia associada a algo distante, intangível e caracterizada pelo procedimento de escolha de governantes pode ser vista no diálogo a seguir, travado entre jovens paulistanos moradores de bairro na periferia:

Participante A33 (São Paulo): A primeira coisa que aparece na minha cabeça é que são as pessoas que definem o que elas querem como representante, porque democracia, eu acredito que seja isso. As pessoas tomando posições sobre quem vai representar elas.

Participante A36 (São Paulo): A primeira coisa que vem na minha cabeça é “uma grande ilusão”.

Moderador: Ilusão!?

Participante A36 (São Paulo): Não existe.

Moderador: Não existe?

Participante A36 (São Paulo): Não pra gente!

Participante A34 (São Paulo): Uma raiva.

Moderador: E de onde vem essa raiva?

Participante A34 (São Paulo): Desses políticos.

Participante A35 (São Paulo): É uma coisa que não diferencia em nada pra mim, não se importa. (...) Não importa, sendo que eu já estou lascado de qualquer jeito, então, minha opinião não vai mudar nada.

A menção ao aspecto procedimental de escolha de governantes e aos aspectos substantivos relacionados aos direitos civis, políticos e ao Estado de direito estão presentes na conversa abaixo, do grupo de Belo Horizonte, formado por adultos, membros de associações de perfil assistencial e cooperativo. Apesar das diferenças com as falas do bloco anterior, repete-se a percepção de distância da política e da democracia, mesmo por pessoas que tentaram envolver-se na política partidária, mas se depararam com entraves, estruturas burocratizadas e comprometidas por interesses econômicos, e acabam expressando uma visão bastante negativa dos partidos:

Participante A37 (Belo Horizonte): Pra mim a democracia, ela é resumida em uma palavra: é a liberdade de cada um, de pensar, de agir, isso é democracia. E eu acho que, com todas as dificuldades que esse país passa, a gente ainda tem esse quinhão de falar que nós estamos vivendo num país democrático.

Participante A38 (Belo Horizonte): Democracia é um direito de você ter direitos e obrigações, não tenho dúvida disso. O problema é distinguir o que são direitos e o que são obrigações, que as pessoas confundem muito essas situações. (...) É aquela democracia que é aplicada a todos, a lei é aplicada a Antônio, João e Maria, os direitos sociais são aplicados a Antônio, João e a Maria. E a democracia, quando ela tende para um lado só, os direitos e deveres para uns, isso não é democracia, nós sabemos perfeitamente disso (...).

Esses debates ecoaram algumas das polêmicas do Brasil contemporâneo. Por exemplo, recentes questionamentos sobre a existência de “direitos demais” no país, sobretudo após a Constituição Federal de 1988, foram mencionados quando o participante desse mesmo grupo falou de uma democracia em que havia “só os direitos e deveres para uns”. A conversa seguiu voltando-se para a desconfiança nos partidos:

Participante A37 (Belo Horizonte): Nós temos dois lados aí: o lado do partido, porque se eu, que eu sou uma pessoa normal, num mundo da população, um cidadão, se eu quiser ir num partido e me candidatar, existe uma burocracia tão grande, porque ali a panela já está pronta, quem vai ser eleito, quem é que vai concorrer, está entendendo? Aí é uma questão de ser refém; a outra é de que empresários, banqueiros, seja lá o que for, bancam essas campanhas em função de benefícios. O cara já entra pra lá comprometido com essa classe. Então, pra mim, como que seria a democracia política: a gente acabar com essa questão, seria a questão do concurso público. Todo mundo poderia participar, poderia fazer parte de um concurso público para deputado, para senador, para vereador. É democrático isso! Não teriam esses jogos, essas coisas, essas redes.

Participante A39 (Belo Horizonte): Eu acho que tem muitos partidos hoje. São muitos partidos e cada um puxando para o seu lado, o seu individual e deveria mesmo pensar num todo, no Brasil. Esse mundo de partido é o que destrói.

