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O poder de domar do fraco: construção de autoridade pública e técnicas de poder tutelar nas políticas de imigração e colonização do Serviço de Povoamento do Solo Nacional, do Brasil

Resumos

Neste artigo examino ações e representações desenvolvidas pelos agentes do Serviço do Povoamento do Solo Nacional, do Brasil, procurando sublinhar o papel que as políticas de imigração e colonização ocupam no interior de processos mais amplos de formação de estados nacionais. Para isso, mostrarei como as técnicas de poder envolvidas na execução destas políticas desempenham um papel na construção de autoridade pública. Parto aqui de uma démarche antropológica segundo a qual as políticas públicas devem ser concebidas não como mera aplicação de projetos por meio de estruturas preexistentes, mas como locus de construção dessas estruturas e, conseqüentemente, de autoridade pública. Trata-se de uma leitura que põe acento no modo como os mecanismos de administração são estruturados por meio da construção dos objetos das políticas públicas, pelo recrutamento dos agentes sociais que as conduzem, e pela constituição das redes de interação social por meio das quais essas políticas circulam.

antropologia do Estado; Estado e nação; imigração e colonização no Brasil; políticas públicas


This article examines the acts and the representations developed by agents of the National Soil Populating Service (Serviço do Povoamento do Solo Nacional). The emphasis is on the important role that immigration and colonization policies have amid larger processes of construction of national states. I will thus show how the power techniques involved in the execution of these policies have an important role in the construction of public authority. The analysis here presented parts from an anthropological demarche, which states that public policies must not be conceived as merely the application of projects by pre-existing structures, but rather as the place where these structures are built and, therefore, as the place where public authority is construed. This interpretation stresses the way that administration mechanisms are structured by means of the construction of public policy’s objects, by means of the social agents that execute the public policies, and by means of the construction of social interaction networks through which these public policies circulate.

immigration and colonization in Brazil; nation and state; public policies; state anthropology


ARTIGOS

O poder de domar do fraco: construção de autoridade pública e técnicas de poder tutelar nas políticas de imigração e colonização do Serviço de Povoamento do Solo Nacional, do Brasil

Jair de Souza Ramos

Universidade Federal Fluminense – Brasil

RESUMO

Neste artigo examino ações e representações desenvolvidas pelos agentes do Serviço do Povoamento do Solo Nacional, do Brasil, procurando sublinhar o papel que as políticas de imigração e colonização ocupam no interior de processos mais amplos de formação de estados nacionais. Para isso, mostrarei como as técnicas de poder envolvidas na execução destas políticas desempenham um papel na construção de autoridade pública. Parto aqui de uma démarche antropológica segundo a qual as políticas públicas devem ser concebidas não como mera aplicação de projetos por meio de estruturas preexistentes, mas como locus de construção dessas estruturas e, conseqüentemente, de autoridade pública. Trata-se de uma leitura que põe acento no modo como os mecanismos de administração são estruturados por meio da construção dos objetos das políticas públicas, pelo recrutamento dos agentes sociais que as conduzem, e pela constituição das redes de interação social por meio das quais essas políticas circulam.

Palavras-chave: antropologia do Estado, Estado e nação, imigração e colonização no Brasil, políticas públicas.

ABSTRACT

This article examines the acts and the representations developed by agents of the National Soil Populating Service (Serviço do Povoamento do Solo Nacional). The emphasis is on the important role that immigration and colonization policies have amid larger processes of construction of national states. I will thus show how the power techniques involved in the execution of these policies have an important role in the construction of public authority. The analysis here presented parts from an anthropological demarche, which states that public policies must not be conceived as merely the application of projects by pre-existing structures, but rather as the place where these structures are built and, therefore, as the place where public authority is construed. This interpretation stresses the way that administration mechanisms are structured by means of the construction of public policy’s objects, by means of the social agents that execute the public policies, and by means of the construction of social interaction networks through which these public policies circulate.

Keywords: immigration and colonization in Brazil, nation and state, public policies, state anthropology.

C’est, sans aucun doute, en raison de tout cela que le phénomène migratoire en sa totalité, émigration et immigration, ne peut être décrit et interprété, autrement qu’à travers les catégories de la pensée d’État. Ce mode de pensée est tout entier inscrit dans la ligne de démarcation, invisible ou à peine perceptible, mais dont les effets sont considérables, que sépare de façon radicale "nationaux" et "non-nationaux". [ ]

C’est aussi pour toutes ces raisons que l’on peut dire que "penser l’immigration, c’est penser l’État" et que c’est "l’État qui se pense lui-même en pensant l’immigration". Et c’est peut-être une des dernières choses que l’on découvre quand on réfléchit au problème de l’immigration et qu’on travaille sur l’immigration, alors que qu’il aurait fallu sans doute commencer par là ou, pour le moins, savoir cela avant de commencer. Ce que l’on découvre de la sorte, c’est cette vertu secrète de l’immigration comme étant une des introductions, et peut-être la meilleure qui soit, à la sociologie de l’État. (Sayad, 1999, p. 6, grifo do autor).

O objetivo deste artigo é argumentar em favor de um enfoque acerca de políticas de imigração e colonização que sublinhe o papel que estas ocupam no interior de processos mais amplos de formação de estados nacionais. Para isso, mostrarei como as técnicas de poder envolvidas na execução dessas políticas, que são técnicas que visam induzir comportamentos, desempenham um papel na construção de autoridade pública.

Minha argumentação será desenvolvida através do exame de alguns aspectos envolvidos nas ações e representações dos agentes do Serviço do Povoamento do Solo Nacional(Povoamento)1 1 Daqui em diante identificarei o Serviço do Povoamento do Solo Nacional pelo termo "Povoamento". , agência do Ministério de Agricultura Indústria e Comércio, responsável, desde sua fundação em 1907 até o início da década de 1930, pela implementação das políticas federais de imigração e colonização.

Parto aqui de uma démarche antropológica segundo a qual as políticas públicas devem ser concebidas não como mera aplicação de projetos por meio de estruturas preexistentes, mas como locus de construção dessas estruturas e, conseqüentemente, de autoridade pública.

Trata-se de uma leitura da administração pública que põe acento no modo como os mecanismos de administração são estruturados por meio da construção dos objetos das políticas públicas, pelo recrutamento dos agentes sociais que as conduzem, e pela constituição das redes de interação social por meio das quais essas políticas circulam.

Em especial, privilegiarei um aspecto dos processos de formação de Estado, que é aquele relativo à construção da autoridade pública. Ao cabo de minha argumentação, acerca das representações e ações implicadas na política do Povoamento, espero demonstrar a importância das políticas de imigração e colonização na sua construção.

As políticas de atração de imigrantes como objeto: de subsidiados, espontâneos e indesejáveis

No século XVIII, de uma população que alcançava tão-somente 2 milhões de habitantes, cerca de 400 mil portugueses vieram para o Brasil e outros mais continuaram a chegar de forma ininterrupta ao longo do século XIX e da maior parte do XX. Em sua maioria, eles emigravam com recursos próprios e estavam envolvidos em redes familiares ou comunitárias que os auxiliavam tanto na partida de Portugal quanto na chegada ao Brasil. Esses imigrantes encaminharam-se preferencialmente para as cidades e, ao longo dos anos, parcela deles empreendeu inúmeras viagens de ida e volta entre os dois países, se distanciando de um modelo rígido de fixação (Klein, 2000).

O objetivo deste quadro impressionista que acabo de fazer de parcela da imigração portuguesa não é definir de modo direto o objeto de minha argumentação acerca da eficácia em pensar políticas de imigração do ponto de vista dos processos de formação de Estado. Contudo, aparece aqui por contraste o objeto a partir do qual pretendo desenvolvê-la: as ações e classificações de origem estatal dirigidas a imigrantes e colonos. Pois é sob o fundo dessa possibilidade tão bem representada por parcela significativa da imigração portuguesa, qual seja a de imigrantes que se movimentam segundo cálculos e suportes múltiplos, que se torna mais visível o esforço estatal de intervir neste processo complexo de forma a desenhar uma direção aos imigrantes através de uma série de mecanismos de atração e condução.

Estes milhares de portugueses, e tantos outros milhares de imigrantes de inúmeras nacionalidades que vieram para o Brasil de forma semelhante, eram classificados como espontâneos nos registros de entrada de imigrantes feitos por agentes do Povoamento, bem como em outros discursos de origem estatal sobre imigração. Segundo o artigo 95 do decreto no 6.455, de 19 de abril de 1907, através do qual eram aprovadas as bases regulamentares do Serviço do Povoamento do Solo Nacional, eram "considerados imigrantes espontâneos os que vierem de portos estrangeiros com passagem de 2a ou 3a classe, por conta própria" (Bailly, 1931, p. 117). Esses imigrantes eram contrapostos aos subsidiados, que segundo o artigo 97 do mesmo decreto eram aqueles aos quais Estados ou União pagavam "passagens de 3a classe desde o porto de embarque até o porto do Rio de Janeiro ou qualquer outro porto nacional, em que esteja montado o serviço de recepção e hospedagem" (Bailly, 1931, p. 118).

Essas duas categorias permitem compreender a especificidade das ações dos agentes do Povoamento frente aos imigrantes, tanto mais que no seu período de atuação elas não encontravam correspondentes nos discursos jurídico-administrativos estabelecidos a nível internacional.

