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Pesquisas urbanas: desafios do trabalho antropológico

Rosana Pinheiro Machado

Universidade Federal do Rio Grande do Sul* * Mestranda em Antropologia Social. - Brasil

VELHO, Gilberto; KUSCHNIR, Karina (Org.). Pesquisas urbanas: desafios do trabalho antropológico. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2003. 235 p.

O livro organizado por Gilberto Velho e Karina Kuschinir reúne 13 artigos que discutem a relação entre pesquisador e objeto no mundo urbano contemporâneo. O próprio subtítulo da obra (Desafios do Trabalho Antropológico) já anuncia o tom das páginas que seguem. Afinal, ao longo do livro são apresentados ao leitor os percalços, emoções, conflitos, aventuras, dilemas éticos e reflexões que os pesquisadores - que atuam no interior da realidade complexa e multifacetada do meio urbano - estão sujeitos a passar.

A clássica discussão antropológica sobre proximidade e distanciamento entre pesquisador e grupo pesquisado é um dos temas primordiais que norteia todos os artigos. Nesse sentido, Gilberto Velho, no capítulo de abertura do livro O Desafio da Proximidade, retoma seu artigo Observando o Familiar (escrito na década de 1970) para fazer novas reflexões sobre as condições do pesquisador que realiza trabalho de campo na cidade. O autor salienta que o que permite ao antropólogo desenvolver pesquisa no meio urbano é o fato dele conseguir - devido à sua própria formação intelectual - transitar por diversos mundos e, ao mesmo tempo, não ser englobado por nenhum. Esse multipertencimento do pesquisador é o que faz com que ele obtenha um "estranhamento crítico diante do próximo" (p. 18). A discussão levantada por Gilberto Velho no primeiro capítulo perpassará, de alguma forma, todos os demais artigos.

Karina Kuschnir, em seu artigo Uma Pesquisadora na Metrópole: Identidade e Socialização no Mundo da Política, reflete sobre a sua trajetória de trabalho de campo na cidade do Rio de Janeiro. Ela apresenta o processo de interação vivenciado com dois políticos de correntes ideológicas distintas. Um dos políticos lhe era bastante familiar (possuíam visões de mundo semelhantes, eram conhecidos, etc.); o outro não. Diante desse processo dialógico de distanciamento e proximidade, a autora mostra - de forma magnífica - como ela vai construindo uma relação de proximidade com Marta Silveira (a política que ela desconhecia) e , ao mesmo tempo, desconstruindo uma série de pré-noções que ela carregava consigo.

Viver entre Muros: o Sonho da Aldeia é o artigo que Cristina Patriota de Moura apresenta. Trata-se de uma etnografia realizada em dois condomínios fechados da cidade de Goiânia. A autora mostra as dificuldades de atuar num campo onde o medo e a desconfiança estão presentes o tempo inteiro entre os moradores e vigias. Ela narra o processo de negociação necessário para conseguir se inserir no interior de um condomínio voltado para a elite da cidade. Diante de tantos empecilhos para conseguir continuidade à sua pesquisa, a autora passou a habitar um condomínio do tipo. Essa especificidade do trabalho de campo faz com que ela reflita sobre a sua condição de moradora e pesquisadora ao mesmo tempo.

Os artigos de Fernanda Delvalhas Piccolo e Sandra Regina Soares da Costa, cada qual com sua singularidade, são exemplos de etnografias no meio urbano contemporâneo em que o pesquisador está sujeito a passar por situações de risco e violência. Enquanto a primeira autora estuda usuários de drogas na cidade de Porto Alegre (Particularidades e Generalizações: Reflexões a partir da Pesquisa entre Usuários de Drogas em Porto Alegre), a segunda centra-se num grupo carioca vinculado ao movimento hip hop (Uma Experiência com Autoridades: Pequena Etnografia de Contato com o Hip Hop e a Polícia num Morro Carioca). Ambos os artigos contribuem para a discussão sobre o medo na cidade, principalmente pelo fato das autoras relativizarem e problematizarem as noções de risco e violência geralmente associadas às camadas populares urbanas.