Nas falas acima, é possível identificar uma diferença significativa em relação aos grupos anteriores no que concerne à concepção de democracia, que aparece aqui como um procedimento de escolha de representantes mais distante e menos tangível. Há também uma concepção de liberdade genérica quando os participantes falam sobre os aspectos substantivos. Todavia, no grupo de Belo Horizonte, estava presente um participante evangélico de perfil à esquerda. Quando ele entrou na conversa, houve uma mudança na tônica da discussão e sua fala indicou uma concepção de democracia como um procedimento que garante participação direta e controle social - termo comum no jargão da esquerda que se refere aos mecanismos para que a cidadania acompanhe de perto a atuação do poder público. O termo gerou questionamento por outro participante, reproduzindo no grupo uma disputa que se via nas ruas, no período de realização do grupo focal:

Participante A40 (Belo Horizonte): Tem duas questões para se voltar a o que é uma democracia saudável. Eu acho que tem elementos que são fundamentais: em primeiro lugar é, a democracia não pode começar e terminar no voto, no dia que você vai lá, de dois em dois anos apertar um botão. Eu acho que democracia, ela se torna mais saudável quando você tem mais mecanismo de controle social. Você tem mais mecanismo de transparência pública.

Participante A41 (Belo Horizonte): O que você está chamando de controle social?

Participante A40 (Belo Horizonte): Por exemplo, eu ter acesso ao que a prefeitura de BH investe, os dados, por exemplo, do transporte público de BH, que é aquela caixa preta. E aí aumenta a passagem que é 4,50, e aí você tenta fazer auditoria e aí se dá um jeito de não se ter acesso aos números, e aumenta o preço da passagem e a gente não sabe o que foi isso na base. Isso é controle social, a gente ter controle. E como se exerce esse controle? Você pode exercer o controle social, em primeiro lugar você melhorando os mecanismos de democracia direta. Você vai em democracias mais consolidadas, você tem - no caso da Suíça -, você tem 10 plebiscitos pra discutir tema A, B ou C. Por mais que você tenha uma representação ali de deputados, o plebiscito se impõe, a opinião pública se impõe em relação a isso, se impõe à posição do partido A, B ou C ou do interesse do parlamentar (...). Eu acho que democracia é isso, é você efetivamente fazer com que as pessoas participem e criar os mecanismos sociais de controle e participação e transparência de democracia direta, e depender menos da representação política, porque ela pode ser viciada pelo grande empresário, pelo grande banqueiro, e que acaba sequestrando o debate público para o que eles querem e não para o interesse coletivo.

Participante A37 (Belo Horizonte): Os próprios governos passados, seja lá de quantos anos aí, não era interesse de que a população fizesse esse projeto seu de participação social, de conhecimento social, porque a partir do momento que a sociedade toma esse conhecimento amplo, eles não teriam sido eleitos. Concordam?

Participante A41 (Belo Horizonte): Eu tenho pouco a acrescentar. O Participante A40 foi muito feliz nas palavras dele. Eu acho que o meu pensamento é isso, tem que passar pela educação. Tem que fazer um investimento pra daqui 30, 40, 100 anos, está mudando, talvez os nossos filhos...

Outro elemento distintivo desses grupos diz respeito às justificativas elaboradas na discussão sobre a possibilidade de substituição da democracia por outras formas de governo. Ao passo que, nos grupos de conselhos e de movimentos, houve uma crítica da democracia formal na chave da ausência de direitos sociais, nesses grupos a conversa sobre outra forma de governo, que não a democracia, girou em torno da presença ou ausência de direitos civis. No grupo de São Paulo, alguns participantes justificaram a necessidade de rompimento com a democracia em casos de desordem social, e outros participantes discordaram, apontando que em regimes autoritários não há garantia de direitos civis.

Participante A33 (São Paulo): Eu acho que um período de tempo pra poder arrumar, é ok, mas, um governo voltado só nisso [governo autoritário], eu acho que não dá certo. A gente lutou muito pra cada um poder se expressar da forma que quer. Então, perder isso de novo não parece certo.

Participante A33 (São Paulo): É porque assim, por exemplo, se tá tendo muita bagunça, se tá muita gente roubando, tá tendo muita criminalidade, tá tendo é... suborno, sabe? Um problema generalizado que acaba sendo difícil conviver com as próprias pessoas em si, é... tem um tempo que alguém controle isso, que nem um golpe de Estado, que faça com que as pessoas se acalmem para depois voltar à democracia de novo, eu acho é aceitável. Mas perder a nossa liberdade, eu acho errado.

(...)

Moderador: Em qual situação você acha que isso seria justificável?

Participante A34 (São Paulo): Ah, tirar o nosso... tirar o nosso direito de viver, do jeito que ele tá querendo dizer aí...

