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Homossexualidade e saúde: desafios para a terceira década de epidemia de HIV/AIDS

Resumos

Neste artigo aponto alguns desafios que a epidemia de AIDS vem apresentando àqueles envolvidos com a promoção da saúde de homens com práticas homossexuais. Apesar de os homossexuais destacarem-se no empenho para enfrentar a epidemia, com uma mobilização que gerou ONGs, manuais sobre sexo seguro e promoção dos direitos humanos, continuam sofrendo com a associação AIDS-homossexualidade. Divido os desafios a serem enfrentados em três campos: epidemiologia, prevenção e assistência. Saliento a importância da interdisciplinaridade dos diferentes saberes, da solidariedade entre pesquisadores e ativistas e da integralidade das ações de prevenção e assistência. As lições aprendidas indicam que as relações entre homossexualidade e saúde devem se definir a partir da solidariedade e da promoção da felicidade.

AIDS; homossexualidade; prevenção da AIDS


In this paper I discuss some challenges posed by the AIDS epidemic to those involved in the promotion of health among men with homosexual practices. Although homosexuals are at the forefront of the struggle against the epidemic, with a mobilization that has generated the creation of NGOs, safe sex manuals and the promotion of human rights, they are still suffering with the association AIDS-homosexuality. I divide the challenges into three fields: epidemiology, prevention and care. I highlight the importance of interdisciplinarity among the different fields of knowledge, solidarity among researchers and activists and the integration of prevention and care actions. The lessons learned indicate that solidarity and the promotion of happiness should be the basis upon which the relations between homosexuality and health should be determined.

AIDS; homosexuality; AIDS prevention


ARTIGOS

Homossexualidade e saúde: desafios para a terceira década de epidemia de HIV/AIDS

Veriano Terto Jr.

Associação Brasileira Interdisciplinar de AIDS (ABIA) – Brasil Pesquisador-visitante do PPGAS – Universidade Federal do Rio Grande do Sul – Brasil

RESUMO

Neste artigo aponto alguns desafios que a epidemia de AIDS vem apresentando àqueles envolvidos com a promoção da saúde de homens com práticas homossexuais. Apesar de os homossexuais destacarem-se no empenho para enfrentar a epidemia, com uma mobilização que gerou ONGs, manuais sobre sexo seguro e promoção dos direitos humanos, continuam sofrendo com a associação AIDS-homossexualidade. Divido os desafios a serem enfrentados em três campos: epidemiologia, prevenção e assistência. Saliento a importância da interdisciplinaridade dos diferentes saberes, da solidariedade entre pesquisadores e ativistas e da integralidade das ações de prevenção e assistência. As lições aprendidas indicam que as relações entre homossexualidade e saúde devem se definir a partir da solidariedade e da promoção da felicidade.

Palavras-chave: AIDS, homossexualidade, prevenção da AIDS.

ABSTRACT

In this paper I discuss some challenges posed by the AIDS epidemic to those involved in the promotion of health among men with homosexual practices. Although homosexuals are at the forefront of the struggle against the epidemic, with a mobilization that has generated the creation of NGOs, safe sex manuals and the promotion of human rights, they are still suffering with the association AIDS-homosexuality. I divide the challenges into three fields: epidemiology, prevention and care. I highlight the importance of interdisciplinarity among the different fields of knowledge, solidarity among researchers and activists and the integration of prevention and care actions. The lessons learned indicate that solidarity and the promotion of happiness should be the basis upon which the relations between homosexuality and health should be determined.

Key words: AIDS, homosexuality, AIDS prevention.

O presente artigo visa apontar alguns desafios que a epidemia de AIDS vem apresentando aos envolvidos com a promoção da saúde de homens com práticas homossexuais e com pesquisa social sobre homossexualidade masculina. As questões aqui abordadas dizem respeito à formulação de políticas públicas de saúde para essa população (especialmente no enfrentamento da AIDS), podendo também interessar aos pesquisadores sociais empenhados em pensar sobre saúde, homossexualidade e AIDS.

