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O retorno do nativo

Resumos

O autor analisa os usos que certos movimentos sociais e políticos fazem de antigos conceitos antropológicos, mostrando como estes grupos interpretam e se apropriam de algumas teorias antropológicas. Discussões acerca dos direitos de minorias étnicas, sejam elas feitas no âmbito de uma nação ou numa assembléia das Nações Unidas, fundamentam algumas políticas nacionais e internacionais. O autor salienta a importância de se ter clareza acerca de quais conceitos e teorias estão sendo empregados nestas discussões - conceitos como nativo ou indígena, hoje eufemismos para o primitivo, civilização ou cultura, às vezes empregados em outros tempos no lugar de raça, e teorias como a do evolucionismo. Para exemplificar as apropriações conceituais empregadas por movimentos sociais, o autor analisa os movimentos de povos ditos caçadores-coletores, como os Inuit no norte do Canadá e os Bushmen no sul do continente africano.

cultura; nativo; raça; caçadores


The author analyzes the uses that certain social and political organizations make of old anthropological concepts, demonstrating how these groups interpret certain anthropological theories, taking them for themselves. Debates on the rights of ethnic groups and other minorities, at a national level or in the United Nations, are at the base of certain national and international politics. Therefore, the author points out, it is important to clarify which concepts and which theories are being used in those discussions - concepts such as native or indigineous, current euphemisms for the out-dated primitive, civilization or culture, sometimes used interchangeably with race at other times, and theories such as evolutionism. In order to exemplify how different social movements make use of these concepts, the author analyses those political groups who defend the so called foragers and hunters, such as the Inuit in northern Canada or the Bushmen in the south of Africa.

culture; native; race; forages


ESPAÇO ABERTO

O Retorno do Nativo1 1 Uma versão deste artigo foi apresentada na 23ª Reunião da Associação Brasileira de Antropologia (RBA/ABA), em junho de 2002. Algumas passagens foram acrescentadas em uma palestra que fiz na cerimônia de abertura do Instituto Max Planck de Antropologia Social, em Halle, na Alemanha. Tive também a oportunidade de esboçar o argumento que segue, em um seminário menor, de especialistas em direitos humanos, na London School of Economics, presidido pelo professor Stanley Cohen. Mark Nuttall e Evie Plaice fizeram comentários detalhados sobre a seção deste artigo que trata do Canadá.

Adam Kuper

Brunel University – Inglaterra

RESUMO

O autor analisa os usos que certos movimentos sociais e políticos fazem de antigos conceitos antropológicos, mostrando como estes grupos interpretam e se apropriam de algumas teorias antropológicas. Discussões acerca dos direitos de minorias étnicas, sejam elas feitas no âmbito de uma nação ou numa assembléia das Nações Unidas, fundamentam algumas políticas nacionais e internacionais. O autor salienta a importância de se ter clareza acerca de quais conceitos e teorias estão sendo empregados nestas discussões – conceitos como nativo ou indígena, hoje eufemismos para o primitivo, civilização ou cultura, às vezes empregados em outros tempos no lugar de raça, e teorias como a do evolucionismo. Para exemplificar as apropriações conceituais empregadas por movimentos sociais, o autor analisa os movimentos de povos ditos caçadores-coletores, como os Inuit no norte do Canadá e os Bushmen no sul do continente africano.

Palavras-chave: cultura/civilização, nativo/indígena, raça/evolucionismo, caçadores/coletores.

ABSTRACT

The author analyzes the uses that certain social and political organizations make of old anthropological concepts, demonstrating how these groups interpret certain anthropological theories, taking them for themselves. Debates on the rights of ethnic groups and other minorities, at a national level or in the United Nations, are at the base of certain national and international politics. Therefore, the author points out, it is important to clarify which concepts and which theories are being used in those discussions – concepts such as native or indigineous, current euphemisms for the out-dated primitive, civilization or culture, sometimes used interchangeably with race at other times, and theories such as evolutionism. In order to exemplify how different social movements make use of these concepts, the author analyses those political groups who defend the so called foragers and hunters, such as the Inuit in northern Canada or the Bushmen in the south of Africa.

Key words: culture/civilization, native/indigineous, race/evolutionism, forages/hunters.

Um dos privilégios que os presidentes franceses têm é o de poder gastar imensas quantias de dinheiro público em construções arquitetônicas ditas culturais (localizadas, é claro, em Paris). Tais gastos fazem com que seus nomes fiquem associados, de maneira indelével, ao que há de mais sagrado para os franceses: a civilisation. A construção, que é alvo de cada projeto presidencial, recebe tradicionalmente muitas críticas em termos de custos; mas os projetos em si jamais são questionados. Eles são, isso sim, tratados com imenso respeito, como monumentos que existem devido à mais alta cultura, reafirmando-se, desse modo, a distinção francesa.

Apesar de toda esta aura de respeitabilidade, ouviram-se protestos, em alto e bom som, da parte de antropólogos franceses, imediatamente após o anúncio do grand projet do presidente Chirac: um museu de arte primitiva. Em primeiro lugar, os antropólogos acreditavam que não se deveria empregar o termo primitivo para descrever qualquer população humana viva. O presidente ofereceu, de maneira muito elegante, a alternativa de omitir palavra tão ofensiva; mas ele ficou talvez mais surpreso ainda quando lhe perguntaram por que ele acreditava que as máscaras, os tambores e as estátuas, que ele tanto admirava, deveriam ser rotuladas como obras de arte. Ainda mais inquietante era o fato de que alguns antropólogos argumentaram que problemático não era o uso do termo primitivo, mas sim a idéia subjacente ao projeto – a idéia de que há algo em comum entre os povos nativos da África, da Oceania e das Américas. Depois que foram colocadas todas essas questões, o início do projeto foi adiado momentaneamente. Contudo, quando o presidente Chirac, já ficando impaciente, insistiu que o Museu do Louvre montasse uma exibição temporária de alguns dos seus exemplares preferidos de... bem, seja lá do que for que eles representavam, ele se deparou com ainda mais uma oposição. Os zeladores do Museu consideraram que a exibição de obras primitivas num museu dedicado à alta arte das grandes civilizações era quase uma profanação.

Colunas de opinião têm sido publicadas no Le Monde regularmente, tratando dessa questão. Nesse meio tempo, avançam a passos largos os planos para a construção do museu do presidente Chirac, ainda que ele permaneça sem nome. Os franceses se referem ao museu simplesmente como o Museu da Quai Branly (numa indicação à sua localização geográfica). A razão pela qual o museu não tem nome é pura e simplesmente porque ninguém sabe ainda que tipo de coisa será abrigada lá. O novo diretor já fez declarações sugerindo que as exibições do futuro museu irão, de algum modo, subverter idéias convencionais acerca de evolução cultural, o que, por sua vez, levou o jornal Le Monde a publicar manchetes de que o museu iria promover o anti-darwinismo. Só nos resta esperar que isto seja apenas um mal-entendido. É preciso, entretanto, sinalizar que existe aqui um verdadeiro perigo: o de que aquela instituição, situada na Quai Branly, se torne um museu de idéias antropológicas obsoletas. E, como todos sabem, as idéias velhas, quando estragam, logo começam a cheirar mal e apodrecer.

John Maynard Keynes disse que "homens práticos, que acreditam estarem isentos de influências intelectuais, são geralmente escravos de algum economista já extinto". "Os malucos que se encontram em alguma posição de autoridade, que ouvem vozes pelos ares, estão destilando o seu frenesi a partir de algum escrevinhador acadêmico de alguns anos atrás" (Keynes, 1936; último parágrafo da obra). Keynes escreveu em meados de 1930, momento em que os governantes europeus estavam aplicando teorias econômicas desacreditadas, o que teve conseqüências desastrosas. É bom lembrar, contudo, que alguns antropólogos já mortos, também estavam dando muito trabalho, tanto nos impérios europeus além-mar, quanto na própria Europa – onde Hitler e Mussolini estavam completamente envoltos em idéias do século XIX acerca de raça e cultura.

