Acessibilidade / Reportar erro

A conversão dos Tupinambá entre oralidade e escrita nos relatos franceses dos séculos XVI e XVII

Resumos

A atitude de tolerância frente ao índio, a herança cultural das relações amigáveis franco-tupi e a conversão gentil são os fundamentos da representação do índio tupinamba docilmente "convertível" contida nos relatos dos capuchinhos Claude d'Abbeville e Yves d'Evreux. A língua indígena aparece transcrita nestes livros sob a forma do diálogo e do discurso, mostrando o "selvagem convertível" dotado de palavra para expressar, em sua língua, seu desejo de conversão e de aliança com os franceses.

capuchinhos franceses; conversão; escrita; oralidade


The attitude of tolerance toward the indian, the cultural inheritance of the friendly franco-tupi relationship and the gentle conversion are the basis of the representation of the Tupinamba "convertible" with docility found in Claude d'Abbeville's and Yves d'Evreux's relations. The indian language is transcripted in these books as dialogues and speeches, showing the "convertible savage" endowed with the word in order to express in his own language his will of conversion and his alliance with the French.

conversion; French Capucins; orality; writing


ARTIGOS

A conversão dos Tupinambá entre oralidade e escrita nos relatos franceses dos séculos XVI e XVII

Andrea Daher

Universidade Federal do Rio de Janeiro — Brasil

RESUMO

A atitude de tolerância frente ao índio, a herança cultural das relações amigáveis franco-tupi e a conversão gentil são os fundamentos da representação do índio tupinamba docilmente "convertível" contida nos relatos dos capuchinhos Claude d'Abbeville e Yves d'Evreux. A língua indígena aparece transcrita nestes livros sob a forma do diálogo e do discurso, mostrando o "selvagem convertível" dotado de palavra para expressar, em sua língua, seu desejo de conversão e de aliança com os franceses.

Palavras-chave: capuchinhos franceses, conversão, escrita, oralidade.

ABSTRACT

The attitude of tolerance toward the indian, the cultural inheritance of the friendly franco-tupi relationship and the gentle conversion are the basis of the representation of the Tupinamba "convertible" with docility found in Claude d'Abbeville's and Yves d'Evreux's relations. The indian language is transcripted in these books as dialogues and speeches, showing the "convertible savage" endowed with the word in order to express in his own language his will of conversion and his alliance with the French.

Keywords: conversion, French Capucins, orality, writing.

A França fez duas tentativas de implatação colonial no Brasil entre os séculos XVI e XVII. O primeiro projeto de estabelecimento colonial, a França Antártica, foi empreendido por Nicolas Durand de Villegaignon, que conseguiu organizar com êxito um importante corpo expedicionário formado por soldados e artesãos que desembarcaram no Rio de Janeiro, em 1555. Temendo, sem dúvida, a hostilidade dos portugueses, os franceses construíram um forte numa ilhota, na entrada da baía de Guanabara. Mas Villegaignon acabou por exercer uma verdadeira ditadura no interior de sua colônia, provocando o descontentamento de vários colonos e agravando as divergências religiosas já existentes. Complôs e rebeliões deflagraram-se, levando Villegaignon, no início do ano de 1556, a escrever a Calvino, seu condiscípulo da faculdade de direito de Orleans, pedindo-lhe que enviasse ao Rio de Janeiro um contingente de partidários da fé reformada, a fim de encontrar uma solução para os conflitos que solapavam de dentro a colônia.

Assim, 14 huguenotes, enviados por Calvino, desembarcaram em 1557 na ilhota. Contudo, a chegada de dois ministros de Genebra, Richer e Chartier, acompanhados de uma companhia formada por colonos, mulheres e artesãos não fez com que se resolvessem as dissensões que dilaceravam a França Antártica, provocando, em vez disso, a desagregação e o desencadeamento de um gravíssimo conflito religioso.

Como resultado das discórdias religiosas e da tirania exercida por Villegaignon no interior do forte de Coligny, os calvinistas deixaram a colônia insular, buscando refúgio junto aos Tupinambá em terra firme. Dentre eles estava o huguenote Jean de Léry.