Uma rápida leitura dos artigos votados como resolução final da Conferência Internacional de Emigração e Imigração realizada em 1924 em Roma, Itália2 2 Segundo Noiriel (1988), esse congresso se inscreve numa série progressiva de acordos internacionais que, mesmo se defrontando com as dificuldades colocadas pelo acirramento dos nacionalismos, chegaram a estabelecer, nos anos 30, a idéia de um direito internacional em matéria de imigração. A conferência de Roma, em especial, traz a primeira definição precisa, no direito internacional, dos termos emigrante e imigrante, tendo desempenhado um papel significativo na constituição de mecanismos administrativos nacionais de tratamento dos imigrantes (Noiriel, 1988, p. 115). Para um resumo de parcela das deliberações aprovadas nesse congresso, ver Martins, C. (1929). , reunindo delegações de 57 países da Europa, Ásia e América, mostra a inexistência de categorias que correspondam à dicotomia espontâneo/subsidiado (Conferência Internacional de Emigração e Imigração apud RMAIC, 1924, p. 149). Tão-somente o artigo 7, Recrutamentos Coletivos de Trabalhadores para o Estrangeiro, da seção 3, Meios a Adotar para Proporcionar a Emigração de Acordo com as Necessidades de Mão de Obra dos Países de Imigração, trazia algo próximo à categoria subsidiado, que era a categoria recrutamentos (recrutements, no original francês). Contudo, não creio ser possível ver aí uma tradução adequada da categoria subsidiado, por duas razões. Em primeiro lugar, o recrutamento não qualificava o imigrante, mas tão-somente os meios, estatais ou não, que os representantes dos estados nacionais reconheciam como legítimos na ação de recrutar imigrantes. Em segundo lugar, o recrutamento aparecia tão-somente como um aspecto das relações entre os estados nacionais, sem se inscrever numa oposição como subsidiado/espontâneo que abrangia amplamente as classificações estatais acerca dos imigrantes no Brasil e, em decorrência, estruturava as ações frente a eles.

Este par classificatório, subsidiado/espontâneo, referente aos imigrantes e às formas de tratamento a que eram submetidos, também está ausente em parcela da literatura que discutiu políticas de imigração. Analisemos essa afirmação em detalhe.

Em um texto intitulado Characteristcs of Migration and Immigrant Absortion, que, apesar denão estar orientado à discussão de políticas imigratórias, teve grande importância na análise de processos de imigração, de um modo geral, Eisenstadt (1954) se propôs a identificar as mais importantes características sociais e psicológicas do processo de migração e absorção dos imigrantes de forma a construir um modelo de análise desses fenômenos. E, dos seis passos previstos em seu modelo, os quatro últimos diziam diretamente respeito especificamente à absorção dos imigrantes. Nesses passos deviam ser analisados: o processo de institucionalização do comportamento do imigrante no novo país – vale dizer, os novos papéis e valores incorporados por ele; as possibilidades abertas e as demandas impostas pela estrutura social do novo país; a relação entre comunidades de imigrantes e a alocação dos diferentes tipos de papéis dentro da sociedade absorvente; e os diferentes tipos de comportamento desintegrador e as possibilidades de desorganização institucional e mudanças na nova sociedade3 3 Se tomarmos por referência algumas formulações presentes em Le Phenómene Migratoire: une Relation de Domination, do antropólogo de origem argelina Abdelmalek Sayad (1981), autor de textos fundamentais sobre a e/imigração argelina na França na segunda metade do século XX, podemos tomar a análise de Eisenstadt como expressão da transformação dos problemas sociais dos países de imigração em problemas sociológicos. Segundo Sayad, vários dos temas tradicionais dos estudos sobre imigração traduzem, na verdade, preocupações sociais com a inserção e assimilação do imigrante de modo a preservar a "ordem pública". .

Como que num desdobramento dessa problemática, grande parte da literatura do final do século XX produzida na Europa acerca de políticas imigratórias se debruça, ainda que de forma crítica, sobre os temas expostos no modelo de Eisenstadt. A partir de uma pauta, aparentemente inescapável, definida pelo problema social que a imigração representa para os estados nacionais dos países do Primeiro Mundo, foram produzidos inúmeros estudos sobre desenvolvimento e/ou a natureza dos mecanismos de assimilação dos imigrantes e, como um dos corolários desta preocupação, sobre os mecanismos de restrição à entrada de imigrantes4 4 À guisa de exemplo, eu citaria os seguintes títulos: La France de l'Intégration, de Dominique Schnapper (1991); De l'Immigration à l'Intégration en France et en Allemagne, coletânea de artigos organizada por Bernard Falga, Catherine Wihtol de Wenden e Claus Leggewie (1994); e Le Destin des Immigrés: Assimilation et Ségrégation dans les Démocraties Occidentales, de Emmanuel Todd (1994). , como objeto central dos estudos sobre políticas imigratórias.

Portanto, a partir dos anos 70, quando se revelaram as crescentes dificuldades dos Estados europeus em lidar com uma imigração que se tornou permanente, o impacto desse processo sobre a idéia de nação, e sobre o funcionamento dos mecanismos de Estado, se multiplicaram igualmente os estudos acerca da relação entre imigração e estado nacional, dos mecanismos de que as sociedades e culturas nacionais dispõem para assimilar os imigrantes e, em especial, das formas como os agentes estatais dos países de imigração construíram, ao longo do tempo, diversos mecanismos restritivos e seletivos à entrada e ao acesso a direitos por parte dos imigrantes (Sales, 1992).

Para efeito da argumentação que estou propondo aqui, é necessário chamar a atenção para uma especificidade desses estudos, no que tange à teorização sobre políticas imigratórias, que é a ausência de uma reflexão sobre as políticas de atração dos imigrantes e seus mecanismos5 5 Dessa literatura imensa poderíamos citar, à guisa de referência: Neuman (1996), para uma análise do modo como a literatura acerca da história da política norte-americana de imigração, praticada do século XIX até a primeira metade do século XX, tem analisado a construção de mecanismos de restrição à entrada de imigrantes; Perrier (1994), para um balanço dos estudos, sobre o mesmo período, acerca do nativismo norte-americano em sua conexão com a adoção de medidas restritivas; Weil (1994) e Noiriel (1991), para uma análise da constituição de mecanismos restritivos e/ou assimilacionistas articulados às concepções de nação e nacional na França, ao longo do século XX; e Sayad (1991), para uma análise dos modos pelos quais as concepções estatais acerca dos imigrantes e as práticas a elas relacionadas estruturam identidades sociais estigmatizadas e condições de vida dos imigrantes na França. O autor trabalha, sobretudo, sobre a segunda metade do século XX. .

Essa ausência tem pelo menos uma razão muito simples: muitos dos estudos que estão na base de formulações teóricas mais abrangentes sobre política imigratória têm tido por objetivo explicar as políticas imigratórias de países da Europa e da América do Norte, onde os mecanismos de atração dos imigrantes não são ou não foram predominantes, ao longo da história, ainda que não fossem inexistentes. Em outras palavras, essa literatura tem tomado por objeto de investigação, e por referência na montagem de seus modelos teóricos de explicação, países de imigração nos quais aquelas ações que constituiriam figuras semelhantes a do subsidiado eram marginais, quando não inexistentes.

Podemos encontrar, mesmo em um autor complexo e cuidadoso como Sayad, estas operações que como que traduzem a natureza das relações atuais entre países de imigração, quase sempre do chamado Primeiro Mundo, e países de emigração, muitos deles de regiões outrora coloniais, em formulações teóricas mais abstratas acerca das políticas de imigração. Assim, ao tomar por objeto as negociações bilaterais entre países de emigração e países de imigração, o autor afirma:

Un des pièges de l’immigration, transaction bilatérale en droit (fiction que chacun des partenaires a intérêt à entretenir) mais, en réalité, décidée unilatéralement par le partenaire dominant, est que le pays d’origine ne peut ni approuver, ni ignorer totalement ce qu’aura décider son interlocuteur. (Sayad, 1991, p. 259).

O autor supõe, aí, que o pólo dominante na relação entre os dois países reside nos países de imigração, plenamente soberanos na definição do tratamento dado aos imigrantes, o que se traduziria na formulação autônoma de mecanismos de restrição, seleção e assimilação dos imigrantes. Se essa formulação dá conta das relações entre os países de imigração do Primeiro Mundo e os países de emigração do Terceiro Mundo, desde pelo menos os anos 1950, sua generalização indiscriminada tem induzido alguns pesquisadores a concentrarem seus olhares sobre os aspectos restritivos das políticas imigratórias como expressão mesma de uma ação estatal em matéria de imigração (Zubillaga, 2000, p. 427).

Em outras palavras, concebem-se as ações estatais em matéria de imigração como dirigidas de forma exclusiva pelos países de imigração e articuladas entre dois pólos: de um lado, uma regulação estatal mínima, ou mesmo inexistente, dos deslocamentos dos imigrantes, o que caracterizaria análises que supõem a existência de uma era de ouro das imigrações; de outro, ações estatais dirigidas à seleção ou restrição à entrada de imigrantes, as quais caracterizariam a tomada de um papel ativo nos deslocamentos imigratórios pelos agentes estatais dos países de imigração.