A política sul-africana do apartheid também foi baseada em teorias antropológicas. A mente que arquitetou o apartheid, W. W. Eiselen, um antigo professor de etnologia da Universidade de Stellenbosch, rejeitou o determinismo racial convencional da África do Sul branca, substituindo-o por idéias antropológicas sobre determinismo cultural e evolução cultural, que desempenharam o mesmo papel na justificativa de políticas de segregação. Sob o domínio do apartheid, na África do Sul, negaram-se a todos aqueles classificados como nativos direitos civis, pois supunha-se que estas pessoas eram completamente diferentes, do ponto de vista cultural, dos povos ditos civilizados. Alocaram-se territórios, Bantustans, para os chamados nativos, onde eles pudessem se desenvolver dentro de suas próprias linhas culturais.

O curioso é que idéias semelhantes à idéia basal do apartheid servem de inspiração para os atuais movimentos de povos indígenas. E ainda mais estranho é que as Nações Unidas tenham abraçado tal causa. Há 10 anos, no Dia dos Direitos Humanos, em 1992, as Nações Unidas proclamaram que aquele seria o Ano Internacional dos Povos Indígenas. Indicou-se o nome de Rigoberta Menchú, que acabara de ganhar o Prêmio Nobel da Paz, para ser embaixatriz do programa. No fim das contas, a indicação do seu nome teve um final infeliz; mas, como o Ano Internacional, ainda assim, ganhasse imensa popularidade, as Nações Unidas decidiram proclamar uma Década dos Povos Indígenas, no período de 1995 a 2004.

Os termos nativo e indígena são imprecisos. Há muitos debates acerca do que seja o seu significado, até mesmo entre ativistas e militantes. Além disso, o termo native, em inglês, ainda soa como algum tipo de resquício dos tempos da colonização. Talvez seja este o motivo pelo qual o termo indigenous – levemente estrangeiro, sendo de origem francesa e soando mais científico – tornou-se a expressão oficial entre os movimentos de luta e defesa de povos indígenas. Tal mudança, de um termo que se tornou pejorativo, para uma alternativa mais científica, é um fenômeno mais amplo e geral. Esta foi uma característica do apartheid, em que o discurso oficial deixou de falar em nativo e passou a falar em bantu, uma designação lingüística-científica que se baseava numa expressão lingüística corrente. De modo semelhante, hoje em dia o termo inuit é empregado em vez do termo esquimó (Stewart, 2002, p. 88-92), saami, em vez de lapp, e san em vez de bushman (apesar de, infelizmente, a expressão san ser um termo hottentot – ou khoekhoe –, pejorativo utilizado por eles para designar os bushmen, tendo a conotação de vagabundo e bandido [ver Barnard, 1992, p. 8]). Na prática, entretanto, assim como freqüentemente se utiliza a expressão cultura como um eufemismo para raça, também na retórica dos movimentos dos povos indígenas, os termos nativo ou indígena são eufemismos para aquilo que antes se denominava primitivo. (Uma das maiores ONGs nesta área, a Survival International [Sobrevivência Internacional], nasceu como Primitive Peoples' Fund [o Fundo dos Povos Primitivos].)

O programa das Nações Unidas para os povos indígenas foi introduzido pelo então Secretário Geral das Nações Unidas, Boutros Boutros-Ghali, que, na ocasião, enfatizou que a expressão "povos indígenas" não designava precisamente os povos primitivos, mas sim os "povos nômades ou de caçadores". Tais povos haviam sido "relegados a territórios reservados, ou confinados a regiões inacessíveis ou inóspitas", e, em muitos casos, "parecia que estavam fadados à extinção". Os governos tratavam esses povos como "subversivos" porque eles "não partilham do estilo de vida sedentário ou da cultura da maioria. Nações de fazendeiros tendem a ver os nômades ou povos caçadores com um olhar de medo ou desprezo". O Secretário Geral observou, contudo, que "uma mudança bem-vinda está se dando em níveis nacionais e internacio-nais". Agora, valorizava-se o modo de vida singular dos povos indígenas. Organizações de povos indígenas estavam sendo fundadas. Direitos coletivos em territórios nativos históricos estavam sendo reconhecidos, e reivindicações de terra tinham agora algum sucesso. A conclusão do Dr. Boutros-Ghali foi feita na forma de uma declaração importantíssima: "dessa forma, nós nos damos conta de que os direitos humanos abarcam não apenas os direitos individuais, mas também os direitos coletivos, os direitos históricos. Nós estamos descobrindo os 'novos direitos humanos', que incluem, em primeiro lugar e fundamentalmente, direitos culturais... Podemos até mesmo afirmar que não podem haver direitos humanos se não for preservada a autenticidade cultural" (Boutros-Ghali, 1994).

Como bem observou o Secretário Geral, esses argumentos não eram novidade. A Convenção número 169 (1989), de ILO, sobre Povos Indígenas e Tribais em Países Independentes, já havia estabelecido que governos nacionais deveriam permitir que povos indígenas participassem de decisões que lhes dissessem respeito, que estes povos tinham o direito de decidir suas próprias prioridades em termos de desenvolvimento e que a propriedade da terra que ocupavam tradicionalmente deveria ser reconhecida. Essa convenção já havia sido ratificada por alguns países, incluindo Noruega e Dinamarca, na Europa, e México, Peru, Honduras, Costa Rica e Paraguai, na América Latina; nenhum Estado do continente africano, contudo, adotou a convenção. Mais recentemente, negociou-se um Declaração Preliminar das Nações Unidas sobre os Direitos dos Povos Indígenas, mas, devido a uma forte oposição, particularmente de muitos países africanos, tal Declaração ainda não foi apresentada para a Assembléia Geral das NU.

A Década dos Povos Indígenas das Nações Unidas foi lançada com um encontro de povos indígenas em Genebra, em 1996. A festa, infelizmente, foi interrompida por um grupo de pessoas não convidadas. Uma delegação, auto-proclamada de Boers sul-africanos, apareceu e exigiu que fosse permitida a sua participação, alegando que eles também eram um povo indígena; além disso, sua cultura estava ameaçada pelo novo governo do Congresso Nacional Africano. Os Boers foram expulsos sem muita cerimônia, e, sem dúvida, seus motivos estavam longe de ser sinceros, mas o drama poderia ainda assim ter servido a um propósito: chamar a atenção para algumas das idéias duvidosas que estão por trás da Década proclamada pelas Nações Unidas.

A retórica de movimentos de povos indígenas está assentada em algumas poucas premissas que, apesar de fundamentais, podem ser colocadas em questão. A primeira é a de que as pessoas que primeiramente ocuparam um certo país têm direitos e privilégios, talvez até mesmo exclusivos, sobre os recursos daquele país. Inversamente, os imigrantes não são mais do que visitas, devendo se comportar como tais. Esta é uma idéia comum, partilhada pela extrema direita européia. No caso de alguns povos nativos, primeiras nações, etc., entretanto, freqüentemente se acresce a essa idéia um segundo argumento: naqueles locais em que os indígenas são também caçadores e/ou pastores nômades, supõe-se que estamos lidando com povos que são indígenas num sentido muito mais profundo. Esses nômades representariam não apenas os primeiros habitantes de um país, mas aquelas populações que estão na origem de toda vida humana no planeta. Assim, num certo sentido, o estado natural da humanidade pertence aos primeiros habitantes, primitivos, aborígenes da humanidade.

