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Transformações no debate público sobre a política de drogas (2003-2016): uma análise a partir das publicações do jornal Zero Hora1

Transformations in the public debate about drug policy (2003-2016): an analysis of publications by the newspaper Zero Hora

Transformaciones en el debate público sobre políticas de drogas (2003-2016): un análisis a partir de las noticias publicadas en el diario Zero Hora

Transformations du débat public sur la politique des drogues (2003-2016) : une analyse à partir des articles dans le journal Zero Hora

O objetivo deste artigo é analisar como se estrutura e se transforma o debate público sobre a política de drogas no Brasil entre os anos de 2003 e 2016. Para responder a essa problematização, foram analisados 306 materiais publicados no jornal Zero Hora. A análise demonstra que houve mudanças significativas na configuração do debate público sobre o "problema das drogas" no país na última década. Mais especificamente, é demonstrado que o debate público tende a ser mais heterogêneo, em termos de agentes e de enquadramentos, do que aquilo que se expressa na política de drogas vigente. Identificar e analisar essa heterogeneidade é importante para a compreensão das controvérsias e das posições em disputa sobre a política de drogas.

política de drogas; mídia; debate público; antiproibicionismo; proibicionismo


Abstract

The objective of this article is to analyze the structure and evolution of public debate on drug policy in Brazil between 2003 and 2016. To do so we analyzed 306 articles in the newspaper Zero Hora. The analysis shows significant changes in the public debate on the "drug problem" in the country in the past decade. More specifically, it shows that public debate tends to be more heterogeneous, in terms of agents and framings, than what is expressed in the current drug policy. Identifying and analyzing this heterogeneity is important for understanding the controversies and positions in dispute concerning drug policy.

drug policy; media; public debate; anti-prohibitionism; prohibitionism

Resumen

El objetivo de este artículo es analizar cómo se estructura y transforma el debate público sobre políticas de drogas en Brasil entre 2003 y 2016. Para ello, hemos analizado 306 noticias publicadas en el diario Zero Hora. El análisis demuestra que hubo cambios significativos en la configuración del debate público sobre el "problema de las drogas" en el país en la última década. Más específicamente, se muestra que, en términos de agentes y encuadres, el debate público tiende a ser más heterogéneo de lo que se expresa en la política de drogas vigente. Identificar y analizar esta heterogeneidad es importante para comprender las controversias y posiciones en disputa sobre las políticas de drogas.

política de drogas; medios de comunicación; debate público; anti-prohibicionismo; prohibicionismo

Résumé

Cet article vise à analyser la structure et l'évolution du débat public sur la politique des drogues au Brésil entre 2003 et 2016. À cette fin, nous avons analysé 306 articles dans le journal Zero Hora. L'analyse montre que le débat public sur le « problème des drogues » a traversé d'importants changements dans le pays au cours de la dernière décennie. Elle montre que le débat public tend à être plus hétérogène, en termes d'agents et de cadrage, que ce qui s'exprime dans la politique actuelle en matière de drogues. L'identification et l'analyse de cette hétérogénéité sont importantes pour comprendre les controverses et les positions contestées sur la politique en matière de drogues.

politique des drogues; médias; débat public; anti-prohibitionnisme; prohibitionnisme

Introdução

O paradigma hegemônico nas políticas de drogas de boa parte dos países, especialmente na segunda metade do século XX, foi marcado por um referencial proibicionista e por uma estratégia de ação estatal crescentemente estruturada em torno da chamada "guerra às drogas" ( Rodrigues, 2002Rodrigues, T. M. S. “A infindável guerra americana: Brasil, EUA e o narcotráfico no continente”. São Paulo em Perspectiva, vol. 16, nº 2, p. 102-111, 2002. ; Bokany, 2015Bokany, V. (org.). Drogas no Brasil: entre a saúde e a justiça: proximidades e opiniões. São Paulo: Editora Fundação Perseu Abramo, 2015. Disponível em: < https://fpabramo.org.br/publicacoes/estante/drogas-no-brasil/>. Acesso em: 8 maio 2023.
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; Torcato, 2016Torcato, C. E. M. “A história das drogas e sua proibição no Brasil: da Colônia à República”. Tese de Doutorado em História Social, Universidade de São Paulo (USP), São Paulo, 2016. ). As primeiras décadas do século XXI, no entanto, apresentam transformações significativas nesse cenário, com o crescimento de experiências nacionais e subnacionais de descriminalização da produção e/ou consumo de algumas drogas, particularmente a maconha, em Portugal, Uruguai, Holanda, Canadá, Jamaica, México e EUA ( Hypolito; Azevedo, 2019Hypolito, L. G.; Azevedo, R. G. O mercado formal da cannabis: Holanda, Uruguai e Canadá. In: Azevedo, D. G. (org.). Estudo transdisciplinar das relações de consumo. Jundiaí: Paco, p. 115-132, 2019. ; Campos; Policarpo, 2020Campos, M. S.; Policarpo, F. “Para além da descriminalização: reflexões sobre a política de drogas”. Teoria e Cultura, vol. 15, nº 2, p. 14-27, 2020. Disponível em: < https://doi.org/10.34019/2318-101X.2020.v15.32746>. Acesso em: 8 maio 2023.
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)4 4 Para uma visão panorâmica sobre as políticas de drogas pelo mundo, sob a ótica jornalística, recomenda-se a série de reportagens "Estado alterado" do Jornal A Folha de São Paulo . Disponível em: < https://arte.folha.uol.com.br/mundo/2020/estado-alterado-as-politicas-para-drogas-pelo-mundo/ >. Acesso em: 11 jul. 2022. .

O caso brasileiro, em contraste com esses processos de transformação em âmbito internacional, parece apresentar uma dinâmica distinta. Aqui, apesar de um suposto avanço com a distinção entre usuário e traficante pela Lei n° 11.343 de 2006, que institui o Sistema Nacional de Políticas Públicas sobre Drogas, observa-se a manutenção (e, mesmo, aprofundamento) do proibicionismo e da "guerra às drogas" como eixos estruturantes da política de drogas do país. Como coloca Carvalho (2013Carvalho, S. “Política de Drogas: mudanças e paradigmas (nas trincheiras de uma política criminal com derramamento de sangue: depoimento sobre os danos diretos e colaterais provocados pela guerra às drogas)”. Revista da EMERJ, vol. 16, n° 63 (Edição Especial - Drogas: Dos Perigos da Proibição à Necessidade da Legalização), p. 46-61, out. - dez. 2013. , p. 47), na sua análise da Lei n° 11.343/06,

Identifiquei como vazios (ou lacunas , na linguagem da teoria geral do direito) e dobras de legalidade as estruturas incriminadoras da Lei 11.343/06 que permitem um amplo poder criminalizador às agências da persecução criminal, notadamente a agência policial. Estruturas normativas abertas, contraditórias ou complexas que criam zonas dúbias que são instantaneamente ocupadas pela lógica punitivista e encarceradora.

A literatura identifica o aumento da superpopulação carcerária brasileira como uma das principais consequências do "poder criminalizador" conferido às agências de persecução criminal pela Lei n° 11.343/06 ( Fiore, 2012Fiore, M. “O lugar do Estado na questão das drogas: o paradigma proibicionista e as alternativas”. Novos Estudos - CEBRAP, nº 92, p. 9-21, 2012. Disponível em: < https://doi.org/10.1590/S0101-33002012000100002>. Acesso em: 8 maio 2023.
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; Teixeira et al., 2017Teixeira, M. B., et al. “Tensões paradigmáticas nas políticas públicas sobre drogas: análise da legislação brasileira no período de 2000 a 2016”. Ciência & Saúde Coletiva, vol. 22, nº 5, p. 1455-1466, 2017. ; Campos, 2018Campos, M. S. “O novo nem sempre vem: lei de drogas e encarceramento no Brasil”. Boletim de análise político-institucional, vol. 18, p. 31-37, 2018. , 2019Campos, M. S. Pela metade: a Lei de Drogas no Brasil. São Paulo: Annablume, 2019. ; Borges, 2019Borges, J. Encarceramento em massa. São Paulo: Pólen, 2019. ; Campos; Azevedo, 2020Campos, M. S.; Azevedo, R. G. “A ambiguidade das escolhas: política criminal no Brasil de 1989 a 2016”. Revista de Sociologia e Política, vol. 28, nº 73, p. 1-19, 2020. Disponível em: < https://doi.org/10.1590/1678-987320287302>. Acesso em: 8 maio 2023.
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; Campos; Policarpo, 2020Campos, M. S.; Policarpo, F. “Para além da descriminalização: reflexões sobre a política de drogas”. Teoria e Cultura, vol. 15, nº 2, p. 14-27, 2020. Disponível em: < https://doi.org/10.34019/2318-101X.2020.v15.32746>. Acesso em: 8 maio 2023.
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). Em dez anos de vigência da lei, entre 2006 e 2016, o número de pessoas presas por infrações relacionadas às drogas passou de 13% para 30% do total da população carcerária. Enquanto, em 2005, a população carcerária incriminada por tráfico era de aproximadamente 35 mil pessoas, em 2016 esse número elevou-se para mais de 150 mil pessoas.

Além disso, um fenômeno que se evidencia é a seletividade racial e de classe do encarceramento por crimes relacionados ao tráfico de drogas. A discricionariedade conferida à polícia e ao judiciário em função da não diferenciação explícita entre o que caracteriza uso e tráfico levou ao encarceramento majoritariamente de pessoas pobres e negras, em grande maioria jovens ( Abramovay, 2017Abramovay, P. “Branco é usuário, negro é traficante”. Piseagrama, n° 11, p. 46-51, 2017. Disponível em: < https://piseagrama.org/artigos/branco-e-usuario-negro-e-traficante/>. Acesso em: 8 maio 2023.
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; Borges, 2019Borges, J. Encarceramento em massa. São Paulo: Pólen, 2019. ; Valois, 2019Valois, L. C. O Direito penal da guerra às drogas. 3ª ed. Belo Horizonte: D'Plácido, 2019. ; Sousa; Santos; Apostolidis, 2020). Como sintetizam Campos e Policarpo (2020Campos, M. S.; Policarpo, F. “Para além da descriminalização: reflexões sobre a política de drogas”. Teoria e Cultura, vol. 15, nº 2, p. 14-27, 2020. Disponível em: < https://doi.org/10.34019/2318-101X.2020.v15.32746>. Acesso em: 8 maio 2023.
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, p. 18), "num contexto caracterizado pela aplicação desigual da lei e pela grande seletividade do sistema de justiça criminal (...), a 'dimensão médica' do dispositivo [Lei n° 11.343/06] acabou sendo preterida em prol da dimensão jurídico-punitiva".

O domínio do referencial proibicionista também pode ser identificado pela forma como se dá o debate sobre a legislação referente às drogas no Congresso Nacional no período abordado neste artigo. Nesse sentido, analisando um corpus de 147 proposições apresentadas no Congresso entre os anos 2007 e 2010, Silva e Delduque (2015Silva, M. B.; Delduque, M. C. “Patologização e penalização do uso de drogas: uma análise socioantropológica de proposições legislativas (2007-2010)”. Physis: Revista de Saúde Coletiva, vol. 25, nº 1, p. 231-250, 2015. , p. 246) concluem:

Como a Lei das Drogas de 2006, o conjunto de proposições legislativas apresentadas ao Congresso Nacional até o ano de 2010 também tem como característica a patologização do usuário, embora não aponte nem para a descriminalização nem para a despenalização do mesmo. Não há qualquer vestígio de politização do uso de drogas neste conjunto de documentos oriundos do Poder Legislativo, nem mesmo do modelo de redução de danos ou das propostas de regulação do uso de drogas.