Dessa singular experiência nos vem um dos mais importantes relatos sobre o Brasil do século XVI, a Histoire d'un Voyage Faict en la Terre du Brésil, de Léry, livro que teve um sucesso editorial notável: cinco edições a partir de 1578, e ao menos outras dez, em francês e latim, até 1611.1 1 Léry (1580), segunda edição por Antoine Chuppin, em Genebra. Em 1585, o livro obtém uma edição ampliada, ainda em Genebra, pelo mesmo editor. A primeira edição latina do relato é de 1586 (em Genebra, por Eustache Vignon), antes de sua inserção em 1592 na Collection des Grands Voyages, de Théodore de Bry ( America Tertia Pars Memorabile provinciae Brasiliae Historiam , Francfort, Theodore de Bry, 1592). Outras edições se seguem: uma edição latina em Genebra, por E. Vignon, em 1594; a quarta edição francesa surge ainda em Genebra, pelos herdeiros de E. Vignon, em 1599 (seguida de outra, datada de 1600); e a quinta e última edição francesa, dedicada à Princesa de Orange, é editada por Jean Vignon, em Genebra, em 1611. A tradução brasileira de Sérgio Milliet apresenta passagens totalmente mutiladas, o que me faz optar pela tradução direta dos trechos citados, a partir da edição de 1580. O objetivo principal da publicação do relato foi, segundo o huguenote, o de desmentir "as mentiras e erros" contidos no livro do monge cordelier André Thevet, Les Singularitez de la France Antarctique, publicado em 1557-1558.2 2 [ ] A Anvers, Chez les heritiers de Maurice de la Porte , 1557. Avec privilege du Roy. Alguns exemplares trazem a data de 1558. Uma segunda edição foi publicada em Paris, por Christophe Plantin, em 1558.

A retomada dos projetos de implantação francesa no Brasil teve de esperar ainda meio século, e o segundo "Brasil francês" — a França Equinocial — seria, este sim, imperativamente católico.

A região visada era praticamente desconhecida dos portugueses, onde os franceses traficavam sem dificuldade desde longa data. A história desse empreendimento colonial francês se iniciou em 1594, quando o capitão Jacques Riffault embarcou para o Brasil "com a intenção de possíveis conquistas".3 3 Claude d'Abbeville (1614, p. 12vº). A tradução brasileira de Sérgio Milliet, tal como a de Jean de Léry, não me autoriza a citação, que opto por fazer livremente. Mas o fracasso de sua expedição o forçou a regressar à França. Entretanto, uma parte da tripulação permaneceu no local, dentre eles Charles des Vaux, que, após longa estada entre os índios, decidiu voltar à França e convencer o rei Henrique IV da importância de uma campanha colonial na região. Henrique IV ordenou então ao Senhor de La Ravardière que acompanhasse Des Vaux em uma expedição de reconhecimento da "ilha de Maranhão".

Somente alguns anos mais tarde, em 1612, a França Equinocial foi fundada, contando com o apoio da monarquia, na figura da rainha regente Maria de Medicis, que nomeou os Senhores de La Ravardière e de Razilly "lugares-tenentes do Rei de França na ilha de Maranhão", e designou missionários da ordem dos capuchinhos para exercerem o apostolado junto aos Tupinambá da região.

Dessa segunda experiência colonial resultaram várias publicações, dentre elas cartas apologéticas enviadas pelos padres Claude d'Abbeville e Arsène de Paris a seus superiores, parentes e amigos. As cartas fornecem testemunhos da prosperidade da colônia e contêm inúmeros detalhes sobre os recursos naturais da região e sobre o bom entendimento com os índios, além das múltiplas conversões e das milagrosas curas efetuadas.

No começo de 1614, é editada a Histoire de la Mission des Pères Capucins en l'Isle de Maragnan et terres circonvoisines où est traicté des singularitez admirables & des moeurs merveilleuses des Indiens habitants de ce païs ,4 4 Claude d'Abbeville (1614). relato completo da viagem ao Maranhão de seu autor, o reverendo padre Claude d'Abbeville, e de seu retorno à França, em 1614, acompanhado do senhor de Razilly e de seis embaixadores tupinambá. Provavelmente, a publicação desse livro visou o mesmo objetivo do conjunto de cerimônias espetaculares celebradas em Paris no mesmo ano, como a recepção dos embaixadores no Louvre pelo rei Luís XIII e a rainha regente e o batismo solene de três deles na igreja dos capuchinhos. As cerimônias visavam, com efeito, encorajar novos investidores e preparar uma possível emigração para o Maranhão.

Um ano depois, em 1615, o capuchinho Yves d'Evreux publicou a sua Suitte de l'Histoire des choses mémorables advennues en Maragnan, és années 1613 & 1614 ,5 5 Yves d'Evreux (1615) obra jamais conhecida pelo público da época, uma vez que os exemplares foram destruídos no próprio ateliê de impressão do editor, François Huby. Por razões de ordem político-diplomática, relacionadas ao projeto do casamento de Luís XIII com a infanta espanhola Ana d'Áustria, a França abriu mão do projeto de implantação colonial no Brasil. Em novembro de 1615, os franceses foram definitivamente rechaçados do Maranhão pelas forças portuguesas.

