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Apresentação

Falar da diversidade cultural, nesses tempos de globalização, parece – em princípio – muito simples. Por um lado, há profetas da modernidade anunciando aos quatro ventos a fatalidade de um mundo homogeneizado, aplainado pela sociedade de consumo. Reproduzindo globo afora a retórica da política neoliberal, eles querem fazer acreditar que as forças estruturais levam Deus e todo mundo a um ponto inexorável de convergência – econômica, política e social – e que, assim como assim, é melhor tirar proveito da situação. Por outro lado, organizações voltadas para a ação afirmativa de grupos minoritários deram novo visual a muitas caras antigas, lançando no mercado identidades pré-fabricadas prontinhas para as rusgas políticas. Neste tipo de “multiculturalismo enciclopédico” – (todo mundo é acusado e ninguém admite a culpa), a ênfase é quase sempre posta na diferença, mas numa diferença mansa e previsível. De uma maneira ou outra, parece que todos estão jogando basicamente pelas mesmas regras.

O ponto inicial da nossa discussão, evidentemente, é que as coisas não são tão simples assim. Mesmo que sejam inconvenientes, existem diferenças significativas apesar da globalização… ou, talvez, por causa dela. Cinquenta anos atrás, quando foi promulgada a Declaração dos Direitos Humanos pela ONU, ainda entretinha-se a possibilidade de um tipo de magna carta que representasse uma moralidade última, situada além de qualquer viés cultural (ver Nader, nesse volume). Hoje, porém, as coisas se tornaram mais complicadas. As diferenças culturais, não somente entre países mas também dentro de um mesmo país, tornaram-se incontornáveis. Atualmente, é quase impossível falar de “cidadania” sem levantar essas diferenças; é, no mínimo, pouco prudente evocar este conceito iluminista, tido como de relevância universal, sem confrontá-lo ao fato da diversidade e desigualdade.

Discussão sobre este tema é o que não falta. O entusiasmo com o qual políticos e intelectuais têm abraçado nos últimos tempos o lema da cidadania não deve, no entanto, ofuscar o fato de que estamos lidando com um termo que já viveu muitas vidas. Quem não se lembra da euforia da década de 60, quando a narrativa progressista trazia uma filosofia assimilacionista sobre a quase-inevitável-e-sem-dúvida-desejável força da modernização? A retórica daquela época soa hoje estranhamente familiar: programas educacionais e assistenciais visavam levar todos a desfrutar dos benefícios da época moderna – criando uma população relativamente homogênea de cidadãos do esta-do-nação. Como sabemos, choveram críticas contra esta visão – em particular da parte de intelectuais da América Latina que localizavam o mote dessa filosofia no neocolonialismo norte-americano. Mas as esquerdas européias e norte-americanas não tardaram a tecer suas próprias críticas mostrando que o uso acrítico de noções tais como “cidadania” e “democracia” acobertava uma situação de desigualdade radical em que populações enormes (inclusive nos países ditos desenvolvidos) estavam privadas de seus direitos básicos.

Erguendo-se contra a idéia da homogeneização global, surge, no início dos anos 80, uma ideologia que celebra a diversidade cultural. No lugar de classe (um conceito que parece ter sido soterrado nos escombros do muro de Berlin), aparece o “multiculturalismo” que admite um lugar importante para as diferenças entre os sexos, entre os países, entre as religiões… Esta perspectiva, que à primeira vista parece útil ou, na pior das hipóteses, inócua – um cardápio de culturas que acrescenta um pouco de cor às festanças modernas – tem contribuído para o surgimento inesperado de um novo “fundamentalismo cultural”. Emergindo da onda fundamentalista, a reificação da diferença cultural tem levado algumas pessoas – tanto dentro quanto fora dos grupos “minoritários” – a construir muros imaginários entre elas e seus vizinhos, e a promover a crença de que cada um faz parte por natureza de uma cultura distinta cujas regras e lógicas são impenetráveis para qualquer outro que não tenha a mesma carga genética ou tradição histórica.