Esclarecendo melhor o que seria a diferença entre os dois sistemas para um dos participantes, os outros formularam a explicação a seguir:

Participante A33 (São Paulo): Em um, você tem a sua opinião para poder falar as suas ideias, escolher alguém que representa as suas ideias. No outro, vai ter uma pessoa que vai mandar você fazer o que... vai mandar o que é certo e o que é errado...

Participante A36 (São Paulo): É isso ou isso.

Participante A33 (São Paulo): ...e você tem que seguir daquele jeito.

Participante A35 (São Paulo): Senão eles largam o aço?

Participante A34 (São Paulo): Te prende, te tortura...

Participante A35 (São Paulo): Então eu prefiro... ...esse daqui mesmo, esse daqui...

Participante A34 (São Paulo): Tá ruim, mas tá bão!

Participante A42 (São Paulo): Nada tá ruim que não possa piorar! (risos)

Participante A36 (São Paulo): A minha opinião é que nunca, nada justifica um governo autoritário. Não é assim que arruma alguma coisa, porque aí a gente não tem a representatividade das diversidades, é só um cara que manda e os outros obedecem. Não, isso não é justificável em circunstância nenhuma!

A fala final, de ativista ambiental, novamente deixou entrever diferenças entre membros desses grupos - de perfil bastante diversificado - sobre democracia e regimes não democráticos. Também nesse caso, a voz dissonante tinha um perfil ideológico mais à esquerda, e o argumento usado era alinhado com debates sobre representatividade na política, bastante identificado com demandas de grupos de esquerda no Brasil contemporâneo. Isso, novamente, apontou para a hipótese de que posicionamento ideológico seja um elemento importante para orientar visões sobre democracia no Brasil contemporâneo. Recorrendo a um termo empregado por Della Porta (2009)Della Porta, D. (ed.). Democracy in social movements. London: Palgrave Macmillan UK, 2009., pode-se dizer que as tradições políticas dos grupos são relevantes para visões sobre democracia, para além do formato de participação. Nesse trecho, vê-se também como, ao fazer esforços para apresentar argumentos para colegas de grupo, as pessoas detalharam os argumentos em torno de suas preferências e, por vezes, as deslocaram a partir da troca de ideias. Trata-se de alguns dos motivos pelos quais os grupos focais têm se mostrado uma metodologia interessante para coletas de dados sobre percepções políticas.

Considerações finais

A pesquisa com grupos focais tem como objetivo aprofundar e aportar nuances a achados de pesquisa produzidos com diferentes desenhos, podendo indicar hipóteses e caminhos analíticos. Apesar de não produzir generalizações – dada a característica não amostral dos grupos –, é possível apontar algumas tendências perceptíveis nas análises dos grupos e compará-las com achados de pesquisas anteriores ou gerar hipóteses para pesquisas futuras. Além disso, a partir das conversas dos grupos, temos informações mais densas e completas sobre como as pessoas entendem democracia e que sentido nativo dão a esse conceito tão trabalhado em diferentes formatos de pesquisa, que não raro partem de premissas teórico-normativas sobre o que ela significa.

De modo geral, os grupos focais confirmaram a percepção da literatura sobre as conexões entre o tipo de participação política e as percepções sobre democracia dos ativistas. Não é tarefa simples apontar as direções dessas conexões, de modo que a percepção de Della Porta (2009)Della Porta, D. (ed.). Democracy in social movements. London: Palgrave Macmillan UK, 2009. de que concepções e práticas democráticas influenciam-se mutuamente se confirma na pesquisa relatada neste artigo. Em síntese, a partir dos dados produzidos, pode-se afirmar que entre grupos de conselheiros, houve ênfase na participação e na deliberação, sem deixar de atentar para a garantia de direitos sociais e econômicos; ativistas de movimentos enfatizaram a dimensão substantiva ao tender a identificar a democracia com a superação de desigualdades sociais e econômicas. Já os grupos de associações, apesar de bastante diversos, foram aqueles em que emergiu uma visão mais procedimental da democracia, ainda que, por vezes, pontuados por questões de substância como direitos iguais. Ao longo da conclusão, os grupos foram sintetizados a partir dessas linhas gerais, sempre levando em conta que houve variações no interior de cada perfil e que grupos focais são uma boa metodologia para gerar hipóteses e compreender sentidos, não para realizar generalizações.

Assim, se representarmos procedimento e substância como um contínuo, tem-se, entre os grupos focais realizados, ativistas de movimentos situados no campo da substância, os grupos de conselheiros em posição intermediária por articularem elementos de ambos, e os membros de associações situados no campo do procedimento.