Essa última proposição, corolário do segundo argumento acima apresentado, está assentada apenas em adivinhações. A arqueologia nos diz pouco sobre a estrutura de qualquer sociedade humana que tenha existido há mais de 7 mil anos. Apenas quando fomos capazes de ler e escrever é que conseguimos imaginar o modo de vida dos povos antigos com algum tipo de detalhamento, e o registro clássico poucas vezes menciona populações de caçadores. O que sabemos é que as comunidades humanas ancestrais eram pequenas em escala, não tinham qualquer forma de escrita, tinham tecnologias simples e sobreviviam da coleta de alimentos; não sabemos nada sobre os seus sistemas de parentesco, suas relações de gênero, sua organização política, seus mecanismos de trocas, nem de suas crenças a respeito do mundo. Alguns antropólogos há muito tempo já aventaram a hipótese de que a tecnologia e/ou o modo de subsistência eram determinantes para instituições sociais e políticas – alguns achavam mesmo que eram capazes de formar ideologias. As etnografias detalhadas e fidedignas sobre sociedades de caçadores-coletores que foram publicadas nos séculos XIX e XX, contudo, documentam diferenças substanciais entre os grupos etnografados, em termos de estruturas de saber e de crença, em termos de organização e em termos de suas relações com comunidades vizinhas. Mais: mesmo onde as tecnologias são muito simples, as tradições culturais variam de região para região, e não de acordo com os modos de subsistência. Os caçadores-coletores do Kalahari, por exemplo, têm mais em comum com os seus vizinhos pastores khoi ou hottentot, em termos de crenças religiosas ou de sistemas de parentesco, do que com os hadza, da Tanzânia, ou com os pigmeus, da floresta Ituri, no Congo, que também viveram até recentemente da coleta de alimentos (Barnard, 1992).

Há ainda uma outra objeção a este argumento. Os caçadores e coletores, no período Paleolítico Superior, estavam num mundo povoado por caçadores; todas as comunidades contemporâneas de coletores ou pastores, entretanto, vivem em uma associação íntima com fazendeiros estabelecidos. Em alguns casos, incluindo os bushmen, do Kalahari, e os pigmeus, do Congo, estes grupos já interagiam e faziam trocas com fazendeiros vizinhos há séculos, provavelmente por pelo menos um milênio, antes do início do período colonial (Wilmsen, 1989). A economia daqueles grupos depende crucialmente do escambo, ou das trocas, com fazendeiros e com mercadores, e é dessa maneira que suas atividades de coleta são elevadas para um contexto econômico mais amplo. Além disso, a divisão entre o modo de vida coletor e o do fazendeiro não é necessariamente tão clara e distinta. Podem ser coletores em algumas estações, durante algumas temporadas, ou até mesmo durante alguns anos, mas também podem se voltar para outras atividades em épocas de maiores dificuldades. Os fazendeiros, por outro lado, podem ser obrigados a se voltar para a coleta em um momento de crise. O que tudo isso sugere é que talvez não possamos utilizar o modo de vida dos caçadores ou pastores modernos para nos ajudar a desvendar o modo de vida dos caçadores e coletores que viveram há milhares de anos.

No entanto, é claro que a idéia de que os coletores contemporâneos representam nossos ancestrais distantes é uma idéia atraente, e parece até mesmo ser auto-evidente. Há uma convicção ocidental bastante arraigada de que a história registra o progresso inevitável da nossa espécie através de uma série de estágios, que são, a um só tempo, científicos, tecnológicos, morais e organizacionais. De acordo com essa idéia, há apenas um caminho, por onde todos nós passamos, mesmo que diferentes nações não tenham percorrido a mesma distância sobre ele. Os povos da Europa deixaram para trás todos os outros. Selvagens e bárbaros ainda estão muito mais atrás, próximos ao ponto de partida, aleijados pelas superstições e pela tradição. Evidentemente, foi fácil inverter esse argumento, e, nesse caso, a civilização representaria o longo declínio a partir do nosso éden aborígene, no qual a cultura podia acomodar-se junto à natureza, como o leão ao carneiro. Ora, é este evolucionismo invertido que está no cerne de toda retórica dos movimentos dos povos indígenas.

Tipicamente, o movimento mistura estas suposições com uma outra linha, que surgiu no mesmo período, como a historiografia do Iluminismo, mas na forma de um desafio à afirmativa iluminista de que há uma única história unificada da humanidade. Para aqueles que seguiam Herder, a civilização não é o objetivo universal do progresso humano, mas sim uma conspiração imperialista, que espalha idéias francesas e máquinas britânicas, a falta de Deus e o acúmulo de riquezas, e faz com que as comunidades locais, que gozavam de uma unidade espiritual, rompam com suas paisagens particulares.

No discurso que segue esta linha, o maior valor humano não é a civilisation, mas sim a cultura (Kuper, 1999, Capítulo 1). A cultura expressa o gênio de um povo nativo. Esta, associada a valores espirituais e não materiais, que talvez sobreviva apenas em enclaves rurais, está constantemente sob a ameaça de uma civilização material invasiva que é associada a cidades, mercados de ações e estrangeiros. A perda da cultura é um desastre: rouba um povo de sua verdadeira identidade e priva o mundo de uma parte de sua rica diversidade. Alguns antropólogos que estudaram nativos exóticos já partilharam desta idéia. É uma idéia que permeia toda a representação pessimista do interior do Brasil nos Tristes Tropiques, de Lévi-Strauss, obra escrita imediatamente depois que se fez o balanço do fim da Segunda Guerra Mundial e do Holocausto.

As duas concepções, a de cultura e a de civilização, eram associadas a idéias diferentes sobre direitos políticos. Cruamente falando, havia dois tipos de nativos. Um era o aborígene primitivo, habitante do império europeu; o outro, um membro nativo do povo europeu, ou da Volk. O primeiro tipo de nativo era objeto de estudo dos antropólogos, enquanto que o segundo, dos folcloristas. Além disso, concedia-se a cada um desses conjuntos de nativos uma identidade política diferente. Nativos coloniais não eram reconhecidos como cidadãos por parte dos seus governantes europeus, que alegavam que faltava a eles civilização. Por outro lado, os nativos criados nos fundos do quintal, por assim dizer, os nativos europeus, detinham o monopólio da cidadania, pois estavam verdadeiramente imbuídos da cultura nacional. Com efeito, o movimento anti-colonialista argumentou que os povos das colônias haviam sido condenados à opressão por serem o tipo errado de nativos, que não têm civilização; estes povos, no entanto, eram o tipo certo, com cultura, e, portanto, tinham o direito de serem cidadãos livres em suas terras natais. O movimento dos povos indígenas hoje em dia acrescenta a esses dois tipos de nativos um terceiro: os "nômades ou coletores", citados por Boutros-Ghali, uma categoria que abrange os esquimós ou inuit, os bushman ou san, do sul da África, os aborígenes australianos, os povos nativos da Amazônia, etc. No discurso antropológico clássico, eles despontam como os povos primitivos quintessenciais. Na nova retórica, ainda são retratados como pertencendo a uma única categoria mundial, mas hoje já são representados como os sobreviventes da humanidade natural que ainda não foram estragados, e a última esperança de uma espécie que sofreu a queda. Concede-se a esses nativos o direito de serem, mais uma vez, aquilo que foram um dia.

