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L'adieu au corps

RESENHAS

Débora Krischke Leitão

Mestranda, Universidade Federal do Rio Grande do Sul - Brasil

LE BRETON, David. L'adieu au corps. Paris: Éditions Métailié, 1999. 239 p.

As novas tecnologias e sua relação com o corpo são a preocupação central do livro "Adeus ao corpo", de David Le Breton. O autor identifica inúmeras práticas contemporâneas, legitimadas sobretudo pelos saberes científicos que, na atualidade, modificariam o trinômio corpo-sujeito-sociedade.

É certo que o ser humano sempre modificou seu corpo de alguma forma nas mais diferentes sociedades, e que essas modificações são como signos da eterna tensão entre cultura e natureza. Corpo é portanto um duplo, natural e cultural a um só tempo, uma representação da cultura sobre a natureza. A preocupação com questões relacionadas ao corpo é recorrente na tradição das Ciências Sociais, sobretudo na Antropologia.

O que há de novo então? A novidade estaria na amplitude que teriam tomado certas práticas e em sua presença constante na vida cotidiana das modernas sociedades ocidentais, instaurando novas relações entre os homens.

Le Breton, ao longo do livro, desenha um quadro desse "admirável mundo novo" e, se em certas passagens temos a impressão de entrar em um verdadeiro livro de ficção científica, somos chamados de volta à realidade através de depoimentos e exemplos atuais. Sua análise se estrutura de fora para dentro, começa na pele para chegar aos genes, ou, mais além, à abstração de um corpo inexistente, um sujeito que se desvincula do corpo material no mundo da cibercultura.

Os exemplos de modificações na superfície do corpo aparecem no primeiro capítulo do livro, sobretudo pela ação do homem sobre a pele, sob forma de marcas corporais como a tatuagem, o piercing, e o branding1 1 Marca corporal semelhante a tatuagem. Feito sem o uso de pigmento, o branding deixa sua marca queimando a pele. . Juntam-se então a essas práticas o fisiculturismo e a cirurgia plástica estética e de mudança de sexo, trazendo a idéia de liberdade de modificar o corpo indiscriminadamente. O homem torna-se senhor de seu corpo, o que só é possível, segundo o autor, a partir do ideal de uma separação entre o indivíduo e seu corpo. A oposição histórica entre corpo e alma, já há muito objeto de reflexão da Filosofia e da Antropologia, tomaria uma nova forma, sendo transferida agora para mais além, para a oposição entre o corpo e o próprio indivíduo. O corpo torna-se então uma espécie de alter ego do sujeito, um "outro" maleável de acordo com suas vontades.

Essas primeiras formas de alterações corporais analisadas por David Le Breton não chegam a causar espanto. São fáceis de pensar, talvez por sua proximidade, mas antes de tudo por sua concretude. É nos capítulos seguintes que podem causar algum desconforto.

O uso de psicotrópicos para alterar, moldar ou mesmo possibilitar a escolha de humores e estados de espírito é o tema do segundo capítulo do livro. Não chega a tratar de drogas ilícitas, apenas daquelas socialmente aceitas: remédios cuja venda é controlada mas que, receitados por profissionais, são facilmente comprados em qualquer farmácia. Um exemplo buscado na ficção é o de Blade Runner, no qual personagens programam estados de espírito, tanto em conteúdo quanto em duração. Não é preciso entretanto ir tão longe quando, aqui mesmo, e de forma tão corriqueira, também temos o controle farmacológico de necessidades e emoções através dessas pequenas pílulas que são capazes de trazer bem-estar, evitar a dor, controlar o apetite, a ansiedade ou o sono.

No terceiro capítulo do livro, intitulado La Manufacture d'Enfant, é explorada a temática da reprodução assistida e suas conseqüências, transformando as relações de parentesco e filiação. Surge então aos nossos olhos um cenário onde a fecundação in vitro é lugar-comum, tornando possível que mulheres até há pouco consideradas fora dos limites do que tínhamos como idade reprodutiva engravidem. O congelamento de óvulos e esperma, além de servir para alargar com alguma segurança a faixa etária em que se pode ter filhos, traz consigo a possibilidade de uma triagem. Sabe-se que nos Estados Unidos atualmente é relativamente grande a procura por bancos de esperma cujos doadores são figuras ilustres, ganhadores de prêmio Nobel ou esportistas consagrados. O fantasma da crença em um "aperfeiçoamento" levaria mulheres a escolher um pai que, dentro da lógica da herança genética como principal definidora de características individuais, garanta para seus filhos uma inteligência, beleza ou condicionamento físico superior à média.