Figura 1
: Entre substância e procedimento

Nos três grupos de pessoas com histórico de participação institucional em conselhos de direitos, viu-se associação da democracia ao procedimento com ênfase na participação direta, mas não só, pois ao lado dela figuram preocupações com a qualidade da deliberação e com questões substantivas, incluindo direitos civis (liberdade de expressão), sociais e econômicos. A falta de acesso a tais direitos dificulta, inclusive, a participação isonômica entre cidadãos. Trata-se de cidadãos que apresentam discurso crítico à democracia representativa, novamente enfatizando problemas relativos à prestação de contas dos representantes e ao controle social pela população.

Nos três grupos de conselhos, os debates sobre regimes não democráticos renderam pouco, já que a maioria dos integrantes descartou a possibilidade. Porém, ao falarem do tema, tenderam a enfatizar, como problema, a restrição a procedimentos democráticos relativos à participação direta e a debates públicos, ao lado da dimensão de conteúdo relativa à liberdade de expressão. Faz sentido para um grupo de pessoas engajadas na participação institucional que a dimensão participativa e discursiva seja tão enfatizada. Essa convergência é coerente com os achados de Della Porta (2009)Della Porta, D. (ed.). Democracy in social movements. London: Palgrave Macmillan UK, 2009., segundo a qual grupos enfatizam elementos democráticos que praticam ou buscam praticar. De forma similar, Mendonça (2018)Mendonça, R. F. “Dimensões democráticas nas jornadas de junho: reflexões sobre a compreensão de democracia entre manifestantes de 2013”. Revista Brasileira de Ciências Sociais, vol. 33, nº 98, 2018., ao estudar percepções sobre democracia entre ativistas de junho de 2013 no Brasil, aponta para a ênfase conferida por militantes nos aspectos de participação e deliberação.

Entre os grupos de movimentos, no qual reunimos movimentos sociais com o perfil de centro-esquerda - padrão desse tipo de ativismo após a redemocratização no Brasil –, houve forte ênfase nas dimensões substantivas da democracia, em especial direitos sociais, associados à questão da justiça social, e direitos civis, em especial a liberdade de expressão. Mesmo quando se referiram a procedimentos, eles tenderam a ser avaliados a partir da preocupação com a igualdade econômica e social. A ênfase na igualdade foi encontrada no trabalho de Dagnino et al. (1998)Dagnino, E., et al. “Cultura democrática e cidadania”. Opinião Pública, vol. 5, nº 1, p. 20-71, 1998., em especial entre os grupos por elas identificados como movimentos populares (de bairros, direito à cidade, pela saúde, educação, etc.) e sociais (mulheres, negros) e sindicatos de trabalhadores, e que conformaram um campo-ético-político específico, a partir da democratização brasileira. Ambos os resultados contrastam com aquilo que Moisés (2010)Moisés, J. A. “Os significados da democracia segundo os brasileiros”. Opinião Pública, vol. 16, nº 2, p. 269-309, 2010. encontrou analisando respostas a questões abertas sobre significados da democracia, coletadas via survey: de que havia pouca ênfase na igualdade. Os resultados desta pesquisa parecem apontar para a hipótese de que esse é um tema mais caro entre ativistas e movimentos sociais do que entre a população em geral.

Nos grupos de movimentos, também ficou evidente uma conexão entre os limites da democracia em termos de conteúdo – igualdade social e econômica – e a percepção de que não há de fato democracia, especialmente importante entre moradores de periferias e pessoas negras nos grupos de Belo Horizonte e Porto Alegre. Apesar de não ser possível generalizar sobre esse tema, é interessante notar que a ausência do Estado ou sua atuação seletiva aparecem como elementos capazes de minar a legitimidade democrática. Também de maneira similar ao identificado por Dagnino e suas coautoras, em 1998, os resultados apontam para algumas diferenças entre os debates travados nos grupos de movimentos e aqueles formados por pessoas com prática associativa mais tradicional, relacionada a associações de ajuda mútua e assistência, a associações de cunho econômico, e desportivas. Ainda que os participantes nesses grupos focais tenham apresentado maior diversidade do que nos anteriores, neles encontrou-se uma visão mais procedimental da democracia, associada à escolha de governantes e à vigência do Estado de direito – no sentido de que a lei deve ser igual para todos –, e menos ênfase em questões substantivas. No geral, no grupo de Belo Horizonte, mesmo entre pessoas que tinham também militância partidária, os percalços para conseguir apoio e as diferenças de recursos nas campanhas levaram a uma percepção da política como algo distante, articulada a uma visão dos políticos como corruptos. Isso pode estar relacionado a uma maior presença de participantes de centro e de direita nesses grupos, o que também é sinalizado pela ênfase na falta de ética na política.