Franceses e Tupinambá

As regiões habitadas pelos Tupinambá são, de maneira geral, aquelas acerca das quais existe o maior número de documentos em língua francesa. Pelo fato de habitarem as regiões costeiras, eram índios como esses que se encontravam no Rio de Janeiro no momento do episódio colonial da França Antártica. Meio século mais tarde, eram ainda tribos tupinambá que coabitavam com os membros da França Equinocial no Maranhão. Jean de Léry, André Thevet, Claude d'Abbeville e Yves d'Evreux legaram assim um volumoso material, considerado hoje de conteúdo etnológico — embora anterior à etnologia —, sobre esses índios.

Na realidade, a "ilha de Maranhão", como chamavam os franceses, e suas cercanias haviam sido povoadas tardiamente pelos Tupinambá, em grande parte originários das zonas do litoral situadas mais a leste. Quando, em 1612, os primeiros contatos com os capuchinhos foram estabelecidos, os índios ainda se lembravam da chegada à região. Claude d'Abbeville afirma haver encontrado testemunhas oculares daquela primeira vaga migratória, ocorrida provavelmente entre 1560 e 1580: "Muitos desses índios ainda vivem e se recordam de que, tempos após a sua chegada na região, fizeram uma festa, ou vinho, a que dão o nome de cauim [ ]" (Claude d'Abbeville, 1614, p. 261, tradução minha).6 6 Alfred Métraux (1927, p. 6-7) cita outras narrativas concordantes com a de Claude d'Abbeville, a fim de assegurar-se do período provável dessa primeira migração (entre 1560 e 1580), especialmente a do português Soares de Souza ( Tratado Descriptivo do Brasil) que afirma, em 1587, que a costa atlântica, do Amazonas à Paraíba, era povoada pelos Tapuia. Essa primeira migração é a única que teve como resultado, segundo Métraux, uma nova extensão dos Tupi.

Eles ocuparam então a parte do litoral compreendida entre os rios Parnaíba — que Claude d'Abbeville (1614, p. 188vº) chama de Pará do Leste — e Pará, concentrando-se essencialmente na "ilha de São Luís" e, em terra firme, entre essa ilha e o rio Pará, nas regiões denominadas Tapuitapera, Comá e Caeté (Claude d'Abbeville, 1614, p. 185vº-189).7 7 Duas razões essenciais levaram os índios a migrar para o Maranhão. A primeira foi a busca da "terra sem mal", o paraíso terrestre dos povos tupi. Ela foi a causa primordial de uma migração que se termina em 1609, apenas três anos da instalação da França Equinocial. A segunda foi a fuga dos índios em função do avanço dos portugueses.

Assim, quando os capuchinhos chegaram ao Maranhão, Tupã já pôde ser tomado, sem controvérsia, pelo Deus cristão que serviu à naturalização da religião dos índios pelos missionários (Daher, 2002). Depois de toda uma série de migrações que os levou a se estabelecerem na região Norte, essas populações já tinham tido tempo de assimilar o que ensinaram os portugueses ou os franceses presentes na costa (Clastres, 1975, p. 19). As palavras firmes do índio Pacamont, de Comá, reproduzidas por Yves d'Evreux, dentre uma infinidade de outros testemunhos, são uma prova disso:

Tratei de freqüentar os franceses e de ouvi-los. Sei de meus ancestrais a história de Noé [ ] Noé foi o pai de todos. Sei também que Maria foi mãe de Tupã e que não conheceu nenhum homem, mas o próprio Deus fez-se corpo no seu ventre. E quando cresceu, enviou maratas, apóstolos, por todo lado: nossos pais tiveram um de que guardamos ainda os vestígios [ ]. (Yves d'Evreux, 1985, p. 237-238, tradução minha).8 8 "Première conférence avec Pacamont, grand sorcier de Comma: J'ai eu soin de fréquenter les Français et de les ouïr. Je sais de mes aïeux l'histoire de Noé [ ] Noé fut notre père à tous. Je sais aussi que Marie a été Mère du Toupan et qu'elle n'a été connue d'aucun homme, mais Dieu lui-même s'est fait un corps dans son ventre. Et quand il fut grand, il envoya des maratas, des apôtres, partout: nos pères en ont eu un dont nous avons encore des vestiges [ ]."

