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HOLANDA, Luiz Buarque de. (Direção). Pierre Fatumbi Verger, mensageiro entre dois mundos. Vídeo. Apresentação e narração: Gilberto Gil. Direção de fotografia: César Charlone. Roteiro: Marcos Bernstein. Trilha sonora: Naná Vasconcelos. Consultoria: Milton Guran. Edição: João Henrique Ribeiro, Vicente Kubrusly. Som: Valéria Ferro. Conspiração Filmes/Gegê Produções/GNT Globosat. Documentário em 35 mm, 80 min, 1998.

A coisa não me interessava, é por isso que consegui. Porque na vida quando você está com uma dama se você corre atrás dela ela lhe deixa. Se você olha para o outro lado é ela quem corre atrás de você. Com este conhecimento é a mesma coisa. (Pierre Verger).

Pierre Fatumbi Verger, mensageiro entre dois mundos é um documentário iniciático. Uma iniciação ao universo dos Orixás, através da ótica do etnógrafo/fotógrafo francês que viveu entre baianos e africanos e que foi um iniciado nos segredos da religião dos dois povos. A equipe de filmagem, personificada por Gilberto Gil, seguiu os passos de Verger na França, Bahia e África (Benin) buscando desvendar a misteriosa figura desse ancião que com mais de noventa anos lhes concedeu uma entrevista e um dia depois morreu.

Em verdade o documentário irá construir um personagem em volta da aura de mistério que envolve a entrevista de Verger a Gilberto Gil na véspera de sua morte. Verger parece já um fantasma, uma aparição, a contar de suas andanças entre as casas de candomblé da Bahia e os terreiros de Dahomey (atual Benin) na África. A entrevista é o ponto de partida para colocar a grande questão do documentário: como um francês, branco, intelectual e racionalista pôde se tornar tão íntimo dos Orixás, de sua religião e seu povo, a ponto de se tornar um Babalaô (pai do segredo) e receber um novo nome: Fatumbi – nascido de novo graças ao Ifá.

Seguir a ótica, o ponto de vista de um etnógrafo, de um fotógrafo, é muito mais do que tentar ver o mundo do seu jeito, no sentido literal do verbo. Mais do que reconstituir em filme muitas fotos de Verger na busca de uma sincronia dos ritos e do cotidiano fotografado, a equipe de filmagem resolve assumir o personagem de Verger, tendo-se a figura de Gilberto Gil como personificação dessa equipe que iniciará uma jornada semelhante a do etnógrafo. Visitando os mesmos lugares, com o diário de campo de Verger a mão, conversando com pessoas que ele conheceu, indo também ao berço do candomblé nos locais onde Verger foi iniciado na África (Kêto) e principalmente participando dos ritos que Verger participou a equipe busca “incorporar” Verger, tornar-se também, mensageira entre dois mundos.

Nessa “incorporação” do personagem de Verger, me parece que a equipe segue dois caminhos paralelos. O primeiro caminho analisa o trabalho de Verger no que tange a sua obra acadêmica: os livros importantes, às comparações entre ritos baianos e africanos nas fotografias, o brilhante estudo do tráfico negreiro na origem negra do povo baiano, a técnica fotográfica. Todo o tom investigativo do trabalho de Verger é contado pelo documentário com a ajuda de historiadores, conhecidos e principalmente com a consultoria do antropólogo (e também fotógrafo) Milton Guran.

É do segundo caminho paralelo que essa equipe toma que gostaria de me deter mais. Pode-se se dizer que a proposta metodológica do documentário é a de configurar uma experiência etnográfica que Verger viveu nos seus anos de trabalho. É claro que o documentário não dá conta de todo o Universo dos Orixás, muito menos do pensamento de Veger, mas é esse mesmo o seu acerto. Ao refazer a trajetória de Verger na Bahia e África a equipe passa a se impregnar desse Universo simbólico do Candomblé e suas origens na África. Termos e nomes que para leigos fazem pouco ou sentido algum, como Egoum, Babalaô, Orixá, Ialorixá, Ifá, são apresentados ao espectador inseridos na narrativa, de maneira que lhe permite lidar com esses conceitos.