Como é muito fácil cair num discurso caricatural, eu resumirei aqui uma exposição sofisticada e oficiosa de algumas pressuposições que estão por trás do movimento dos povos indígenas, conforme a obra do antropólogo e ativista Hugh Brody2 2 A orelha do seu livro lista as suas credenciais: estudou em Oxford, já lecionou Antropologia Social na Universidade de Queen, em Belfast, e trabalhou, durante os anos 70, "com o Departamento Canadense de Assuntos Indígenas e do Norte ( Canadian Department of Indian and Northern Affairs) e depois com organizações inuit e indígenas, mapeando territórios de caçadores-coletores e pesquisando reivindicações de terras e direitos indígenas em várias partes do Canadá. Ele foi um consultor na Investigação do Gasoduto Mackenzie ( Mackenzie Pipeline Inquiry), foi um membro da famosa Comissão Morse ( Morse Commission) do Banco Mundial e foi também presidente da publicação Snake Reiver Independent Review. Todas essas posições o levaram a pensar sobre o encontro do desenvolvimento em larga-escala com as comunidades indígenas. Ele tem trabalhado a história dos bushman e com direito à terra no sul do Kalahari, vinculado ao Instituto San na África do Sul, desde 1997." , publicada em 2000, que alcançou bastante sucesso, intitulada A outra face do éden: caçadores-coletores, fazendeiros e a construção do mundo (The other side of eden: hunter-gatherers, farmers and the shaping of the world). É verdade que não se encontra um discurso unificado da parte do movimento dos povos indígenas, porém se pode elencar algumas pressuposições que são aceitas por todos, que são expressas nos documentos das Nações Unidas, desde a afirmativa inicial do Secretário Geral e são evocadas por ONGs, líderes nativos e outros. Hugh Brody recoloca essas idéias de maneira eloqüente e, certamente, também imbuído de uma autoridade especial, sendo ele mesmo um antropólogo. Gostaria de revisar brevemente o seu argumento, para começar a indicar algumas objeções empíricas a ele.

O Dr. Boutros-Ghali havia afirmado que "as nações de fazendeiros tendem a ver os nômades ou povos caçadores com um olhar de medo ou desprezo" (1994). Brody faz uma afirmação mais forte: para ele, a humanidade é composta por dois grandes grupos, o de caçadores e o de fazendeiros. Ele diz: "no cerne da História, encontram-se as diferenças entre caçadores, coletores e aqueles que vivem da agricultura". Os caçadores são os povos nativos do planeta, os verdadeiros veteranos, unidos às suas terras. Brody admite que esses caçadores tendem a percorrer algumas distâncias em seus territórios, mas ele insiste que os verdadeiros nômades, aqueles que realmente não têm raízes, são os que vivem da agricultura, que se apossaram das terras dos caçadores nativos, empurrando-os para longe, cada vez mais longe das terras mais ricas, até o ponto em que ficaram severamente marginalizados em locais nos quais não é possível praticar a agricultura – no Alasca, nas florestas tropicais da América do Sul, no Kalahari, no interior da Austrália ou no extremo norte do Canadá.

Os caçadores, portanto, em todos os lugares, estão enraizados em suas terras. Apesar de reconhecer que existem variações, em termos de organização social, de tecnologia, de crenças e de valores, entre coletores de diferentes partes do globo, Brody enfatiza que todos os caçadores estão em uma sintonia fina com a natureza – de uma maneira que nenhum dos fazendeiros gananciosos e exploradores poderia estar. Ora, isto não passa de uma platitude na retórica do movimento (Gill, 1994, e Kehoe, 1994). Como disse Boutros-Ghali, de forma resumida e numa linguagem apropriadamente clichê, "compreendemos hoje em dia que muitos povos indígenas vivem em maior harmonia com o hábitat natural do que os habitantes de sociedades industrializadas de consumidores" (1994).

Mesmo que os inuit ainda sejam caçadores, o fato é que praticamente não estão envolvidos com práticas tradicionais de caça. Hoje em dia, "homens Inuit jovens estão mais envolvidos com... os aspectos imagéticos da caça do que com os seus aspectos de subsistência", segundo Stewart, e quando estes jovens caçam, eles preferem caçar lobos em fuga com rifles de alta potência. Ele conclui, contudo, que "o 'caçar' prova para os inuit que ele é um inuit", comentando a importância da memória da caça na construção da identidade inuit moderna (cf. Omura, 2002; Stewart, 2002, p. 93). Já Brody, revelando claramente suas preferências, retrata homens velhos rememorando expedições para o interior, ainda que o tipo de caça que eles se lembrem tenha pouco a ver com a imagem romântica de caçadores primitivos. A maior parte dos exemplos de Brody vem do extremo norte do Canadá, local onde o modo de vida foi moldado durante séculos pelo comércio internacional de peles, quando floresceram caçadores comerciais inuit, que aos poucos foram incorporando as novas tecnologias, como rifles para caça, trenós motorizados e rádios para comunicação. Esta forma mais moderna de caça se extinguiu, entretanto, quando caiu de moda o chapéu para homens, feito de pele de castor, a partir da década de 1920, nas grandes cidades da América do Norte. (O conjunto da indústria levou outro golpe com o recente boicote de peles por parte dos consumidores.) É verdade que alguns homens inuit ainda fazem da caça um esporte – aliás, como o fazem outros na América do Norte –, bem como alguns são caçadores comerciais, mesmo que não em tempo integral. Entretanto, já há algumas gerações, os inuit têm se envolvido, em sua maioria, com outras atividades, inclusive às de fazendeiros.

Mesmo que fosse verdade, como insiste Brody, que os inuit permanecem sendo caçadores (ainda que a maior parte não exerça a caça e que nenhum deles cace da maneira como faziam antigamente), do ponto de vista legal, tal fato não é necessariamente significativo. Os tribunais canadenses aceitam, hoje em dia, que os povos caçadores exploravam territórios consideráveis, que foram alienados para colonizadores brancos. Esses tribunais estão dispostos a considerar a questão da legitimidade de uma reivindicação coletiva da parte dos descendentes de caçadores no sentido de reaver os seus direitos sobre a terra. Se as pessoas conquistam o direito a antigas terras de caça e pesca, isso não quer dizer que elas terão a obrigação de caçar ou pescar nelas. E é bom que seja assim, especialmente porque as permissões para caça ou pesca podem ser um problema. O Canadá atendeu às reivindicações de povos indígenas, que pleiteavam uma parte dos locais de pescaria em 1999. Imediatamente, o Ministério de Pesca tentou impor limites à pescaria comercial por parte dos inuit, alegando que os estoques de peixes haviam se esvaziado. Comunidades estabelecidas de pescadores não-nativos levantaram objeções à competição e, em alguns casos, às perdas dos seus próprios direitos à pesca – ainda que informais, eram direitos de longa data. Já ocorreram confrontos violentos entre os pescadores não-nativos, os representantes do Ministério e os nativos.

Ainda assim, alguns ativistas, militantes e românticos adorariam ver os inuit retomarem suas atividades de caça e restaurarem um antigo equilíbrio ambiental. Tais esperanças, contudo, não se justificam quando olhamos para as experiências passadas. O Acordo dos Nativos do Alasca de Povoamento (Alaska Native Claims Settlement Act), de 1971, criou, do ponto de vista legal, 12 corporações voltadas para o lucro e controladas por nativos que hoje exportam recursos para o Japão e para a Coréia. O Governo Autônomo da Groenlândia, liderado pelos inuit, considera a caça algo de anacrônico e objetável, favorecendo a exploração de recursos não-renováveis (Nuttall, 1998). O povo inupiat, do Monte Norte do Alasca (North Slope), apoiaram a perfuração de petróleo nas planícies costeiras do Parque Nacional de Vida Selvagem do Ártico (Arctic National Wildlife Refuge) – ainda que se deparem com a oposição dos índios gwich.

Ainda que os tribunais canadenses em geral não se preocupem com o uso que vai ser feito das terras devolvidas, os tribunais exigem que sejam apresentadas provas de que um conjunto particular de pessoas tem direito legal sobre um território demarcado, baseado em antigas práticas de caça. Uma dificuldade é, então, estabelecer as fronteiras dos territórios em que gerações anteriores caçavam; ou, ainda, apreender como os nativos entendiam os seus direitos à terra3 3 Existe hoje em dia uma vasta literatura a esse respeito. Ver, por exemplo, Wilmsen (1989). Para se ter um relato excelente da situação australiana, ver Hiatt (1996, Cap. 2). . O tribunal deve então considerar se os direitos exercidos pelos caçadores são de algum modo equivalentes aos direitos à propriedade que surgem depois que terras virgens são preparadas para agricultura, ou quaisquer outros direitos conquistados através da lei. Finalmente, os tribunais devem decidir se chefes nativos entraram legalmente em acordos que alienaram parte de, ou todas as suas terras.