De um modo geral, as referências a franceses que viviam entre os selvagens9 9 O termo "selvagem" é usado ao longo deste texto por razões de coerência com o vocabulário empregado pelos cronistas franceses para referirem-se ao índio americano. Lembremos, ainda, que a representação do Tupinambá foi generalizada, na França, recobrindo todos os selvagens americanos, desde o século XVI, como demonstra Sturtevant (1988). são freqüentes nos primeiros escritos sobre o Brasil, assim como em relatos de missões, narrativas de expedições ou missivas de jesuítas portugueses.10 10 Os colonizadores portugueses serviram-se pontualmente desses especialistas franceses da língua, costumes e geografia de certas regiões da costa. Há alguns exemplos na documentação lusa, como o relatório manuscrito que Diogo de Campos Moreno fez da primeira expedição encarregada de expulsar os franceses, onde consta que os portugueses fizeram-se guiar numa expedição de reconhecimento por um "grande piloto da costa francês", chamado pelo nome indígena de Otuimiri, sem o qual jamais teriam conseguido penetrar nas terras do Maranhão, em 1614 (cf. Campos Moreno, 1812, p. 2). Uma prática corrente dentre os franceses, na época, consistia em abandonar, em plena vida selvagem, meninos, provavelmente recolhidos nos portos da Normandia, para que se integrassem às sociedades indígenas, cujos costumes, diziam os rumores, compartilhavam inteiramente, do casamento ao canibalismo. Esse fenômeno de "endotismo" (Lestringant, 1987), de penetração dos franceses na inextricável tessitura social indígena, era a condição para as alianças com os Tupinambá, visando, num primeiro momento, garantir a eficácia das relações comerciais. Uma vez integrados às tribos aliadas, esses truchements estavam aptos a servir de intérpretes para os marinheiros franceses.

A língua de contato com os franceses também parece estar, portanto, razoavelmente fixada, no mínimo desde as últimas décadas do século XVI,11 11 Sobre as variações dialetais e a fixação gráfica da língua indígena feita por Claude d'Abbevile, ver Garcia (1927). apesar da variedade linguística dos índios do Maranhão, assinalada inclusive na relação que registra a tentativa abortada de penetração na região pelos missionários portugueses. O testemunho legado pelo jesuíta Luis Figueira sobre essa primeira expedição, de 1607, aponta a variedade lingüística como um dos mais sérios obstáculos para a entrada na região em que se encontravam "tapuyas salvajens, que tudo enchem porque são infinitos, & tão cruéis, & dos humanos que a ninguém perdoão; nem ha quem lhe entenda as línguas, que são várias ".12 12 "Informação do Padre Luis Figueira", conservada no Archivum Romanum Societatis Jesu. O padre Figueira era também um especialista notável da língua geral, autor de uma Arte da Grammatica da língua brasílica Lisboa, Na Officina de Miguel Deslandes 1687.

No extremo oposto, a marca das relações amigáveis franco-tupis, caracterizadas e intermediadas pelos truchements, encontra-se registrada no corpus de relatos franceses sobre o Brasil, onde a inscrição da língua tupi — na forma de diálogos, de palavras soltas de orações ou de discursos traduzidos — é maciça. A partir dos textos produzidos pelos missionários capuchinhos — considerando, particularmente, a transposição gráfica do tupi nessas obras —, é possível se entender os usos da língua como instrumento político e apostólico no interior do projeto colonizador francês.

Dialogar: os truchements e a prática do escambo

Uma primeira modalidade de inscrição da língua tupi nesses relatos é o diálogo. O relato de Jean de Léry, desde a sua primeira edição, contém no título a menção a "um colóquio de sua linguagem", que remete ao capítulo XX: Colóquio da entrada ou chegada na terra do Brasil, entre as pessoas do país chamadas tupinambá e tupiniquins em língua selvagem e francês (Léry, 1580, p. 306-338, tradução minha). Este colóquio, afirma Léry,

foi feito no tempo em que estive na América com a ajuda de um truchement: o qual, não apenas por ter vivido sete ou oito anos lá, entendia perfeitamente a linguagem das pessoas do país, mas também porque havia estudado até mesmo a língua grega, da qual [ ] esta nação dos Tupinambá tem alguns termos, ele podia melhor explicá-lo. (Léry, 1580, p. 306, tradução minha).13 13 Colloque de l'entree ou arrivee en la terre du Bresil, entre les gens du pays nommez Tououpinambauoults, & Toupinenkins en langage Sauvage & François: "[ce colloque] fut fait au temps que j'estois en l'Amérique à l'aide d'un truchement: lequel non seulement pour y avoir demeuré sept ou huit ans, entendoit parfaitement le langage des gens du pays, aussi parce qu'il avait bien estudié, mesme en la langue Grecque, de laquelle (ainsi que ceux qui l'entendent ont jà peu voir ci-dessus) cette nation des Tououpinambaoult a quelques mots, il le pouvoit mieux expliquer".

Documentos desta natureza, mais frequentemente manuscritos, circulavam em meio às tripulações dos navios a caminho do Brasil. Serviam como uma espécie de guia, expondo gestos, termos e situações prováveis no momento do contato com os índios.

Além da tensão entre oralidade indígena e escrita ocidental, muito bem percebida por Michel de Certeau (1975) no relato de Jean de Léry, a questão teológica da convertibilidade dos Tupinambá expressa nessas transcrições desempenha um papel fundamental na definição do lugar de enunciação e daquilo que é enunciado pelo índio.