As relações entre homossexualidade e saúde neste último século têm sido motivo de debates e controvérsias, tanto no âmbito das ciências médicas como no dos movimentos sociais. Durante este período, a homossexualidade foi considerada uma doença, e os indivíduos com práticas homossexuais, tratados como se fossem portadores de alguma patologia ou distúrbio, que poderia ser diagnosticado como de origem biológica, genética ou de um desenvolvimento psíquico inadequado1 1 Em 1985, por pressão dos grupos gays organizados da época, o Brasil excluiu do âmbito nacional o item 302.0 do Código Internacional de Doenças da Organização Mundial de Saúde, que classificava a homossexualidade como doença psiquiátrica. Em âmbito internacional, esse item vigorou até os anos 90, quando a própria OMS o eliminou. .

O advento da AIDS, no início dos anos 80, complexificou estas relações e serviu de motivo para o recrudescimento de preconceitos contra os homossexuais, e a própria homossexualidade masculina se transformou num sinônimo de AIDS. No início, a associação chegou a tal ponto que a doença, recém-descoberta, chegou a ser chamada de GRID (Gay Related Immunedeficiency) nos meios científicos e de câncer gay, peste gay ou peste rosa pela imprensa e pela opinião pública (Daniel; Parker, 1991).

Passados 20 anos, a AIDS continua um grave problema no cotidiano dos homossexuais masculinos. As representações sociais que identificavam os homossexuais ora como vilões, ora como vítimas da AIDS, ainda permanecem e fazem com que, individualmente, continuem a sofrer com os estigmas e preconceitos decorrentes da associação AIDS-homossexualidade e pela possibilidade de vir a infectar-se com o HIV, caso não sejam adotadas práticas sexuais seguras. Coletivamente, a epidemia ainda se impõe como um problema que exige respostas de diferentes setores governamentais e demanda mobilização para que recursos sejam garantidos e aplicados na prevenção e assistência, para que a discriminação e o preconceito sejam denunciados e punidos, para que os direitos humanos sejam respeitados. As complexas relações entre homossexualidade e as políticas de saúde podem ser ilustradas pelo seguinte exemplo: no Brasil, os homossexuais (que se auto-identificam na hora da doação) são proibidos de doar sangue nos bancos de sangue por portaria do Ministério da Saúde, que os considera um potencial grupo de risco para a AIDS e outras doenças transmissíveis por via sangüínea. Tal decisão vem sendo questionada pelo movimento homossexual e pelas ONGs/AIDS pelo seu caráter discriminador e estigmatizante, que pode estar trazendo mais danos à população do que efetivamente contribuindo para um controle da epidemia e de outras doenças.

O impacto da AIDS sobre homossexuais chegou a assumir dimensões catastróficas nos países ocidentais, já que estão entre os mais atingidos. Por outro lado, os homossexuais, sejam através de lideranças ou organizações gays, estão entre aqueles que, ainda nos anos 80, primeiro e mais diretamente se mobilizaram para enfrentar os desafios impostos pela epidemia, não só sobre a população homossexual, como sobre outras populações específicas e sobre a população como um todo. Esta mobilização foi geradora de respostas, como a criação de diversas organizações não-governamentais de serviços em AIDS (ONGs/AIDS), produção dos primeiros manuais sobre as formas de transmissão e sobre sexo mais seguro, a promoção dos direitos humanos e da solidariedade como princípios básicos do trabalho de prevenção, entre outras (Terto Jr., 1997).

Embora estas respostas possam ter contribuído para uma tendência à estabilização no número de novos casos em alguns países, como no caso do Brasil, a associação entre AIDS e homossexualidade continua sendo motivo de debate e de análise, tanto por parte dos pesquisadores sobre sexualidade e saúde, como dos ativistas e experts envolvidos com o enfrentamento da epidemia. No início da terceira década de convivência com a epidemia, velhos desafios se somam a novos2 2 Um exemplo de como os velhos preconceitos que relacionam AIDS e homossexualidade masculina permanecem é a declaração do articulista da Folha de São Paulo, em crônica de 3 de março de 2000, dizendo que "para pegar AIDS na certa basta freqüentar gays" [Fonte: Folha de São Paulo, 3/3/2000] (Mott; Cerqueira, 2001, p. 81). . Entre os mais recentes, pode-se apontar a seguinte tendência: quando se aborda a saúde dos homossexuais masculinos, a primeira e imediata referência é identificar a AIDS, como se esta fosse o único problema de saúde possível nesta população, ou como se o status sorológico para o HIV fosse a única medida para avaliar a saúde de homens homossexuais (Tuller, 2001).