Tal continuidade do referencial proibicionista na estruturação da política de drogas5 5 Cabe destacar que houve algumas propostas legislativas com viés antiproibicionista no período posterior ao estudado por Silva e Delduque (2015) , com destaque para algumas iniciativas legislativas sobre a regulamentação da maconha, como é o caso do PL 7270/2014, PL 7187/2014 e do SUG 8 de 2014. A última é uma iniciativa popular que foi apresentada ao Senado Federal depois de passar pelo portal e-Cidadania ( Kiepper; Esher, 2014 ; Kiepper, 2015) . tenderia a indicar, assim, a ausência de mudanças significativas no que se refere à forma como o "problema das drogas" é construído na sociedade brasileira nas últimas décadas. O objetivo deste artigo é problematizar essa conclusão apressada e, afirma-se, parcialmente equivocada. Mesmo reconhecendo a continuidade do proibicionismo como referencial que hegemoniza a política de drogas brasileira, argumenta-se que houve mudanças significativas na configuração do debate público sobre o "problema das drogas" no país nas últimas décadas6 6 Subjacente à argumentação desenvolvida neste artigo encontram-se pressupostos da sociologia dos problemas públicos ( Lorenc Valcarce, 2005 ; Schillagi, 2011 ; Cefaï, 2017) . . Mais especificamente, argumenta-se que o debate público tende a ser mais heterogêneo, em termos de agentes e de enquadramentos, do que aquilo que se expressa na política de drogas vigente.

Tal argumento problematiza, primeiramente, a interpretação de que haveria um alinhamento direto entre o debate público e a política de drogas, ambos dominados por um proibicionismo homogêneo inquestionável. Tal problematização salienta a relativa autonomia entre a forma como determinado problema público é construído em diferentes arenas no âmbito societário e como ele é construído e tratado no âmbito das arenas da política pública. Como salienta Lorenc Valcarce (2005Lorenc Valcarce, F. "La sociología de los problemas públicos - una perspectiva crítica para el estudio de las relaciones entre la sociedad y la política". Nómadas. Critical Journal of Social and Juridical Sciences, vol. 12, nº 02, 2005. , p. 6):

Cada arena tem (...) suas lógicas próprias. O modo de organização e a dinâmica específica de cada um desses espaços impõem características singulares às seleções que ali se produzem: isto obriga ao investigador a encarar uma sociologia dos diversos campos de produção de representações sobre os problemas públicos e dar conta das relações externas que guardam uns com os outros. (...) Em cada arena, os atores tratarão o problema segundo os critérios específicos de seu campo de ação.

Em segundo lugar, o argumento problematiza a interpretação de que haveria uma ausência de mudança na configuração do debate público, com a manutenção do que a pesquisa "Mídia e Drogas", realizada pela Agência de Notícias dos Direitos da Infância e pelo Programa Nacional de DST/AIDS - Ministério da Saúde (2004, p. 29), concluiu: "A principal tendência na cobertura (...) ainda está em focalizar a relação da droga com a violência e reforçar a repressão como forma correta de enfrentar o fenômeno". Sem negar a adequação dessa conclusão para o momento em que foi feita a pesquisa e a continuidade dessa tendência até os dias atuais, salienta-se a importância de compreender mudanças ocorridas no período analisado neste artigo. Em especial, a emergência e difusão de outras "vozes" que confrontam o proibicionismo predominante na construção do problema público das drogas.

Identificar e analisar essa heterogeneidade é fundamental para que se possa compreender as controvérsias e as posições em disputa sobre a política de drogas. E, em especial, é fundamental para a identificação de agentes e propostas contra-hegemônicas que, mesmo sem ter conseguido maior incidência nos espaços de formulação da política de drogas, têm conseguido produzir deslocamentos significativos no debate público.

Tendo por referência o objetivo e o argumento apresentados acima, define-se o seguinte problema a ser respondido pelo artigo: como se estrutura e se transforma o debate público sobre a política de drogas nas arenas jornalísticas entre os anos de 2003 e 2016?

Para responder a isso, analisa-se como o tema da política de drogas é abordado no jornal Zero Hora. A opção por utilizar o conteúdo jornalístico para analisar o debate público se deve ao fato de os jornais se constituírem, simultaneamente, como arenas públicas7 7 [A]rena pública' pode ser vista como um espaço conflituoso no qual surgem os problemas e se desenvolve uma disputa entre atores de força desigual para impor suas definições ou conduzir ações a respeito do mesmo" ( Schillagi, 2011, p , p. 246). e agentes centrais na estruturação desse debate. De um lado, jornais são arenas disputadas pelos agentes envolvidos nas controvérsias e conflitos sobre o "problema das drogas", na medida em que possibilitam dar visibilidade e reconhecimento a tais agentes e seus argumentos. De outro lado, jornais são agentes centrais na conformação do debate público em três sentidos: primeiramente, ao selecionarem os temas e os agentes que terão acesso às arenas jornalísticas; em segundo lugar, ao construírem e publicarem enquadramentos sobre tais agentes e suas posições; por fim, ao se posicionarem de forma explícita e pública sobre o tema. Como salientam Campos, Feres Jr. e Daflon (2013, p. 9),

Na prática, é muito difícil demarcar nitidamente em que medida e em quais momentos a imprensa atua como ator político ou como administradora do espaço público. Parece-nos que, na verdade, ela exerce na maior parte das vezes ambos os papéis, isto é, ao representar o espaço público ela tenta influir de forma mais eficaz nos destinos que as polêmicas públicas tomam.

O recorte temporal da análise - 2003 a 2016 - se justifica por ser um período no qual a Presidência da República foi ocupada pelo Partido dos Trabalhadores, houve a promulgação de uma nova lei sobre drogas (Lei n° 11.343/06) e de novas políticas públicas, sem, contudo, romper com o referencial proibicionista. Assim, no âmbito da política pública, observa-se mais continuidade do que mudança8 8 Como sintetiza Rodrigues sobre a gestão Lula (2006, p. 171-172), "Apesar de o Presidente Lula, antes de ascender ao cargo, ter firmado um manifesto apresentado à Sessão Especial da ONU de 1998, junto com outros políticos e intelectuais, no qual se opunham à política de 'guerra às drogas', a política nacional de drogas do governo não trouxe nenhuma grande mudança, se mostrando bastante semelhante àquela elaborada por seu antecessor". Já em relação à gestão de Dilma Rousseff, Miraglia (2016, p , p. 12) salienta que "O governo federal do Brasil exibe grande relutância em se envolver nesse debate. Como o crime organizado se mantém como o principal problema de segurança pública no país, o governo continua a ser seduzido pelo discurso "duro com o crime" [ tough on crime ] e a repeti-lo, distanciando-se de qualquer discussão de descriminalização ou legalização das drogas, incluindo a maconha. Essa atitude do governo federal estrutura todo o diálogo político na política de drogas". . Abordar o debate público nesse período oferece a possibilidade de analisar se o debate sobre a política de drogas na sociedade apresenta a mesma dinâmica da política pública ou, como argumentado acima, se configura de uma forma distinta, com mudanças mais significativas.

Para responder ao problema e aos objetivos formulados, o artigo encontra-se estruturado da seguinte forma: a próxima seção apresenta os referenciais teórico-metodológicos que orientaram a coleta e análise do corpus da pesquisa; a seção seguinte apresenta e analisa os dados produzidos na pesquisa empírica; por fim, as conclusões retomam o problema de pesquisa e sintetizam as respostas fundamentadas pela análise efetuada.

Referenciais teórico-metodológicos

A pesquisa que fundamenta a presente análise teve como fonte de dados o jornal Zero Hora, um veículo de comunicação mantido pelo Grupo RBS, que é reconhecido como "o maior jornal do Rio Grande do Sul" devido à sua estrutura e tempo de atuação ( Fernandes, 2016Fernandes, E. G. “Campos de batalha jornalística: os enquadramentos construídos por Zero Hora, Diário Gaúcho e Sul21 na luta pela (i)legitimidade do ciclo de manifestações de 2013, em Porto Alegre/RS”. Dissertação de Mestrado em Sociologia, Universidade Federal do Rio Grande do Sul - UFRGS, Porto Alegre, 2016. Disponível em: < https://www.lume.ufrgs.br/handle/10183/142444>. Acesso em: 8 maio 2023.
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). Na revisão da literatura, observou-se que a quase totalidade dos estudos sobre o tratamento midiático ao tema das drogas tem como objeto empírico veículos do eixo RJ-SP ( Goulart, 2011Goulart, S. L. O tema das drogas e o grupo folha: a Folha de São Paulo e o Agora São Paulo. Texto apresentado ao Núcleo de Estudos Interdisciplinares sobre psicoativos (NEIP), 2011. ; Silva, 2013Silva, C. G. “O conflito ideológico no discurso sobre a maconha: uma abordagem dialógica de matérias impressas veiculadas na mídia brasileira”. Trabalho de Conclusão de Curso de Graduação em Letras, Universidade Estadual Paulista, Araraquara, 2013. ; Fernandes, 2015Fernandes, L. "A problemática da droga no telejornalismo brasileiro - uma análise da série de reportagens 'O avanço da maconha' do Jornal da Band". In: Anais do XXXVIII Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação, 2015. ; Rocha, 2016Rocha, L. M. S. “Jornalismo e Razão Comunicativa: uma análise do método jornalístico em reportagens sobre a maconha nas revistas Veja e Superinteressante”. Anais do XXXIX Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação , São Paulo, 2016. ; Southier, 2016Southier, D. “O campo discursivo sobre drogas e o posicionamento de Fernando Henrique Cardoso”. Dissertação de Mestrado em Sociologia Política, Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), Florianópolis, 2016. ; Sousa; Santos; Aléssio, 2018; Sousa; Santos; Apostolidis, 2020). Assim, o jornal Zero Hora possibilita tanto ter acesso ao conteúdo de um dos principais grupos de comunicação do país, quanto oportunizar uma análise de como se estrutura o debate público sobre a política de drogas na arena jornalística fora do eixo RJ-SP.

Para fazer a coleta dos dados para a pesquisa, foram realizadas visitas ao Centro de Informações do jornal para acessar seu acervo. Foram usados variados termos de busca, com o objetivo de coletar o maior número possível dos materiais publicados no jornal ao longo dos quatorze anos de abrangência da pesquisa. Os termos de busca usados foram os seguintes: "política de drogas"; "política de drogas + descriminalização"; "política de drogas + criminalização"; "criminalização + drogas"; "descriminalização + drogas"; "maconha + descriminalização"; "marcha da maconha"; e "descriminalização das drogas"9 9 É importante ressaltar, novamente, que o foco do artigo é a política de drogas e não o tema das drogas em geral. As publicações sobre o segundo tema são, certamente, muito mais numerosas. Conforme pesquisa realizada pela Agência de Notícias dos Direitos da Infância e o Programa Nacional de DST/AIDS do Ministério da Saúde (2004, p. 29), "A principal tendência na cobertura [da mídia] (...) ainda está em focalizar a relação da droga com a violência e reforçar a repressão como forma correta de enfrentar o fenômeno. Não é observada a presença de discussão sobre a política nacional adotada em relação à questão, nem a utilização do expediente de comparação com experiências internacionais que venham sendo desenvolvidas. (...) O que se percebe, em geral, é que a mídia tem dificuldade em discutir políticas públicas". A pesquisa realizada por Sousa, Santos e Apostolidis (2020), que analisou 4.516 matérias publicadas no portal de notícias do jornal Folha de São Paulo entre 2010 e 2014, identificou que apenas 15,8% das matérias abordavam o tema "Formas de regulação da droga e políticas alternativas ao proibicionismo". . Foi escolhido usar como termo de busca a substância maconha, pois uma parte significativa do debate sobre a política de drogas que vai à mídia acaba sendo centrada nessa substância. Isso pode ser validado através da quantidade de estudos encontrados sobre a maconha ( Silva, 2013Silva, C. G. “O conflito ideológico no discurso sobre a maconha: uma abordagem dialógica de matérias impressas veiculadas na mídia brasileira”. Trabalho de Conclusão de Curso de Graduação em Letras, Universidade Estadual Paulista, Araraquara, 2013. ; Sousa, 2013Sousa, Y. S. O. “Maconha e representações sociais: a construção discursiva da cannabis em contextos midiáticos”. Dissertação de Mestrado em Psicologia, Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), Recife, 2013. ; Fernandes, 2015Fernandes, L. "A problemática da droga no telejornalismo brasileiro - uma análise da série de reportagens 'O avanço da maconha' do Jornal da Band". In: Anais do XXXVIII Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação, 2015. ; Mayer; Santos; Chagas, 2016; Rocha, 2016Rocha, L. M. S. “Jornalismo e Razão Comunicativa: uma análise do método jornalístico em reportagens sobre a maconha nas revistas Veja e Superinteressante”. Anais do XXXIX Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação , São Paulo, 2016. ; Sousa; Santos; Aléssio, 2018; Sousa; Santos; Apostolidis, 2020), bem como pelas palavras mais usadas ao longo dos anos no material empírico coletado para o presente artigo - em todos, a palavra mais usada foi maconha. Com esses termos de busca, foi obtido um total de 306 documentos. Esses foram lidos e codificados com o auxílio do software de análise qualitativa de dados NVivo.