Ocorre que agentes estatais de países como Argentina, Uruguai, Chile, Peru e Brasil usaram a oferta de lotes de terra, o pagamento de passagens e a propaganda nos países de emigração como instrumentos de atração de imigrantes europeus6 6 Conferir os estudos reunidos em Fausto (2000). . E o fizeram sem dispor, jamais, de uma posição dominante frente a esses países de emigração que lhes permitisse definir de modo autônomo o tratamento dado aos imigrantes. Encontramos, assim, uma possibilidade empírica que merece uma análise específica: políticas de imigração conduzidas por países de imigração que não gozavam de uma posição dominante no quadro das relações internacionais7 7 As dificuldades vividas pelos diplomatas brasileiros em sua relação com os representantes do Império japonês, por ocasião das propostas feitas na constituinte de 1934 no sentido de se proibir, pura e simplesmente, a imigração japonesa para o Brasil, dão o mais perfeito testemunho desta condição vivida pelos agentes do Estado brasileiro de representarem um país de imigração que não gozava de uma posição dominante no cenário internacional. Sobre a crise diplomática originada desta situação ver Carneiro Leão, 1990. e estruturadas com o objetivo de permitir aos agentes estatais desses países o exercício de um papel ativo nos deslocamentos dos imigrantes europeus8 8 Segundo Devoto (2000, p. 40), acerca da Argentina: "uma série de trabalhos e relatórios elaborados desde o final da década de 1870 insistia na necessidade de reorientar a política migratória consagrada pela lei de 1876 num sentido mais ativo, para promover a imigração de outros grupos europeus em consonância com aquele ideal de pessoas da parte mais adiantada da Europa". Diga-se de passagem que os estudiosos das políticas de imigração na América Latina sempre enfocaram, em alguma medida, os mecanismos de atração dos imigrantes. Ver Villalón (1997) e alguns dos estudos reunidos em Fausto (2000), entre outros. . E é dessa posição, se não paradoxal ao menos ambígua, que nasceram categorias como subsidiado e espontâneo.

Contudo, isso não significa que a atração de imigrantes europeus fosse o único componente das políticas de imigração desenvolvidas por países latino-americanos. Ao lado dos mecanismos de atração estiveram presentes, recorrentemente, práticas de restrição à entrada de imigrantes, as quais configuram uma terceira categoria nativa: a dos imigrantes indesejáveis. Essa sim era uma categoria que possuía correspondente no vocabulário jurídico-administrativo internacional. Ela aparece no artigo 5, seção 3, da já citada Conferência Internacional de Emigração e Imigração de 1924, onde encontramos a seguinte introdução: "considerando que a colaboração entre os países de emigração e os países de imigração é necessária em vista de impedir o deslocamento de emigrantes indesejáveis [indésirables,no original francês]segundo a legislação em vigor nestes últimos países, emite o voto: [ ]"(RMAIC, 1924).

No Brasil, essa categoria apareceu nos instrumentos jurídicos republicanos através do decreto no 18.408, de 25 de setembro de 1928, que regulava, entre outros assuntos, a emissão de "vistos em passaportes estrangeiros, de forma a conciliar os interesses dos imigrantes e viajantes com a defesa do Brasil contra os indesejáveis de toda a espécie" (Bailly, 1931, p. 81). Contudo, essa categoria consolidava representações há muito inscritas em leis e práticas administrativas que qualificavam negativamente populações e indivíduos, a partir de uma série de critérios que iam da raça às convicções políticas dos imigrantes, passando por suas condições de saúde e de trabalho, e suas supostas características nacionais9 9 É preciso ressaltar que a definição dessas categorias em lei não esgota os significados com que elas recobriram as ações estatais. Para uma análise mais detalhada das representações que estruturam a categoria indesejável, ver Ramos (1996) e Seyferth (1991). .

As categorias espontâneos, subsidiados e indesejáveis configuram um vocabulário mínimo de entendimento das políticas de imigração que foram desenvolvidas por agentes do Estado brasileiro. Nesse sentido, gostaria de retomar nesses termos as críticas formuladas mais acima à literatura contemporânea sobre políticas imigratórias, afirmando que a ausência de uma reflexão mais aprofundada sobre os subsidiados decorre da tendência a confundir a construção de uma política ativa de imigração com a definição dos indesejáveis e dos modos adequados de tratá-los. Ora, a política de imigração e colonização aqui examinada teve como um de seus componentes fundamentais especificamente um conjunto de ações e representações através das quais os agentes do Povoamentobuscavam atrair imigrantes.

Para finalizar esta seção, cabem algumas considerações sobre o emprego que faço do termo "ativo" para me referir às políticas de imigração que contemplam não apenas mecanismos de restrição, mas também mecanismos de atração dos imigrantes.

O pagamento de passagens foi o mais importante dos instrumentos através dos quais o governo central e os governos locais tentaram atrair imigrantes para o Brasil. Melhor dizendo, tentaram dirigir para o Brasil parte dos milhões de imigrantes que vieram para a América desde o início do século XIX até a década de 1930. E parece-me inegável que este esforço por intervir de forma tão direta no amplo processo da imigração de massa deu resultados significativos no que diz respeito ao incremento e à direção da imigração no Brasil.

A intensidade e a duração com que esse recurso foi utilizado diferenciam a política imigratória brasileira daquelas postas em ação em outros países latino-americanos. Assim, ao analisar a intenção dos agentes do Estado argentino de atrair imigrantes europeus, Devoto concluiu que as políticas públicas formuladas pelo Estado argentino e projetadas pela sua elite pouco impacto tiveram, salvo em momentos pontuais como a década de 1880, no enorme fluxo imigratório recebido pelo país, que foi fruto, de fato, da combinação de condições macroestruturais com estratégias microssociais (Devoto, 2000, p. 33). Em contraste com o caso argentino, a política de subsídio de passagens internacionais praticada por agentes estatais no Brasil foi responsável por parcela significativa dos imigrantes entrados no país.

Em que pesem as diferenças entre a política imigratória argentina e a brasileira, o comentário de Devoto se revela de fundamental importância por nos oferecer algumas precauções no tratamento das políticas imigratórias de um modo geral. Em primeiro lugar, ele nos estimula a não confundir imigração e política imigratória. É o que eu espero ter feito ao explicitar as diferenças entre as categorias espontâneo e subsidiado. Assim, se os governos central e estaduais fizeram grandes investimentos na produção de subsidiados, pagando passagens e organizando núcleos coloniais com imigrantes europeus, correndo em paralelo a esses esforços, um número ainda maior de espontâneos chegou ao Brasil ao longo do período em que aquelas políticas foram postas em prática, e o fizeram em condições semelhantes àquelas descritas por Devoto para a Argentina.

Em segundo lugar, ele nos permite sublinhar o fato de que as ações estatais e as interações entre agentes de Estado e imigrantes não são mais que parcela das complexas e múltiplas interações que estruturaram o processo da imigração de massa10 10 Numa distinção análoga a essa, Oliveira Filho (1979, p. 112) afirma: "É a extinção do pequeno produtor, quer isso ocorra por meios basicamente econômicos ou políticos, que permite explicar a colonização como um movimento de massas e não como simples reflexo de políticas governamentais tendentes a favorecer ou dirigir o processo migratório, meros ensaios sem maior significação sobre a indução de processos sociais". . No limite, creio que essas ações estatais devam ser analisadas como tomadas de posição no interior daquele processo mais amplo.

Dessas considerações resulta que o termo "ativo" é empregado aqui para qualificar os esforços que os agentes estatais do Povoamento empreenderam visando intervir sobre os deslocamentos dos imigrantes. Esforço de intervenção cuja especificidade pretendo expor mais adiante, mas que é também expressão particular de uma característica mais geral dos fenômenos de emigração e imigração, que é a dimensão estatal/nacional de tais fenômenos.

Construção de autoridade e poder tutelar: poder como indução

Para demonstrar a eficácia de minha proposta de tomar as ações e representações dos agentes do Povoamento como uma faceta do processo de formação da autoridade federal em matéria de imigração, quero desenvolver alguns princípios analíticos que estão presentes numa afirmação clássica de Weber (1987, p. 12), segundo a qual:

Para outros fins de conhecimento (por exemplo, jurídicos) ou por finalidades práticas pode ser conveniente [ ] tratar determinadas formações sociais (estado, cooperativa, companhia anônima, fundação) como se fossem indivíduos (por exemplo, como sujeitos de direitos e deveres, ou de determinadas ações de alcance jurídico). Para a interpretação compreensiva da sociologia, pelo contrário, estas formações não são outra coisa que desenvolvimentos e entrelaçamentos de ações específicas de pessoas individuais, já que só estas podem ser sujeitas de uma ação orientada por sentido. (grifo do autor).

Este princípio, que consiste em tomar o Estado não como um agente, mas sim como uma relação social entre agentes, foi extensamente desenvolvido por Elias (1980, 1993) em sua teoria do processo civilizador e, mais recentemente, retomado por De Swaan (1990) para explicar os processos de coletivização de saúde, educação e previdência na Europa ocidental. Ele implica na definição do "Estado" não como uma entidade autônoma, um agente social, mas como um conjunto de práticas sociais, instituições e poderes que, a partir das dinâmicas intra e inter-Estados que ordenam as cadeias de interdependência que ligam indivíduos e grupos, são centralizados e territorializados em processos de longa duração. Assim, ao invés de Estado concebido como uma realidade substantiva, seria mais apropriado falarmos em processos de estatização.