Tal tendência demonstra a dimensão do impacto da AIDS sobre a vida dos homossexuais e como a representação AIDS-homossexualidade ainda resiste e pode estar impondo barreiras, inclusive, às iniciativas de prevenção e assistência nessa população, assim como pode estar dificultando a compreensão de como o HIV/AIDS, assim como outros problemas de saúde, estão afetando as diferentes populações de homens que têm sexo com homens. A tendência a reduzir os problemas de saúde dos homossexuais à AIDS pode dificultar ainda o levantamento sobre as reais necessidades de saúde dessa população e os caminhos para adequar os serviços de saúde de forma a atender essas necessidades.

A seguir discutirei alguns dos desafios que precisam ser enfrentados no âmbito das relações entre homossexualidade, saúde e AIDS nos próximos anos. Divido-os em três campos: epidemiologia, prevenção e assistência. Espero, ao delinear essas questões, estar contribuindo para o debate e para a pesquisa, tanto no contexto acadêmico (mais especificamente a pesquisa social), como naquele dos serviços públicos e do ativismo gay.

Epidemiologia

Na América Latina, aproximadamente 43,5% dos casos de AIDS estão relacionados à transmissão homo-bissexual (Cáceres; Chequer, 2000). No Brasil, na década de 90, aproximadamente 24% dos casos de AIDS estão relacionados à transmissão homo e bissexual, contra aproximadamente 30% dos casos relacionados à transmissão heterossexual. Na década de 80, as estatísticas brasileiras registravam aproximadamente 47% dos casos relacionados à transmissão homo-bissexual, contra 10% entre os heterossexuais. Tais porcentagens demonstram que a transmissão homossexual é tão importante quanto a heterossexual, ao mesmo tempo em que apontam para uma tendência à diminuição do número de casos entre os homossexuais. No entanto, raras foram as iniciativas governamentais de prevenção destinadas à população homossexual masculina que pudessem marcar a relevância da transmissão homossexual na disseminação do HIV/AIDS ou com as quais pudéssemos relacionar a tendência à diminuição de casos. Quase todas as iniciativas de prevenção conhecidas foram realizadas por ONGs/AIDS e grupos gays. No caso do Brasil, a primeira campanha governamental a ser realizada em nível nacional está prevista para 2002.

No campo da epidemiologia, também são escassos e pouco difundidos os estudos epidemiológicos que, qualitativamente, se debruçam sobre a questão da homossexualidade e podem ajudar na compreensão de como a epidemia vem afetando diferentes populações de homens com práticas homossexuais e com quais outros problemas de saúde e doenças se cruzam. A realização de mais estudos poderia, inclusive, ampliar a compreensão de como as porcentagens de casos relativos à transmissão heterossexual subiram e como caíram os casos devidos a transmissão homossexual.

Nos últimos anos, a homossexualidade, como categoria social, tem sido objeto de pesquisas e debates, que vêm colocando à luz diferentes processos de como identidades sociais e políticas são conformadas a partir da vivência de desejos sexuais por pessoas do mesmo sexo (Heilborn, 1996; Parker, 1991; McRae, 1990). No campo da epidemiologia também tem sido problemática a definição da homossexualidade como categoria epidemiológica, e o seu enfoque se apresenta complexo e difícil. Nem sempre a transmissão homo-bissexual corresponde a casos de pessoas com uma identidade sexual/social definida como homossexual, podendo ser até pessoas que se definam socialmente como heterossexuais. No Brasil, 18% dos casos de AIDS entre homens ainda acusam transmissão por causa ignorada, e a dificuldade de compreender quem são e o que acontece nestes 18% pode ser resultado de limites dos instrumentos epidemiológicos e da complexidade em definir epidemiologicamente o universo homossexual. Pode ser que entre estes 18% estejam incluídos homens com práticas homossexuais esporádicas ou constantes e com identidades sociais heterossexuais (Brasil, 2001a).

Se houve uma queda no número de casos relacionados à transmissão homo-bissexual, ou se há uma tendência à estabilização no número de novos casos, seria interessante conhecer o porquê e como essas mudanças se distribuem por diferentes segmentos da população homossexual, levando em conta fatores como idade, raça, classe social, áreas geográficas, entre outros. Há registros que apontam para a juvenilização e a pauperização na incidência do HIV/AIDS no Brasil e em outros países (Pimenta et al., 2001). Jovens com práticas homossexuais têm sido apontados como especialmente vulneráveis ao HIV e podem aumentar outra vez a incidência de AIDS entre a população homossexual masculina. Antes que novos estigmas sejam criados ou antigos reforçados, é importante a realização de estudos que possam analisar essas tendências e fatores correlatos, que possam orientar ações de prevenção e contribuir na definição sobre as necessidades no âmbito da saúde que os homens com práticas homossexuais possam estar expressando, não somente aquelas relacionadas ao HIV/AIDS, também a outras doenças e fatores de vulnerabilidade.