Nessa trajetória, Gilberto Gil conversa com amigos do etnógrafo na Bahia e lê seu diário de campo até que chegamos ao primeiro salto no roteiro: o momento da primeira viagem de Verger à África, quando Mãe Senhora consagra a cabeça de Verger a Xangô, na Bahia, para que ele pudesse falar em seu nome na África. Partimos para Kêto, no atual Benin onde Verger realizou grande parte de sua pesquisa. Assim como Gil e a equipe, vamos penetrando nessa cultura e conhecendo um pouco de alguns ritos, e principalmente, de quem foi Verger em meio ao povo do antigo Dahomey – mais do que um pesquisador que fotografava tudo, alguém que sabia como se comportar nos ritos, alguém que tinha o seu lugar ritual. Esse lugar ritual será assumido pela equipe:

Na Africa vivi entre eles sem nunca perguntar qualquer coisa. Convivi com a gente como seria uma coisa natural. Sabia me comportar e não perguntava – Por que você faz isso? – Onde você mostra a sua ignorância. Em geral, você pergunta coisas que não têm significado nenhum. Tem muitas coisas que fazemos e não sabemos por quê. (Pierre Verger).

Os “imponderáveis da vida social” que Verger fotografava diziam respeito à relação do povo da Bahia e de Dahomey com os Orixás. Suas fotos apresentam um domínio do gesto e da expressão corporal, o transe, os olhos fechados têm força nas fotos de Verger, ao ponto das pessoas reconhecerem nas suas fotos os próprios Orixás:

Ele tirou foto de muito egoum. Ele mostrou as fotos e saiu mesmo o egoum. (Pai Balbino).

Se as imagens do documentário não chegam a atingir essa dimensão, essa familiaridade de Verger com os Orixás, elas se aproximam: planos fechados em olhos fechados, a dança da câmera, a luz, as sombras, a pele negra, o som e a música parecem seguir um ritmo, um transe, uma duração. Em verdade é um desafio para o fotógrafo e para a equipe de filmagem: fotografar o que os olhos não podem ver – os Orixás. E nesse ponto, o documentário é bem sucedido, as imagens (fotografia, som, música) configuram essa potência simbólica dos cultos aos Orixás, ou ao menos, insinua-os, sem banalizá-los, mas mostrando toda a sua força na expressão corporal e oral de seus seguidores. Belas imagens que o estranhamento produz.

A grande questão desse documentário, como já coloquei, é a busca da relação que Verger tinha com o conhecimento. Para além de uma objetividade “despoetizante”, o documentário vale-se do personagem Verger para iniciar-nos entre os Orixás. Sem a obrigação científica de uma etnografia, o documentário valeu-se de muito mais do que belas imagens ao abordar o trabalho, a experiência temporal de Verger, a ponto de impregnar-se do mesmo objeto estudado, realizando também uma construção de conhecimento ao iniciar o espectador num espaço de problemas semelhantes aos que Verger vivenciou. Trata-se de uma narrativa que intercala descobertas e segredos na religião estudada. Ao invés de uma lâmpada de 1.000wts que coloca tudo a mostra, a luz desse conhecimento se assemelha a uma chama, revelando algumas coisas e deixando outras à sombra.

Verger teve acesso a todos os segredos porque soube guardar. (Pai Agenor).

Ao final do documentário, continuamos sem saber o que Pai Balbino quis dizer com “Veger raspou o fundo da cuia”, ao explicar por que ele fora aceito pelos Orixás. E ficamos sem saber também se Verger acreditava nesses Orixás (apesar dele mesmo afirmar sua descrença). Mas através desse personagem Verger, incorporado pela equipe do documentário, tivemos acesso a uma primeira porta no outro mundo, no mundo do outro. É essa postura metodológica na construção de seu conhecimento que me parece a grande mensagem de Verger ao fim do documentário. Nem dissecar o fenômeno estudado ao ponto de banalizá-lo, nem esquecer do lugar ritual que ocupa o pesquisador (e o documentalista) em campo, mensageiro entre dois mundos. Mestre de luz e sombra. Segredo de mágico, de Babalaô, de pai do segredo.

Para mim não é incorporação. Para mim é uma manifestação da verdadeira natureza da gente. Uma possibilidade de esquecer todas as coisas que não têm nada que ver com você. Fica a pessoa como era antes de aprender essas estupidezas de nacionalidades e outros comportamentos. – O sr. já teve esse “esquecimento” do orixá? – Infelizmente não! Porque sou um idiota de francês racionalista. A mim não me contam histórias, eu não sou um idiota que acredita nessas coisas. É uma coisa “despoetizante”, horrível. Eu sofri muito, gostaria muito de me deixar ir.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Dez 1999
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