Alguns estudos, especialmente Elias (1993) e Tilly (1975, 1996) desenvolveram amplamente essa perspectiva através da análise dos processos que levaram à constituição dos monopólios fiscal e militar em um corpo administrativo diferenciado, o qual se encontra na base dos modernos Estados europeus. Um terceiro monopólio aí envolvido é o monopólio jurídico, que está intimamente vinculado à imposição da representação da existência de uma ordem legítima de que o Estado seria o representante e fundador. Esses e outros monopólios, uma vez constituídos, tornam-se objeto de disputas e fonte de recursos materiais e simbólicos, a partir dos quais agentes de Estado potencializam suas ações frente aos demais agentes sociais.

Na literatura brasileira acerca dos processos de formação de Estado, encontramos uma contribuição fundamental no texto Poder Privado e Construção do Estado sob a Primeira República, de Elisa Pereira Reis (1991). Nesse texto, a autora argumenta de forma convincente que o período identificado como República Velha conheceu a expansão das agências estatais concomitantemente ao fortalecimento de interesses privados. Nesse sentido, a autora se contrapõe a duas formulações básicas: "(a) a contrução do estado é um evento discreto, um fenômeno realizado de uma vez por todas na vida de uma sociedade; e (b) a existência de um jogo de soma zero entre poder privado e poder público" (Reis, 1991, p. 45) Da primeira suposição derivam-se as concepções do processo de formação do Estado brasileiro como tendo se realizado de uma vez por todas durante o período imperial, e, da segunda, deriva-se a suposição de que o predomínio das oligarquias rurais na direção do Estado implicou a redução do espaço reservado ao poder público.

A autora se contrapõe aos dois pressuspostos tanto teórica quanto empiricamente, afirmando que o Estado não deixou de ter identidade própria no interior do regime federativo sob a dominação das oligarquias. Ao contrário, a expansão da capacidade infra-estrutural do Estado – "o poder de penetrar efetivamente a sociedade civil e logisticamente implementar decisões políticas" (Reis, 1991, p. 48) – durante a Primeira República permitiu a "re-centralização" e a "re-territorialização" do poder público naquele período. Isso fica demonstrado em sua análise do processo que resultou na intervenção federal nos preços do café, que fora inicialmente demandada pelos próprios cafeicultores, e que deu origem a mecanismos burocráticos até então inexistentes de controle da economia cafeeira.

Encontramo-nos aqui com uma formulação essencial à minha argumentação: as ações de agentes estatais não são simples produto de um Estado já pronto. As ações feitas em nome do Estado, ainda que demandadas a partir de interesses privados, constroem o próprio Estado.

Levando em conta algumas contribuições das formulações acima citadas para analisar aspectos da formação e do funcionamento, ao longo do tempo, de um segmento da administração pública federal, o Povoamento, é possível definir seus agentes como, antes de tudo, agentes sociais cujas ações estão referidas a um corpus jurídico-administrativo – as leis, decretos, portarias, etc. que normalizam seu estatuto administrativo, suas ações e relações com os demais agentes sociais –, aos recursos orçamentários postos à disposição do Povoamento, e à representação de uma ordem pública tributária da existência do Estado nacional brasileiro, isto é, à sua legitimidade11 11 "A ação, em especial a social e também singularmente a relação social, podem se orientar, pelo lado de seus participantes, na representação da existência de uma ordem legítima" (Weber, 1987, p. 25, grifo do autor). Ver também Bendix (1996, p. 50). enquanto agentes de Estado.

Mas essas ações não devem ser concebidas apenas como tributárias dos elementos que conferiam a seus agentes a condição de agentes de Estado. Essas ações, elas mesmas, eram dirigidas à produção de autoridade estatal. Retomando observações críticas assinaladas mais acima, as ações dos agentes do Povoamentonão eram simples execução das diretrizes definidas desde uma administração pública definitivamente constituída. Elas eram parte da construção mesma dessa administração, na medida em que eram dirigidas a tornar a autoridade federal reconhecida na relação destes agentes com os demais agentes sociais envolvidos nas ações relativas à colonização e à imigração.

O uso que faço do conceito de autoridade ficará mais claro a partir de algumas observações. Comecemos pela leitura que Marc Abélès (1990) faz da relação entre dominação e legitimidade em Weber. Segundo Abélès, Weber propôs uma interrogação acerca dos fundamentos da dominação, tomando por referência não o modo como um grupo chega ao poder em uma formação social dada, mas sim o modo como os indivíduos vêm a obedecer, o que implica interrogar a respeito dos motivos que orientam as ações de obediência. É dessa interrogação que se deriva a leitura da dominação como probabilidade de encontrar obediência a um mandato determinado. E, dentre os motivosque Weber propõe, destaca-se a crença na legitimidade como uma condição fundamental das ações de obediência, logo, de toda dominação (Abélès, 1990, p. 80). Expressão dessa leitura é o seguinte comentário de Weber (1987) acerca do Estado:

Um Estado moderno, – como complexo de uma específica ação humana em comum – subsiste em parte muito considerável desta forma: porque determinados homens orientam sua ação pela representação de que aquele deve existir ou existir de tal ou qual forma; isto é, de que possuem validade ordenações com esse caráter de estarem juridicamente orientadas. (Weber, 1987, p. 13, grifo do autor).

Nesse sentido, poderíamos inferir da formulação weberiana que um "ideal de Estado" é um dos principais motivos que orientam as ações e relações entre indivíduos que são constitutivas da existência e funcionamento dos Estados. E isto é válido tanto para aqueles indivíduos que agem em nome do Estado quanto para aqueles que são objeto da ação estatal (Abélès, 1990, p. 82).

Isto nos leva à questão do reconhecimento da autoridade que pode ser esclarecida a partir da crítica que Skalnick (1999) faz à concepção de autoridade presente na tradição weberiana. O autor afirma que definir a legitimidade como crucial à autoridade a torna uma subcategoria do poder, pois a violência acaba por ser o seu fundamento último. Em contraposição à formulação weberiana, mas ciente da complexidade das situações concretas, ele constrói dois tipos ideais, um relativo ao poder, concebido como resultado do uso ou ameaça do uso da força física, e outro relativo à autoridade, concebida como devendo ser ganha através do reconhecimento público (Skalnick, 1999, p. 164)12 12 A ênfase no papel desempenhado pelos atos de consentimento no funcionamento da autoridade pública não é estranha a leitores de Weber, como Bendix (1996, p. 54). Contudo, me parece que sua leitura é dirigida a responder a seguinte pergunta: como a ordem é mantida ? Ao passo que a crítica de Skalnick (1999) é adequada a uma especificidade de minha argumentação, que reside no fato de que os atos de consentimento exigidos dos imigrantes/colonos não podem ser compreendidos como simples assentimento a uma ordem legal, uma vez que eles estão implicados na produção de comportamentos que não podem ser definidos a partir da ordem jurídica, como as técnicas produtivas, por exemplo. Assim, a relação de autoridade frente aos imigrantes/colonos era uma relação a ser construída e não uma relação já existente a ser aceita. .

Da separação entre legitimidade e autoridade, proposta pelo autor, decorre que não se trata simplesmente de reconhecer aos agentes de Estado o direito de imporem uma ordem pública, mas sim do reconhecimento de sua capacidade de dirigir os demais indivíduos em direções específicas. Assim, o esforço por construir comportamentos entre aqueles que são objeto da ação implica em ir além dos mecanismos de interdição de comportamentos ou de aceitação da ordem pública, implica em produzir neles o reconhecimento da capacidade dos agentes de Estado em dirigi-los. E é na conjunção destes sentidos que afirmo que esses agentes se esforçam por se tornarem autoridadesfrente aos demais agentes sociais.

E na base deste esforço podemos encontrar a diferença entre relação de poder e relação de violênciaproposta por Foucault (1984). Segundo o autor:

En fait, ce qui définit une relation de pouvoir, c’est un mode d’action qui n’agit pas directement et immédiatement sur les autres, mais qui agit sur leur action propre. Une action sur l’action, sur des actions éventuelles, ou actuelles, futures ou présentes. Une relation de violence agit sur un corps, sur des choses: elle force, elle plie, elle brise, elle détruit: elle referme toutes possibilités; elle n’a donc auprès d’elle d’autre pôle que celui de la passivité; et si elle rencontre une résistance elle n’a d’autre choix que d’entreprendre de la réduire. Une relation de pouvoir, en revanche, s’articule sur deux éléments qui lui sont indispensables pour être justement une relation de pouvoir: que "l’autre" (celui sur lequel elle s’exerce) soit bien reconnu et maintenu jusqu’au bout comme sujet d’action; et que s’ouvre, devant la relation de pouvoir, tout un champ de réponses, réactions, effets, inventions possibles. (Foucault, 1984, p. 313).

Essa formulação é interessante à construção de minha argumentação, posto que a diferença entre indesejáveis e subsidiados, a partir dos tratamentos a que são submetidos pelos agentes do Povoamento,se organiza nesses extremos ideais que vão, num pólo, da interdição do deslocamento através do uso ou ameaça do uso da força física até, no outro pólo, da busca à adoção de comportamentos por parte dos imigrantes/colonos, tais como o deslocamento dirigido e determinadas práticas produtivas e políticas, que só podiam ser obtidas através de mecanismos de indução13 13 Os verbos que Foucault utiliza para identificar esta ação sobre as ações que caracteriza o poder se encaixam muito apropriadamente nesta perspectiva que privilegia a indução em detrimento da interdição. Segundo Foucault (1984, p. 313), o poder "Il incite, il induit, il détourne, il facilite ou rend plus difficile, il élargit ou il limite, il rend plus ou moins probable." . Nesses termos, as ações dos imigrantes/colonos eram alvo de ações dos agentes do Povoamento, que visavam aí a construção de uma relação de poder.