Prevenção

Calcula-se que menos de 5% dos recursos totais empregados em prevenção na América Latina tenham sido destinados ao HIV/AIDS na população homossexual (Cáceres; Chequer, 2000). No Brasil, essa proporção pode ser um pouco maior, mas certamente não corresponde à importância que a transmissão homo-bissexual tem no perfil da epidemia na região. No entanto, estudos têm demonstrado que a população de homens que fazem sexo com homens está entre aquelas que mais praticam sexo seguro e que são melhor informadas sobre as DST/AIDS, o que certamente colabora para que, de uma forma geral, a epidemia venha diminuindo sua incidência nessa população, ainda que possivelmente de maneira não-uniforme (Brasil, 2001b).

Como já mencionei, segmentos da população mais jovem, em situação de pobreza ou sob efeitos de fatores de vulnerabilidade, como opressão sexual, violência familiar e policial, entre outros, apresentam níveis preocupantes de HIV e merecem cada vez mais a atenção das iniciativas de prevenção (Pimenta et al., 2001). As dificuldades para a prevenção nessas populações estão relacionadas à vergonha e à culpa que ainda cercam a abordagem da homossexualidade nas iniciativas de prevenção e mesmo de assistência (Warner, 1999). A culpa e a vergonha podem estar fundamentando as representações que dizem que todo homossexual é potencialmente um doente de AIDS e responsável pela disseminação do vírus em outros segmentos populacionais, o silêncio e a invisibilidade de expressões, imagens ligadas à homossexualidade na mídia e nas campanhas de prevenção, o medo que os homossexuais sentem de fazer o teste ou a crise que se segue ao receber um resultado soropositivo, já que pode se considerar ou ser considerado culpado de ter se infectado pelo HIV.

A culpa e a vergonha podem ainda estar mesmo embutidas nas mensagens de prevenção, quando recomendam o sexo mais seguro como um mandamento a ser cumprido à risca, sem chances de falhas, que, quando acontecem, são vistas como irresponsabilidade, negligência ou fracasso do indivíduo em negociar e praticar o sexo seguro. As iniciativas de prevenção devem levar em conta que a negociação do sexo mais seguro está sujeita a uma série de fatores e circunstâncias que variam ao longo da história do indivíduo. Talvez não seja possível praticar sexo seguro sempre, em todas as relações sexuais, durante toda a vida. É importante, no entanto, procurar entender estas variações e circunstâncias ao longo do projeto de vida dos indivíduos, em vez de reforçar os aspectos normativos e de controle que as mensagens de prevenção possam conter, e que podem alimentar sentimentos de culpa e vergonha, cada vez que alguma prática de risco ocorrer.

Um outro desafio para a prevenção do HIV em homens com práticas homossexuais tem sido as abordagens metodológicas a serem utilizadas. Até a segunda metade dos anos 90, os modelos e teorias comportamentais foram os mais utilizados nas iniciativas de prevenção (Parker, 2000)3 3 Aqui vale lembrar do Modelo de Crenças em Saúde (Health Belief Model), da Teoria de Auto-Eficácia (Self Efficacy Theory), do Modelo dos Estágios de Mudança (Stages of Change Model), do Modelo de Redução de Risco à AIDS (AIDS Risk Reduction Model), entre outros, que num primeiro momento orientaram as primeiras iniciativas de prevenção (Parker, 2000). . Nos últimos anos, esses modelos vêm sendo criticados e reformulados, já que priorizam mudanças comportamentais, como se o risco pudesse ser evitado a partir de normas técnicas a serem recomendadas e adotadas e que seriam as práticas de sexo mais seguro. Tais modelos comportamentais mais tradicionais, ao se concentrar em alterar e medir um aspecto do indivíduo – a mudança comportamental – terminam por deixar de lado outros aspectos mais sociais e culturais, que também têm se mostrado importantes de se considerar e trabalhar nas iniciativas de prevenção. Nesse sentido, outros modelos vêm orientando as intervenções, chamando a atenção para questões mais estruturais, como a situação socioeconômica e o respeito de direitos civis, e para fatores, como a opressão sexual, violência familiar e policial, racismo, nível de escolaridade, entre outros; vêm também, de forma isolada ou em sinergia, determinando a vulnerabilidade ao HIV/AIDS e também a outras doenças.