É possível realizar a codificação do material de duas maneiras: a partir de uma lista pré-definida de categorias ou através da criação das categorias à medida que se realiza a leitura dos documentos ( Teixeira; Becker, 2001Teixeira, A. N.; Becker, F. “Novas possibilidades da pesquisa qualitativa via sistemas CAQDAS”. Sociologias, vol. 3, nº 5, p. 94-113, 2001. ; Fernandes, 2015Fernandes, L. "A problemática da droga no telejornalismo brasileiro - uma análise da série de reportagens 'O avanço da maconha' do Jornal da Band". In: Anais do XXXVIII Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação, 2015. ; Teixeira, 2020Teixeira, A. N. Análise qualitativa com o programa NVivo 12: Fundamentos. Porto Alegre: UFRGS, 2020. ). No presente artigo, optou-se por utilizar os dois procedimentos de forma combinada. Primeiramente, a partir do enquadramento teórico da pesquisa, que será apresentado nos próximos parágrafos, foram definidas as categorias estruturantes da análise do corpus: agentes/coalizões e enquadramentos interpretativos. Em segundo lugar, a partir da leitura dos materiais, foram criadas categorias referentes aos conteúdos identificados nos documentos.

O primeiro conceito que integra o enquadramento teórico da pesquisa é o de campos de ação estratégica, tal como desenvolvido por Fligstein e McAdam (2011Fligstein, N.; McAdam, D. “Toward a general theory of strategic action fields”. Sociological Theory, vol. 29, nº 1, p. 2-26, 2011. Disponível em: < https://www.jstor.org/stable/41057693>. Acesso em: 8 maio 2023.
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, 2012Fligstein, N.; McAdam, D. A theory of fields. Oxford: Oxford University Press, 2012. ). Os campos seriam arenas relacionais, baseadas em entendimentos compartilhados e socialmente construídos, nas quais agentes disputam recursos e benefícios variados. Assim, essa teoria argumenta que o campo tende a ser um espaço relacional de conflito entre diferentes coalizões de agentes que buscam dominá-lo. Neste artigo, o conceito de campo é mobilizado para apreender teoricamente o campo de disputas sobre a política de drogas no Brasil. As coalizões que disputam a definição da política de drogas, por sua vez, são apreendidas a partir da diferenciação entre proibicionistas, os agentes que apresentam uma posição dominante e hegemônica no campo, e antiproibicionistas, que apresentam uma posição dominada e desafiante10 10 O uso do conceito de coalizões para abordar um conjunto de agentes que compartilham posições relativamente comuns sobre os referenciais da política pública não implica desconhecer ou negar a possibilidade de haver diferenças mais ou menos profundas entre os integrantes da coalizão. Uma coalizão indica uma convergência e não uma unidade. .

A caracterização do campo como um espaço de conflito entre dominados e dominantes deve ser entendida como um recurso analítico da Teoria dos Campos e, assim, não deve ser tomada como a expressão da forma como empiricamente se estruturam os campos e seus conflitos11 11 Para uma crítica à generalização da abordagem dicotômica presente na Teoria dos Campos, ver Goldstone e Useem (2012) . . Como já alertava Bourdieu (1983Bourdieu, P. Esboço de uma teoria da prática. In: Ortiz, R. (org.). Pierre Bourdieu: sociologia, p. 46-81. São Paulo: Ática, 1983. , p. 59), é preciso evitar a confusão entre o "modelo da realidade" (necessariamente simplificador) e a "realidade do modelo". Na verdade, como será observado na análise desenvolvida nas próximas seções, as posições identificadas e analisadas na pesquisa empírica são mais complexas e heterogêneas do que o modelo dicotômico estabelece. De qualquer forma, entende-se que a divisão entre dominantes e dominados (que, no caso da análise desenvolvida no artigo, se expressa na divisão entre proibicionistas e antiproibicionistas), mesmo que simplifique excessivamente a realidade12 12 Uma simplificação que precisa ser destacada é a desconsideração de que o posicionamento em distintos subsistemas de políticas públicas (no caso, segurança e saúde), faz com que as posições sobre a política de drogas se vinculem a referenciais ou paradigmas específicos de cada subsistema. Como destacam Teixeira et al. (2017, p , p. 1456), "No setor da justiça e da segurança pública dois paradigmas, o do proibicionismo e o do antiproibicionismo, se encontram em disputa. Já no campo da saúde e assistência social, os paradigmas asilar, psicossocial e de Redução de danos (RD) sustentam as práticas em saúde mental/álcool e outras drogas". , oferece um instrumento teórico-metodológico adequado para o desenvolvimento da pesquisa e, inclusive, para a identificação e análise das complexidades empiricamente observadas.

A segunda referência teórica que orienta metodologicamente a análise é o conceito de enquadramento interpretativo ( framing ) que possui uma longa trajetória nas ciências sociais, tendo como referência central a obra de Goffman (2012)Goffman, E. Os quadros da experiência social: uma perspectiva de análise. Petrópolis: Vozes, 2012. . No entanto, em função de suas diversas apropriações e redefinições, o conceito acabou se caracterizando por uma significativa imprecisão. Como sintetiza Maia (2009Maia, R. “Debates públicos na mídia: enquadramentos e troca pública de razões”. Revista Brasileira de Ciência Política, nº 2, p. 303-340, jul.-dez. 2009. , p. 306), "O conceito de enquadramento é de difícil definição, já que diferentes autores o formulam de diversos modos, com operacionalizações distintas em pesquisas empíricas"13 13 Para análises "clássicas" sobre as imprecisões na definição e uso do conceito de enquadramento interpretativo e, ainda, tentativas de superação dessas fragilidades, ver Entman (1993) e Scheufele (1999) . .

Sem a pretensão de abordar essa diversidade de definições e usos do conceito de enquadramento interpretativo, o presente artigo centra-se na forma como o conceito é apropriado e utilizado pela literatura que trabalha com a abordagem de enquadramento para analisar o processo de construção social da realidade pela mídia e os efeitos dessa construção na estruturação do debate público14 14 Segundo Gutmann (2006, p , p. 30), há duas formas de utilização da abordagem de enquadramento nos estudos sobre a mídia: "o framing da mídia, que se refere aos enfoques apresentados pelos veículos de comunicação para um determinado tema, e o framing da audiência, que se relaciona ao modo como o público vai enquadrar certos assuntos a partir do que é oferecido pelos meios. Essas perspectivas originam duas correntes complementares de investigação: os estudos que se dedicam a entender como são construídos e o que determinaria os enquadramentos dos temas midiáticos e os trabalhos interessados em como essas 'molduras' dadas aos conteúdos influenciam nas visões de mundo do público". O presente artigo aborda o processo de enquadramento na/da arena jornalística e não os efeitos desse processo na audiência. . Como sintetizam Campos, Feres Jr. e Daflon (2013, p. 8), "A tese do enquadramento trabalha com a premissa de que a mídia exerce sua influência no debate público filtrando e realçando aspectos de determinado tema, inclusive dando voz a alguns atores sociais e silenciando outros".

Partindo dessa premissa, adota-se aqui a definição de Entman (1993Entman, R. M. “Framing: toward clarification of a fractured paradigm”. Journal of Communication, vol. 43, nº 4, p. 51-58, 1993. Disponível em: < https://doi.org/10.1111/j.1460-2466.1993.tb01304.x>. Acesso em: 8 maio 2023.
https://doi.org/10.1111/j.1460-2466.1993...
, p. 52), bastante difundida na literatura:

Enquadramento envolve essencialmente seleção e saliência. Enquadrar é selecionar alguns aspectos de uma realidade percebida e torná-los mais salientes em um texto comunicativo, de forma a promover uma determinada definição de problema, interpretação causal, avaliação moral e/ou recomendação de tratamento para o item descrito (destaques no original).

Com base nessa definição, o enquadramento se caracteriza pela construção e promoção de uma forma específica de diagnosticar determinado "problema" e de propor soluções para o mesmo. Nas palavras de Gutmann (2006Gutmann, J. F. “Quadros narrativos pautados pela mídia: framing como segundo nível do agenda-setting?”. Contemporânea, vol. 4, nº 1, p. 25-50, jun. 2006. , p. 45), o " framing (...) refere-se a uma 'tese', a priori, que orienta determinada cobertura, o que é diferente da simples ênfase a certas características do fato narrado". A partir desse entendimento, o conceito de enquadramento interpretativo foi mobilizado neste artigo para abordar dois elementos que conformam as disputas no debate público sobre a política de drogas. De um lado, para apreender como os agentes antiproibicionistas e proibicionistas situam a política de drogas em termos do subsistema de política pública que deveria ser priorizado para definir e/ou solucionar o "problema das drogas". Aqui, destacam-se dois enquadramentos centrais: a saúde pública e a segurança pública. De outro lado, o conceito de enquadramento interpretativo foi mobilizado para analisar como o diagnóstico/definição do problema e o prognóstico/proposição de soluções de agentes antiproibicionistas e proibicionistas se relaciona com seus enquadramentos de saúde e de segurança15 15 Na medida em que enquadramentos interpretativos são construídos relacionalmente, destaca-se que os agentes tendem a apresentar e justificar seus posicionamentos ao mesmo tempo em que criticam as posições dos adversários. Assim, por vezes, as posições adversárias ou a própria política existente tendem a constituir parte do problema a ser resolvido pelas propostas apresentadas e defendidas. .

Uma qualificação a ser feita em relação à abordagem de enquadramentos utilizada se relaciona à interpretação de que a imprensa constitui uma arena e um agente do debate público, destacada anteriormente. Sendo uma arena, a imprensa é um espaço disputado pelos diversos agentes cujos enquadramentos competem pela definição dos problemas públicos e suas soluções dentro de um determinado campo. Em função disso, a análise adota a abordagem de "competição de enquadramentos" proposta por Maia (2009Maia, R. “Debates públicos na mídia: enquadramentos e troca pública de razões”. Revista Brasileira de Ciência Política, nº 2, p. 303-340, jul.-dez. 2009. , p. 303-304), pois esta reconhece que as arenas midiáticas tendem a expressar uma "luta entre grupos de interesse, partidos políticos ou grupos sociais, entre distintos sistemas de pensamento e quadros ético-morais, de modo que as questões são muitas vezes enquadradas e debatidas em termos conflitantes"16 16 Uma crítica à escassa atenção da literatura às disputas de enquadramento que ocorre nas arenas midiáticas encontra-se em Chong e Druckman (2007) . . Sendo um agente, por sua vez, a imprensa também integra essa competição de enquadramentos e, em função da dinâmica relacional de cooperação e conflito que se estabelece entre os agentes e coalizões do campo, pode transformar seus posicionamentos ao longo do tempo.