Tomada como um aspecto da relação de poder, a concepção de autoridade aqui exposta se aproxima bastante do conceito de governance, também oriundo de uma determinada leitura dessas proposições de Foucault, empregado por Shore e Wright (1997) em sua Anthropology of Policy. Segundo os autores:

We use "governance" to refer to the more complex processes by which policies not only impose conditions as if from "outside" or "above", but influence people’s indigenous norms of conduct so that they themselves contribute, not necessarily consciously, to a government’s model of social order. In other words [ ] governance is "a more or less methodical and rationally reflected way of doing things, or art, for acting on the actions of individuals, taken either singly or collectively, so as to shape, guide, correct and modify the ways in which they conduct themselves". In this sense, governance is understood as a type of power which both acts on and through the agency and subjectivity of individuals as ethically free and rational subjects. (Shore; Wright, 1997, p. 6).

Tomando alguns elementos do conceito de governance para precisar o uso que faço da idéia de construção de autoridade, eu diria que as ações dirigidas à construção de autoridade implicam o esforço por tornar os agentes e agências de Estado, suas ações e as representações por eles difundidas, elementos relevantes frente aos demais agentes sociais, de modo que estes últimos devam levá-los em consideração em suas representações de si e em suas ações. Assim, minha leitura das ações e representações dos agentes do Povoamento é orientada pelo esforço em identificar os mecanismos por meio dos quais estes agentes buscavam construir esta relação de autoridade frente a uma multiplicidade de interlocutores. Nesse sentido, orçamento, leis, auxílios e concessão de lotes, entre tantos outros, devem ser concebidos como recursos mobilizados na construção dessa relação de autoridade.

Do ponto de vista a partir do qual estou trabalhando, a montagem deste segmento da administração pública, o Povoamento, atualizou um aspecto do processo de formação de Estado, que consiste na incorporação de populações e territórios não somente à jurisdição de direito do Estado nacional brasileiro, mas à presença de fato de poderes estatizados. O que implica não apenas a constituição de agentes e agências de Estado, mas a existência de mecanismos através dos quais esses agentes que falam e agem em nome de um Estado se esforçam por fazer com que populações diversas passem a conhecer e reconhecer a autoridade estatal. Implica igualmente a instauração de marcos de referência da ação estatal, tais como prédios, estradas e leis, bem como a produção e difusão de representações que têm o Estado no seu centro.

Enfim, são mecanismos que têm por objetivo fazer daqueles agentes sociais que falam e agem em nome do Estado, das diretrizes por eles difundidas, das ações por eles realizadas, e dos monumentos que materializam a presença do Estado, uma referência a partir da qual os demais agentes sociais devem conduzir seus cálculos e ações. Através desses mecanismos, indivíduos seriam convencidos, educados, estimulados, coagidos e condicionados a acreditarem na existência do Estado e a construírem parcela significativa de suas identidades sociais por referência a essa crença e a seus efeitos.

Nesse sentido, os elementos que constituíam determinados imigrantes como subsidiados, tais como o pagamento das passagens e a concessão dos lotes, por exemplo, são aqui concebidos como mecanismos através dos quais os agentes do Povoamento buscavam agir sobre as ações desses imigrantes/colonos de modo a construir aí uma relação de autoridade. Os mecanismos desta natureza empregados pelos agentes do Povoamento guardam semelhanças com aqueles que estão delimitados em uma forma de poder, no sentido atribuído por Foucault a esse termo, já descrito acima, que pode ser qualificado de tutelar (Souza Lima, 1995, 2003).

Podemos encontrar em Oliveira Filho (1988) uma primeira abordagem das formas de atualização da tutela como mecanismo de poder. Modalidade de relação entre agentes ou grupos, o fenômeno da tutela tem como fundamento a contraposição entre uma incorporação plena e uma incorporação deficitária de determinados códigos de conduta, os quais são definidos por referência ao grupo social que ocupa a posição dominante na relação tutelar. A tutela funciona, portanto, como mecanismo de controle sobre um conjunto de indivíduos potencialmente perigosos em razão de seus comportamentos desviantes(Oliveira Filho, 1988, p. 222). No quadro a seguir, o autor sistematiza em personagens sociais específicos algumas possibilidades de atualização das diferenças de incorporação dos códigos de conduta:

Uma das virtudes dessa sistematização é revelar a amplitude do espectro de agentes que podem ser objeto de relações tutelares, ao mesmo tempo em que explicita um dos aspectos mais destacados deste tipo de relação de poder, que é:

[ ] a dimensão educativa, pedagógica, de que se reveste a relação (suposta de aprendizado e proteção) entre tutor e tutelado. Este último é sempre aquele sobre o qual se supõe que disponha de um conhecimento parcial ou deformado dos códigos culturais dominantes. [ ] A finalidade da tutela é justamente transformar, através de um ensinamento e uma orientação dirigidas, tais condutas desviantes em ações e significados prescritos pelos códigos dominantes. (Oliveira Filho, 1988, p. 224).

A representação do desvio por referência a modelos de conduta e a relação pedagógica que daí deriva são, portanto, constitutivas do exercício das relações tutelares e fonte da legitimidade do exercício da autoridade do tutor sobre os tutelados.

Um passo adiante na compreensão do modo como a tutela fundamenta o exercício de determinadas relações de poder viria a ser dado com a definição do conceito de poder tutelar, por Souza Lima (1995)15 15 O autor construiu este conceito por meio da análise das classificações e ações dos agentes do Serviço de Proteção aos Índios e Localização de Trabalhadores Nacionais (SPILTN) que, tal como o Povoamento, era parte do Ministério de Agricultura Indústria e Comércio. No interior do ministério, as agências partilharam algumas funções homólogas, posto que ao SPILTN cabia, em princípio, a fixação tanto de populações indígenas quanto dos mestiços, ex-escravos e seus descendentes - conjunto que forma os "trabalhadores nacionais". Em 1918, ela passou a se chamar simplesmente SPI, uma vez que a atribuição de localização de trabalhadores nacionais, passou da segunda para a primeira agência. . Numa formulação simplificada do conceito, mas instrumental aos meus propósitos, o autor define o poder tutelar como:

[uma] forma de ação para governo sobre espaços (geográficos, sociais, simbólicos), que atua através da delimitação de populações destinatárias de um tipo de intervenção "pedagógica" rumo à capacidade de autocondução moral e política plena como integrantes de uma comunidade política. (Souza Lima, 2003, p. 2).

Dessa definição é possível extrair alguns elementos para a análise das ações dos agentes do Povoamento. O primeiro deles consiste no fato de que aqueles que são objeto desse tipo de poder são classificados como segmentos populacionais com características distintas e aos quais deveriam corresponder tratamentos específicos. E essas classificações atribuem conteúdos desviantes a condutas que possuem significados culturais múltiplos e variados e que são características dos segmentos aí recortados. Nesse sentido, termos genéricos como: índios (Souza Lima, 1995), menores (Vianna, 1997) e imigrantes (Ramos, 1996, 2002), por exemplo, configuram procedimentos de categorização e de identificação dos indivíduosque recortam segmentos em meio a populações, atribuindo-lhes características genéricas de conteúdo desviante por sobre as diferenças concretas entre aqueles que são aí classificados. Nesse sentido, as classificações produzidas a partir do Estado desempenham um papel na construção de identidades sociais16 16 Exemplo disso é a transformação de um modo de classificação jurídico-administrativo que ainda hoje estrutura todos os registros estatais sobre imigrantes, a classificação por nacionalidades, em uma identidade social, tal como nos mostra a análise de José de Souza Martins acerca da "transformação do colono em italiano" (Martins, J. S., 1973, cap. 2, parte 3). Na mesma direção, Seyferth (1983-84) mostra como uma determinada forma de organização do espaço e do trabalho, de origem estatal, a colônia, funda mesmo muito tempo depois dessa organização estar desestruturada, uma identidade social, a do colono. .

O segundo elemento a ser sublinhado é que essas categorias são classificações produzidas por agentes estatais que, ao mesmo tempo, demandam a ação estatal em relação a esses segmentos de população. Como vimos mais atrás, a definição mesma de "imigrante" está referida à existência de Estados, o que constitui a categoria "imigrante" como categoria jurídico-política, antes mesmo de ser conceito sociológico. E uma especificidade das classificações produzidas no exercício do poder tutelarconsiste na definição desses segmentos de população como necessitados de uma ação estatal que lhes proteja e lhes conduza até uma suposta integração como parte do "povo brasileiro" (Souza Lima, 2003, p. 1).

Nesse sentido, essas classificações são construídas para a ação e a intervenção. Assim, Souza Lima mostra como a classificação dos índios operada desde o SPI é estruturada em categorias que formam uma escala evolutiva às quais deveriam corresponder diferentes tratamentos por parte do Estado brasileiro, baseados na idéia de que, quanto mais afastadas estão as populações do modelo final de comportamento, mais elas são incapazes de gerir seu próprio destino, devendo ser conduzidas por "uma mão tutelar".