Os modelos comportamentais foram importantes para, num momento de emergência, ampliar os níveis de informação sobre os riscos e sobre as formas de prevenção e chamar a atenção para a urgência e a necessidade de mudar certos comportamentos. Mostraram como é possível, evitando certas práticas e adotando outras, manter uma vida sexual, mesmo em presença do HIV/AIDS. Porém, até por conta dessas condições de emergência, muita ênfase foi dada ao HIV/AIDS, a ponto de este terminar quase que sendo a única doença ou marcador de saúde possível para os homossexuais. Da mesma forma, foram privilegiados aspectos técnicos e normativos, que visam à eficácia do indivíduo em manejar as técnicas de prevenção, e terminam por apresentar o sexo mais seguro como mais um regulamento de controle da sexualidade, sem levar em conta outros aspectos da vida do indivíduo, como a qualidade de sua vida sexual, o prazer e a felicidade.

Ao tentarmos levar esses modelos comportamentais para outros segmentos sociais, sua aplicação também se mostrou limitada, pois, para muitos, a adoção e manutenção de práticas mais seguras está intimamente relacionada a mudanças de fatores de vulnerabilidade, como aqueles já mencionados. Nesse caso podemos mencionar grupos étnicos oprimidos, populações empobrecidas, onde a defesa dos direitos humanos, além das recomendações para mudanças comportamentais, é fundamental na prevenção do HIV/AIDS e na promoção da saúde.

Nas próximas décadas, torna-se necessário a elaboração e o emprego de modelos com perspectivas mais integrais e holísticas de saúde num sentido mais amplo. Não apenas o HIV deve ser enfatizado, mas também a identificação de outras necessidades, a prevenção a outras doenças, a defesa dos direitos humanos, o enfrentamento das condições de opressão sexual e social e, principalmente, a promoção da felicidade como um objetivo a ser alcançado na busca de uma saúde coletiva e individual plena (Ayres, 2002).

Assistência

A categoria orientação sexual geralmente não é considerada nas pesquisas clínicas sobre o risco para diferentes doenças que podem afetar os homens. Dessa maneira, os problemas e necessidades de saúde de populações com diferentes orientações sexuais terminam não sendo conhecidas pela profissão médica (Tuller, 2001). Esse tem sido uma dos grandes obstáculos para o tratamento de homens com práticas homossexuais. Temas como saúde mental, abuso de substâncias, outras doenças sexualmente transmissíveis e prevenção à violência pouco têm levado em conta a questão da orientação sexual, o que revela uma lacuna nos programas de pesquisa em saúde. Seria interessante, além dos efeitos do HIV, conhecer também como a questão de orientação sexual influencia na vulnerabilidade para doenças como hepatite C, HPV (papiloma vírus, que pode causar câncer cervical nas mulheres e câncer no ânus em homossexuais), entre outras infecções virais transmitidas sexualmente, assim como na prevenção e tratamento ao câncer de próstata.

Com relação à saúde mental, é pouco conhecido como os efeitos do estresse de viver numa sociedade com tantos preconceitos contra a homossexualidade afetam a saúde psíquica e física dos homossexuais. Assim sendo, mais estudos são necessários sobre como a depressão, atitudes destrutivas e uso de drogas, entre outros, estão relacionados às dificuldades de viver uma orientação sexual diferente da dominante.

A homofobia, que ainda acontece nos serviços de saúde, é outro obstáculo para o acesso a serviços de saúde e para um tratamento correto. Diferentemente de países como os EUA e alguns da Europa Ocidental, onde há serviços de saúde dirigidos por profissionais de saúde assumidamente homossexuais, no Brasil esta é uma realidade distante, e tampouco existem programas de assistência para a população de homossexuais, tal como já existe para outras populações, como os programas de saúde da mulher.