O argumento de alguns militantes e ativistas é que se coloca muito peso em alguns tratados que foram, na verdade, mal compreendidos pelos nativos, e os tribunais deveriam reconhecer que há maneiras culturais diferentes de se codificar assentamentos históricos. Hugh Brody acredita que se deve recorrer à tradição oral. Seguindo outros ativistas canadenses, contudo, ele dá um passo a mais na argumentação, sugerindo que, nos casos em que não há uma tradição oral à qual se possa recorrer, os tribunais devem buscar suas provas com os shamans, pois estes têm a capacidade de ver, em seus sonhos, quais foram os acordos que os seus ancestrais fizeram com os primeiros colonizadores europeus que lá chegaram. Brody admite que é possível questionar se as tradições orais, ou os sonhos de shamans, têm o estatuto de verdades, mas ele afirma que existe um teste para se avaliar o valor histórico desses relatos. Tudo depende de quem é que faz o relato. Ele diz que "para os povos da Costa Noroeste, como para qualquer sociedade de caçadores-coletores, ou ainda, como para qualquer cultura oral, as palavras proferidas pelos chefes são um fundamento natural e inevitável para a verdade" (Brody, 2001, p. 207). É claro que a palavra de um chefe tem bastante peso, mas não será necessariamente aceita como "o fundamento natural e inevitável para a verdade" por todos, a não ser, talvez, pelos súditos daquele chefe. Além disso, nem sempre os povos do Canadá possuíam chefes hereditários – em muitos casos, é bastante duvidoso que os chefes tenham sido reconhecidos enquanto tais antes do cargo ser fundado pelas autoridades coloniais. Há também disputas freqüentes acerca de quem deveria ser chefe. E as apropriações de terra usualmente colocam nativo contra nativo, chefe contra chefe (e antropólogo contra antropólogo). É precisamente porque os mitos funcionam como guias ou mapas que existem histórias diferentes sobre um mesmo tema e, normalmente, as disputas giram em torno da propriedade ou autoria de uma história particular e de quem tem o direito de usá-la para fundamentar suas reivindicações a determinados recursos.

Outros problemas surgem da comparação dos mitos com provas históricas ou arqueológicas. Na década de 1990, Brody organizou um workshop histórico, enquanto consultor da Comissão Real do Canadá sobre Povos Aborígenes. Os arqueólogos apresentaram a teoria, já estabelecida, de que o Ártico foi colonizado via Estreito de Bering, por meio de uma ponte de terra que ligava a Sibéria ao Alasca.

Uma mulher de uma comunidade cree, aluna num programa de Ph.D. de uma universidade norte-americana prestigiosa [segundo Brody], estava participando do workshop. Ela não estava feliz com a teoria do Estreito de Bering. Ela afirmou que o seu povo, e a maior parte dos povos "indígenas", não acreditam que os arqueólogos saibam qualquer coisa a respeito da origem da vida humana nas Américas. Segundo ela, a idéia de que as pessoas primeiro vieram como imigrantes da Ásia era uma idéia absurda. Era uma idéia contrária a tudo o que as pessoas conhecem... Não houve uma imigração, mas sim um... Ela não queria estabelecer qualquer tipo de relação com a chamada Academia, que desacreditava completamente estes princípios centrais da cultura oral aborígene. (Brody, 2001, p. 113-114).

O workshop ficou dividido depois dessa objeção. Aparentemente, para a aluna cree, apenas os nativos podem conhecer nativos (uma doutrina que poderia lhe custar alguns problemas em sua prestigiosa universidade norte-americana). O próprio Brody relata que ficou confuso. Afinal, pode alguma coisa ser verdadeira na Universidade de Toronto, mas falsa em Kispiox?

É claro, entretanto, que a aluna cree tinham boas razões para se sentir incomodada. Se é verdade que os seus ancestrais eram, eles mesmos, imigrantes, então talvez os cree não fossem, afinal de contas, tão diferentes daqueles passageiros do navio Mayflower4 4 O navio Mayflower teria trazido os pilgrims, ou protestantes, fugidos da Inglaterra e que vieram colonizar a América (N. de T.). , ou mesmo daquelas massas desordenadas que cruzaram o oceano Atlântico na década de 1890. Os grandes movimentos populacionais partindo da Sibéria em direção ao Estreito de Bering certamente tiveram início há muito tempo. Até recentemente, o consenso científico era o de que as primeiras migrações teriam começado há 14 mil anos, mas hoje somos levados a crer que talvez tenham iniciado muito antes disso. Por outro lado, parece que a primeira onda de migrantes rapidamente se locomoveu para o sul. Os movimentos migratórios continuram por muitos milhares de anos, sendo que o Ártico e o Sub-Ártico foram colonizados por último. Os ancestrais dos povos que falam Athabasco chegaram há 11 mil anos, enquanto que, talvez, os aleut-inuit ancestrais tenham começado a colonizar o extremo norte apenas nos últimos 4 mil anos. Também pode ser problemático determinar precisamente quais ancestrais vieram e quando. Conseqüentemente, hoje em dia é difícil distinguir as diferentes correntes que interagiram, de modo a produzir as populações nativas com as quais os primeiros europeus fizeram contato no Alasca e no extremo norte do Canadá. Não se pode, contudo, duvidar de que algumas das primeiras nações não eram meramente compostas de imigrantes, mas eram, de fato, nações de colonizadores. Os innu, por exemplo, adentraram a península Quebec-Labrador apenas há 1.800 anos, deslocando e assimilando populações que já estavam lá.

Esse quadro ficou bem mais complicado depois de 500 anos de colonização européia. Os caçadores innu começaram a fazer trocas com compradores franceses de peles de animais já no final do século XV, e a França reivindicou soberania sobre aquela terra em 1534. Muitos dos innu foram convertidos ao cristianismo no século XVII, adotando então os costumes e a língua francesa. Seus líderes receberam concessões de terras e monopólios de trocas; um número grande de innu lutou junto com os franceses contra os ingleses. A conquista de Quebec e, mais recentemente, a incorporação de Labrador ao Canadá, tornaram essa situação ainda mais complexa. O governo canadense começou, na década de 1950, a impor uma política vigorosa de sedentarização, e, hoje em dia, segundo um comentário de um etnógrafo, "a sociedade inuit, em muitos aspectos, é tão moderna quanto a sua contra-parte euro-americana" (Dorais, 1997, p. 3). Um retorno a um estado de natureza pré-colombiano simplesmente não é possível.

Esta impossibilidade fica patente quando consideramos as realidades onde as coisas acontecem. Uma organização chamada de Nação Innu (Innu Nation) formulou uma reivindicação a grandes extensões de terra em Labrador. Uma das dificuldades que eles enfrentam é que a parte mais ao norte do território que reivindicam sobrepõe-se a terras reivindicadas por outro movimento étnico, a Associação Inuit de Labrador (Labrador Inuit Association). Uma complicação a mais está no fato de que essa área também é o lar de uma outra categoria de pessoas, um povo originalmente oriundo da Europa, conhecidos localmente como os Colonizadores (the Settlers). Um outro tipo de problema se coloca com a sua presença, que é uma questão de princípios. Já houve várias gerações de casamentos mistos entre os Colonizadores e os Inuit; tanto os Inuit quanto os Colonizadores são, com freqüência, bilíngües; e o modo de vida desses povos é semelhante. Pode-se certamente dizer, se é que esta frase tem algum sentido, que eles compartilham uma cultura. Sob algumas condições, os Colonizadores são aceitos como membros da Associação Innuit de Labrador, mas a Nação Innu considera os Colonizadores como seus principais adversários. O governo exclui os Colonizadores de todas as reivindicações e tratados coletivos, tratando-os como posseiros, porque eles não conseguem provar que suas linhagens de sangue são aborígenes. Por outro lado, uma pessoa que viveu a vida toda, digamos, em St. Jonh, em Newfoundland, e que não fala uma única palavra de uma língua nativa, pode obter o estatuto de aborígene em Labrador se puder provar ter uma porção suficiente de ancestralidade aborígene. Em suma, a política do governo canadense está assentada no princípio de que os direitos à terra não dependem apenas da descendência, mas de uma medida calibrada dela. Você tem direitos apenas se você tem um número apropriado de avós. Pode-se chamar esse princípio, sem ser injusto, de princípio de Nuremburg5 5 Para uma explicação antropologicamente mais sofisticada e mais favorável ao movimento Inuit, ver Samson (2001). . Esta aproximação do racismo torna-se inevitável em qualquer situação em que a assim chamada identidade cultural torna-se o fundamento dos direitos.