Essa qualificação possibilita responder à lacuna identificada por Maia (2009Maia, R. “Debates públicos na mídia: enquadramentos e troca pública de razões”. Revista Brasileira de Ciência Política, nº 2, p. 303-340, jul.-dez. 2009. , p. 304-305) na literatura, para quem os autores tendem a negligenciar

as relações que se estabelecem entre as opiniões publicadas, i.e., como elas concorrem entre si e transformam o contexto para o entendimento de problemas e a configuração do ambiente informativo. Esses autores não examinam "como" opera a disputa entre os enquadramentos, entre os pontos de vista e os argumentos no interior do próprio ambiente mediático. Eles tendem a operar com a suposição de que os enquadramentos se mantêm "inalterados" na arena discursiva. Para além da existência ou ausência de proposições e interpretações conflitantes, da permanência ou da durabilidade delas na cena mediática, esses autores não deixam claro "como" definições conflitantes de problemas e subsequentes atribuições de responsabilidade, de causas e recomendações são publicamente disputadas.

Com base nessas referências teóricas, construiu-se a estrutura de codificação do NVivo, que pode ser observada na Figura 1 . De acordo com essa estrutura, a política de drogas pode ser enquadrada pelas coalizões proibicionista e antiproibicionista no âmbito da política de segurança ou de saúde pública. Ainda, tais enquadramentos podem estar orientados a selecionar e salientar os problemas ou as soluções relacionadas à "questão das drogas".

Figura 1
: Mapa mental da estruturação dos códigos no NVivo

A operacionalização da codificação envolveu a leitura atenta de todo corpus e a distribuição do seu conteúdo nas duas categorias estruturantes da análise: quem fala (proibicionistas ou antiproibicionistas) e como enquadra a "questão das drogas" (saúde ou segurança pública, diagnóstico do problema ou proposição de solução).

Apesar da centralidade teórico-metodológica da abordagem de enquadramento interpretativo, a pesquisa desenvolvida também envolveu uma análise de valência tal como proposta por Campos, Feres Jr. e Daflon (2013, p. 8):

Sem negarmos o poder do enquadramento, queremos neste texto chamar atenção para um aspecto não muito estudado da cobertura midiática: a valência dos textos em relação a dada questão, com vistas a chamar atenção para uma estratégia da mídia que não diz respeito à manipulação do conteúdo do que está sendo publicado, como quer a tese do enquadramento, mas à configuração do espaço onde se encena a controvérsia.

A análise de valência consiste em identificar o posicionamento valorativo (positivo, negativo ou neutro) do texto jornalístico em relação a um determinado tema ( Steibel; Marinkova, 2013Steibel, F.; Marinkova, M. "Positivo, negativo ou neutro? Um olhar de métodos mistos sobre a variável 'valência' em análises de conteúdo jornalístico". E-Compós, vol. 16, nº 2, 2013. ; Feres Jr., 2016; Fernandes, 2016Fernandes, E. G. “Campos de batalha jornalística: os enquadramentos construídos por Zero Hora, Diário Gaúcho e Sul21 na luta pela (i)legitimidade do ciclo de manifestações de 2013, em Porto Alegre/RS”. Dissertação de Mestrado em Sociologia, Universidade Federal do Rio Grande do Sul - UFRGS, Porto Alegre, 2016. Disponível em: < https://www.lume.ufrgs.br/handle/10183/142444>. Acesso em: 8 maio 2023.
https://www.lume.ufrgs.br/handle/10183/1...
)17 17 Para uma crítica à análise de valência, ver Miguel (2015) . . Neste artigo, é feita uma adaptação da análise de valência a partir de uma distribuição dos documentos em três categorias valorativas com base nos argumentos utilizados: antiproibicionista, proibicionista e ambos. A categoria antiproibicionista abrange os documentos que apresentam o predomínio de argumentos que questionam o proibicionismo. A categoria proibicionista, ao contrário, é constituída pelos documentos que possuem um predomínio de argumentos de defesa de princípios e medidas proibicionistas na política de drogas. Por fim, a categoria "ambos" é composta pelos documentos que apresentam argumentos proibicionistas e antiproibicionistas de forma relativamente equilibrada. Essa categorização foi feita no NVivo a partir da leitura atenta de cada material. Nesse caso, criamos uma categorização de arquivos que possibilitou identificar cada um deles quanto a sua valência.

Dados e análise

A evolução da atenção à política de drogas no jornal Zero Hora

Um dos primeiros achados da pesquisa diz respeito à forma como se desenvolveu o interesse sobre a temática da política de drogas no jornal, ao longo dos anos estudados. A partir dos dados apresentados no Gráfico 1 , é possível perceber um aumento expressivo da quantidade de publicações ao longo dos anos, com destaque para o ano de 2009 e, especialmente, o período que vai de 2013 até 2015.

Gráfico 1
: Evolução anual do número de publicações sobre política de drogas no jornal Zero Hora - 2003-2016

Cabe destacar que no ano de 2006 foi aprovada a nova Lei de Drogas. No entanto, observa-se no gráfico que, em 2006 ou nos anos precedentes de tramitação do projeto de lei, não houve um aumento da discussão do tema no jornal18 18 Tal resultado é similar ao observado por Goulart (2011, p , p. 27): "a nova lei 11.343/06 não apenas estaria sendo pouco e superficialmente comentada na mídia brasileira, como sua existência não geraria uma alteração significativa no tratamento dos nossos veículos de comunicação sobre as drogas ilícitas". . Do material empírico, no ano de 2006, somente dois documentos abordaram a nova lei, ambos após a tramitação e sanção por parte da Presidência da República. Isso demonstra que a temática da política de drogas tinha pouco espaço dentro do veículo naquele momento, expressando uma baixa atenção ao tema no debate público e, particularmente, a escassa presença e visibilidade de críticas ao referencial proibicionista e à estratégia da "guerra às drogas". Uma mudança significativa em termos da presença do tema da política de drogas no jornal, conformando um campo de atenção pública ( Cefaï, 2017Cefaï, D. “Públicos, problemas públicos, arenas públicas... O que nos ensina o pragmatismo (Parte 2)”. Novos Estudos, vol. 36, n° 2, p. 129-142, 2017. Disponível em: < https://doi.org/10.25091/S0101-3300201700020007>. Acesso em: 8 maio 2023.
https://doi.org/10.25091/S0101-330020170...
), acontece apenas a partir do ano de 2009, intensificando-se a partir de 201319 19 Um dos focos de debate na literatura refere-se às relações entre agenda-setting e framing ( Colling, 2001 ; Gutmann, 2006 ; Scheufele; Tewksbury, 2007 ; Rossetto; Silva, 2012) . De forma simplificada, pode-se dizer que o agendamento se refere à definição dos temas do debate público (no que pensar), enquanto o enquadramento refere-se à definição da forma de tratar esses temas (como pensar). A crescente presença do tema da política de drogas no jornal Zero Hora, ao longo do período analisado, pode ser interpretada como um agendamento do tema das drogas como tema importante para o debate público. .

O posicionamento valorativo dos conteúdos publicados no jornal Zero Hora

Buscando caracterizar como o tema da política de drogas aparece no material da pesquisa, optou-se primeiramente pela realização de análise de valência dos arquivos veiculados no jornal. No Gráfico 2 , é apresentada a valência dos materiais ao longo do período estudado. É possível observar que publicações com predomínio de conteúdos proibicionistas foram maioria até o ano de 2012. No ano de 2013, conteúdos antiproibicionistas e proibicionistas estiveram presentes em quantidade relativamente similar. A partir de 2014, a valência predominante no jornal foi antiproibicionista. Destaca-se que, em 2014, a quantidade de documentos com valência antiproibicionista foi mais do que o dobro se comparada com a proibicionista.

Gráfico 2
: Distribuição da valência dos documentos coletados sobre a política de drogas publicados no jornal Zero Hora - 2003-2016

Os dados do Gráfico 2 mostram que, além do aumento quantitativo do debate público veiculado pelo Jornal Zero Hora sobre política de drogas no período analisado, houve também mudanças qualitativas no que se refere aos agentes e enquadramentos predominantes nesse debate. Observa-se, assim, uma significativa reorientação do veículo analisado no que se refere às posições que obtêm mais espaço nessa arena jornalística, com o predomínio das posições antiproibicionistas ao final do período. Utilizando a tipologia de Chong e Druckman (2007Chong, D.; Druckman, J. N. “A theory of framing and opinion formation in competitive elite environments”. Journal of Communication, nº 57, p. 99-118, 2007. Disponível em: < https://doi.org/10.1111/j.1460-2466.2006.00331.x>. Acesso em: 8 maio 2023.
https://doi.org/10.1111/j.1460-2466.2006...
, p. 102-103), pode-se identificar uma passagem de uma situação assimétrica de enquadramento, na qual uma posição (proibicionista) tendia a monopolizar a arena, para uma situação dual assimétrica, na qual diferentes posições têm presença na arena, mas há a predominância de uma delas (antiproibicionista). Tal mudança expressa um reposicionamento do próprio jornal enquanto agente do debate público sobre a política de drogas. Essa mudança pode ser identificada, primeiramente, pela análise dos posicionamentos públicos do jornal Zero Hora expressos através de seus editoriais, abordada a seguir.

Enquadrando a política de drogas: transformações no posicionamento dos editoriais do jornal Zero Hora

Ao longo do período pesquisado foram escritos doze editoriais que expressavam a posição do jornal Zero Hora sobre o "problema das drogas". No material coletado, o primeiro editorial encontrado sobre o tema é datado de 08 de março de 2006. Lembramos que nesse ano foi aprovada a Lei de Drogas n° 11.343/2006, mas este não é o assunto tratado no editorial. Seu título é "O impasse das drogas" e parte de uma "troca de farpas entre um procurador de Justiça e o Tribunal de Justiça do Estado sobre alegadas divergências na forma de encarar usuários de drogas". Outro tema abordado é o cancelamento da Marcha Mundial da Maconha, que ocorreria em Porto Alegre. O editorial destaca que a questão das drogas é um "problema que a sociedade não tem como ignorar" e, também, que não adianta "tentar resolvê-lo com atitudes extremas como a leniência ou a repressão". A solução apresentada pelo jornal é a prevenção.

Após 2006, a temática das drogas somente retorna aos editoriais do jornal Zero Hora em 2010. Nesse ano, foram publicados três editoriais sobre o tema. O primeiro foi publicado em 26 de fevereiro de 2010, o título é "Tolerância ou capitulação?". Seguindo a linha do editorial de 2006, destaca a questão da prevenção e da responsabilidade de toda sociedade para o enfrentamento do "problema das drogas". O editorial aborda uma proposta do Ministério da Saúde para o "abrandamento das penas para pequenos traficantes e para portadores de drogas, que ficariam condicionadas aos antecedentes criminais e ao histórico de usuário", argumentando que "são tênues os limites entre a tolerância e a capitulação" com as drogas.

O segundo editorial de 2010 é de 30 de março e se intitula "Vacina de Informação", tendo como referência a campanha "Crack nem Pensar"20 20 Para uma análise da campanha "Crack nem Pensar", ver Petuco (2011) . , criada e promovida pelo próprio grupo empresarial proprietário do jornal Zero Hora. Ele divulga a segunda fase da campanha que seria chancelada com a entrevista do então Ministro da Saúde José Gomes Temporão. Essa segunda fase "buscará envolver família, comunidade, escolas e igrejas num novo mutirão antidroga" que tem como posição "considerar perigosa qualquer tolerância com a droga, com qualquer droga, mesmo que ela seja aparentemente inofensiva". Na parte final do editorial, é feito um convite para que cidadãos do Rio Grande do Sul se juntem no esforço de difundir informações sobre a "importância de manter-se distante de uma substância que vicia e aniquila suas vítimas e que, num processo de degradação, destrói famílias".