Para o huguenote, os índios do Rio de Janeiro eram descendentes legítimos de Cam. A escolha da hipótese camita como resposta à questão da origem do índio foi exaltada por Léry, que no capítulo XVI de sua Histoire d'un Voyage, dedicado à religião dos Tupinambá (Léry, 1580, p. 230-261),14 14 Ce qu'on peut appeler religion entre les Sauuages Ameriquains: des erreurs, ou certains abuseurs qu'ils ont entr'eux nommez Caraibes les detiennent: & de la grande ignorance de Dieu où ils sont plongez. enuncia os fundamentos da teoria de sua origem maldita:

No que concerne à beatitude e à felicidade eterna [ ] não obstante os sentimentos que disse terem os Tupinambá: são um povo maldito e desamparado de Deus, se houver outro sob o céu [ ], parece mais provável que tenham descendido de Cam. [ ] pode ter acontecido (e digo-o sob correção) que os Maiores e ancestrais de nossos americanos, tendo sido rechaçados pelos filhos de Israel de algumas regiões do país de Canaan, tenham embarcado à mercê do mar e aportado nesta terra da América. (Léry, 1580, p. 260-261, tradução minha).15 15 "[ ] quant à ce qui concerne la beatitude & felicité eternelle [ ] nonbstant les sentiments que i'ay dit, qu'ils [les Tupinamba] en ont: c'est vn peuple maudit & delaissé de Dieu, s'il y en a un autre sous le ciel [ ], il semble qu'il y a plus d'apparence de conclure qu'ils soyent descendus de Cham [ ]: il pourrait être aduenu (ce que ie di sous correction) que les Maieurs & ancestres de nos Ameriquains, ayans esté chassez par les enfans d'Israel de quelques contrees de ce pays de Chanaan, s'estan mis dans des vaisseaux à la merci de la mer, auroyent esté iettez & seroient abordez en ceste terre d'Amerique."

No interior do calvinismo mais doutrinário, a conjetura de Léry sobre a origem camita dos Tupinambá compromete radicalmente a sua conversão.16 16 Somente a partir de 1580, a atitude anticolonialista que caracterizava o partido huguenote francês — que caracteriza o pessimismo radical de Léry quanto às possibilidades de conversão dos Tupinambá — muda radicalmente no sentido da possibilidade de constituição de uma política colonial, com fins comerciais e em nome do livre exercícios da religião reformada (Lestringant, 1990, p. 126-132). Em Histoire d'un voyage, o relato do fracasso da França Antártica, em meio a um discurso francamente anti-colonialista, vem ratificar o pessimismo dogmático de Léry, que vê os índios como "objeto de uma maldição particular que se adiciona à do pecado original, comum a todos os homens".

Inconvertível, o sevagem de Léry, no seu diálogo-modelo potencialmente repetido nas costas brasileiras, é um personagem hipotético. Assim inicia-se o Colóquio:

Tupinambá. — Ere-ioubé? Você veio?

Francês — Pa-aiout. Sim, eu vim.

T. — Teh! auge-ny-po. Pois está bem dito.

T. — Mara-pé-déréré? Como você se chama?

F. — Lery-oussou. Uma ostra grande.17 17 "Tououpinambaoult. — Ere-ioubé? Es-tu venu? François — Pa-aiout. Ouy, je suis venu.T. — Teh! auge-ny-po. Voilà bien dit. T. — Mara-pé-déréré? Comment te nommes-tu? F. — Lery-oussou. Une grosse huitre."

Mesmo não tendo sido Léry o autor do colóquio, ele deixou sua marca nele, inscrevendo seu nome "em língua selvagem", Lery-oussou. Mas seu interlocutor tupinambá não tem nome, exatamente como o truchement que é, de fato, o autor escondido por detrás de Léry.

Com efeito, a referência a situações que implicam a presença e a atividade "tradutora" dos truchements é constante na Histoire d'un Voyage. Mais ainda, Léry descreve a "acomodação" dos truchements no meio tupinambá e a "mestiçagem" franco-tupi, não se furtando a uma descrição radical dos fatos, expondo o risco do triunfo da selvageria sobre os espíritos civilizados.

[ ] alguns truchements da Normandia, que viviam há oito ou nove anos naquele país para se acomodarem aos índios, levando uma vida de ateus, não só se poluíam em toda espécie de impudicícias com as mulheres e moças [ ] mas ultrapassando os selvagens em desumanidade, ouvi dizer que se vangloriavam de ter matado e comido prisioneiros. (Léry, 1580, p. 223-224, tradução minha).18 18 "[ ] quelques Truchements de Normandie, Qui aoyent demeuré huict ou neuf ans en ce pays-la, pour s'acommoder à eux, menans une vie d'Atheistes, ne se polluoyent pas seulement en toute sortes de paillardises & vilenies parmi les femmes & les filles, [ ] mais aussi surpassans les sauvages en inhumanité, i'en ay ouy q se vantoyent d'avoir tué &mangé des prisonniers".