A situação canadense não é única. Os tribunais na Austrália, na Nova Zelândia e nos Estados Unidos também foram convencidos a cederem o direito a terras para povos indígenas. Contudo, em outros lugares a iniciativa causou pouco entusiasmo. Na Europa, a extrema direita defende a idéia de direitos indígenas exclusivos para a maioria nacional, mas até mesmo governos liberais em geral discriminam os povos migrantes, independentemente do tempo em que estes já estejam estabelecidos. Na maior parte dos países asiáticos e africanos, as políticas governamentais têm sido fortemente (para não dizer opressivamente) assimiladoras com respeito a minorias de antigos povos coletores e nômades. Em alguns casos, como no dos bushmen, de Botswana e da Namíbia, foram tratados como vítimas da miséria que precisam de ajuda econômica.

Foi noticiada, recentemente, a forma com que Botswana trata a sua minoria bushman. Um tribunal negou, em 19 de abril de 2002, um pedido de permissão para que os residentes bushmen remanescentes continuassem na Reserva de Caça do Kalahari Central (Central Kalahari Game Reserve). O caso teve o apoio de várias ONGs, em particular da Survival International, que organizou vigílias do lado de fora das embaixadas de Botswana. O julgamento foi amplamente divulgado na imprensa séria britânica. O jornal The Times, por exemplo, afirmou, sob a manchete "Os últimos bushmen perdem na luta pelo direito de serem nômades", que "o último povo nômade da África abaixo do Sahara perdeu uma batalha legal contra a sua extradição de suas terras ancestrais, dando fim a 40 mil anos de um estilo de vida, o de caçador-coletor".

No antigo Protetorado Bechuanaland, a questão dos Bushman havia sido uma das poucas a atrair os interesses internacionais. O governo colonial instituiu, em 1958, o cargo de Oficial do Censo Bushman. George Silberbauer, um comissário do distrito com um certo treino na Antropologia, foi apontado para o cargo, e sua tarefa principal era a de elaborar alguma política para os Bushman. No relatório que Silberbauer apresentou para o governo, ele estimava que a população de Bushman no país fosse em torno de 25 mil pessoas, mas observava que apenas cerca de 6 mil destas podiam ser classificadas como bushmen "selvagens", isto é, "que são capazes de sobreviver apenas de sua própria caça e coleta de comida, que, ou bem vivem em áreas remotas sem sair para visitar outras partes, ou bem fazem algumas visitas breves, no período de alguns anos, a fazendas Ghanzi ou a entrepostos comerciais para gado dos Bantu, com o objetivo de trocar ou encontrar água e comida" (Silberbauer, 1965, p. 14). Silberbauer estava envolvido também com uma pesquisa para o seu doutorado, sobre populações que falam g/wi, ao oeste do Ghanzi, e elaborou, como proposta de uma política para o governo, que fosse estabelecida uma área de reserva ambiental para caça na região g/wi, onde apenas os g/wi pudessem caçar (e, incidentalmente, onde apenas George Silberbauer tivesse permissão para fazer pesquisa etnográfica). Em 1961 foi fundada a Reserva de Caça do Kalahari Central (Central Kalahari Game Reserve), estendendo-se por uma área de 130 mil quilômetros quadrados e tendo uma população de bushman estimada em 3 mil pessoas, juntamente com algumas centenas de pastores Kgalagari de gado. A reserva, a segunda maior reserva de caça em todo continente africano, ocupa uma área maior do que a Coréia do Sul ou do que Portugal, sendo mais ou menos do mesmo tamanho que Bangladesh ou do que o Nepal.

A política original que fora proposta era confusa. Esta era uma reserva ambiental destinada a animais selvagens ou a "Bushmen selvagens"? Quem é que poderia viver lá? Quais direitos teriam as pessoas que morassem na reserva? Alguns Bushmen que não eram G/wi migraram para dentro da reserva, mas eles não foram muito bem vindos. E o que dizer dos Kgalagari que exerciam atividades pastoris e que viviam na região antes da reserva ser proclamada? O que seria da maior parte dos Bushmen do país, que não tinham quaisquer direitos lá? A classe política de Botswana, de um modo geral, mostrou-se pouco simpática à política, e em geral dizia que havia um paralelo claro entre essa política e o sistema sul-africano de Bantustan. Contudo, o governo de Botswana – bem como seu predecessor colonial – estava inicialmente pronto a fazer algumas concessões, de modo a acalmar os ânimos internacionais.

A situação começou a mudar no final da década de 1970. A política do governo endureceu. Nos anos da seca (final da década de 70 e início da de 80), muitas pessoas deixaram a reserva e, provavelmente, muitas delas tinham a intenção de um dia voltarem. (Os G/wi já estavam há muito acostumados com migrações em função de trabalho para fazendas Ghanzi quando a situação piorava.) O governo fundou um assentamento, com uma escola e uma clínica médica, e tentou convencer, com algum sucesso, os bushmen a se reunirem nele.

Dois conjuntos diferentes de considerações foram fundamentais para essa mudança de concepção da parte do governo. Em primeiro lugar, os ambientalistas reclamavam que os residentes da reserva estavam criando burros e cabras, o que interferia com os animais selvagens, e que eles caçavam e pescavam de forma ilegal. Ora, isto era uma ameaça, de longo prazo, ao turismo. Em segundo lugar, oficiais do governo estavam comprometidos com uma política nacional mais ampla, de ajuda e de desenvolvimento, que se aplicava ao que chamavam de Povos de Regiões Remotas (Remote Areas People), uma expressão cunhada precisamente com o objetivo de evitar a discriminação étnica. Os oficiais chegaram, então, à conclusão de que os mantimentos especiais feitos para as pessoas na Reserva representavam uma anomalia dispendiosa. Segundo um Ministro do Governo Local (Minister of Local Government), em carta endereçada ao Centro para Direitos Humanos de Botswana, em janeiro de 2002, "Nós, enquanto Governo, acreditamos simplesmente que é totalmente injusto deixar uma porção de nossos cidadãos em condições de subdesenvolvimento, utilizando, como pretexto, a idéia de que estamos deixando que eles pratiquem sua própria cultura" (Hitchcock, 2002a, p. 2). Os membros mais antigos do governo rejeitavam, assim, o argumento da cultura, mas muitos acreditavam no progresso inevitável e desejável da civilisation. O sentimento geral era de que os bushmen eram simplesmente atrasados e que deveriam ser melhorados. Em matérias de jornais, liam-se comentários do Secretário Permanente no Ministério do Governo, de uma maneira que teria sido familiar aos seus predecessores coloniais, de que "a Botswana é dona dos Basarwa, e continuará sendo dona do povo Basarwa enquanto ainda for um país; e nós nunca mais permitiremos que eles andem por aí vestindo apenas peles" (Hitchcock, 2002b, p. 18).