Neste ziguezague histórico entre, por um lado, a negação da alteridade e, por outro, sua caricaturização, os antropólogos – especialistas da diversidade cultural – têm um papel importante a desempenhar. Os artigos neste volume confrontam tal desafio, atualizando o debate e levando em consideração as tensões inerentes ao tema. Refletem em particular sobre a questão da ética e da política do antropólogo junto aos legisladores, planejadores de políticas públicas e outros agentes sociais que, no exercício profissional, procuram agir sobre a realidade. Por um lado, tomam, como público alvo, estes agentes sociais, mostrando a relevância da antropologia para a “vida real”; por outro lado, visam os acadêmicos, sublinhando como essas preocupações “aplicadas” são importantes para o desenvolvimento teórico da disciplina.

Embora toquem em assuntos teóricos de fundo, todos os autores aqui reunidos estão de alguma forma preocupados em pensar como o Estado moderno (a legislação, os serviços sociais…) lida com a heterogeneidade de seus “cidadãos”. No primeiro artigo, “Os usos da diversidade”, Clifford Geertz (Institute of Advanced Studies, Princeton) discorre sobre o que ele denomina o “Futuro do Etnocentrismo”. Segundo este autor, o estudo da diversidade continua altamente pertinente pois a chamada globalização, apesar de ter, em certos casos, diminuído as diferenças culturais entre os povos, não tem amenizado os preconceitos e as formas de discriminação que ocorrem em nome dessas diferenças. A diversidade cultural que deve nos preocupar hoje não é necessariamente ancorada em grupos nacionais ou étnicos. Geração, gênero, sexo e classe (entre outros) podem ser fatores igualmente decisivos, multiplicando os critérios de diferença ao mesmo tempo que pulverizam os grupos potenciais. Rompendo assim com a idéia de que exista um “nós” versus um “eles”, o autor coloca a questão da alteridade dentro da sociedade complexa. A lógica particular de quem mora na esquina pode ser tão “exótica” (e tão digna de nossos esforços interpretativos) quanto a dos aborígines que vivem do outro lado do globo.

Os artigos seguintes trazem exemplos concretos que servem para aprofundar nossa reflexão em torno da questão de alteridade na sociedade contemporânea. Patrícia Birman (Universidade Estadual de Rio de Janeiro), escrevendo sobre as acusações que pesam contra um templo de umbanda em Paris, reflete sobre os limites da tolerância na terra dos autores da primeira Declaração de Direitos Humanos – França. No artigo, “Entre França e Brasil: viagens antropológicas num campo (religioso) minado”, ela compara sua visão, enquanto brasileira, com a dos franceses, apontando para diferentes matrizes culturais na classificação que separa “religião” de “seita”.

O artigo seguinte é de Laura Nader (University of California, Berkeley), “Em um espelho de mulher: cegueira normativa e questões não-resolvidas de direitos humanos”. Depois de problematizar questões básicas sobre direitos humanos (internacionais versus universais, coletivos versus individuais), a autora leva a discussão para os direitos da mulher, centrando-se num ponto conflitual: as visões diversas entre ocidentais e muçulmanos. Ao abordar o cerne desta diferença – a excisão – volta a mira de sua análise contra as crenças e práticas de sua própria sociedade — os Estados Unidos. Os três próximos artigos lidam diretamente com a sociedade brasileira. Claudia Fonseca (Universidade Federal do Rio Grande do Sul) e Andrea Cardarello (Université de Montréal) em “Os direitos dos mais e menos humanos” medem os ideais da legislação progressista sobre crianças contra algumas de suas consequências para a institucionalização de jovens, questionando distorções na construção discursiva da infância enquanto problema social. Ilka Boaventura Leite (Universidade Federal de Santa Catarina) em “Quilombos, quilombolas: cidadania ou folclorização?” volta suas atenções para o difícil diálogo entre juristas (na sua interpretação do artigo 68 da Constituição Federal do Brasil) e acadêmicos na tentativa de garantir uma espécie de reparação histórica aos grupos negros. Os juristas, vendo o quilombo como um fato histórico, estariam esperando dos antropólogos um conceito genérico universalmente aplicável. Os antropólogos, por seu lado, estariam voltados para a dimensão sócio-antropológica do termo, fitando a maneira como, em determinados processos, ele serve para estigmatizar ou, pelo contrário, mobilizar grupos cuja cidadania tem sido tradicionalmente “incompleta” ou negada.