De fato, nos grupos de perfil associativo emergiram discursos mais críticos aos políticos em geral e maior ênfase na corrupção. Participantes apontaram a não aplicação igualitária da lei para políticos como problema central para a corrosão da democracia – o que poderia levar a regimes não democráticos. Em paralelo, houve ênfase sobre os impactos do poder econômico na competição eleitoral, trazendo um debate a respeito da desigualdade econômica, mas voltado sobretudo a como isso afeta o acesso a cargos representativos, minando a possibilidade de entrada na política de pessoas sem conexões prévias com atores economicamente fortes ou com as burocracias partidárias. Já no grupo realizado entre jovens da periferia de São Paulo, houve divergências entre uma participante de ONG ambientalista e um participante de coletivos desportivos, tendo o último enfatizado a possibilidade de ruptura democrática sob o argumento de restaurar a ordem. Há, portanto, diferenças marcantes entre os debates ocorridos nos grupos com esse perfil.

A explicação para essas diferenças aponta que as tradições políticas que marcam as associações, e seus membros individualmente, também são elementos importantes para as visões de democracia. Aqui tem-se um fator que se aproxima daqueles identificados por Della Porta (2009)Della Porta, D. (ed.). Democracy in social movements. London: Palgrave Macmillan UK, 2009. para explicar as diferenças de visões sobre democracia entre os grupos do Movimento de Justiça Global Europeu. Naquele trabalho, foram identificadas variações dentro da própria esquerda. No Brasil de 2019, o que se viu foi a presença de uma variedade mais ampla de tradições políticas emergindo nos debates, que foram facilmente identificadas a partir de termos, sentidos e escolhas dos participantes sobre pessoas de sua confiança.

Não é inédita, nas análises sobre protestos pós-2013, a afirmação de que houve uma pluralização dos ativismos no país. Bringel e Pleyers (2015)Bringel, B.; Pleyers, G. “Junho de 2013... dois anos depois”. Nueva Sociedad, número Especial em Português, 2015, p. 4-17, 2015. falam em “abertura societária” após os protestos de 2013, que permitiu a chegada, às ruas, de atores que haviam estado distantes delas. Tatagiba e Galvão (2019)Tatagiba, L. F.; Galvão, A. “Os protestos no Brasil em tempos de crise (2011-2016)”. Opinião Pública, vol. 25, nº 1, p. 63-96. 2019., questionando-se sobre padrões de protestos, encontram dinâmicas de polarização política (o que denominam eixos PT e anti-PT), mas também uma heterogeneização de atores e reivindicações, adicionando questões identitárias a demandas de classe. Houve a emergência de movimentos sociais de direita rompendo com o padrão de ativismo de centro-esquerda construído após a redemocratização (Silva; Pereira, 2020Silva, M. K.; Pereira, M. M. “Movimentos e contramovimentos sociais: o caráter relacional da conflitualidade social”. Revista Brasileira de Sociologia, vol. 8, nº 20, p. 26-49, 2020.; Mendonça; Rodrigues, 2021). Os resultados deste artigo aportam elementos para afirmarmos que essa mudança no padrão de ativismo teve impactos também nos cenários de organizações de ativistas. Ou bem houve uma ampliação do espectro ideológico que se mobiliza em associações, como parecem indicar as conversas no grupo de jovens que participam de grupos desportivos, ou bem essa variação já existia, mas esteve fora do radar de analistas – como poderiam indicar as trajetórias de grupos assistenciais, captadas no grupo focal de Belo Horizonte. Afirmações mais contundentes precisarão ser embasadas em mais estudos. Assim, tendo em mente que grupos focais não falam sobre o universo da população, mas permitem que tracemos hipóteses embasadas em pesquisas a partir dos debates dos grupos associativos, aponta-se aqui a hipótese de que, para além do formato da participação, as tradições ideológicas são um elemento relevante para organizar as visões de democracia no país. Esse não é necessariamente o único elemento, mas pode ser apontado como um elemento a ser levado em conta no Brasil contemporâneo. E a presença dessa questão distingue o cenário participativo atual daquele encontrado por Dagnino et al., nos anos 1990, no qual, apesar das diferenças, havia uma certa homogeneidade ideológica entre os participantes. Há, portanto, espaço para novas investigações na área, com outras metodologias, tanto qualitativas quanto quantitativas, que possam aprofundar, com o método dos grupos focais ou com outros, essa agenda de pesquisa sobre conexões entre participação e percepções sobre democracia.

