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Frágeis deuses: profissionais da emergência entre os danos da violência e a recriação da vida

Jaqueline Ferreira

Secretaria da Saúde de Canoas (RS) - Brasil

DESLANDES, Suely Ferreira. Frágeis deuses: profissionais da emergência entre os danos da violência e a recriação da vida. Rio de Janeiro: Fiocruz, 2002. 196 p.

Violência: eis um assunto pertinente que vêm ganhando espaço nos estudos relativos à saúde pública.1 1 Se destacam nessa área os trabalhos do Centro Latino-Americano de Estudos de Violência e Saúde (Claves/Fiocruz). O livro de Suely Ferreira Deslandes tem o mérito de trazer uma abordagem sócio-antropológica sobre o tema. Dentro de uma perspectiva etnográfica, a autora nos remete ao universo das emergências dos hospitais municipais da cidade do Rio de Janeiro no contexto de atendimento às vítimas de violência. A abordagem etnográfica nesses hospitais, à luz de uma tradição da antropologia interpretativa ou hermenêutica, busca a compreensão das práticas ligadas aos cuidados médicos e do social. A proposta é analisar como a violência repercute na organização desses serviços de saúde, nas representações e práticas dos profissionais e usuários expressas na interação entre os mesmos. Segundo Suely Ferreira Deslandes, as vítimas de violência, ao buscar atendimento, são submetidas a um modelo médico de assistência que termina por lhes acarretar uma outra violência de natureza simbólica. Apesar do eixo primordial da pesquisa ser o qualitativo, foi incluída uma perspectiva quantitativa, perspectiva esta já defendida por autores que trabalham com pesquisa social em saúde,2 2 Ver Minayo e Sanches (1993). o que permitiu dimensionar a distribuição dos casos de agressão, dos atendimentos e taxas de mortalidade das vítimas.

O trabalho tem o mérito de mostrar como as situações de violência criam condições especiais de interação social entre usuários e profissionais de saúde (enfermeiras, auxiliares de enfermagem e médicos, na sua maioria). Da mesma forma, as emergências são um espaço que permite a expressão do sofrimento relativo à violência que pode assumir a forma de uma expressão individual e coletiva da exclusão social. A perspectiva interacionista adotada pela autora, perspectiva clássica utilizada nos contextos hospitalares, relações entre usuários e profissionais de saúde ou formas de socialização destes últimos, não perde de vista o conjunto de relações inscritas nas estruturas mais gerais da organização social. Assim, através da interpretação dessas interações é possível nos remeter à análise de uma lógica macrossocial.

Contemplando os dois pólos, dos profissionais da saúde e dos usuários, a autora dimensiona o processo de trabalho nos serviços de emergência e as experiências vivenciadas pelas vítimas de violência quando buscam atendimento.

O processo de trabalho produzido nas emergências sofre a influência de múltiplos fatores, como, por exemplo, políticas públicas, recursos humanos disponíveis, hierarquia profissional e divisão do trabalho médico, que repercutem na interação dos profissionais entre si e destes com os usuários. Através de uma descrição densa, Suely Ferreira Deslandes apresenta a organização do espaço, a dinâmica do trabalho, os conflitos e negociações entre seus agentes. A especificidade do contexto de emergência situa-se no fato de que a violência dos casos assistidos influencia esse processo de trabalho. De fato, apesar de todo o trabalho assistencial em saúde primar pela universalidade e igualdade nos atendimentos, os profissionais não estão isentos de representações sociais mais abrangentes sobre as vítimas de violência (na sua maioria, populações de baixa renda) e que acabam por conduzir práticas discriminatórias. Parafraseando a autora: "Cria-se uma tensão entre a vocação de salvar vidas e a tendência a um julgamento moral e social que determine quais serão mais merecedores dos cuidados médicos. Tais escolhas, evidentemente, podem envolver a vida e a morte dos que estão à sua mercê."(p. 177).

Os usuários têm seu itinerário reconstituído na busca de atendimento, onde a família e a vizinhança desempenham papéis fundamentais nesta peregrinação. A recusa de atendimento, as longas filas de espera, são algumas das tantas formas de violência simbólica a que são submetidos esses usuários.

No contexto de atendimento, é analisada a percepção dos usuários sobre as falhas e limitações de assistência à saúde na rede pública: a pouca disponibilidade de leitos hospitalares, a demora dos procedimentos, a escassez de profissionais. Igualmente, a "despersonalização do doente" e a "coisificação" do seu corpo são conseqüências do modelo médico vigente, vivenciados de forma conflitiva por esses usuários.

Apesar de todas as limitações e incoerências desse modelo médico, a autora nos oferece uma análise sensível da forma como os profissionais são igualmente atingidos pela limitação e rigidez desse modelo, culminando com a insatisfação e frustração profissional. No entanto, é possível vislumbrar nesse contexto experiências positivas na relação entre esses profissionais e usuários.

Graças à abordagem dialética adotada pela autora, esta obra assume vital importância não só para pesquisadores, estudantes e profissionais de saúde coletiva, como também para todos aqueles que se interessam pelas questões referentes aos problemas de exclusão social no Brasil.

Referência

MINAYO, M. C.; SANCHES, O. Quantitativo-qualitativo: oposição ou complementaridade? Cadernos de Saúde Pública, v. 9, n. 3, p. 239-262, 1993.

  • 1
    Se destacam nessa área os trabalhos do Centro Latino-Americano de Estudos de Violência e Saúde (Claves/Fiocruz).
  • 2
    Ver Minayo e Sanches (1993).
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      04 Ago 2004
    • Data do Fascículo
      Jun 2004
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