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BOURDIEU, Pierre. As regras da arte: gênese e estrutura do campo literário. São Paulo: Companhia das Letras, 1996. 432 p.

BOURDIEU, Pierre. As regras da arte: gênese e estrutura do campo literário. 1996. São Paulo: Companhia das Letras, 432

Se La Distinction havia, nos termos de Wacquant, instaurado a “revolução copernicana” na análise científica dos cânones do gosto, As Regras da Arte, esta obra mais recente de Bourdieu, completa essa revolução, ao tomar como objeto, não mais o consumo, mas a própria obra de arte e, sobretudo, o campo da produção de bens culturais onde ela emerge.

As Regras da Arte propõe um modelo de análise das relações entre o campo literário e o campo do poder em que a obra literária é tomada como objeto de análise, como reservatório de elementos etnográficos e, por vezes, como uma espécie de laboratório de experimentações sociológica. E se a obra de Flaubert, A Educação Sentimental, se presta particularmente bem a esse triplo papel é na medida em que o autor e a obra se situam como casos quase ideal – típicos para a análise que Bourdieu se propõe. Pois, Flaubert e, sobretudo Baudelaire, são analisados enquanto os quase-heróis do processo pelo qual o universo de produção artística torna-se relativamente autônomo para as injunções da economia e da política. E A Educação Sentimental aparece, nessa leitura sociológica, como um laboratório do campo do poder, pois é a história de uma série de indivíduos situados numa combinatória sistemática de relações de atração e repulsão conforme sua posição nos campos (econômico, cultural, político), trajetórias específicas e o tipo de capital de que dispõem.

A ficção aparece assim como uma espécie de duplicata da “ilusão da realidade” que o próprio quotidiano das interações sociais impõem-nos. Se a interação entre as pessoas produz em nós, quotidianamente, uma “ilusão de realidade” sob a qual a o “real” se dissimula, a (boa) ficção se organiza de modo similar a essa apreensão subjetiva imediata do “real”, isto é, esconde sob interações sentimentais mais ou menos intensas as estruturas sociais mais profundas. Essas estruturas sociais e psicológicas a um só tempo reveladas e camufladas pela formalização literária é a chave da leitura sociológica a qual os críticos literários estão poucos inclinados a usar, já que normalmente se prendem e se perdem na superfície das ficções sentimentais e das discussões formais.

Assim, tanto a velha problemática do “realismo”, do “referente” do discurso literário como a questão da diferença entre a escrita científica e a literária estão reformulados. Se a literatura tem o mérito de conseguir condensar toda uma complexidade social numa única figura sensível, é de modo a denegar, pela formalização estilística, a realidade que apresenta, isto é, “não pode falar desse mundo senão com a condição de que fale apenas como se não falasse”; enquanto a análise científica precisa desdobrar e estender cansativamente a análise para tornar evidente o que se esconde sob as interações mais imediatas e perceptíveis no quotidiano.

Se situarmos o conjunto da obra de Bourdieu entre os pólos da estrutura e da ação, talvez essa seja uma de suas obras mais próximas do pólo da ação, onde o conceito de habitus deixa transparecer de modo concreto toda a sua flexibilidade para gerar ações contrárias às determinações mais evidentes da estrutura social. Por exemplo, na minuciosa análise da “política da independência” de Baudelaire, em que este escolhe um editor menor para As Flores do Mal, e contribui assim para o rompimento parcial da dependência estrutural da literatura em relação ao campo do poder.

Nessa reconstrução histórica da emergência do campo intelectual enquanto universo relativamente autônomo em relação ao campo político e econômico, Bourdieu dá toda a densidade etnográfica necessária à demonstração de que a figura do intelectual que conhecemos hoje, emergiu na segunda metade do século XIX ao superar a alternativa do engajamento e da cultura pura. No “eu acuso”, de Zola, se consumaria a invenção do intelectual, isto é, aquele que intervém no campo político com “o peso” de sua posição num mundo relativamente autônomo – o mundo da cultura.

A obra termina com um apelo post-scriptum explicitamente normativo congruente com toda a análise levada a cabo nos capítulos anteriores. É difícil não suspeitar deste apelo do tipo “intelectuais de todo o mundo uni-vos”, conclamando para o reforço dessa autonomia do campo intelectual a nível mundial, tão problemático (no sentido de que dificilmente transportável para outros contextos) quanto todos os modelos de liberação que na França, desde o iluminismo, se vem insistindo em universalizar.

Quanto a nós, de contextos muito diferentes, os méritos de As Regras da Arte, estão na superação uma série de problemas e falsos dilemas em que a sociologia da literatura classicamente vinha se enredado, nomeadamente o da alternativa entre a leitura interna das obras de arte ou a proposta de leitura externa.

Entre as propostas de leitura externa Bourdieu desmantela a teoria marxista do reflexo representada por Lukács e Goldman, assim como as análises puramente estatísticas, as análises biográficas do tipo proposto por Sartre para Flaubert e A Educação Sentimental, e o próprio Weber só é resgatado a partir da autonomia relativa que o conceito de campo atribui ao universo dos especialistas da produção cultural.

Das leituras internalistas nos são apresentados os impasses do estruturalismo, do new criticism, do universalismo antropológico do tipo Mircea Eliade e Jung. Para se transpor “a mais rigorosa das análises internalistas”, a arqueologia de Foucault e sua incapacidade de explicar a passagem de uma formação discursiva (episteme) a outra, Bourdieu recorre a Weber e monta sobre os interesses específicos dos produtores culturais o “motor” de banalização e desbanalização.

Bourdieu se propõe superar simultaneamente as leituras internas e externas além de transpor a alternativa da banalização da arte por uma sociologia redutora e a lógica da “distinção” na qual se enredam os amantes da arte – nomeadamente os críticos literários. Realiza-se assim a pretensão de uma leitura sociológica que sem cair no mito do gênio criador, consegue salvaguardar todo esforço do artista para se desembaraçar do peso das determinações externas ao campo da cultura, o que constitui a razão de grandeza das obras de arte: uma análise plenamente sociológica sem ser redutora, a superação definitiva da crítica literária, este senso comum arrogante do meio artístico. A ciência supera esse senso comum, justamente, ao tomá-la como parte do objeto a ser analisado.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Out 1998
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