Por fim, o editorial de 7 de maio de 2010 abordou a Marcha da Maconha e seu título é "Marcha fiscalizada". No início é dito que "existe na sociedade brasileira um consenso de tolerância em relação ao usuário", mas também que "não é permitido fazer apologia" ao uso da substância. É nesse sentido que o editorial vê como "tranquilizador que o Ministério Público se disponha a acompanhar de perto a manifestação", pois assim os promotores de Justiça "poderão avaliar se a marcha ocorrerá dentro dos limites da livre expressão", preservando o "direito dos cidadãos de não serem importunados nem expostos a ações criminosas".

Em 2011, foi publicado somente um editorial, no dia 19 de junho, tendo como título "Equilíbrio delicado". O tema central foi a legalização da Marcha da Maconha pelo STF, que ocorreu no mesmo ano. O editorial buscou evidenciar que o "Supremo decidiu mais uma vez que ninguém pode ser prévia e sumariamente proibido de pensar em voz alta, sozinho ou em grupo, por defender qualquer ponto de vista".

No ano de 2012, foram publicados dois editoriais. O primeiro deles, intitulado "Proposta de alto risco", foi publicado em 27 de julho e abordou uma "proposta formulada por juristas defendendo a descriminalização do plantio e do porte de drogas para consumo pessoal". O jornal se colocou totalmente contra essa possibilidade, dizendo que "o combate às drogas precisa evitar que mais pessoas se tornem vítimas da dependência e das constantes recaídas, não na repressão e muito menos em alternativas inaceitáveis como a liberação do consumo". Para o jornal, a descriminalização aumentaria o consumo, o que também elevaria a oferta das drogas. Já o segundo editorial do ano, publicado em 27 de agosto, também versa sobre a questão da descriminalização. Nesse caso, refere-se a uma campanha de assinaturas de um anteprojeto para a descriminalização das drogas que foi entregue à Câmara Federal. A posição do jornal sobre isso é que "não há dúvidas de que os argumentos contrários à descriminalização parecem mais reais e consistentes. Ninguém pode ignorar o poder destrutivo das drogas na sociedade brasileira".

No ano de 2013, mais três editoriais sobre a questão das drogas foram publicados. O primeiro foi no mês de maio, o segundo em agosto e o terceiro em dezembro. No primeiro, de 25 de maio, o título é "Antes de liberar a Maria, ouçam as Márcias". Ele começa apresentando dois fatos considerados antagônicos: de um lado, a recomendação da Organização dos Estados Americanos (OEA), através de um relatório encaminhado aos países filiados à entidade, de flexibilização das ações de repressão contra a maconha; de outro, a aprovação pela Câmara dos Deputados do substitutivo do deputado Givaldo Carimbão (PSB-AL) ao projeto do deputado Osmar Terra (MDB-RS), que aumenta a pena para traficantes e introduz a internação compulsória para usuários. No editorial, o jornal reconhece que a decisão da OEA e a posição de entidades que comemoraram a recomendação "decorre da política repressiva que vem sendo adotada a mais de quatro décadas no continente". Porém, por mais que o jornal reconheça o fracasso da política repressiva, diz que a recomendação está sendo vista como um estímulo ao consumo, "principalmente por grupos de usuários e simpatizantes que promovem marchas pedindo a descriminalização". Aqui é possível vermos uma referência direta aos participantes das marchas da maconha, sendo citada a frase "Liberem a Maria", encontrada nas manifestações de Buenos Aires, Santiago e Rio de Janeiro. Para finalizar o editorial, o jornal opta por dar espaço a uma leitora com o pseudônimo de Márcia, que escreveu uma carta ao jornal em apoio a um artigo publicado pelo deputado Osmar Terra alguns dias antes. A carta é um relato pessoal da autora sobre o impacto das drogas na sua família. Ela começa dizendo que acertou ao votar em Osmar Terra e que acredita que "a repressão ao tráfico de drogas, bem como ao seu consumo, é medida urgente que deve ser aplicada de forma rigorosa e com apoio unificado da sociedade e do Estado". Além disso, diz que "qualquer membro dos três poderes que seja a favor da 'liberação da maconha' merece ser investigado", justificando que quem apoia deve ser em interesse próprio, pois "talvez pense assim quem ganha dinheiro com isso". Ela também usa os termos "epidemia" e "caos" para retratar a situação das drogas no Brasil.

O segundo editorial de 2013 foi publicado em 04 de agosto. É denominado "editorial interativo", por ter na sua composição a posição de leitores sobre o avanço da regulamentação e legalização da maconha no Uruguai. Seu título é "A maconha legalizada" e, em seu primeiro parágrafo, busca dar uma descrição geral sobre as propostas do Uruguai, destacando que havia sido aprovada na Câmara dos Deputados e, provavelmente, seria no Senado, já que o governo do Presidente José Mujica tinha maioria nas duas casas legislativas. É destacado que o projeto seria aprovado, ainda que pesquisas de opinião tenham demonstrado que a maioria da população uruguaia não era favorável ao projeto. Alega, também, que a ação do governo uruguaio dá força a um movimento internacional que defende a legalização como meio de combate ao narcotráfico. Após, o editorial apresenta os argumentos que justificam sua posição contrária ao projeto aprovado no Uruguai. É dito que o risco é demasiado, especialmente para países como o Brasil, que não consegue controlar nem a venda de bebidas alcoólicas a adolescentes. Afirma-se que a maconha é reconhecida pelos "especialistas como porta de entrada para o consumo de drogas mais pesadas" e, também, que ampliar o "leque de produtos nocivos liberados" já se mostrou um equívoco por "experiências mal sucedidas de países como Portugal".

O terceiro editorial de 2013 foi publicado em 12 de dezembro e, assim como o anterior, trata da regulamentação da maconha no Uruguai. O título é "Experiência Desafiadora" e começa falando que o Uruguai é o primeiro país do mundo a legalizar a comercialização da maconha. Comparativamente com o anterior, este é de um tom mais ameno e apresenta a justificativa do governo para a proposta de alteração da política de drogas, que é "enfraquecer o narcotráfico", e expõe as condições para o consumo de maconha no país (ser residente, ter mais de 18 anos e comprar até 40 gramas por mês). Posteriormente, é dito que alguns países que adotaram medidas similares estão voltando atrás, pois a descriminalização teria resultado no aumento do consumo. Na parte final é dito que a iniciativa uruguaia merece atenção, mas que "não pode servir para mascarar verdades comprovadas pela ciência", como a que a "maconha é uma substância nociva à saúde e causadora de degradação física e moral", além de abrir "caminho para drogas mais pesadas".

No ano de 2014 não teve editorial sobre a questão das drogas. No entanto, em 2015 foram escritos dois. É nesse período que se observam mudanças significativas na linha editorial do jornal. O primeiro foi publicado em 08 de março e seu título é "Contra as drogas, pela legalização da maconha". Desde seu título já é evidenciada a seletividade da maconha como única substância a qual o jornal está flexibilizando seu posicionamento anteriormente proibicionista. Esse argumento é reforçado ao ser dito que "o grupo passa a propugnar que a maconha - e tão somente essa droga - deixe seu circuito clandestino e seja legalizada, com produção e venda regulamentadas". Tal ação permitiria que uma parte do "dinheiro das drogas fosse transferida de mãos, reduzindo o poder de fogo do narcotráfico". Em resumo, o editorial "apoia a legalização da produção e do comércio da maconha como alternativa para o combate ao tráfico e para a redução do morticínio de jovens".

Já o segundo editorial é de 14 de agosto e tem como título "Nova visão sobre drogas". Ele afirma que: "é preciso se admitir que o enfrentamento da questão merece novas abordagens, entre as quais a da diferenciação entre consumo e tráfico" e coloca-se favorável à votação da descriminalização do porte da maconha para uso pessoal no STF. O editorial destaca que o Supremo pode "acabar com a polêmica sobre quem deve decidir se alguém possui drogas para consumo ou para comércio", já que essa atribuição "não deve ser exclusivamente da polícia, mas compartilhada com outros agentes públicos". Aqui, o jornal passa a reduzir o discurso de que a regulamentação e a descriminalização levariam ao aumento do consumo de drogas, como evidenciado em editoriais anteriores, salientando que "a possível decisão por um novo tratamento jurídico não significa omissão ou estímulo ao consumo", mas sim que "estará sendo rompido um bloqueio que até agora impedia o entendimento de que o usuário deve ser visto no contexto de uma questão de saúde e não mais pelo aspecto criminal".

A reconstrução da trajetória de enquadramentos da política de drogas pelo jornal Zero Hora, através da análise de seus editoriais, mostra uma mudança parcial, mas significativa: de uma posição totalmente alinhada com o proibicionismo para uma posição que pode ser caracterizada como um "antiproibicionismo seletivo", expresso no apoio público à descriminalização da maconha. Tal resultado oferece sustentação empírica ao argumento de Maia (2009Maia, R. “Debates públicos na mídia: enquadramentos e troca pública de razões”. Revista Brasileira de Ciência Política, nº 2, p. 303-340, jul.-dez. 2009. , p. 310) de que a troca argumentativa entre os diferentes agentes que participam do debate público "modifica o ambiente para o entendimento de problemas, a percepção de relações causais e a proposição de soluções".

Essa mudança de posição de um importante veículo de comunicação do país, que acompanha mudanças observadas em outros veículos de comunicação nacionais21 21 Para uma análise dos posicionamentos do jornal Folha de São Paulo, ver Goulart (2011) . , expressa dois processos interdependentes: de um lado, uma importante reconfiguração do debate público sobre a política de drogas na arena jornalística; de outro lado, um significativo reposicionamento de um dos principais agentes (grupos jornalísticos) que participam e administram esse debate. As próximas seções analisam a reconfiguração do debate público em termos dos agentes que têm acesso à arena jornalística e dos argumentos que os mesmos mobilizam nas disputas de enquadramento ( framing contest ) ( Fernandes, 2016Fernandes, E. G. “Campos de batalha jornalística: os enquadramentos construídos por Zero Hora, Diário Gaúcho e Sul21 na luta pela (i)legitimidade do ciclo de manifestações de 2013, em Porto Alegre/RS”. Dissertação de Mestrado em Sociologia, Universidade Federal do Rio Grande do Sul - UFRGS, Porto Alegre, 2016. Disponível em: < https://www.lume.ufrgs.br/handle/10183/142444>. Acesso em: 8 maio 2023.
https://www.lume.ufrgs.br/handle/10183/1...
) sobre a política de drogas.

Quem fala sobre a política de drogas na arena jornalística?

Esta seção caracteriza e analisa os agentes mais frequentes na discussão sobre a política de drogas no jornal Zero Hora ao longo dos anos estudados, buscando identificar possíveis mudanças nas "vozes" (indivíduos e posições) que têm acesso ao debate público sobre a política que ocorre na arena jornalística.

Primeiramente, o Gráfico 3 apresenta a quantidade de agentes proibicionistas e antiproibicionistas presentes nos documentos coletados separados por ano, ou seja, o agente que aparece em mais de um ano foi contabilizado em ambos:

Gráfico 3
: Distribuição, por ano, do número de agentes proibicionistas e antiproibicionistas identificados nos documentos sobre a política de drogas publicados no jornal Zero Hora - 2003-2016

Os dados do Gráfico 3 mostram mudanças importantes ao longo do período pesquisado. No início do período, entre os anos 2003 e 2006, quando o jornal tende a dedicar pouca atenção ao tema da política de drogas e expressa um posicionamento público marcadamente proibicionista (conforme observado na análise dos editoriais), percebe-se que a quantidade de agentes proibicionistas que têm acesso ao jornal para a apresentação e difusão de suas posições tende a ser significativamente maior em relação aos agentes antiproibicionistas22 22 Esse resultado confirma a conclusão da pesquisa realizada pela Agência de Notícias dos Direitos da Infância e o Programa Nacional de DST/AIDS do Ministério da Saúde (2004, p. 9): "Os profissionais que trabalham em acordo com a política de combate às drogas são normalmente os mais conhecidos e consultados como fontes. Aqueles que procuram trazer novas perspectivas sobre o assunto, por não estarem em consonância com o imaginário social, quase não encontram espaço nos meios de comunicação, prejudicando a construção de matérias que contribuam para o debate público e retratem a pluralidade de idéias". . Entre 2007 e 2012, quando há um crescente interesse do jornal sobre o tema e ainda se mantém um posicionamento proibicionista incondicional explícito, os dados indicam um maior equilíbrio entre o número de agentes proibicionistas e antiproibicionistas com acesso ao jornal. Por fim, a partir de 2013 há um aumento significativo na quantidade de agentes antiproibicionistas que se expressam nos documentos coletados. Esse aumento é particularmente significativo nos anos de 2014 e 2015, que é exatamente o período no qual se observou a adoção de um posicionamento "antiproibicionista seletivo" por parte do jornal.