Se até pouco tempo o sexo do bebê só era sabido após o nascimento, torna-se possível não apenas saber, mas escolhê-lo antes mesmo que tenha início a gestação. A triagem entretanto não diz respeito apenas ao sexo da criança ou às características do pai-doador, vai além, busca através de testes verificar o "bom estado" do feto e identificar doenças hereditárias. É nesse ponto que encontramos a ligação para o capítulo seguinte, que diz respeito à herança genética e ao estudo dos genes humanos. O projeto Genoma, tendo como objetivo a identificação do encadeamento dos elementos formadores da estrutura do DNA e a determinação da localização e da função dos genes humanos, seria capaz de criar uma espécie de enciclopédia para a medicina do futuro.

Decodificando a mensagem hereditária contida nas células humanas seria possível prevenir doenças geneticamente herdadas. O grande perigo, entretanto, estaria na crença recorrente de que tudo se explica pelos genes. David Le Breton fala em uma verdadeira paixão de uma parcela significativa da sociedade americana pela genética, paixão essa justificada pela promessa da origem hereditária dos comportamentos. Os partidários dessa visão acreditariam, portanto, ser possível o isolamento dos genes responsáveis pela propensão ao uso de drogas, ao alcoolismo, à homossexualidade, ou do cromossomo da depressão ou da violência.

Junto a essa espécie de determinismo genético, a polêmica da clonagem de células humanas despertaria centenas de fantasias, suscitando questões do que é o "eu" e do que é o "outro", até onde o sujeito é de fato singular. Menos existencial e mais prática é a idéia de se produzir, através da clonagem, tecidos e órgãos fora do corpo para implantes e transplantes que, sendo desenvolvidos a partir das próprias células do paciente, teriam mínimas chances de rejeição. Seria quase como trocar peças com defeito por outras novas e em perfeito funcionamento, levando a pensar antes de tudo no desejo da saúde eterna e de se prolongar a vida o tanto quanto possível.

Nos capítulos 5 e 6 de "Adeus ao corpo" o autor propõe uma reflexão a respeito do ciberespaço como lugar de desaparecimento do corpo. Nesse espaço imaterial indivíduos espacialmente distanciados entram em contato. A única forma de toque é a das pontas dos dedos no teclado, e a única imagem aquela vista através da tela do computador. A virtualidade então seria por excelência um espaço onde o corpo (fisiológico) fica pendente, provisoriamente esquecido enquanto matéria. É o território das imagens e dos signos, onde coexistem em virtualidade inúmeros corpos em potencial.

Tratando da sexualidade no ciberespaço (e o autor fala em "cibersexualidade") pode-se pensar em um erotismo "fora do corpo", que encontra sentido não no encontro entre corpos, mas em uma interação de imagens, criando personagens, situações e mesmo ações a partir de palavras. O corpo físico é então desnecessário, e mesmo indesejável, em um mundo onde se pode potencialmente vestir qualquer máscara, tornar-se qualquer personagem, ter qualquer forma, cor, toque e cheiro imaginável e imaginado.

O último capítulo do livro tem início com uma discussão a respeito da inteligência artificial e do ideal de criar máquinas cada vez mais próximas do homem, mais autônomas e mais humanizadas através da robótica e cibernética. Acaba seguindo a trilha, entretanto, de uma espécie de conclusão, na medida em que Le Breton propõe que pensemos o próprio homem contemporâneo como um cyborg. A palavra assusta um pouco, talvez por remeter o pensamento aos robôs prateados que tomam o lugar do homem nos antigos filmes de ficção científica, mas quer dizer apenas cybernetic organism, e não fica assim tão distante da realidade que a argumentação do autor constrói ao longo do livro: modificações corporais, próteses estéticas ou corretivas, engenharia genética e interação sem a necessidade da presença física.

Em alguma medida seria possível dizer que "Adeus ao corpo" traz algumas previsões do que está por vir mas, acima de tudo, traz a visão de uma realidade presente e concreta. E nela, de que forma se configuram os dados antropológicos com os quais estamos acostumados a trabalhar? Há alguma alteração? Como ficam oposições tão caras ao pensamento como natural/artificial, homem/máquina, vida/morte, real/virtual, eu/outro?

O livro de David Le Breton parece trazer um aviso e um conselho: é preciso dar atenção aos novos movimentos que tomam forma, refletir sobre o lugar das novas tecnologias, das formas de viver e pensar que se transformam com elas, que transformações são essas e até mesmo em que medida há realmente grandes modificações. Temos aqui então uma pista, um caminho ainda não muito definido, mas que sugere às Ciências Sociais questões que não devem ficar restritas as discussões da Medicina, Genética ou Tecnociências. E que há muito deixaram de povoar apenas a mente de romancistas e visionários.

  • 1
    Marca corporal semelhante a tatuagem. Feito sem o uso de pigmento, o
    branding deixa sua marca queimando a pele.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      22 Set 2005
    • Data do Fascículo
      Jul 2001
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