A condenação moral de Léry do ensauvagement dos franceses não o impediu, contudo, de "acomodar-se" ao lado dos índios, de freqüentá-los e de comer e beber entre eles (Léry, 1580, p. 84).19 19 "[nous] frequentions, mangions & beuvions parmi les Sauvages, lesquels sans comparaison nous furent plus humains que celuy [Villegaignon] lequel sans luy avoir meffait ne nous peut souffrir avec luy".

Na França Equinocial, a relação com os truchements deu-se de forma totalmente diversa. Ademais, a função dos truchements ao lado dos missionários assumiu perspectivas mais importantes, fundamentalmente relacionadas à produção e à circulação de um capital de informação acerca da conversão dos índios.

Escapando à imagem do truchement ensauvagé construída por Léry, os truchements que participam da França Equinocial gozam de um estatuto importante e claramente definido no interior da colônia. Migan, um normando de Dieppe que há anos vivia entre os índios e era grande conhecedor das tribos locais, assina junto com os lugares-tenentes do rei de França como testemunha da carta em que La Ravardière expõe suas razões de retornar à França antes do término da expedição (Claude d'Abbeville, 1614, p. 332).

Claude d'Abbeville conta, em outra passagem, que na aldeia de Eussauap, um ancião, Momboré-Açu, "de mais de 180 anos", reagiu à chegada dos franceses com um discurso um tanto virulento. Ele compara o estabelecimento dos franceses no Maranhão ao dos peró (portugueses) em Pernambuco e Potiú, que acabaram por escravizar os índios.

Com esse episódio, os franceses deixaram a aldeia sem fincar a cruz, sem instruir nem batizar os índios. Uma vez de volta ao forte São Luís, avaliaram a gravidade da situação e decidiram enviar Migan a Eussauap para tentar "convencer o ancião, aplacando os outros índios" (Claude d'Abbeville, 1614, p. 153, tradução minha).20 20 "vaincre ledit vieillard & contenter les autres Indiens".

Em Eussauap, no momento do carbet, a assembléia dos anciãos, Migan faz um discurso a fim de demonstrar, em primeiro lugar, a diferença entre os franceses que vinham traficar no passado e os grandes morubixabas, os "bravos guerreiros" que se encontravam no Maranhão para defender a "nação tupinambá" contra seus inimigos e viver entre os índios como "bons amigos". Tendo deixado seus países, suas riquezas e suas comodidades, argumenta Migan, parece justo que esses grandes guerreiros tenham escravos "para suas roças e para ajeitar todas as coisas de que precisam".21 21 "pour faire leurs jardins & pour accomoder toutes choses qui leur sont necessaires".

Ele lembra em seguida que as leis intrínsecas do escambo sempre garantiram aos Tupinambá mercadorias em troca de outras, sem que eles fossem jamais obrigados a submeter-se a essa política. É na última parte de seu discurso que ele estabelece a distinção entre o temperamento dos franceses e o dos portugueses, e entre a religião de uns e de outros:

[ ] desde que os conheces [os franceses], já os viste fazerem o que quer que seja para se estabelecer aqui, do modo como confessas terem feito os peró em Pernambuco e Potiú? Não o fizeram, bem o sabes, e não o farão jamais, não podendo fazer nada contra sua boa natureza que os leva a todo tipo de bens e à gentileza.

Pensas que pode haver no mundo nação que se aproxime da bondade dos franceses? Não, não. São os franceses os primogênitos da Igreja, os verdadeiros filhos que o grande Tupã escolheu primeiro para lhes dar sua lei, e foram eles também os primeiros a ensinar os outros. Os Peró, como as demais nações, só a receberam muito depois deles; tanto que são ainda jovens e não são tão bem instruídos quanto os franceses. Os próprios paí que se encontram dentre eles não passam de aprendizes dos verdadeiros paí e não são tão capazes de observar as coisas ensinadas pelo grande Tupã como fazem estes. (Claude d'Abbeville, 1614, p. 155, tradução minha).22 22 "[ ] depuis que tu les connois, as tu jamais veu qu'ils ayent fait aucune chose que ce soit pour s'establir icy, en la maniere que tu confesse que les Pero ont fait à Fernambourg & Potyiou? Ils ne l'ont pas fait, tu le sçay bien, & ne le feront jamais, n'estant en leur puissance de rien faire contre leur bon naturel, qui ne les porte qu'à toute sorte de biens & de douceur. Penses tu qu'il y aye nation au monde qui s'approche de la bonté des François? Non, non. La raison est que les François sont les premiers nays de l'Eglise, & les vrais enfans que le grande Toupan a choisi des premiers pour leur donner sa loy, aussi ont ils esté des premiers à l'enseigneer aux autres. Les Pero comme les autres nations, ne l'ont receuë que longemps apres eux; tellement qu'ils sont encore jeunes, & ne sont si bien instruits que les François. Les Pay mesme qui sont entre eux, ne sont encore qu'apprentifs des vrais Pay; & n'observent pas si bien les choses que le grand Toupan enseigne, comme ils font."