Um segundo passo para caracterizar as "vozes" que participam do debate público sobre a política de drogas no jornal Zero Hora foi a identificação das áreas de atuação de tais agentes. Nesse sentido, os indivíduos identificados nos documentos foram enquadrados nas seguintes categorias: academia, artista, ativista, comunidade terapêutica (CT), direito, imprensa, judiciário, médico, ONU, polícia, política, psicologia e psiquiatra. Apresenta-se a seguir os resultados da categorização23 23 Para melhor apresentação dos resultados, foi criada uma categoria "outros" referente às áreas de atuação que obtiveram uma soma inferior ou igual a cinco referências. Desta forma, do segmento antiproibicionista a categoria "outros" contém imprensa e psiquiatra, ambas com cinco referências cada. Já em relação ao segmento proibicionista a categoria "outros" contém CT (2), direito (4), imprensa (5) e médico (2). .

O Gráfico 4 apresenta as principais áreas de atuação dos agentes antiproibicionistas identificados nos documentos coletados:

Gráfico 4
: Distribuição das principais áreas de atuação dos agentes antiproibicionistas identificados nos documentos sobre a política de drogas publicados no jornal Zero Hora - 2003-2016

O Quadro 1 , por sua vez, apresenta os agentes antiproibicionistas com maior presença no jornal, sendo incluídos os que apareceram mais de cinco vezes nos documentos coletados:

Quadro 1
: Identificação dos agentes antiproibicionistas com mais de cinco presenças nos documentos sobre a política de drogas publicados no jornal Zero Hora - 2003-2016

O Gráfico 5 apresenta as áreas de atuação dos principais agentes proibicionistas identificados no jornal:

Gráfico 5
: Distribuição das principais áreas de atuação dos agentes proibicionistas identificados nos documentos sobre a política de drogas publicados no jornal Zero Hora - 2003-2016

O Quadro 2 identifica os agentes proibicionistas com maior presença no jornal. Assim como no Quadro 1 , foram incluídos somente os que apareceram mais de cinco vezes nos documentos coletados:

Quadro 2
: Identificação dos agentes proibicionistas com mais de cinco presenças nos documentos sobre a política de drogas publicados no jornal Zero Hora - 2003-2016

Comparando os Gráficos 4 e 5, é possível observar algumas diferenças significativas entre os agentes proibicionistas e antiproibicionistas que participam do debate público expresso no jornal Zero Hora. O proibicionismo, por um lado, tende a ser sustentado, principalmente, por agentes do campo político e da psiquiatria (que, juntos, respondem a 54,5% do conjunto de agentes desse segmento). Destaca-se, ainda, que apesar da centralidade do enquadramento de segurança pública para o proibicionismo, a presença de agentes da área policial expressando e defendendo posições proibicionistas é relativamente baixa no período pesquisado. Da mesma forma, em virtude da importância do proibicionismo nos posicionamentos de agentes religiosos sobre a política de drogas ( Prandi; Santos, 2017Prandi, R.; Santos, R. W. “Quem tem medo da bancada evangélica? Posições sobre moralidade e política no eleitorado brasileiro, no Congresso Nacional e na Frente Parlamentar Evangélica”. Tempo Social, vol. 29, nº 2, p. 187-213, 2017. ), chama a atenção a ausência desses agentes na arena jornalística. O antiproibicionismo, por outro lado, apresenta uma distribuição mais equilibrada de agentes em diferentes áreas de atuação. Além de uma presença bem maior de agentes vinculados ao campo acadêmico, há ainda a presença destacada de agentes da sociedade civil (ONGs e ativistas) que integram a rede do movimento antiproibicionista. Por fim, destaca-se também a presença de agentes do campo artístico na defesa das posições antiproibicionistas.

A comparação entre os Quadros 1 e 2, por sua vez, também oferece algumas informações importantes. Enquanto os agentes antiproibicionistas com presença mais expressiva no jornal apresentam uma maior diversidade de áreas de atuação, os agentes proibicionistas tendem a ser centralmente representados por indivíduos da área da psiquiatria. É, ainda, digno de nota a significativa presença do político Osmar Terra (MDB) na defesa das posições proibicionistas no jornal Zero Hora. O expressivo número de 39 referências nos documentos coletados ganha mais destaque quando se informa que sua primeira aparição no jornal em defesa do proibicionismo na política de drogas ocorreu apenas no ano de 2010. Sendo um médico de formação, a atuação de Osmar Terra se articula com a atuação de psiquiatras para constituir a linha de frente de defesa do proibicionismo no debate público sobre a política de drogas no jornal Zero Hora.

Observa-se, assim, que enquanto ocorre uma ampliação e diversificação das "vozes" antiproibicionistas no debate público, especialmente a partir do ano de 2013, o proibicionismo tende a ter sua defesa concentrada em um número mais restrito de agentes, sob forte predomínio daqueles que atuam na área médico psiquiátrica.

Enquadrando a política de drogas: problema/solução de saúde pública e/ou de segurança pública?

A partir da categorização dos documentos coletados, identifica-se que o "problema das drogas" (e, assim, da política para enfrentá-lo) é abordado como estando relacionado a dois subsistemas de políticas públicas: o da saúde pública e/ou da segurança pública. O Gráfico 6 mostra a distribuição desses enquadramentos ao longo do período analisado:

Gráfico 6
: Distribuição do enquadramento de saúde e de segurança nos documentos sobre a política de drogas publicados no jornal Zero Hora - 2003-2016

Diferenciando esses enquadramentos a partir de seus emissores, observa-se o resultado expresso nos dois gráficos seguintes. Primeiramente, o Gráfico 7 apresenta a distribuição do uso do enquadramento de segurança pública (495) por parte dos agentes proibicionistas (192) e antiproibicionistas (303):

Gráfico 7
: Distribuição do enquadramento de segurança pública, por agentes proibicionistas e antiproibicionistas, nos documentos sobre a política de drogas publicados no jornal Zero Hora - 2003-2016

Em segundo lugar, o Gráfico 8 mostra a distribuição do uso do enquadramento de saúde pública (343) por parte dos agentes proibicionistas (211) e antiproibicionistas (132):

Gráfico 8
: Distribuição do enquadramento de saúde pública, por agentes proibicionistas e antiproibicionistas, nos documentos sobre a política de drogas publicados no jornal Zero Hora - 2003-2016

As informações contidas nos Gráficos 7 e 8 apresentam um resultado contraintuitivo: enquanto os agentes proibicionistas apresentam um claro predomínio na mobilização de argumentos que relacionam a política de drogas a questões de saúde pública, os agentes antiproibicionistas mostram um significativo predomínio na vinculação da política a questões de segurança pública. Na medida em que o proibicionismo está associado a propostas criminalizantes e o antiproibicionismo a propostas descriminalizantes, tal resultado parece ser paradoxal.

A resposta para esse aparente paradoxo está nas formas como agentes proibicionistas e antiproibicionistas mobilizam os enquadramentos de saúde e de segurança. Para analisar essas formas de mobilização dos enquadramentos, utiliza-se uma diferenciação nos enquadramentos entre diagnóstico/definição de problemas e prognóstico/proposição de soluções. Os resultados dessa análise são apresentados a seguir.

O Gráfico 9 mostra como o enquadramento de segurança, por parte dos agentes antiproibicionistas, se distribui entre problemas e soluções:

Gráfico 9
: Distribuição do enquadramento de segurança pública como problema e solução, por agentes antiproibicionistas, nos documentos sobre a política de drogas publicados no jornal Zero Hora - 2003-2016

Os dados mostram, primeiramente, que os agentes antiproibicionistas tendem a apresentar um relativo equilíbrio entre diagnóstico e prognóstico: ao mesmo tempo que problematizam a forma como as drogas são tratadas na política de segurança vigente, propõem soluções em termos de novas formas de abordar a questão das drogas a partir da segurança pública. Destaca-se aqui que a própria política de drogas, hegemonizada por um referencial proibicionista, é interpretada como um elemento central na produção das drogas como um problema público. Nesse sentido, os agentes antiproibicionistas, enquanto agentes periféricos e desafiantes no campo da política de drogas, precisam combinar um duplo movimento nos seus enquadramentos: construir o proibicionismo na política de segurança relacionada às drogas como problema e apresentar propostas antiproibicionistas como possíveis soluções a esse problema.

O Gráfico 10 , por sua vez, mostra como o enquadramento de segurança, por parte dos agentes proibicionistas, se distribui entre problemas e soluções. Diferentemente do observado no Gráfico 9 , acima, percebe-se que os agentes proibicionistas enfatizam muito mais os problemas do que as soluções. Na medida em que sua posição hegemoniza a política de segurança relacionada às drogas, a problematização não se dirige à política, tal como observado entre os agentes antiproibicionistas. Ao contrário, são destacados problemas de segurança pública que seriam relacionados às drogas para justificar a manutenção e, mesmo, o aprofundamento do proibicionismo como única solução a tais problemas. Além disso, as soluções antiproibicionistas na segurança pública são criticadas e interpretadas como contribuindo para aprofundar os problemas existentes, além de criar problemas novos. Assim, sendo o proibicionismo a "solução" hegemônica na política de segurança relacionada às drogas, os agentes proibicionistas direcionam menos tempo para apresentação de soluções, concentrando-se em reforçar o senso comum negativo sobre as drogas e criticar as posições alternativas antiproibicionistas.

Gráfico 10
: Distribuição do enquadramento de segurança pública como problema e solução, por agentes proibicionistas, nos documentos sobre a política de drogas publicados no jornal Zero Hora - 2003-2016

Os dados dos Gráficos 9 e 10 possibilitam, então, responder parcialmente ao aparente paradoxo observado anteriormente: na medida em que se colocam em confronto com uma política de segurança relacionada às drogas dominada pelo proibicionismo, os agentes antiproibicionistas precisam investir intensamente tanto na problematização da política quanto na apresentação de soluções aos problemas da mesma; os agentes proibicionistas, ao contrário, por dominarem a política e sua posição constituir o "senso comum" em relação ao problema das drogas, concentram-se centralmente em reforçar o diagnóstico já estabelecido. Esse resultado mostra como a diferença nas posições ocupadas por proibicionistas (dominantes) e antiproibicionistas (desafiantes) no campo da política de drogas coloca demandas diferentes em termos das "tarefas de enquadramento"24 24 Entre as tarefas centrais de enquadramento ( core framing tasks ) definidas por Benford e Snow (2000) , encontram-se exatamente o enquadramento de diagnóstico, orientado para a construção do problema público, e o enquadramento de prognóstico, orientado para a construção das soluções para o problema construído. por parte dos agentes participantes do debate público.

Passando aos enquadramentos de saúde, o Gráfico 11 apresenta a distribuição dos argumentos dos agentes antiproibicionistas entre problemas e soluções:

Gráfico 11
: Distribuição do enquadramento de saúde pública como problema e solução, por agentes antiproibicionistas, nos documentos sobre a política de drogas publicados no jornal Zero Hora - 2003-2016.