E, como o SPI, o Povoamento também recortava as populações que eram objeto de sua ação segundo critérios que lhes eram necessariamente estranhos, em categorias tais como imigrantes, colonos e trabalhadores nacionais, as quais supunham que os assim classificados eram incapazes de gerir seus próprios destinos, devendo ser orientados, vigiados e conduzidos (o que varia segundo a categoria em que estão inseridos e segundo a conjuntura) por agentes do Povoamento que deveriam exercer sobre eles um papel tutelar, conduzindo-os em seu "desenvolvimento". Nessa atuação, os agentes do Povoamento não concebiam as práticas culturais dos agentes que eram objeto de sua ação nem como opção nem como diferenças culturais, mas sim como desviantes, porém transitórias, devendo dar lugar a comportamentos "civilizados" ou "patrióticos". E, uma vez tendo por referência esse tipo de classificação, as ações do Povoamento produziam desigualdades de fato ao estabelecer tratamentos diferenciados segundo suas categorias classificatórias, como no caso dos imigrantes e dos trabalhadores nacionais.

Do papel atribuído às ações estatais na condução dessas populações derivam-se, ainda, operações de hierarquização, aglutinação e localização das populações-alvo em espaços determinados. Nesse sentido, a organização de espaços sociais e simbólicos nos quais as populações assim classificadas são alocadas é co-extensiva ao trabalho de classificação. Esta é, ao mesmo tempo, construção de determinados modos de apropriação do espaço – isto é, de definição dos meios de acesso à terra e de sua valorização como mercadoria. Exemplo disso, na ação do SPI, eram os postos de atração, os postos indígenas, as povoações indígenas e os centros agrícolas. De forma similar, as classificações que diferenciavam imigrantes e trabalhadores nacionais correspondiam à alocação em espaços diferenciados como os núcleos coloniais e os centros agrícolas.

Por fim, esse esforço de condução das populações-alvo implicou o uso de técnicas pedagógicas empregadas nos esforços de condução dos imigrantes/colonos, dentre as quais se destacam a propaganda e o exemplo.

Poder tutelar no Povoamento: princípios e técnicas de construção de objetos, agentes e redes de interação social

Nesta seção apresentarei, então, as técnicas por meio das quais os agentes do Povoamento buscavam induzir comportamentos nos imigrantes/colonos e, ao fazê-lo, construíam autoridade pública. Estas técnicas se explicitam nas ações e representações dirigidas aos imigrantes subsidiados e constituem aquilo que chamei de cadeia tutelar.

Por técnicas estou nomeando, basicamente, os vários mecanismos empregados na definição da relação dos funcionários do Povoamento com as autoridades estaduais, com os colonos, com o espaço, com os nacionais e com os indesejáveis que constituem e fazem parte de um acervo de experiências estatais sobre a gestão das populações de imigrantes. Esses mecanismos, que poderiam ser descritos de modo ingênuo como mecanismos de aplicação de uma política, são, na verdade, técnicas de construção de relações, aqui definidas como tutelares. São mecanismos por meio dos quais se buscava construir as interações entre agentes de Estado e demais agentes sociais. Buscava-se estabelecer conexões entre ambos, mas uma conexão específica, que conferia aos agentes de Estado um papel tutelar frente aos demais agentes sociais.

Essas técnicas podem ser reunidas em cinco recortes básicos. O primeiro é aquele que identifica as práticas relativas à concessão de auxílios e favores aos imigrantes e colonos. Entre essas, eu destacaria: a concessão ou reembolso das passagens internacionais, o transporte e alojamento gratuito até o núcleo colonial,a oferta de sementes e instrumentos de produção, a venda financiada do lote, os trabalhos pagos nos quais o colono podia se engajar enquanto não obtinha sua primeira colheita, etc. Estes auxílios e favores configuravam ações e investimentos estatais por meio dos quais os agentes do Povoamento buscavam, ao longo do tempo, atrair os imigrantes e colonos, fixá-los e induzi-los a adotarem determinados comportamentos.

Esses mecanismos de ação dos agentes do Povoamento sobre os subsidiados eram baseados na representação destes imigrantes como carentes de auxílio e favor. Portanto, o emprego dessa técnica implicava a intervenção estatal em matéria de imigração, não em termos de sua restrição, mas em termos de seu suporte e, conseqüentemente, de sua indução. Ao mesmo tempo, essa técnica constituía os agentes do Povoamento em tutores cuja obrigação era conduzir a adaptação, o aprendizado e a assimilação de determinadas formas de conduta por parte dos imigrantes. Esta era a base mesma da construção dos subsidiados, do esforço por construir imigração dirigida.

Esses favores e auxílios eram concebidos segundo a lógica do dom, sendo concedidos na expectativa de uma contrapartida que devia se desdobrar numa série de comportamentos dos colonos ao longo do tempo. Instrumento de uma condução, eles deveriam construir uma dívida, ao mesmo tempo material e moral, dos subsidiados frente ao Estado brasileiro. Desta concepção se deriva a descrição, presente em alguns relatórios dos inspetores do Povoamento, de tais favores como expressão da generosidade e do sacrifício do governo brasileiro em benefício dos imigrantes e colonos.

O segundo recorte reúne as práticas empregadas pelos agentes do Povoamento na constituição de um circuito que estabelecia conexões, desde a Europa até o núcleo colonial, de modo a induzir os imigrantes a dirigirem seus deslocamentos de determinadas maneiras e em determinadas direções. Assim, a constituição de iniciativas de propaganda e contato com os potenciais imigrantes na Europa; o estabelecimento de contratos com as companhias de navegação em torno das passagens dos imigrantes; a recepção dos imigrantes por agentes do Povoamento localizados nos portos; seu encaminhamento via ferrovias e rodovias para núcleos previamente destinados ou para destinos familiares previamente comunicados; sua passagem, em vários momentos deste caminho por hospedarias, todas essas iniciativas estatais visavam à construção de um circuito de circulação dos subsidiados, que deveria servir igualmente de referência à circulação dos espontâneos.

Este circuito tinha como contraponto a existência de um sem-número de outros circuitos de circulação, como aqueles que levavam os imigrantes para a América do Norte ou para a Argentina. Havia outros, ainda, que orientavam a migração para as cidades. Trata-se de outras tantas redes de relações, construídas a partir de famílias, vizinhança e nacionalidade, organizadas tanto a partir da ação de recrutadores de mão-de-obra quanto da própria iniciativa dos emigrantes. Era em meio a esta diversidade de circuitos que os agentes do Povoamento se esforçavam por construir o seu próprio, de modo a induzir a ordenação dos deslocamentos no sentido da formação de correntes imigratórias dirigidas aos núcleos coloniais federais.

Uma característica fundamental desse circuito é que a passagem por ele implicava, em certa medida, que os imigrantes se colocassem sob a tutela dos funcionários do Povoamento. Era este consentimento à relação tutelar que lhes concedia o acesso aos favores distribuídos ao longo do circuito, como o repouso em hospedarias e o deslocamento em trens e carroças. Do que resulta que aceitar se colocar sob a tutela dos agentes do Povoamento implicava aceitar direção e auxílios, ambas faces do poder tutelar.

O terceiro recorte que quero estabelecer é aquele que identifica as técnicas e atributos de comportamento necessários a tornar os agentes do Povoamento capazes de inspirar confiança aos imigrantes e colonos. Examinei no segundo capítulo as prescrições relativas a determinadas características morais que esses funcionários deveriam possuir, de modo a induzir os colonos a determinados estados de espírito. Em especial a preocupação com a construção de um ambiente moral a partir do qual o colono fosse levado a crer no prestígio e na capacidade dos funcionários em dirigi-los.

Os funcionários se colocavam diante dos colonos como representantes de um centro de poder, identificado como o Estado brasileiro. Daí que suas ações e sua presença encenassem, em última instância, o prestígio e a capacidade do Estado brasileiro em conduzir imigrantes e colonos: sua capacidade de agir como tutor. A relação entre Estado e funcionário era circular, uma vez que entre os recursos de que dispunha o funcionário para construir o desejado ambiente de prestígio e confiança estava, exatamente, o fato dele não estar diante dos colonos e imigrantes como um indivíduo isolado, mas sim como representante do Estado brasileiro. E o resultado almejado dessa encenação era fazer com que os colonos investissem seus capitais e trabalho no projeto colonial estatal e que, em última instância, orientassem suas ações pela crença na existência de um centro respeitável: o Estado brasileiro, com seu prestígio, recursos e capacidades.

O quarto recorte que proponho reúne os mecanismos relativos à encenação da eficácia dos comportamentos que os agentes do Povoamento propunham que imigrantes e colonos adotassem. Trata-se, em especial, da função pedagógica atribuída aos campos de demonstração e experiência, os quais eram concebidos como fontes de ensinamentos aos colonos.

Portanto, cabia a determinadas ações que os funcionários do Povoamento desenvolviam nestes campos o papel de fornecer exemplos práticos do sucesso de determinados modos de cultivos, e de determinados produtos, ao mesmo tempo em que forneciam os instrumentos necessários para que estes exemplos fossem seguidos. Portanto, o cerne dessa pedagogia era o exemplo, era através dele que os funcionários buscavam exercer um papel de orientação frente aos colonos, característico de sua condição tutelar. A eficácia de determinadas ações, demonstrada por exemplos concretos e para os quais os agentes do Povoamento buscavam a maior visibilidade possível, deveria testemunhar a viabilidade do empreendimento colonial, demonstrando igualmente a competência do Estado brasileiro em exercer um papel tutelar. E o alvo de todas essas demonstrações exemplares era o ânimo dos colonos: sua vontade, suas expectativas, seu engajamento no projeto colonial e sua crença nas imagens que os funcionários projetavam.