É evidente, nesse discurso marcado por uma lusofobia declarada, a função política preenchida por esses especialistas das línguas indígenas, representando, no interior do projeto colonial francês, o papel de intermédiários, não mais unicamente de trocas comerciais, mas da própria aliança militar, política e religiosa franco-tupi.

Inserindo todo este vasto capital político e cultural dos truchements no verdadeiro "programa" que sua obra veicula, o padre Yves d'Evreux formulou nela o segundo ato do diálogo franco-tupi reproduzido por Jean de Léry, na forma de um diálogo ideal que dramatiza a modalidade de relações humanas estabelecida pela prática do escambo.

No capítulo intitulado Da recepção que fazem os selvagens aos franceses recém-chegados e como comportar-se para com eles, o padre Yves revela a evidência da inabalável amizade franco-tupi:

Se há nação no mundo voltada à boa acolhida de seus amigos recém-chegados, à acomodação destes nas casas para dar-lhes o melhor tratamento possível, é aos Tupinambá, em sua relação com os franceses, que cabe o primeiro lugar [ ]. (Yves d'Evreux, 1985, p. 197, tradução minha).23 23 "S'il y a nation au monde portée à faire bon accueil à ses amis nouvellement arrivés, à les recevoir dans les maisons pour les traiter aussi bien que possible, les Tapinambos envers les Français doivent tenir le premier rang [ ]."

A voz de um selvagem hipotético dramatiza o que está em jogo num primeiro contato ideal com um francês recém-desembarcado. Essa encenação exemplar resume, por antecipação, o desenrolar quase ritual dos eventos e dá, ao mesmo tempo, o tom do comportamento suposto ser conveniente para o francês na ocasião do encontro.

Eis que chegam os navios de França — pensa o índio — hei de ser bom compadre: ele me dará machadinhas, foices, facas, espadas e vestimenta; eu lhe darei minha filha, caçarei e pescarei para ele, farei muito algodão, procurarei plumas de garça e âmbar para dar-lhe [ ]. (Yves d'Evreux, 1985, p. 197, tradução minha).24 24 "Voilà les navires de France qui viennent, se dit le sauvage, je ferai un bon compère: il me donnera des haches, des serpes, des couteaux, des épées et des vêtements; je lui donnerai ma fille, j'irai à la chasse et á la pêche pour lui, je ferai force cotons, je chercherai des aigrettes et de l'ambre pour lui donner [ ]."

O capítulo se termina com o repouso do viajante cansado: "Erei potar touroumi? Tens fome de sono? Queres dormir?", pergunta o índio, sugerindo, através dessa imagem, a confiança que o francês deve depositar, de olhos fechados, no seu anfitrião.

O tema do escambo foi, portanto, abordado por duas vezes no interior do corpus de relatos franceses sobre o Brasil, na forma de diálogo exemplar bilíngüe. Em Léry, ele aparece como uma reprodução — pretensamente fiel — de uma prática tantas vezes repetida — uma vez que os gestos implicados nas trocas comerciais estavam estreitamente ligados ao desenrolar ritual desses diálogos. Em Yves d'Evreux, por sua vez, a transcrição é menos o resultado de uma observação que a divulgação de um "programa" a ser seguido para o sucesso da empresa colonial e da missão capuchinha no Maranhão.

Nesse sentido, uma segunda função desempenhada pelos truchements revela-se igualmente fundamental: são eles que possibilitam a eficácia da ação missionária, atuando não somente como intérpretes no momento dos primeiros contatos, mas também como os primeiros tradutores do material de conteúdo doutrinário, tal como orações, catecismos e formulários.

Segundo Bernardo Pereira de Berredo, as doutrinas apostólicas impressas no livro do padre Yves d'Evreux "foram traduzidas pelo Senhor des Vaux e por um índio Católico que se chamava Sebastião, que praticava também a língua francesa" (Berredo, 1749).

