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VERDE, Filipe (Direção). Biografia de uma mina: uma videopoética da anamnese. Vídeo. Imagem: Jorge Humberto Norte. Música: Nuno Rebelo. Pós-Produção Áudio: Nanã Sousa Dias. Realização: Filipe Verde e Jorge Humberto Norte. VHS – NTSC. Duração aproximada: 45 min, 1998.

Estamos no ano de 1854, numa região situada no interior sul de Portugal. O senhor Nicolau Piava, espanhol, madrilenho, procura os vestígios de uma antiga mina romana de extração de cobre, extinta há mais de 20 séculos. Ele encontra o filão abandonado e dá início a história da cidade de São Domingos, a história de um povo e sua mina.

O vídeo “Biografia de uma Mina”, de Filipe Verdi, é baseado numa densa pesquisa sobre memória, realizada pelo próprio autor junto aos remanescentes do que restou da cidade de São Domingos. Nas palavras de Filipe, o vídeo buscou invocar essa história a partir de fragmentos de memória, manuscritos antigos e ruínas, numa espécie do que se poderia chamar de “Arqueologia Visual”. O resultado é uma obra sensível que nos proporciona uma verdadeira experiência de intersubjetividade. A competência da narrativa audiovisual cumpre seu papel mágico, reservando à imagem seu caráter onírico de simulacro da memória vivida. A magia de dar vida a fragmentos, cacos de memória, ruínas, enfim, de envolver o expectador em um mundo e tempo que passa a lhe pertencer, como uma vida anterior, um tempo perdido, ora reencontrado.

Para dar conta do recado, Filipe não economiza detalhes fundamentais como a paisagem sonora de imagens antigas da cidade e da mina de São Domingos, a música incidental, a montagem “elíptica”, revelando a ruptura operada pela ação do tempo através do uso de fotos antigas sobrepostas a tomadas recentes das ruínas. Por quarenta e cinco minutos, nos mudamos para aquela cidade portuguesa, somos seu povo, vestimos suas roupas, moramos em seus casebres, partilhamos seu tempo e seu destino, sua mina e sua ruína, vivemos sua memória.

A mina de São Domingos foi um enorme empreendimento. A mina fundou a cidade. Dezenas de cidades foram fundadas ao longo da via férrea que ligava a cidade ao mar. Milhares de pessoas tinham suas vidas literalmente pautadas pela gestão da mina.

O vídeo traça essa história por dois caminhos. Primeiro, a história econômica do empreendimento, a ascensão e queda de um império, seus fundadores e administradores, as dificuldades de mercado, as estratégias, as guerras, enfim, a memória oficial. Num segundo momento, conhecemos a história dos milhares de homens e mulheres, anônimos, que viveram em função de uma mina de extração de cobre. São pessoas humildes, habitantes de uma região extremamente pobre, recortada por latifúndios; trabalhadores rurais de uma agricultura sazonal, geralmente excedentes durante as entressafras; vadios.

Com a instalação da mina em 1856, acontece uma espécie de “corrida do ouro”, a semelhança do que ocorreu nos Estados Unidos. Há uma imensa migração desses trabalhadores para a região, dando forma a uma massa de operários. Não demoram a surgir os primeiros conflitos trabalhistas, reprimidos prontamente, com seus líderes presos e deportados. A companhia necessitava de mão de obra barata e disciplinada. Adota então uma política paternalista, constrói uma cidade e oferece moradia a baixo custo para quem trouxesse suas famílias para morar junto da mina. A estratégia funciona. Quarenta anos depois, existem 8.000 habitantes permanentes em São Domingos. São pessoas que nasceram e viveram toda a sua vida no mesmo lugar. Com o corte do vínculo com o mundo rural, os filhos e netos dos mineiros serão mineiros também.

O trabalho do mineiro não necessita qualificação, mas sua condição exige força e resistência física. Eles trabalham 6 dias por semana, 12 horas por dia, de dia ou de noite, e não são funcionários da empresa, ou seja não tem nenhuma garantia de trabalho. Essas condições de trabalho somadas as condições de vida dos mineiros geram uma série de tensões sociais.

A mina fecha em 1962, mais de cem anos após sua fundação. Uma pequena parcela dos personagens da história da mina de São Domingos, hoje são vizinhos de suas ruínas. Lembram com saudade do tempo em que a cidade tinha uma identidade própria, completamente diversa daquele mundo rural que a cercava: o ruído do centro industrial, a agitação do mercado, as festas de carnaval e de Santa Bárbara, o teatro, os cinemas, os clubes recreativos, a boemia, o futebol, a filarmônica, o seu jeito típico de falar… Saudade.

Esse é o sentimento que fica ao final da exibição do vídeo. Saudade de um tempo que não vivemos mas sabemos perdido para sempre, o tempo do não retorno. Aprendemos com o vídeo que também estamos vivendo um tempo que no futuro há de ser lembrado com saudade. Me imagino com 70 anos visitando as ruínas do que hoje parecem impérios…

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Dez 1999
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