Contudo, para maximizar a eficácia deste esforço pedagógico era necessário que os exemplos fossem dirigidos às necessidades reais dos colonos, como de fato era o caso da escolha dos produtos a serem plantados, de acordo com as condições do solo e dos mercados consumidores, e dos meios de cultivá-los. Disso decorre que os exemplos eram acompanhados da distribuição, também necessária para os colonos, de insumos indispensáveis ao início da produção, tais como sementes para o cultivo, ou ferramentas para trabalhar a terra. Isto era feito logo na chegada dos imigrantes ao núcleo. Este era o momento em que eles ainda não haviam feito investimentos no lote, ao mesmo tempo em que enfrentavam a situação desestruturante de se defrontar com um ambiente novo, sem ter experiência ou conhecimento acumulado acerca das condições de produção naqueles terrenos. Assim, havia uma demanda concreta por informações, técnicas e instrumentos de trabalho, na qual os funcionários se apoiavam para oferecer seus exemplos.

O quinto recorte que proponho é aquele que identifica as práticas dirigidas à constituição de cadeias de autoridade através da apropriação das estruturas de auto-organização dos imigrantes e colonos, em especial de suas estruturas familiares. Essas práticas punham as famílias de imigrantes e colonos no centro do empreendimento de atração de imigrantes e montagem de colônias.

A importância conferida pelo Povoamento às famílias de imigrantes ou colonos se revela nas práticas que as constituíam como unidade estatística, ponto de apoio para a propaganda, unidade produtiva e elo numa cadeia de autoridades. Entre essas práticas se destaca o pagamento de passagens internacionais exclusivamente a famílias. Outra prática significativa consistiu na estruturação da relação entre Estado e imigrantes nos moldes de uma cadeia de autoridades, cujos elos, na colônia, eram constituídos pela relação entre funcionários do Povoamento e chefes de família.

Essa relação se materializava em artefatos como a caderneta de devedor, documento produzido pelo Estado brasileiro com a relação de débitos e créditos da família do colono, que era colocado sob responsabilidade deste personagem: o chefe da família. A caderneta servia de documento da relação que se pretendia estabelecer entre colonos e Estado brasileiro, dando materialidade a todo um conjunto de categorias abstratas, tais como: colono, Estado, dívida e propriedade, ao mesmo tempo em que construía esse personagem, a um só tempo objeto e sujeito de poder, que era o chefe da família. Ele era o agente com o qual o Estado se relacionava e se comunicava. E esta mediação, definida não no interior da própria família mas a partir da relação com o Estado, tornava o chefe de família a unidade mínima de autoridade investida pelo Estado.

Desejo chamar a atenção, ainda, para o fato de que a centralidade conferida às famílias na política do Povoamento nos revela um tipo de exercício de poder cujo alvo era a relação entre Estado e família, e não entre Estado e cada indivíduo singularmente. Isso se explica pela insuficiência de meios que garantissem a presença estatal constante nas colônias, do que decorria a impossibilidade de exercer a vigilância molecular que é característica do poder sobre indivíduos.

Portanto, sobre indivíduos o Estado brasileiro podia exercer mais a violência que expulsa ou prende do que a autoridade que dá ordens com alguma expectativa de legitimidade da parte de quem ordena e da parte de quem recebe a ordem. Os agentes do Povoamento não possuíam meios que lhes assegurassem o exercício da autoridade sobre os imigrantes, a menos que recorressem a estruturas dotadas, elas mesmas, previamente, de autoridade junto aos imigrantes. A principal dessas estruturas era a família do imigrante que, em decorrência disso, desempenhava um papel central na estabilização da relação de dominação legítima dos funcionários sobre colonos e imigrantes.

No funcionamento ótimo desta cadeia de autoridades, cada indivíduo devia integrar uma família para poder gozar dos auxílios e favores estatais. Mas a família não era concebida como uma associação de indivíduos. Ela deveria existir como uma totalidade orgânica dotada de um chefe, um cabeça. Desse modo, cada indivíduo se ligaria a este centro, o chefe, que por sua vez se ligaria aos funcionários na sede do núcleo colonial, que se situavam eles mesmos no interior da cadeia hierárquica do Povoamento, fechando um circuito que ligava construção de autoridades locais e centrais.

A construção dessa cadeia de autoridade se baseava, assim, na apropriação de práticas sociais constitutivas das próprias redes de interação social que eram objeto da política do Povoamento. Ao mesmo tempo, o recurso a essas práticas tinha por resultado a construção de laços de interdependência entre famílias de imigrantes e autoridades estatais.

A análise dessas técnicas revela alguns dos mecanismos por meio dos quais as políticas públicas constroem interação social. Nesse caso específico, os laços de interdependência que os agentes do Povoamento se esforçavam por estabelecer eram estruturados na forma de uma cadeia tutelar, que se reapropriava de famílias de colonos e imigrantes, identificando nelas interlocutores privilegiados e conectando-as à autoridade estatal.

Nesse processo, os agentes do Povoamento buscavam figurar a imagem de um centro exemplar repleto de mediadores que se materializava nos comportamentos dos próprios funcionários, na relação entre sedes e lotes coloniais, nas demonstrações de cultivo, na distribuição de insumos, e na concessão de favores e auxílios. Em última instância, o que se representava nesse centro exemplar e por meio desses mediadores era o próprio Estado nacional, a servir de norte aos agentes sociais e às suas práticas.

Conclusão: observações acerca do poder de domar do fraco

Com a expressão "o poder de domar do fraco" com que nomeio este artigo, procuro identificar dois elementos centrais que caracterizam as ações e representações que constituíram a política de Povoamento do Solo Nacional.

A primeira delas diz respeito à possibilidade de identificarmos um papel ativo por parte do Estado brasileiro em relação à mobilidade dos imigrantes, que consiste menos na capacidade de impor limites a esta mobilidade, o que configura o exercício do poder como interdição, que na utilização de uma série de mecanismos que possibilitam induzir a mobilidade dos imigrantes numa determinada direção, o que configura o exercício do poder como indução.

E, em grande medida, esse esforço de indução foi duplamente determinado pelo papel dominado que o Estado brasileiro gozava nas relações internacionais e pela condição secundária do país em matéria de destino preferencial dos imigrantes.

Essa dupla determinação tinha como conseqüência a escassez de recursos de controle coercitivo que permitissem aos agentes do Estado brasileiro imporem aos imigrantes que chegavam determinados comportamentos. Um exemplo desta fragilidade pode ser identificado nas constantes reclamações sobre a "re-imigração" para a Argentina dos imigrantes trazidos ao Brasil por meio do pagamento de passagens internacionais. Posto que a liberdade de movimento tinha de ser garantida aos imigrantes sob pena da ocorrência de conflitos diplomáticos que, no limite, poderiam impedir a imigração européia para o Brasil, a capacidade de dirigir os movimentos e comportamentos de imigrantes e colonos não poderia jamais repousar sobre mecanismos de interdição, mas sim de indução.

Nesses termos, as práticas e categorias que constituíam a política de Povoamento eram concebidas e conduzidas a partir de uma dimensão estratégica cujo objetivo era induzir imigrantes e colonos à adoção de determinados comportamentos. E todo esse esforço de indução, que confere à propaganda, aos auxílios e aos exemplos um papel central, configura, creio, uma resposta à seguinte indagação: como impor direções no interior de uma interação na qual não se ocupa um lugar dominante? Em outras palavras, como pode o fraco domar?

A segunda característica que gostaria de sublinhar com essa expressão identifica um aspecto das ações dos agentes do Povoamento sobre imigrantes e colonos, que é o fato do "poder de domar do fraco"implicar numa direção que se realiza a longo prazo com efeitos por vezes perversos, e que pode ser melhor compreendida a partir das figuras do pastor e do militar.

Apesar dos militares estarem algumas vezes envolvidos nas práticas de colonização, as relações que eles estabeleciam com as populações migrantes não eram relações disciplinares17 17 Penso aqui na definição de Weber (1987, p. 42), segundo a qual a disciplina envolve a expectativa de obediência imediata a ordens recebidas, em virtude dos costumes arraigados daqueles que obedecem. . As ações postas em jogo na interação com os imigrantes e colonos são mais bem compreendidas a partir da figura do pastor, que lida com uma massa que tem um volume muito superior aos seus recursos de controle, e que é mais ou menos móvel e flexível nos seus arranjos e deslocamentos. Sobre este "rebanho" o pastor se esforça por eliminar certas possibilidades, ao mesmo tempo em que lhes oferece outras18 18 Sobre o tema do poder pastoral, ver Foucault (1990). .

Assim, "o poder de domar do fraco" era exercido através de técnicas por meio das quais estes "pastores de homens" ofereciam caminhos a migrantes e imigrantes. E porque esses caminhos eram tornados mais factíveis e prováveis que outros, porque eram feitos certos investimentos nesses caminhos, porque os que eram objeto dessa ação se encontravam diante de possibilidades limitadas, e ao mesmo tempo sua sobrevivência estava vinculada ao sucesso do empreendimento, migrantes e imigrantes que foram objeto dessas técnicas chegaram, por vezes, a arriscar suas próprias vidas pelos caminhos indicados por esses "pastores de homens".

