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LANNA, Marcos P. D. A dádiva divina: troca e patronagem no nordeste brasileiro. Campinas: Editora da Unicamp, 1995. 249 p.

LANNA, Marcos P. D.. A dádiva divina: troca e patronagem no nordeste brasileiro. 1995. Campinas: Editora da Unicamp, 249

Ao ler “A Dádiva Divina”, de Marcos Lanna, não pude deixar de comparar seu empreendimento antropológico à expansão das religiões afro-brasileiras que se “assentam” na tradicionalidade dos orixás e recriam-se constantemente na execução de uma liturgia em muito pautada na idiossincrasia de cada pai ou mãe-de-santo. É assim que sob velhas estruturas cosmológicas, conformações rituais novas expressam particularidades locais, numa constante recriação da tradição.

Não é apenas pela orientação de Marshal Sahlins que o livro de Lanna (uma versão de sua tese de doutoramento na Universidade de Chicago, em 1991) traz em sua inteireza (de forma e conteúdo) essa configuração de ancestralidade. Ancorado em referencias teóricas clássicas como a teoria da reciprocidade de Mauss a Lévi-Strauss, as noções de hierarquia de Dumont e as relações jocosas de Radcliffe-Brown, o autor apresenta uma etnografia sobre a patronagem no sertão nordestino, que remexe, de maneira original, em inquietações permanentes do pensamento social brasileiro. Neste ponto a filiação manifesta tem sangue nacional e reconhece em Roberto da Matta o pioneirismo de ter percebido a instrumentalidade da junção dos conceitos levistraussiano (de reciprocidade) e dumontiano (de hierarquia) para pensar a realidade brasileira.

Partindo de um olhar localizado, com pesquisa de campo bem delimitada, feita no Município de São Bento, no sertão pernambucano e no de Carpіna, na costa do Rio Grande do Norte, o autor lança inferências mais amplas (e mais frouxas – hipóteses a serem investigadas em outros estudos, como ele costuma frisar) sobre a realidade brasileira. Na particularidade da descrição das relações de troca e patronagem das duas cidades nordestinas e sua interação com o estado nacional, o antropólogo questiona a certeza de teses estabelecidas que sublinham o poder determinante das realidades globais sobre relações locais. A vida social de São Bento é descrita à moda dos estudos de comunidade dos anos 50, apresentando uma visão abrangente desde a organização produtiva, a vida política e religiosa, as relações de compadrio até os espaços de lazer. Na descrição do sistema de troca de dádivas, sugere não apenas um entrelaçamento dessas esferas em termos locais, como indica uma “dialética generativa’ entre os níveis local e estatal”. Nas palavras do autor “O poder é delegado de cima ao mesmo tempo que é gerado localmente, ou de baixo para cima, sem que haja contradição entre uma macro e micro física do poder” (p. 31).

Lanna descreve a organização social de São Bento como sendo constituída por um sistema de reciprocidade hierárquica, baseado numa lógica distributiva de dádivas centrada na figura dos patrões. A proposição do autor é de que na região investigada (e sempre ele deixa uma brecha para pensar da mesma forma para o Brasil como um todo) as relações capitalistas de produção não teriam superado cronologicamente a autoridade hierárquica dos patrões. O autor descreve organizações não capitalistas no sertão indicando que o mercado teria sido “domesticado” por estas e não ao contrário. As relações sociais baseadas na lógica de distribuição de dádivas englobariam as relações individualistas de contrato. Para o autor não residiria aí, no entanto, a perversidade deste sistema, mas sim na sua capacidade de proporcionar uma distribuição mínima, à qual os hierarquicamente inferiores teriam muito pouco acesso. Assim, a distribuição de medicamentos pela prefeitura, a obrigação de servir aos compadres e mesmo as relações de trabalho são regidas pela mesma lógica da concessão de dádivas que orienta a distribuição de quotas de financiamento estatal para usinas do nordeste. A prerrogativa dos hierarquicamente superiores concederem dádivas estabelecendo um estado de eterno endividamento dos hierarquicamente inferiores é explicada através do conceito maussiano de “prestação” – o qual é considerado neste trabalho mais amplo do que o de “dádiva”. Na percepção do autor no sertão haveria uma competição verticalizada entre desiguais e na costa uma competição entre os trabalhadores pelo privilégio da morada. Entre os patrões, entretanto, no lugar da típica competição capitalista, existiria uma troca de favores ou então uma disputa política faccionai, mas não de mercado. Lanna vê nesta situação “uma superposição de assimetrias capitalistas e não capitalistas, um amalgamento entre dominação de classe e desigualdade” (p. 32).