A (des)territorialidade do trabalho de campo é muito bem discutida por Carmen Rial em Pesquisando em uma Grande Metrópole: Fast-Foods e Studios em Paris e por Teresa Fradique em Fixar o Movimento nas Margens do Rio: Duas Experiências de Construção de Objeto de Estudo em Terreno Urbano em Portugal. A primeira autora relata sua experiência enquanto trabalhadora de um fast-food na cidade de Paris, na década de 1980. Ela apresenta a organização interna, os ritmos, a hierarquia, entre tantas outras características de um restaurante do tipo. Carmen Rial aponta que foi necessário "desterritorializar" a sua pesquisa no momento em que seu objeto estava presente de forma muito semelhante em diversas capitais mundiais. Assim, em qualquer metrópole do mundo em que ela estivesse, não teria como não ser uma situação de campo. Trata-se de um exemplo de uma etnografia inovadora para sua época (anos 1980) que se utilizou, além dos métodos de pesquisa clássicos, do uso de câmara de vídeo e questionários. O uso de câmara aparece igualmente no artigo de Teresa Fradique. Nele o lugar de "margem" é problematizado duplamente: ora sobre as diferenças entre um pesquisador e um turista, já que ambos portam uma câmara de vídeo e entrevistam pessoas diante dos arredores de pontos turísticos do rio Tejo (cidade de Lisboa), ora sobre as práticas sociais de um grupo ligado ao hip-hop que também se situa à margem - "geográfica e metaforicamente"(p. 106).

Duas experiências de campo singulares são apresentadas no artigo Conhecer Desconhecendo: a Etnografia do Espiritismo e do Carnaval Carioca, de Maria Laura Viveiros de Castro Cavalcanti. Trata-se de uma bela reflexão sobre as pré-noções dos pesquisadores, frutos de suas trajetórias sociais, que são levadas a campo nos momentos iniciais de investigação. Nesse sentido, a autora foca sua narrativa em seu processo de aprendizado e aproximação com os grupos que ela pesquisou (espíritas e membros do carnaval carioca), salientando que as situações vivenciadas em campo são verdadeiros ritos de passagem para o antropólogo.

Velhos e Jovens no Rio de Janeiro: Processos de Construção de Realidade e Fazendo Etnografia no Baile: uma Discussão sobre Observação Participante; respectivamente de Myriam Moraes Lins de Barros e Andréa Moraes Alves, discutem a questão de geração e a pesquisa etnográfica. A primeira autora mostra como seus próprios alunos e bolsistas tornaram-se informantes. Esse fato lhe possibilitou perceber distintos olhares sobre a cidade do Rio de Janeiro, no momento em que ela cruzava a percepção dos jovens com os dados de uma pesquisa anterior realizada com pessoas mais velhas. Já o artigo de Andréa Moraes Alves, traz a sua experiência etnográfica de observação participante em "bailes de fichas" na cidade do Rio de Janeiro. Trata-se de bailes voltados para mulheres mais velhas, que pagam uma determinada quantia para dançar com homens mais jovens. A autora, ao narrar suas experiências, problematiza os aprendizados e as opções que fez ao longo do seu processo etnográfico.

Maria Luiza Heilborn, em Estranha no Ninho: Sexualidade e Trajetória de Pesquisa, ao apresentar sua trajetória intelectual, mostra a relevância do trabalho antropológico para o estudo da sexualidade e, dessa forma, discute o uso de várias técnicas de pesquisa. Através de um projeto recente, denominado Gravad, a autora mostra o cruzamento de técnicas qualitativas e quantitativas, sob uma perspectiva biográfica, a fim de compreender o comportamento sexual e reprodutivo dos jovens brasileiros. O último artigo do livro, De Como Olhar Onde não se Vê: ser Antropóloga e ser Tia em uma Escola Especializada para Crianças Cegas, de Fernanda Eugenio, traz a experiência etnográfica vivenciada em uma escola especializada para crianças cegas. Em seu trabalho de campo, a autora assumiu o papel de "tia" e, então, passou a trabalhar como voluntária, ajudando e se envolvendo com os alunos. Esse fato lhe possibilitou discutir e colocar em xeque a extrema importância atribuída aos dados de ordem visual obtidos na antropologia.

Enfim, trata-se de uma obra cujo tema principal é a relação complexa entre pesquisador e pesquisado, que é tecida pela discussão sobre distância e proximidade nas pesquisas etnográficas no mundo urbano contemporâneo. Ao mesmo tempo que o livro reúne 13 artigos de temas variados, as relações socais da cidade são tidas como temas centrais que os amarram. Além dos múltiplos mundos apresentados ao leitor, ressalta-se o fato de os autores escreverem não só sobre os universos simbólicos dos pesquisados, mas também sobre suas próprias trajetórias individuais e intelectuais. Esses são meios através dos quais é possível perceber o quanto as diferenças de valores, etnia, escolaridade, geração, classe e gênero estão presentes o tempo inteiro no processo de construção, aprendizado, distanciamento e proximidade do trabalho (desafiante) antropológico.

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    Mestranda em Antropologia Social.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      04 Ago 2004
    • Data do Fascículo
      Jun 2004
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