Mais de 1.100 pessoas foram removidas da reserva, no período de maio a junho de 1997, e realocadas em dois assentamentos fora da reserva. Não tardou para que começassem a surgir relatórios de etnógrafos, acerca dos assentamentos, sobre os fatos concomitantes usuais dos realocamentos forçados: alcoolismo, violência doméstica e crescimento de pequenos crimes. O governo anunciou, em novembro de 2001, que iria dar fim aos serviços na Reserva. Naquele momento, permaneciam na Reserva entre 500 e 600 pessoas; os tribunais rejeitaram, em abril, precisamente, uma ação movida a favor dessas pessoas, para que estes serviços fossem reestabelecidos. Apesar de todos os protestos internacionais, o governo seguiu adiante. De fato, houve uma certa reação nos círculos do governo contra as atividades de ONGs, em particular a Survival International (antes chamada de Fundo dos Povos Primitivos [Primitive Peoples' Fund], esta organização se apresenta como um movimento "a favor dos povos tribais"). O governo de Botswana concluiu – e de maneira bastante razoável – que algumas agências internacionais estão, com efeito, propondo uma forma de apartheid, e estão sabotando uma política racional de desenvolvimento6 6 A ONG Survival International ainda insinuou que o verdadeiro motivo pelo qual a população fora removida é um acordo, feito entre De Beers e o Governo, para explorar os recursos da região, especialmente diamantes – ainda que, se realmente fossem encontrados diamantes na região, eles estariam à disposição do governo, pois a Reserva tem o estatuto de Terras do Estado. . Contudo, a verdadeira ironia é que a polítca governamental está baseada em noções ocidentais obsoletas, questionáveis e que carregam uma marca de sangue, acerca de evolução social, progresso e civilização. Os oficiais de Botswana partilham destas concepções básicas com seus inimigos, as ONGs, ainda que os dois lados tendam a valorar de maneiras muito diferentes os dois pólos, de civilização e primitivismo, e que os dois lados tenham, também, perspectivas diferentes sobre o valor da diferença cultural.

A situação na África do Sul é muito diferente daquela em Botswana. Em geral se acreditava que os bushmen, ou san, como são chamados, já haviam desaparecido, tendo morrido ou tendo sido assimilados ainda no final do século XIX. Os hottentot, ou khoi, já haviam sido, em grande parte, aculturados ao chamado grupo de Cor (Coloured group), ainda que existam algumas pessoas bilíngües Afrikaans-Nama na parte norte da região do Cabo. Thabo Mbeki, em 1996, quando era Presidente Deputado (Deputy President), fazia uma representação dos khoi e dos san como sendo os primeiros guerreiros pela liberdade na África do Sul, mas convicto também de que desde então eles não existiam mais:

A minha existência se deve aos khoi e aos san, cujas almas desoladas assombram as enormes extensões da bela região do Cabo. Eles, que foram vítimas do maior genocídio impiedoso que a nossa terra natal já testemunhou, que foram os primeiros a perderem suas vidas na batalha pela nossa liberdade e independência, eles que, enquanto povo, por conseqüência se extinguiram. (Bredenkamp, 2001, p. 192).

Na época em que foi feita a transição política, o Congresso Nacional Africano demonstrava, de um modo geral, antipatia para com qualquer movimento de asserção de etnia no país. Evidentemente, foram pegos de surpresa quando o movimento de povos indígenas foi apoiado pelas agências das Nações Unidas e quando as ONGs da África do Sul passaram a militar a favor da causa dos povos indígenas do seu próprio país. O primeiro destes movimentos a ganhar destaque foi o movimento Griqua, ou melhor, os movimentos Griqua, pois havia organizações concorrentes afirmando que representavam o povo griqua. O povo griqua surgiu na fronteira da colônia do Cabo, no final do século XVIII. No primeiro momento, auto-intitularam-se Bastardos (Basters)7 7 Basters é uma palavra de origem holandesa, incorporada mais tarde ao africâner. , mas os missionários da região os convenceram a adotar um nome menos chocante. Em termos de sua ancestralidade, a maioria era khoi, ou hottentot, mas estes eram já todos cristãos, falavam holandês e, equipados com cavalos e armas, trabalhavam como rancheiros de gado e como piratas, eventualmente instalando-se sob os auspícios da Sociedade Missionária de Londres, em 1804, em Klaarwater, mais tarde rebatizada de Griquatown. Em seguida, no período transcorrido de uma geração, a comunidade cindiu-se, ocorreram várias migrações e consolidaram-se, bem como aboliram-se, diversos tratados com repúblicas Bôer. Os descendentes da comunidade original, mais tarde, já no século XIX, agora em sua maioria já sem terras, foram divididos entre três assentamentos bastante separados, sendo cada vez mais assimilados à comunidade mais ampla de Cor (Coloured) da região do Cabo (Ross, 1976).

Alguns dos griquas foram inicialmente classificados como de língua bantu, sob o regime do apartheid, mas conseguiram ser reclassificados como de Cor (Coloureds), o que os colocava numa situação mais privilegiada. Entretanto, na década de 1990, alguns políticos griqua declararam que eram khoi e san, pessoas indígenas, e exigiram uma representação na Casa dos Líderes Tradicionais (House of Traditional Leaders), além de uma restituição de terras. O apoio necessário viria logo em seguida, com o Fórum dos Povos Indígenas das Nações Unidas. O governo estava pronto para negociar com esses políticos, mas ficou frustrado quando os vários representantes griqua se recusaram a concordar sobre um único corpo representativo para efetivamente fazer as negociações. Para compreender as reivindicações históricas, os oficiais acionaram antropólogos do governo – estes haviam sido empregados ainda no antigo regime, pelo Departamento de Assuntos Bantu (Department of Bantu Affairs), e tinham sido agora transferidos para o Departamento de Desenvolvimento Constitucional (Department of Constitutional Development). Entretanto, os líderes griqua se reuniram somente durante algumas breves visitas oficiais de Mandela ou do Embaixador dos EUA. Os diversos assentamentos Griqua parecem ter optado, hoje em dia, de maneira bem mais entusiástica, pela participação em movimentos cristãos evangélicos (Waldman, 2001).

Em outra linha de frente, no entanto, o Governo fez um grande gesto. Criou-se uma Associação Khomani San (Khomani San Association) para elaborar as reivindicações por direitos no Parque Gemsbok, no Kalahari (Kalahari Gemsbok Park), outra imensa reserva ambiental, proclamada em 1931. Restava apenas cerca de uma dúzia de pessoas em toda África do Sul que ainda conseguiam falar a língua Khomani, mas o movimento ganhou muito apoio de uma ONG situada na Cidade do Cabo. O povo Khomani recebeu simbolicamente alguns direitos de propriedade no parque, especificados de forma bastante vaga. Também foi permitido às pessoas que fossem classificadas como Khomani que deixassem o seu gado pastar em algumas áreas. Este direito mais específico e prático era crucial. Como já disse Steven Robbins, enquanto que "os fazendeiros San com gado são freqüentemente percebidos como tendo uma menor autenticidade San, para muitos dos San do Kalahari as cabras e as ovelhas têm sido, e continuam sendo, a sua principal estratégia de sobrevivência" (Robbins, 2001, p. 241). Infelizmente, tais privilégios criaram tensões entre aqueles classificados como san e os outros residentes locais, estes últimos classificados como de Cor (Coloured) durante o regime de apartheid. As pessoas foram obrigadas a reformularem suas identidades étnicas – como era durante o apartheid – para conseguirem garantir o seu acesso a recursos. O antropólogo William Ellis descreve, por exemplo, um homem chamado Oom Frik, que "afirma que ele não é san, mas que é parte do povo san em virtude de sua avó ter sido uma 'san pura', ela tinha os traços fenotípicos corretos, de acordo com ele" (Ellis, 2001, p. 259).