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  • White, J. “Thematization and collective positioning in everyday political talk”. British Journal of Political Science, vol. 39, nº 4, p. 699-709, 2009.
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    No geral, grupos da “velha esquerda” (partidos, sindicatos) não veem incompatibilidade entre participação e delegação; grupos da “nova esquerda” associam participação a auto-organização e democracia direta. Grupos de solidariedade, por fim, percebem suas práticas como pré-figurativas, sendo o ativismo mesmo uma “escola de democracia” (Della Porta, 2009Della Porta, D. (ed.). Democracy in social movements. London: Palgrave Macmillan UK, 2009.).
  • 6
    A identificação de ideologia foi feita de duas formas: em questionário antes da reunião, participantes apontaram posicionamento ideológico com valor entre 1 (mais à esquerda) e 10 (mais à direita). Além disso, durante os grupos pedimos para indicar pessoas públicas em quem confiavam, com figuras de diversos perfis ideológicos.
  • 7
    As outras perguntas eram: i. Ao falar em democracia no Brasil, qual é a primeira coisa que lhes vem à mente? - Que sentimentos lhes desperta? ii. Se fôssemos fazer um balanço do funcionamento da democracia no Brasil desde a década de 1980, qual o seu grau de satisfação? Por quê? iii. Algumas pessoas me disseram que, sob certas circunstâncias, seria justificado que haja um golpe militar. O que você acha? Sob que circunstâncias? a. Corrupção no governo; b. Crise econômica; c. Crise política; d. Alto desemprego; e. Protestos sociais; f. Insegurança; iv. Você trocaria a democracia por outra forma de governo? Qual? Por quê? v. (Perguntar para estimular debate). Quais motivos te levariam a isso? Com quem você conversa sobre esses assuntos?; vi. Agora vamos pedir para vocês olharem a lista e nos dizerem em quais dessas pessoas vocês confiam; e, em uma palavra, explicar por que confiam; vii. Aqui temos uma lista de instituições, vamos perguntar em quais confiam. E também pedir para vocês dizerem em uma frase - no que confia – e uma frase para dizer no que não confia, por que não confia; vii. Como você avalia partidos políticos no Brasil? Que coisas positivas você vê? E negativas? Você se identifica com algum? Por quê?; ix. Os políticos contribuem para melhorar a vida da população? x. Dessa conversa, o que fica para você?
  • 8
    Mendonça (2018)Mendonça, R. F. “Dimensões democráticas nas jornadas de junho: reflexões sobre a compreensão de democracia entre manifestantes de 2013”. Revista Brasileira de Ciências Sociais, vol. 33, nº 98, 2018. diferencia suas dimensões daquelas propostas por Morlino (2015), afirmando estar mais interessado nos sentidos - historicamente situados e variáveis - apresentados pelos ativistas, enquanto o colega propôs categorias para a avaliação da democracia em funcionamento. Dado se tratar de olhares para o mesmo fenômeno - a democracia - e o precedente do emprego das categorias de Morlino por Moisés (2010)Moisés, J. A. “Os significados da democracia segundo os brasileiros”. Opinião Pública, vol. 16, nº 2, p. 269-309, 2010., considerou-se possível articular as propostas.
  • 1
    Somos gratas ao Instituto da Democracia e da Democratização da Comunicação (INCT - IDDC) e aos seus financiadores, Fapemig (APQ-03612-17), CNPq (465535/2014-3) e Capes, pelo apoio que concederam ao projeto que possibilitou a eleboração deste artigo. Agradecemos, especialmente, aos atentos comentários da professora Luciana Tatagiba, durante o 12° Encontro da Associação Brasileira de Ciência Política (ABCP). Também manifestamos nossos agradecimentos aos pareceristas anônimos pela leitura instigante deste artigo.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    03 Fev 2023
  • Data do Fascículo
    Sep-Dec 2022

Histórico

  • Recebido
    15 Abr 2021
  • Aceito
    11 Ago 2022
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