De uma maneira peculiar, o livro nos devolve o sabor de desvelar o caráter nacional ajudando-nos a compreender a burocracia estatal, as formas que o desenvolvimento capitalista assume no país e a persistência de relações clientelistas. Seguindo a tradição de Gilberto Freyre, a lógica hierárquica para Lanna se estende como generalidade para todas as relações sociais e o modelo de autoridade dos patrões é o reproduzido por toda a sociedade: “a lógica hierárquica constitui todas as nossas relações, dos vínculos familiares aos empregatícios” (p. 226).

Neste ponto podemos contrastar a análise de Lanna com outra tradição da etnografia brasileira que apresenta a visão dos grupos/classes populares/trabalhadoras como não inteiramente coincidente com a dos grupos abastados. Estes autores filiam-se, como Lanna, à teoria de reciprocidade de Marcel Mauss, entretanto para ressaltar uma dimensão de solidariedade entre iguais (ver, por exemplo, L. F. Duarte, 19862 DUARTE, L. F. D. Da vida nervosa nas classes trabalhadoras. Rio de Janeiro: Zahar, 1986.; C. Eckert, 19883 ECKERT, C. Os homens da mina. Ciência Hoje, v. 7, n. 41, p. 46-51, 1988.). Posso citar como exemplo uma pesquisa realizada no Rio Grande do Sul mostrando que, contrariamente ao previsto no esquema de Lanna, as relações de compadrio transformaram-se, nas últimas duas gerações, para dar um peso maior a relações “horizontais” – isto é, relações entre parentes antes do que entre patrão e peão. Ao reconhecerem a fragilidade do compromisso dos padrinhos escolhidos entre as classes superiores, os grupos populares urbanos passaram a apostar numa rede horizontal de solidariedade que privilegia parentes e vizinhos (Brites; Fonseca, 19901 BRITES, J.; FONSECA, C. Um atalho até Deus: uma prática de catolicismo popular no Rio Grande do Sul. Religião e Sociedade, v. 15, n. 2-3, p. 136-161, 1990.). Nesta conjuntura, a “visão hegemônica” não parece explicar tudo.

As diferentes interpretações têm a ver evidentemente com escolhas metodológicas através das quais o antropólogo constrói seu objeto. O trabalho de Marcos Lanna nos auxilia a enxergar com maior clareza o norte no sul, o local no global, mas seu enfoque talvez não seja suficiente para aplacar toda a diversidade de uma construção social (classe, etnia, tradição histórica, gênero). Entretanto, muito do desenvolvimento da antropologia nutriu-se das tensões entre suas correntes. A Dádiva divina vem assim contribuir ao debate sobre cultura no Brasil não apenas por acurar nosso conhecimento sobre as relações entre o regional e o nacional, o subalterno e o dominante, o particular e o universal, mas também por proporcionar uma reflexão sobre as consequências teóricas de caminhos metodológicos.

Marcos Lanna discorda das criticas ao realismo etnográfico, afirmando repetidamente que a realidade que descreve não está na cabeça do antropólogo, mas representa efetivamente os valores das pessoas que ele investigou. Se interpretações sobre a criatividade cultural dos subalternos são construções textuais, elas têm o mérito de anunciá-la, e assim talvez criar a possibilidade de se acreditar nela.

Referências

  • 1
    BRITES, J.; FONSECA, C. Um atalho até Deus: uma prática de catolicismo popular no Rio Grande do Sul. Religião e Sociedade, v. 15, n. 2-3, p. 136-161, 1990.
  • 2
    DUARTE, L. F. D. Da vida nervosa nas classes trabalhadoras Rio de Janeiro: Zahar, 1986.
  • 3
    ECKERT, C. Os homens da mina. Ciência Hoje, v. 7, n. 41, p. 46-51, 1988.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Maio 1999
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