José Carlos dos Anjos e Ondina Fachel Leal (Universidade Federal do Rio Grande do Sul), no artigo “Cidadania de quem? Possibilidades e Limites da Antropologia” relatam os percalços da participação antropológica em um projeto para a prevenção de AIDS entre grupos populares. Assumindo os paradoxos de uma “antropologia aplicada” informada tanto pelos instrumentos metodológicos que permitem uma intervenção eficaz quanto pelo espírito crítico que revela a intervenção como forma de violência simbólica, o artigo propõe discutir níveis de consentimento, aceitação, rejeição ou até conflito que projetos “civilizatórios” possam encontrar entre colegas e junto à população envolvida.

Até aqui, vimos como categorias ligadas a religião, gênero, idade, classe e etnia são acionadas para criar uma determinada identidade cívica e/ou uma estereotipia usada por pessoas de fora para definir direitos específicos. Com o artigo de Robert Shirley (University of Toronto) “Citizenship and Community”, voltamos nossa atenção para uma dimensão da identidade cívica, frequentemente esquecida nos debates atuais – a da comunidade de interação cotidiana que envolve em geral a unidade territorial do bairro ou da cidade. Além de sublinhar a importância da comunidade para a formação de uma identidade cívica, o autor mostra como o Estado e outras organizações manipulam esse conceito, usando como exemplo a criação de uma polícia comunitária que reflete os interesses e responde às demandas de apenas uma parte dos “cidadãos”.

Terminamos a discussão sobre antropologia e cidadania com o artigo “Quilombolas e Direitos Humanos no Suriname” em que Richard Price (College of William & Mary) demonstra que a diversidade cultural pode ser vista como ameaça política ao Estado moderno. Trata-se da República de Suriname, o único Estado no Ocidente que, conforme o autor, continua a violar sistematicamente os direitos fundamentais de seus povos indígenas e quilombolas. Com base numa vasta experiência etnográfica, o autor descreve a violência de políticas modernizantes que, a partir dos anos 60, procuraram assimilar os grupos quilombolas e seus territórios ao aparato estatal. A segunda metade do artigo relata o envolvimento pessoal do autor no julgamento da ditadura militar do Suriname, acusada pela Corte Interamericana para os Direitos Humanos de perpetrar uma política de assassinato e tortura contra o povo saramaka. No drama dos acontecimentos, condensam-se problemas fundamentais que os antropólogos enfrentam hoje no seu estudo sobre a diversidade cultural, poder do Estado, e justiça social.

Mais do que nunca, o artigo de Price demonstra que a diversidade cultural, longe de corresponder às cenas idílicas retratadas na capa desta revista (Las castas mexicanas, quadro pintado por Ignacio Maria Barreda, em 1777, no auge da época colonialista na América Ibérica), é uma questão de vida ou morte. Disso, com as guerras de limpeza étnica varrendo o planeta de ponta a ponta, ninguém pode ter mais dúvida. A reflexão antropológica não traz nenhuma solução milagrosa, mas ao colocar em relevo as implicações políticas das diferenças (vistas como) culturais, pode fazer uma contribuição importante para a compreensão do problema.

Além dos artigos temáticos, este número de Horizontes Antropológicos traz em “Espaço Aberto” a valiosa contribuição de Matthew C. Gutmann da Brown University: “Traficando con hombres: La Antropología de la Masculinidad”. A revista também agradece o inestimável trabalho do jornalista José Fonseca que traduziu os artigos de Geertz e Price do inglês e revisou os demais textos.

Claudia Fonseca

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Maio 1999
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