Sem dúvida, a mudança na política do Congresso Nacional Africano está relacionada ao barulho que as ONGs andaram fazendo e com as suas relações internacionais. Estas não podiam ser ignoradas pelo governo à medida em que este tinha a pretensão de ser reconhecido como a principal liderança africana no campo dos direitos humanos. Além disso, os líderes do Congresso Nacional Africano estavam comprometidos com ações que indicassem uma forma de restituição. Atos simbólicos de solidariedade com os San são populares hoje em dia, e, por ocasião do Sexto Dia da Liberdade (Sixth Freedom Day) da África do Sul, no dia 27 de abril de 2000, o Presidente Mbeki desvelou o novo brasão nacional, exibindo duas figuras tiradas de uma pintura rupestre bushman em seu centro. O seguinte texto, tirado de uma língua bushman já extinta, da região do Cabo, !ke e: /xarra //ke, foi traduzido como "Unidade na Diversidade", o lema da Nova África do Sul, ainda que o sentido preciso dessa passagem, escrita numa língua obscura e morta, seja uma questão controversa entre os especialistas. (O lema da antiga União da África do Sul era "A Unidade é a Força".) É suficientemente evidente quais as vantagens de um tal gesto oficial. Nenhuma das 11 línguas sul-africanas oficiais está sendo particularmente privilegiada. O único grupo étnico que ganha um estatuto especial desta forma já desapareceu há muito. E o novo símbolo talvez consiga elevar a fama da África do Sul no campo dos direitos humanos, já que em alguns circuitos, hoje em dia, a prova de fato é a política governamental com relação a povos indígenas.

O movimento de povos indígenas tem recebido o apoio das Nações Unidas e do Banco Mundial, através de agências de desenvolvimento e de ONGs. Mesmo que possamos questionar as idéias que estão por trás do movimento, pode-se pensar que a sua motivação é generosa. Algumas das pessoas que apóiam o movimento acreditam que a restauração de terras deve ser algo bom, mesmo que porções muito grandes de terra sejam dadas a comunidades extremamente pequenas – ou melhor, a pequenas categorias de pessoas, categorias definidas em termos de descendência. Eu tenho cá minhas dúvidas. As políticas que se baseiam em análises falsas acabam por tirar o centro das atenções dos verdadeiros problemas locais. É pouco provável que promovam o bem comum. E, certamente, tais políticas acabaram por criar novos problemas. Onde quer que seja, nos locais em que foram concedidos direitos especiais à terra ou de caça a povos ditos indígenas, conflitos étnicos locais foram exacerbados. Estas concessões também estimulam apelos a critérios desconfortavelmente racistas de favorecimento, ou exclusão, de indivíduos ou de comunidades. Novas identidades são fabricadas, e líderes ou porta-vozes identificados, fadados a serem não-representativos e que, como no caso mais famoso, o de Rigoberta Menchú, podem com efeito estar criando partidos políticos e ideólogos estrangeiros (Stoll, 1999; Arias, 2001). Esses porta-vozes exigem o reconhecimento de formas alternativas de se compreender o mundo, mas ironicamente eles o fazem usando o idioma da teoria da cultura ocidental. Uma vez que as representações de identidades estão tão distantes das realidades que deveriam representar, e já que a riqueza relativa das ONGs e das pessoas do local é tão desproporcional, é pouco provável que esses movimentos sejam democráticos (Sieder; Witchell, 2001).

Por que será, então, que esses movimentos têm conseguido ser tão influentes? Como sempre, nossas idéias do que seja o primitivo são melhor compreendidas contrastivamente com nossos debates ideológicos correntes. Freqüentemente, a imagem do primitivo é construída, hoje em dia, de modo a servir ao movimento Verde (Greens) e ao movimento anti-globalização. Esta imagem é construída para representar o mundo ao qual, aparentemente, deveríamos desejar retornar – um mundo no qual o homem está em perfeita sintonia com a natureza. Esta é uma idéia que atrai a várias pessoas, em todo espectro político. O fundador da ONG Survival International, Robin Hanbury-Tennison, é um pensador romântico que recentemente ganhou destaque enquanto líder da Aliança Nacional (Countrywide Alliance), um movimento constituído para se opor à proibição da caça de raposas na Inglaterra.

Certamente o Presidente Chirac não é nem Partido Verde, nem um anti-capitalista. Por que será, então, que ele anda tão preocupado em criar aquilo que – apesar da continuada incerteza com relação à nomenclatura – pode ainda vir a ser um museu de arte primitiva? A França está em meio a um debate convulsivo sobre identidade nacional face à globalização e à imigração. Talvez a intenção seja a de construir o museu para mostrar que o antigo império colonial valoriza as culturas de suas antigas colônias, mas as coloca firmemente no passado. A mensagem que vai para os imigrantes de antigas colônias e que hoje vivem na França talvez seja a de que as suas próprias culturas são apropriadas apenas para o museu, e que eles não têm qualquer alternativa real senão a de se tornarem civilizados e, desse modo, franceses, para se tornarem qualificados a ganhar direitos de cidadãos.

As teorias antropológicas estão atualmente surtindo efeitos no mundo, e nós devemos questionar a reiteração de teorias falsas e desacreditadas, porque estas alimentam a formulação de políticas públicas e, inevitavelmente, causam problemas. Enquanto antropólogos, contudo, talvez a nossa maior contribuição seja uma investigação detalhada da complicada complexidade de processos sociais de pequena escala, no nível mais basal. Estes estudos de caso locais acabam com as abstrações que só confundem e, paradoxalmente, muitas vezes acabam por ter maior relevância geral do que as grandes generalizações e as histórias universais, que pertencem, na verdade, a um museu de idéias perigosas e velhas sobre raça e cultura.

Traduzido do inglês por Andréa F. Leal

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  • 1
    Uma versão deste artigo foi apresentada na 23ª Reunião da Associação Brasileira de Antropologia (RBA/ABA), em junho de 2002. Algumas passagens foram acrescentadas em uma palestra que fiz na cerimônia de abertura do Instituto Max Planck de Antropologia Social, em Halle, na Alemanha. Tive também a oportunidade de esboçar o argumento que segue, em um seminário menor, de especialistas em direitos humanos, na London School of Economics, presidido pelo professor Stanley Cohen. Mark Nuttall e Evie Plaice fizeram comentários detalhados sobre a seção deste artigo que trata do Canadá.
  • 2
    A orelha do seu livro lista as suas credenciais: estudou em Oxford, já lecionou Antropologia Social na Universidade de Queen, em Belfast, e trabalhou, durante os anos 70, "com o Departamento Canadense de Assuntos Indígenas e do Norte (
    Canadian Department of Indian and Northern Affairs) e depois com organizações
    inuit e indígenas, mapeando territórios de caçadores-coletores e pesquisando reivindicações de terras e direitos indígenas em várias partes do Canadá. Ele foi um consultor na Investigação do Gasoduto Mackenzie (
    Mackenzie Pipeline Inquiry), foi um membro da famosa Comissão Morse (
    Morse Commission) do Banco Mundial e foi também presidente da publicação
    Snake Reiver Independent Review. Todas essas posições o levaram a pensar sobre o encontro do desenvolvimento em larga-escala com as comunidades indígenas. Ele tem trabalhado a história dos
    bushman e com direito à terra no sul do Kalahari, vinculado ao Instituto San na África do Sul, desde 1997."
  • 3
    Existe hoje em dia uma vasta literatura a esse respeito. Ver, por exemplo, Wilmsen (1989). Para se ter um relato excelente da situação australiana, ver Hiatt (1996, Cap. 2).
  • 4
    O navio Mayflower teria trazido os
    pilgrims, ou protestantes, fugidos da Inglaterra e que vieram colonizar a América (N. de T.).
  • 5
    Para uma explicação antropologicamente mais sofisticada e mais favorável ao movimento Inuit, ver Samson (2001).
  • 6
    A ONG
    Survival International ainda insinuou que o verdadeiro motivo pelo qual a população fora removida é um acordo, feito entre De Beers e o Governo, para explorar os recursos da região, especialmente diamantes – ainda que, se realmente fossem encontrados diamantes na região, eles estariam à disposição do governo, pois a Reserva tem o estatuto de Terras do Estado.
  • 7
    Basters é uma palavra de origem holandesa, incorporada mais tarde ao africâner.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      29 Ago 2005
    • Data do Fascículo
      Jun 2002
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