Aqui, observa-se uma alteração significativa em relação à dinâmica observada no Gráfico 9: o enquadramento de saúde dos agentes antiproibicionistas enfatiza centralmente as soluções. Tal resultado expressa a intenção dos agentes antiproibicionistas de deslocarem o "problema das drogas" (e, consequentemente, a política de drogas) do subsistema de segurança, hegemonizado pelo proibicionismo, para o subsistema de saúde. Assim, esforçam-se por apresentar argumentos sobre como ações de saúde, tal como a redução de danos, podem produzir respostas eficazes a problemas relacionados ao consumo de drogas que só seriam agravados pelo proibicionismo vigente. Além disso, especialmente a partir de 2012 quando surge no jornal a discussão sobre o uso medicinal da maconha, as próprias drogas passam a ser reenquadradas como parte da solução de questões de saúde.

Quando se observam os enquadramentos de saúde dos agentes proibicionistas, apresentados no Gráfico 12 , identifica-se uma dinâmica oposta:

Gráfico 12
: Distribuição do enquadramento de saúde pública como problema e solução, por agentes proibicionistas, nos documentos sobre a política de drogas publicados no jornal Zero Hora - 2003-2016

Ao contrário dos agentes antiproibicionistas, os agentes proibicionistas mobilizam a saúde centralmente para expressar problemas que devem ser enfrentados com a continuidade de uma política orientada pelo referencial proibicionista. Nesse sentido, enfatiza-se, de um lado, os limites das ações da política de saúde pública para responder ao "problema das drogas". De outro lado, frente ao crescente destaque das propostas de uso medicinal da maconha pelos agentes antiproibicionistas a partir de 2012, observa-se um forte investimento dos agentes proibicionistas em reforçar os argumentos sobre os efeitos nocivos do uso de drogas à saúde.

Os dados dos Gráficos 11 e 12 permitem complementar a resposta ao aparente paradoxo destacado anteriormente: a intensa presença da saúde pública nos argumentos dos agentes proibicionistas tem basicamente uma função problematizadora, tanto no sentido de construção de um problema cuja solução está na manutenção (e, mesmo, aprofundamento) de uma política proibicionista, quanto no sentido de desqualificar as propostas alternativas apresentadas e defendidas pelos agentes antiproibicionistas.

O contraste entre os enquadramentos dos agentes proibicionistas e antiproibicionistas apresentados acima evidencia a dinâmica relacional da conflitualidade no campo da política de drogas. De um lado, as posições que os agentes ocupam nas relações de poder no campo é central para entender seus posicionamentos públicos. Hegemonizando o campo e dominando a política de drogas, os agentes proibicionistas atuam centralmente para reforçar um diagnóstico cuja solução é a manutenção do proibicionismo. Desafiadores com baixa capacidade de incidência na política, os agentes antiproibicionistas enfrentam um desafio muito mais complexo: problematizar os referenciais e ações proibicionistas dominantes no campo e, ao mesmo tempo, apresentar alternativas que pareçam viáveis e eficazes.

Por outro lado, a dinâmica relacional também se expressa na forma como os enquadramentos se transformam ao longo do tempo. Nesse sentido, destaca-se novamente o esforço dos agentes proibicionistas em se contrapor à tentativa de reenquadramento feito pelos antiproibicionistas, que passaram a apresentar algumas drogas, como no caso do uso medicinal da maconha, não mais como causa de problemas, mas sim como fonte de soluções. Na medida em que o proibicionismo se baseia no pressuposto de que as drogas constituem um "mal" a ser erradicado, tal reenquadramento apresentou-se como um sério risco ao proibicionismo e foi respondido com intensa problematização e crítica.

Conclusões

Este artigo buscou responder à seguinte pergunta de pesquisa: como se estrutura e se transforma o debate público sobre a questão das drogas entre os anos de 2003 e 2016?

Com base na análise dos documentos coletados no jornal Zero Hora, publicados no período, identifica-se, primeiramente, uma crescente presença do tema no debate público. Em segundo lugar, destaca-se também uma mudança nas "vozes" (indivíduos e enquadramentos) que se expressam nesse debate. Tal mudança é evidenciada, por um lado, pela ampliação do espaço aberto à expressão de agentes antiproibicionistas ao longo do período estudado. Por outro lado, essa mudança é indicada pelo fato de o próprio veículo analisado apresentar uma alteração significativa de seu posicionamento público, passando de um proibicionismo total a um "antiproibicionismo seletivo".

Essa presença destacada do "antiproibicionismo seletivo" indica os limites do modelo analítico dicotômico que serviu de ponto de partida para este artigo. Ela indica, ao invés de uma dicotomia, que as posições presentes e em disputa no debate público sobre a política de drogas tendem a se distribuir ao longo de um continuum no qual o proibicionismo e o antiproibicionismo constituem as posições extremas. Analisar as complexidades e, inclusive, as disputas internas ao que foi abordado de forma unificada na presente pesquisa se coloca como uma importante possibilidade de aprofundamento empírico e teórico no futuro.

Frente à emergência e à crescente incidência das "vozes" antiproibicionistas desafiantes no debate público, observa-se que os agentes proibicionistas precisaram investir na sustentação de suas posições, até então praticamente não questionadas. Destaca-se, nesse sentido, a ênfase de tais agentes em reforçar os diagnósticos tradicionais do "problema das drogas", tanto em termos de segurança pública quanto em termos de saúde pública, de forma a justificar uma necessária continuidade da política orientada pelo proibicionismo.

Os resultados observados mostram a fertilidade analítica da perspectiva relacional subjacente ao foco na "competição de enquadramentos" proposto por Maia (2009)Maia, R. “Debates públicos na mídia: enquadramentos e troca pública de razões”. Revista Brasileira de Ciência Política, nº 2, p. 303-340, jul.-dez. 2009. e adotado neste artigo. E, ainda, corroboram as conclusões da autora: "em ambientes plurais de concorrência interpretativa, os próprios argumentos se transformam no interior da esfera de visibilidade dos media, seguindo diferentes padrões dialógicos, em escalas temporais específicas" ( Maia, 2009Maia, R. “Debates públicos na mídia: enquadramentos e troca pública de razões”. Revista Brasileira de Ciência Política, nº 2, p. 303-340, jul.-dez. 2009. , p. 334).

A análise também possibilitou identificar que as diferenças nas tarefas de enquadramento colocadas para os agentes proibicionistas e antiproibicionistas estão relacionadas às posições desiguais que eles ocupam no campo da política de drogas. De um lado, os defensores do proibicionismo, dominantes no campo, tendem a reproduzir enquadramentos tradicionais do "problema das drogas", cuja solução passa unicamente pela manutenção (ou aprofundamento) da atual política proibicionista. Por outro lado, os defensores de propostas antiproibicionistas, por sua posição desafiante, precisam confrontar os enquadramentos tradicionais do "problema das drogas" e sua solução proibicionista e, paralelamente, oferecer novos enquadramentos do problema e de suas soluções. Nesse sentido, o deslocamento da "droga como problema" para a "droga como solução", que fundamenta as proposições sobre o uso medicinal da maconha, expressou uma reconfiguração significativa do debate público. Tal reconfiguração exigiu adaptações dos agentes proibicionistas, que intensificaram seus argumentos sobre as drogas como produtoras de problemas de segurança e, especialmente, saúde.

Em função de todas as mudanças identificadas e analisadas, ao final do período pesquisado observa-se um debate público caracterizado por uma diversidade de "vozes", vindas de diversas áreas de atuação, que complexifica a interpretação do "problema das drogas" e tensiona a hegemonia proibicionista. Essa transformação do debate público, mesmo que tenha tido uma incidência muito limitada em uma política de drogas que continua dominada pelo proibicionismo, constitui um resultado concreto da mobilização de agentes antiproibicionistas que não pode ser desconsiderado ou desvalorizado. Analisar a conformação e as transformações do ativismo antiproibicionista nas últimas décadas, nas suas diversas e conflitivas expressões, coloca-se como um desdobramento necessário da presente pesquisa.

O retrocesso democrático, ocorrido com a destituição da presidenta Dilma Rousseff em 2016 e aprofundado com a eleição de Jair Bolsonaro em 2018, fortaleceu significativamente o domínio do proibicionismo. Esse fortalecimento se expressa claramente na nova Política Nacional de Drogas, instituída através do Decreto n° 9761/2019. Assim, parece ampliar-se o distanciamento entre a configuração do debate público e a configuração do campo da política de drogas, indicando que a política de drogas tende a manter-se como um foco de controvérsias e disputas nos próximos anos. Excluídos do processo de definição da política, os agentes antiproibicionistas terão nas arenas de construção e disputa da opinião pública, tal como as arenas jornalísticas, um espaço estratégico para confrontar e tentar reverter o atual fortalecimento do proibicionismo na política de drogas brasileira. A análise das transformações da política de drogas, do debate público e das interrelações entre esses processos, que ocorreram posteriormente ao período de abrangência da pesquisa, é um tema a ser abordado em futuras investigações.

Agradecimentos

1Agradecemos às(aos) integrantes do Grupo de Pesquisa Associativismo, Contestação e Engajamento, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (GPACE/UFRGS) pela leitura atenta e contribuições no momento que estávamos construindo o artigo. Além disso, gostaríamos de agradecer às(aos) pareceristas anônimos da revista Opinião Pública, pelas ótimas contribuições que qualificaram o trabalho.

