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PRANDI, Reginaldo. Um sopro do Espírito: a renovação conservadora do catolicismo carismático. São Paulo: Edusp: Fapesp, 1997. 181 p.

PRANDI, Reginaldo. Um sopro do Espírito: a renovação conservadora do catolicismo carismático. 1997. São Paulo: Edusp, Fapesp, 181

Há quem veja, os menos sóbrios talvez, a profusão de múltiplas formas de religiosidade como um indisfarçável “retomo do sagrado”, “une revanche de Dieu”, mas, há, ainda, aqueles, como o sociólogo Reginaldo Prandi, que vêem o “sucesso da religião” como a outra face da crise da sociedade urbana, racional e moderna. Será realmente sucesso, ou será esta diversificação da oferta religiosa o sentido mesmo do processo de secularização? O fato, entretanto, é que a obra Um sopro do Espírito inscrevesse num marco deliberadamente crítico que submete o fenômeno observado ao exame verdadeiramente criterioso da dúvida política.

Neste verdadeiro mosaico que se tornou o campo religioso de nossa modernidade contemporânea, a religião deixou de ser um legado que acompanha os indivíduos até o crepúsculo de seus dias e passou a ser escolha pessoal e subjetiva e, como tal, eleição mais ou menos efêmera de um modo peculiar de espiritualidade. E, pois, neste quadro mais amplo – exposto de forma sucinta, porém esclarecedora, por Reginaldo Prandi e Antônio Flávio Pieracci na introdução do presente livro – que está inserida a Renovação Carismática Católica.

Em conjunto com alguns de seus alunos do Curso de Ciências Sociais da USP, com os quais assina os oito capítulos desta obra, Reginaldo Prandi nos faz ver que os carismáticos católicos acham-se substancialmente próximos da magia e tão incomensuravelmente distanciados da política. Interessa-lhes, sobretudo, o milagre, que de mistério resplandecente e glorioso transmutou-se em verdade ordinária referida à experiência cotidiana. A linguagem emocional que fala direto à gestualidade corpórea, as práticas rituais de cura, a forma mística de relacionamento com o sagrado… também lhes caracteriza. No entanto, pouco, muito pouco têm a dizer quando se trata de definir uma atuação política eficaz e uma visão racional sobre a sociedade e, em particular, sobre os problemas relativos à justiça social. Neste campo resumem-se em afirmar que mudando o indivíduo o mundo social automaticamente se transformará. O depoimento de um informante é, sob este aspecto, emblematicamente revelador desta cultura moderna (auto) centrada no indivíduo: “A Teologia da Libertação queria mudar o mundo a partir do social. Na RCC o mundo muda quando sou mundo” (p. 174).

O autor, entretanto, não se limita a demonstrar a renovação conservadora do catolicismo carismático somente a partir da inexistente ação política de seus membros. O faz, igualmente, chamando a nossa atenção para a visão reacionária a respeito de direitos reprodutivos e moralidade sexual e familiar que está em jogo neste modo de ser católico. Sua argumentação é peremptória, e não é menos sua tese: “A RCC propõe não uma inovação, mas um retrocesso, tanto no campo da intimidade como na esfera da vida pública” (p. 135). O catolicismo carismático configura-se como um movimento conservador de dupla reação: voltado para fora do catolicismo, tendo como oposição o pentecostalismo e outras formas religiosas que vêm sistematicamente colocando em questão a hegemonia católica e para dentro da própria igreja, enfraquecendo as posições assumidas pela Teologia da Libertação e pelas CEBs.

Esta tese, que é a principal do livro, é, sob certo aspecto, a ampliação dos principais argumentos desenvolvidos numa das primeiras obras publicadas no Brasil sobre o catolicismo carismático e que contou com a análise sociológica de Pedro R. de Oliveira e com os pareceres teológicos de Leonardo Boff, J. Libânio e E. Bittencourt (Renovação Carismática Católica. Petrópolis: Vozes, 1978). Neste livro, o catolicismo carismático aparece como um movimento conservador que se encontra ajustado às estruturas institucionais da Igreja Católica e cuja renovação de fato é bem menor que a de princípio.

Um sopro do Espírito, é assim que os carismáticos costumam definir a si próprios. E é sopro porque o Espírito Santo é como o vento, insinua-se sempre de modo incondicional. Aqui abre-se o espaço para discutir uma questão que julgo de grande relevância. Por vezes, a leitura das páginas estimulantes desta obra parece sugerir que os carismas, centro da espiritualidade do catolicismo carismático, seriam prerrogativas de líderes, ou mesmo, privilégios de alguns poucos.

O que me parece, é que os carismas, além de não serem considerados pelos carismáticos católicos como fenômenos extraordinários na vida da Igreja, são também universais. Não há grupo, classe e/ou indivíduo que estejam excluídos da possibilidade de recebê-los, pois a terceira pessoa da trindade de onde emanam os carismas “sopra quando, onde e como quer”. Posto que a liberdade lhe é peculiar, o Espírito Santo não pode sofrer controle por parte de qualquer instituição ou classe, a não ser dele mesmo. A autodeterminação é um de seus principais atributos. Não obstante, além de ser autônomo o Espírito é também igualitário, pois que liberto de qualquer heteronomia dá-se de modo indiferenciado a leigos e clérigos, sem fazer qualquer distinção hierárquica entre os indivíduos, tornando-os todos dele dignos merecedores.

No entanto, os carismas não são apenas habituais e universais, são igualmente múltiplos. “São vários os carismas, mas é um só o Espírito”. Os carismas são a diversidade na unidade do Espírito. São dados a todos (o Espírito é igualitário) e a cada um em particular (o Espírito reconhece a diversidade e a autonomia individual). Cada indivíduo tem um carisma e todos os indivíduos são carismáticos.

O Espírito Santo fomenta, por um lado, a igualdade e a unidade, por outro estimula a individualidade e a diversidade. Os carismas são, portanto, coletivos e individuais, unos e múltiplos, iguais e distintos, universais e locais. O peculiar do catolicismo carismático não consistirá justamente numa articulação, quiçá dialética, entre esta espiritualidade a que podemos chamar pneumática/carismática e a espiritualidade hierárquica sacramental tão brilhantemente analisada neste livro? Não estaremos aqui diante daquela ambivalência que, como já demonstrou Danièle Hervieu-Léger, toma a religião de comunidades emocionais, como é o caso do catolicismo carismático, uma experiência que é consubstancialmente moderna e antimodema? Acredito que estas são questões que merecem ser avaliadas mais pormenorizadamente.

A crítica, que é plena somente quando apaixonada, parcial e política, destina-se ao máximo descortinar de horizontes possíveis e, portanto, a iluminar zonas ainda opacas e sinuosas de tudo quanto nos propomos a observar com olhos que de fato queiram ver. Assim respondeu Baudelaire a sua indagação sobre a finalidade da crítica. E assim podemos sintetizar a propriedade mais salutar da presente obra do sociólogo Reginaldo Prandi que, em momento algum, nos deixa esquecer, que é a crítica da religião que torna epistemologicamente possível a análise da própria religião.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jun 1998
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