Sem esquecer dos esforços de prevenção e tratamento para o HIV/AIDS, a intenção deste artigo é chamar a atenção para estratégias que possam reforçá-los e fazer com que alcancem um número cada vez de maior de homens com práticas homossexuais. No que diz respeito à assistência, possivelmente a inclusão da orientação sexual nos estudos clínicos sobre as doenças pode ampliar as possibilidades de atenção para uma saúde mais integral, incluindo o HIV. Conhecer as diferentes condições e necessidades de saúde das populações homossexuais, valorizando as suas variadas identidades, expressões e projetos políticos e culturais é uma forma de reconhecê-las socialmente e romper com o referencial da doença, que tem prevalecido até a atualidade em grande parte do pensamento sobre homossexualidade e saúde. Isso certamente permitirá uma atenção menos massificada, estigmatizada e mais respeitosa com as diferenças.

Uma das lições aprendidas na atenção à saúde de grupos sociais marginalizados é a importância de incluir na noção de tratamento, a noção de cuidado, que, segundo Ayres (2002), ampliaria o foco para além de tratar sintomas, mas considerar também a trajetória e os projetos de vida dos indivíduos. O tratamento seria, assim, uma forma de contribuir não apenas para a supressão dos sintomas clínicos, mas também para o desenvolvimento de projetos de vida, de estímulo à inserção social e de realização pessoal.

Conclusão

Os desafios aqui expostos, apontam para a importância da interdisciplinaridade dos diferentes saberes, da solidariedade entre pesquisadores e ativistas, e da integralidade das ações de prevenção e assistência como princípios norteadores para sua identificação e enfrentamento, para a prevenção e o tratamento do HIV/AIDS e de outras questões de saúde dos homens homossexuais. Os estudos epidemiológicos devem estar em sintonia com a pesquisa social sobre a homossexualidade, incluindo a compreensão de fatores de vulnerabilidade social ao HIV/AIDS, de forma que as análises sobre o impacto da epidemia sejam mais precisas, e a definição de políticas de prevenção, melhor orientadas. Os estudos clínicos também poderiam considerar a questão da orientação sexual para uma melhor compreensão sobre incidência, risco e vulnerabilidade a outras doenças que podem afligir homens com práticas homossexuais.

A prevenção e a assistência devem estar integradas, como maneira de garantir uma atenção mais completa e que vise à felicidade individual e coletiva. A prevenção, em qualquer grupo populacional, mas especialmente em grupos estigmatizados, não deve se converter em mais um regulamento de normas com caráter disciplinador sobre o que é certo ou errado, mas sim num conjunto de ações que visem a emancipação e a felicidade. Nesse caso, a promoção dos direitos humanos de ser parte fundamental deste conjunto das ações e intervenções no campo da saúde.

As relações entre homossexualidade e saúde, tanto nas ciências médicas, como na opinião pública, como o caso da AIDS pode demonstrar, têm originado preconceitos contra os homossexuais e permanecem como uma complexa questão a ser enfrentada individual e coletivamente. Tais preconceitos e discriminações têm sido um obstáculo para a construção de identidades mais positivas e de projetos de vida que levem a uma existência menos traumática, assim como têm dificultado a implementação de políticas de saúde que realmente respondam às necessidades dos indivíduos. No início da terceira década de convivência com a epidemia, as lições aprendidas e os desafios a serem enfrentados demonstram que é hora de essas relações mudarem radicalmente, não mais se definindo a partir da doença e do preconceito, mas a partir da solidariedade e da promoção da felicidade.

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    Em 1985, por pressão dos grupos gays organizados da época, o Brasil excluiu do âmbito nacional o item 302.0 do Código Internacional de Doenças da Organização Mundial de Saúde, que classificava a homossexualidade como doença psiquiátrica. Em âmbito internacional, esse item vigorou até os anos 90, quando a própria OMS o eliminou.
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    Um exemplo de como os velhos preconceitos que relacionam AIDS e homossexualidade masculina permanecem é a declaração do articulista da Folha de São Paulo, em crônica de 3 de março de 2000, dizendo que "para pegar AIDS na certa basta freqüentar gays" [Fonte: Folha de São Paulo, 3/3/2000] (Mott; Cerqueira, 2001, p. 81).
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    Aqui vale lembrar do Modelo de Crenças em Saúde (Health Belief Model), da Teoria de Auto-Eficácia (Self Efficacy Theory), do Modelo dos Estágios de Mudança (Stages of Change Model), do Modelo de Redução de Risco à AIDS (AIDS Risk Reduction Model), entre outros, que num primeiro momento orientaram as primeiras iniciativas de prevenção (Parker, 2000).
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      29 Ago 2005
    • Data do Fascículo
      Jun 2002
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