Contudo, é na distância entre o prometido e o oferecido, no fato de que esse "pastor" é um fraco que doma se fazendo passar por forte, prometendo o que não pode oferecer, que se revela a perversidade destes empreendimentos, que é a perversidade de conduzir o outro em empreendimentos muito arriscados, quando não se tem meios de garantir o sucesso da jornada. Quando mesmo se suspeita do risco de que essa condução não leve a bom termo, pelo menos não para todos. Esse fraco que doma, se distancia aí do pastor, que deve velar por cada um dos indivíduos de seu rebanho, e se reaproxima do cálculo militar, no qual o que conta são os avanços coletivos do exército sobre o território.

Como objeto do "poder de domar do fraco", o rebanho de homens é concebido como uma totalidade, e o percurso que ele segue e constrói é mais importante que sua sobrevivência e bem-estar. Daí levá-lo a lugares arriscados, perdidos no meio do mato, no meio da luta. Pois para esse condutor é mais importante a ocupação dos espaços pela presença das ovelhas que seu bem-estar individual, e haverá sucesso se algo frutificar dessa jornada, mesmo que algumas ovelhas morram pelo caminho.

Recebido em 10/04/2003

Aprovado em 12/05/2003

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  • 1
    Daqui em diante identificarei o Serviço do Povoamento do Solo Nacional pelo termo "Povoamento".
  • 2
    Segundo Noiriel (1988), esse congresso se inscreve numa série progressiva de acordos internacionais que, mesmo se defrontando com as dificuldades colocadas pelo acirramento dos nacionalismos, chegaram a estabelecer, nos anos 30, a idéia de um direito internacional em matéria de imigração. A conferência de Roma, em especial, traz a primeira definição precisa, no direito internacional, dos termos emigrante e imigrante, tendo desempenhado um papel significativo na constituição de mecanismos administrativos nacionais de tratamento dos imigrantes (Noiriel, 1988, p. 115). Para um resumo de parcela das deliberações aprovadas nesse congresso, ver Martins, C. (1929).
  • 3
    Se tomarmos por referência algumas formulações presentes em Le Phenómene Migratoire: une Relation de Domination, do antropólogo de origem argelina Abdelmalek Sayad (1981), autor de textos fundamentais sobre a e/imigração argelina na França na segunda metade do século XX, podemos tomar a análise de Eisenstadt como expressão da transformação dos problemas sociais dos países de imigração em problemas sociológicos. Segundo Sayad, vários dos temas tradicionais dos estudos sobre imigração traduzem, na verdade, preocupações sociais com a inserção e assimilação do imigrante de modo a preservar a "ordem pública".
  • 4
    À guisa de exemplo, eu citaria os seguintes títulos: La France de l'Intégration, de Dominique Schnapper (1991); De l'Immigration à l'Intégration en France et en Allemagne, coletânea de artigos organizada por Bernard Falga, Catherine Wihtol de Wenden e Claus Leggewie (1994); e Le Destin des Immigrés: Assimilation et Ségrégation dans les Démocraties Occidentales, de Emmanuel Todd (1994).
  • 5
    Dessa literatura imensa poderíamos citar, à guisa de referência: Neuman (1996), para uma análise do modo como a literatura acerca da história da política norte-americana de imigração, praticada do século XIX até a primeira metade do século XX, tem analisado a construção de mecanismos de restrição à entrada de imigrantes; Perrier (1994), para um balanço dos estudos, sobre o mesmo período, acerca do nativismo norte-americano em sua conexão com a adoção de medidas restritivas; Weil (1994) e Noiriel (1991), para uma análise da constituição de mecanismos restritivos e/ou assimilacionistas articulados às concepções de nação e nacional na França, ao longo do século XX; e Sayad (1991), para uma análise dos modos pelos quais as concepções estatais acerca dos imigrantes e as práticas a elas relacionadas estruturam identidades sociais estigmatizadas e condições de vida dos imigrantes na França. O autor trabalha, sobretudo, sobre a segunda metade do século XX.
  • 6
    Conferir os estudos reunidos em Fausto (2000).
  • 7
    As dificuldades vividas pelos diplomatas brasileiros em sua relação com os representantes do Império japonês, por ocasião das propostas feitas na constituinte de 1934 no sentido de se proibir, pura e simplesmente, a imigração japonesa para o Brasil, dão o mais perfeito testemunho desta condição vivida pelos agentes do Estado brasileiro de representarem um país de imigração que não gozava de uma posição dominante no cenário internacional. Sobre a crise diplomática originada desta situação ver Carneiro Leão, 1990.
  • 8
    Segundo Devoto (2000, p. 40), acerca da Argentina: "uma série de trabalhos e relatórios elaborados desde o final da década de 1870 insistia na necessidade de reorientar a política migratória consagrada pela lei de 1876 num sentido mais ativo, para promover a imigração de outros grupos europeus em consonância com aquele ideal de pessoas da parte mais adiantada da Europa". Diga-se de passagem que os estudiosos das políticas de imigração na América Latina sempre enfocaram, em alguma medida, os mecanismos de atração dos imigrantes. Ver Villalón (1997) e alguns dos estudos reunidos em Fausto (2000), entre outros.
  • 9
    É preciso ressaltar que a definição dessas categorias em lei não esgota os significados com que elas recobriram as ações estatais. Para uma análise mais detalhada das representações que estruturam a categoria indesejável, ver Ramos (1996) e Seyferth (1991).
  • 10
    Numa distinção análoga a essa, Oliveira Filho (1979, p. 112) afirma: "É a extinção do pequeno produtor, quer isso ocorra por meios basicamente econômicos ou políticos, que permite explicar a colonização como um movimento de massas e não como simples reflexo de políticas governamentais tendentes a favorecer ou dirigir o processo migratório, meros ensaios sem maior significação sobre a indução de processos sociais".
  • 11
    "A ação, em especial a social e também singularmente a relação social, podem se orientar, pelo lado de seus participantes, na representação da existência de uma ordem legítima" (Weber, 1987, p. 25, grifo do autor). Ver também Bendix (1996, p. 50).
  • 12
    A ênfase no papel desempenhado pelos atos de consentimento no funcionamento da autoridade pública não é estranha a leitores de Weber, como Bendix (1996, p. 54). Contudo, me parece que sua leitura é dirigida a responder a seguinte pergunta: como a ordem é mantida ? Ao passo que a crítica de Skalnick (1999) é adequada a uma especificidade de minha argumentação, que reside no fato de que os atos de consentimento exigidos dos imigrantes/colonos não podem ser compreendidos como simples assentimento a uma ordem legal, uma vez que eles estão implicados na produção de comportamentos que não podem ser definidos a partir da ordem jurídica, como as técnicas produtivas, por exemplo. Assim, a relação de autoridade frente aos imigrantes/colonos era uma relação a ser construída e não uma relação já existente a ser aceita.
  • 13
    Os verbos que Foucault utiliza para identificar esta ação sobre as ações que caracteriza o poder se encaixam muito apropriadamente nesta perspectiva que privilegia a indução em detrimento da interdição. Segundo Foucault (1984, p. 313), o poder "Il incite, il induit, il détourne, il facilite ou rend plus difficile, il élargit ou il limite, il rend plus ou moins probable."
  • 14
    Claro está que a análise concreta das múltiplas condições de exercício da
    tutela deve levar o investigador para além das definições mais gerais que este quadro heurístico supõe. Assim, toda a análise que aqui desenvolvo busca demonstrar que os mecanismos de ação dos agentes do Povoamento sobre os
    subsidiados eram baseados na representação desses imigrantes como carentes de
    tutores que lhes conduzissem o aprendizado e a assimilação de determinadas formas de conduta.
  • 15
    O autor construiu este conceito por meio da análise das classificações e ações dos agentes do Serviço de Proteção aos Índios e Localização de Trabalhadores Nacionais (SPILTN) que, tal como o Povoamento, era parte do Ministério de Agricultura Indústria e Comércio. No interior do ministério, as agências partilharam algumas funções homólogas, posto que ao SPILTN cabia, em princípio, a fixação tanto de populações indígenas quanto dos mestiços, ex-escravos e seus descendentes - conjunto que forma os "trabalhadores nacionais". Em 1918, ela passou a se chamar simplesmente SPI, uma vez que a atribuição de localização de trabalhadores nacionais, passou da segunda para a primeira agência.
  • 16
    Exemplo disso é a transformação de um modo de classificação jurídico-administrativo que ainda hoje estrutura todos os registros estatais sobre imigrantes, a classificação por nacionalidades, em uma identidade social, tal como nos mostra a análise de José de Souza Martins acerca da "transformação do colono em italiano" (Martins, J. S., 1973, cap. 2, parte 3). Na mesma direção, Seyferth (1983-84) mostra como uma determinada forma de organização do espaço e do trabalho, de origem estatal, a colônia, funda mesmo muito tempo depois dessa organização estar desestruturada, uma identidade social, a do colono.
  • 17
    Penso aqui na definição de Weber (1987, p. 42), segundo a qual a disciplina envolve a expectativa de obediência imediata a ordens recebidas, em virtude dos costumes arraigados daqueles que obedecem.
  • 18
    Sobre o tema do poder pastoral, ver Foucault (1990).
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      09 Fev 2004
    • Data do Fascículo
      Jul 2003

    Histórico

    • Recebido
      10 Abr 2003
    • Aceito
      12 Maio 2003
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