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  • 4
    Para uma visão panorâmica sobre as políticas de drogas pelo mundo, sob a ótica jornalística, recomenda-se a série de reportagens "Estado alterado" do Jornal A Folha de São Paulo . Disponível em: < https://arte.folha.uol.com.br/mundo/2020/estado-alterado-as-politicas-para-drogas-pelo-mundo/ >. Acesso em: 11 jul. 2022.
  • 5
    Cabe destacar que houve algumas propostas legislativas com viés antiproibicionista no período posterior ao estudado por Silva e Delduque (2015)Silva, M. B.; Delduque, M. C. “Patologização e penalização do uso de drogas: uma análise socioantropológica de proposições legislativas (2007-2010)”. Physis: Revista de Saúde Coletiva, vol. 25, nº 1, p. 231-250, 2015. , com destaque para algumas iniciativas legislativas sobre a regulamentação da maconha, como é o caso do PL 7270/2014, PL 7187/2014 e do SUG 8 de 2014. A última é uma iniciativa popular que foi apresentada ao Senado Federal depois de passar pelo portal e-Cidadania ( Kiepper; Esher, 2014Kiepper, A.; Esher, Â. “A regulação da maconha no Senado Federal: uma pauta da Saúde Pública no Brasil”. Cadernos de Saúde Pública, vol. 30, n° 8, 2014. ; Kiepper, 2015)Kiepper, A. As novíssimas iniciativas sobre drogas no Brasil. In: Bokany, V. (org.). Drogas no Brasil: entre a saúde e a justiça: proximidades e opiniões. São Paulo: Editora Fundação Perseu Abramo, p. 47-53, 2015. .
  • 6
    Subjacente à argumentação desenvolvida neste artigo encontram-se pressupostos da sociologia dos problemas públicos ( Lorenc Valcarce, 2005Lorenc Valcarce, F. "La sociología de los problemas públicos - una perspectiva crítica para el estudio de las relaciones entre la sociedad y la política". Nómadas. Critical Journal of Social and Juridical Sciences, vol. 12, nº 02, 2005. ; Schillagi, 2011Schillagi, C. “Problemas públicos, casos resonantes y escándalos”. Polis, vol. 10, nº 30, p. 245-266, 2011. Disponível em: < http://dx.doi.org/10.4067/S0718-65682011000300012>. Acesso em: 8 maio 2023.
    http://dx.doi.org/10.4067/S0718-65682011...
    ; Cefaï, 2017)Cefaï, D. “Públicos, problemas públicos, arenas públicas... O que nos ensina o pragmatismo (Parte 2)”. Novos Estudos, vol. 36, n° 2, p. 129-142, 2017. Disponível em: < https://doi.org/10.25091/S0101-3300201700020007>. Acesso em: 8 maio 2023.
    https://doi.org/10.25091/S0101-330020170...
    .
  • 7
    [A]rena pública' pode ser vista como um espaço conflituoso no qual surgem os problemas e se desenvolve uma disputa entre atores de força desigual para impor suas definições ou conduzir ações a respeito do mesmo" ( Schillagi, 2011, pSchillagi, C. “Problemas públicos, casos resonantes y escándalos”. Polis, vol. 10, nº 30, p. 245-266, 2011. Disponível em: < http://dx.doi.org/10.4067/S0718-65682011000300012>. Acesso em: 8 maio 2023.
    http://dx.doi.org/10.4067/S0718-65682011...
    , p. 246).
  • 8
    Como sintetiza Rodrigues sobre a gestão Lula (2006, p. 171-172), "Apesar de o Presidente Lula, antes de ascender ao cargo, ter firmado um manifesto apresentado à Sessão Especial da ONU de 1998, junto com outros políticos e intelectuais, no qual se opunham à política de 'guerra às drogas', a política nacional de drogas do governo não trouxe nenhuma grande mudança, se mostrando bastante semelhante àquela elaborada por seu antecessor". Já em relação à gestão de Dilma Rousseff, Miraglia (2016, pMiraglia, P. Drugs and drug trafficking in Brazil: trends and policies. Foreign Policy at Brookings. Center for 21st Century Security and Intelligence - Latin America Initiative, 2016. , p. 12) salienta que "O governo federal do Brasil exibe grande relutância em se envolver nesse debate. Como o crime organizado se mantém como o principal problema de segurança pública no país, o governo continua a ser seduzido pelo discurso "duro com o crime" [ tough on crime ] e a repeti-lo, distanciando-se de qualquer discussão de descriminalização ou legalização das drogas, incluindo a maconha. Essa atitude do governo federal estrutura todo o diálogo político na política de drogas".
  • 9
    É importante ressaltar, novamente, que o foco do artigo é a política de drogas e não o tema das drogas em geral. As publicações sobre o segundo tema são, certamente, muito mais numerosas. Conforme pesquisa realizada pela Agência de Notícias dos Direitos da Infância e o Programa Nacional de DST/AIDS do Ministério da Saúde (2004, p. 29), "A principal tendência na cobertura [da mídia] (...) ainda está em focalizar a relação da droga com a violência e reforçar a repressão como forma correta de enfrentar o fenômeno. Não é observada a presença de discussão sobre a política nacional adotada em relação à questão, nem a utilização do expediente de comparação com experiências internacionais que venham sendo desenvolvidas. (...) O que se percebe, em geral, é que a mídia tem dificuldade em discutir políticas públicas". A pesquisa realizada por Sousa, Santos e Apostolidis (2020), que analisou 4.516 matérias publicadas no portal de notícias do jornal Folha de São Paulo entre 2010 e 2014, identificou que apenas 15,8% das matérias abordavam o tema "Formas de regulação da droga e políticas alternativas ao proibicionismo".
  • 10
    O uso do conceito de coalizões para abordar um conjunto de agentes que compartilham posições relativamente comuns sobre os referenciais da política pública não implica desconhecer ou negar a possibilidade de haver diferenças mais ou menos profundas entre os integrantes da coalizão. Uma coalizão indica uma convergência e não uma unidade.
  • 11
    Para uma crítica à generalização da abordagem dicotômica presente na Teoria dos Campos, ver Goldstone e Useem (2012)Goldstone, J.; Useem, B. “Putting values and institutions back into the theory of strategic action fields”. Sociological Theory, vol. 30, nº 1, p. 37-47, 2012. Disponível em: < https://doi.org/10.1177/0735275112437161>. Acesso em: 8 maio 2023.
    https://doi.org/10.1177/0735275112437161...
    .
  • 12
    Uma simplificação que precisa ser destacada é a desconsideração de que o posicionamento em distintos subsistemas de políticas públicas (no caso, segurança e saúde), faz com que as posições sobre a política de drogas se vinculem a referenciais ou paradigmas específicos de cada subsistema. Como destacam Teixeira et al. (2017, pTeixeira, M. B., et al. “Tensões paradigmáticas nas políticas públicas sobre drogas: análise da legislação brasileira no período de 2000 a 2016”. Ciência & Saúde Coletiva, vol. 22, nº 5, p. 1455-1466, 2017. , p. 1456), "No setor da justiça e da segurança pública dois paradigmas, o do proibicionismo e o do antiproibicionismo, se encontram em disputa. Já no campo da saúde e assistência social, os paradigmas asilar, psicossocial e de Redução de danos (RD) sustentam as práticas em saúde mental/álcool e outras drogas".
  • 13
    Para análises "clássicas" sobre as imprecisões na definição e uso do conceito de enquadramento interpretativo e, ainda, tentativas de superação dessas fragilidades, ver Entman (1993)Entman, R. M. “Framing: toward clarification of a fractured paradigm”. Journal of Communication, vol. 43, nº 4, p. 51-58, 1993. Disponível em: < https://doi.org/10.1111/j.1460-2466.1993.tb01304.x>. Acesso em: 8 maio 2023.
    https://doi.org/10.1111/j.1460-2466.1993...
    e Scheufele (1999)Scheufele, D. A. “Framing as a theory of media effects”. Journal of Communication, vol. 49, nº 1, p. 103-122, 1999. .
  • 14
    Segundo Gutmann (2006, pGutmann, J. F. “Quadros narrativos pautados pela mídia: framing como segundo nível do agenda-setting?”. Contemporânea, vol. 4, nº 1, p. 25-50, jun. 2006. , p. 30), há duas formas de utilização da abordagem de enquadramento nos estudos sobre a mídia: "o framing da mídia, que se refere aos enfoques apresentados pelos veículos de comunicação para um determinado tema, e o framing da audiência, que se relaciona ao modo como o público vai enquadrar certos assuntos a partir do que é oferecido pelos meios. Essas perspectivas originam duas correntes complementares de investigação: os estudos que se dedicam a entender como são construídos e o que determinaria os enquadramentos dos temas midiáticos e os trabalhos interessados em como essas 'molduras' dadas aos conteúdos influenciam nas visões de mundo do público". O presente artigo aborda o processo de enquadramento na/da arena jornalística e não os efeitos desse processo na audiência.
  • 15
    Na medida em que enquadramentos interpretativos são construídos relacionalmente, destaca-se que os agentes tendem a apresentar e justificar seus posicionamentos ao mesmo tempo em que criticam as posições dos adversários. Assim, por vezes, as posições adversárias ou a própria política existente tendem a constituir parte do problema a ser resolvido pelas propostas apresentadas e defendidas.
  • 16
    Uma crítica à escassa atenção da literatura às disputas de enquadramento que ocorre nas arenas midiáticas encontra-se em Chong e Druckman (2007)Chong, D.; Druckman, J. N. “A theory of framing and opinion formation in competitive elite environments”. Journal of Communication, nº 57, p. 99-118, 2007. Disponível em: < https://doi.org/10.1111/j.1460-2466.2006.00331.x>. Acesso em: 8 maio 2023.
    https://doi.org/10.1111/j.1460-2466.2006...
    .
  • 17
    Para uma crítica à análise de valência, ver Miguel (2015)Miguel, L. F. “Quanto vale uma valência?”. Revista Brasileira de Ciência Política, nº 17, p. 165-78, 2015. .
  • 18
    Tal resultado é similar ao observado por Goulart (2011, pGoulart, S. L. O tema das drogas e o grupo folha: a Folha de São Paulo e o Agora São Paulo. Texto apresentado ao Núcleo de Estudos Interdisciplinares sobre psicoativos (NEIP), 2011. , p. 27): "a nova lei 11.343/06 não apenas estaria sendo pouco e superficialmente comentada na mídia brasileira, como sua existência não geraria uma alteração significativa no tratamento dos nossos veículos de comunicação sobre as drogas ilícitas".
  • 19
    Um dos focos de debate na literatura refere-se às relações entre agenda-setting e framing ( Colling, 2001Colling, L. “Agenda-setting e framing: reafirmando os efeitos limitados”. Revista FAMECOS, nº 14, p. 88-101, 2001. Disponível em: < https://doi.org/10.15448/1980-3729.2002.17.3154>. Acesso em: 8 maio 2023.
    https://doi.org/10.15448/1980-3729.2002....
    ; Gutmann, 2006Gutmann, J. F. “Quadros narrativos pautados pela mídia: framing como segundo nível do agenda-setting?”. Contemporânea, vol. 4, nº 1, p. 25-50, jun. 2006. ; Scheufele; Tewksbury, 2007Scheufele, D. A.; Tewksbury, D. “Framing, agenda setting, and priming: the evolution of three media effects models”. Journal of Communication, vol. 57, nº 1, p. 9-20, mar. 2007. ; Rossetto; Silva, 2012)Rossetto, G. P. N.; Silva, A. M. “Agenda-setting e Framing: detalhes de uma mesma teoria?”. Intexto, nº 26, p. 98-114, jul. 2012. . De forma simplificada, pode-se dizer que o agendamento se refere à definição dos temas do debate público (no que pensar), enquanto o enquadramento refere-se à definição da forma de tratar esses temas (como pensar). A crescente presença do tema da política de drogas no jornal Zero Hora, ao longo do período analisado, pode ser interpretada como um agendamento do tema das drogas como tema importante para o debate público.
  • 20
    Para uma análise da campanha "Crack nem Pensar", ver Petuco (2011)Petuco, D. R. S. "Entre imagens e a palavra: o discurso de uma campanha de prevenção ao crack". Dissertação de Mestrado em Educação, Universidade Federal da Paraíba - UFP, João Pessoa, 2011. Disponível em: <https://repositorio.ufpb.br/jspui/handle/tede/4621>. Acesso em: 8 maio 2023.
    https://repositorio.ufpb.br/jspui/handle...
    .
  • 21
    Para uma análise dos posicionamentos do jornal Folha de São Paulo, ver Goulart (2011)Goulart, S. L. O tema das drogas e o grupo folha: a Folha de São Paulo e o Agora São Paulo. Texto apresentado ao Núcleo de Estudos Interdisciplinares sobre psicoativos (NEIP), 2011. .
  • 22
    Esse resultado confirma a conclusão da pesquisa realizada pela Agência de Notícias dos Direitos da Infância e o Programa Nacional de DST/AIDS do Ministério da Saúde (2004, p. 9): "Os profissionais que trabalham em acordo com a política de combate às drogas são normalmente os mais conhecidos e consultados como fontes. Aqueles que procuram trazer novas perspectivas sobre o assunto, por não estarem em consonância com o imaginário social, quase não encontram espaço nos meios de comunicação, prejudicando a construção de matérias que contribuam para o debate público e retratem a pluralidade de idéias".
  • 23
    Para melhor apresentação dos resultados, foi criada uma categoria "outros" referente às áreas de atuação que obtiveram uma soma inferior ou igual a cinco referências. Desta forma, do segmento antiproibicionista a categoria "outros" contém imprensa e psiquiatra, ambas com cinco referências cada. Já em relação ao segmento proibicionista a categoria "outros" contém CT (2), direito (4), imprensa (5) e médico (2).
  • 24
    Entre as tarefas centrais de enquadramento ( core framing tasks ) definidas por Benford e Snow (2000)Benford, R. D.; Snow, D. A. “Framing processes and social movements: an overview and assessment”. Annual Review of Sociology, nº 26, p. 611-39, 2000. Disponível em: < https://www.jstor.org/stable/223459>. Acesso em: 8 maio 2023.
    https://www.jstor.org/stable/223459...
    , encontram-se exatamente o enquadramento de diagnóstico, orientado para a construção do problema público, e o enquadramento de prognóstico, orientado para a construção das soluções para o problema construído.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    23 Out 2023
  • Data do Fascículo
    May-Aug 2023

Histórico

  • Recebido
    9 Fev 2022
  • Aceito
    16 Mar 2023
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