Vários são os testemunhos do aprendizado da doutrina em tupi pelos índios, no livro de Claude d'Abbeville, como o do menino, Acaiouy Miry, filho de um dos chefes indígenas do Maranhão, que

tinha tanto desejo de aprender que, com seu belo espírito (ou melhor, com a graça divina), [que] foi o primeiro a saber e aprender em pouco tempo a Oração Dominical, a Saudação Angélica, o Símbolo dos Apóstolos, os mandamentos de Deus e da Igreja e os Sete Sacramentos, tudo na sua língua indígena [ ]. (Claude d'Abbeville, 1614, p. 100vº, tradução minha).

Era portanto através da própria língua do catecúmeno que a doutrina era ensinada no Maranhão, exatamente como na nas missões empreendidas em todo o território americano, na mesma época, por outras ordens religiosas. Variam, no entanto, as modalidades de inscrição dessas línguas nos relatos missionários, de modo geral, correspondendo a estratégias apostólicas e colonizadoras específicas.

Discursar: a conversão do Tupinambá

A segunda forma narrativa assumida pela língua tupi nesses relatos é o discurso — seja ele uma expressão pontual do próprio índio que fala, fora do contexto de um diálogo, seja a harangue, discurso solene proferido diante de uma assembléia ou de um personagem importante. Longe do caráter "hipotético" dos diálogos — uma vez que, nos discursos, os enunciantes sempre são nomeados —, através desse recurso os missionários capuchinhos dão a palavra ao índio para que ele próprio enuncie, em sua própria língua, o seu desejo de conversão.

Este procedimento contrasta fortemente com a ausência de transcrição de enunciados proferidos pelos índios nos escritos dos jesuítas portugueses.

João Adolfo Hansen (1993) concluiu sobre o topos da falta de f, l e r — sinal da falta de fé, lei e rei na língua dos índios do Brasil, tão amplamente sustentada por cronistas e missionários portugueses no século XVI — que se trata de uma marca de ilisibilidade da língua e, mais ainda, de uma verdadeira carência.

Com efeito, o pensamento analógico não reconhece o outro da diferença cultural, mas faz com que se torne um grau da semelhança (mais ou menos distante). Nesse sentido, conclui Hansen sobre o topos da falta de letras dos índios do Brasil:

Como natureza, o som é efeito da Causa primeira; logo, é signo ou letra: depois de Babel, como o som se dispersou pelo mundo, perdeu a semelhança da Letra, mantendo-se a imagem distante, nele, da língua adâmica. A mesma imagem é ainda legível em algumas línguas — como em Portguês — e, em outras, ilegível — como a língua do gentio. (Hansen, 1993, p. 53).

Esta concepção ecoou ao longo do século XVII, encontrando-se, por exemplo, em Vieira e, no século XVIII, na poesia dita barroca. De todo modo, os jesuítas seguiram freqüentemente as teses sustentadas pelos teólogos Francisco de Vittoria e Francisco Suárez e afirmadas no Concílio de Trento, segundo as quais "o índio não conhece a Revelação, mas não está excluído da lei natural; logo, é humano, ainda que num grau distantíssimo da boa humanidade católica" (Hansen, 1993, p. 55). Do mesmo modo, a sua língua: ela é carente, esquecida, distante da boa proporção do Verbo divino, à qual foi preciso fornecer as categorias necessárias à equivalência às línguas vernáculas. Eis por que, teologicamente, o índio não fala — e não pode falar — nos escritos dos jesuítas portugueses: sua língua é muda.

Decerto, é possível reescrever ou rememorar na alma indígena as categorias necessárias para que a língua tupi participe da língua originária junto às línguas vernáculas espalhadas pelo mundo. A questão central da catequese estaria, então, fundamentalmente ligada à escrita: produzir e estruturar a consciência do índio, sua forma de conteúdo e sua forma de expressão. Daí a possibilidade, de um ponto de vista teológico-político, da "redução" gramatical das línguas indígenas e da produção de gramáticas e vocabulários.

De um modo geral, a publicação de catecismos e gramáticas em línguas indígenas americanas, ao longo dos séculos XVI, XVII e XVIII, pelas ordens missionárias, sugere que o uso gramaticalizado e dicionarizado dessas línguas era condição para a conversão religiosa. A própria vocação apostólica aparece, muitas vezes, em textos de caráter teológico, vinculada ao domínio da língua (Daher, 1999).25 25 É isso que postulava Nóbrega (1954, p. 318), quando previa a graça de que devia ser dotado todo conversor para o domínio a língua.

Nos relatos dos capuchinhos do Maranhão, a transcrição dos discursos proferidos pelos índios é o pilar do projeto de conversão e de francização dos Tupinambá que sustenta a aliança franco-tupi. Os missionários mostram os Tupinambá dotados de palavra, o que permite a estes não somente denunciar a empresa do diabo sobre suas almas e a dos portuguesas sobre seus corpos, mas também enunciar seu desejo de conversão e de sujeição ao "reino de lis".

Evidentemente, Claude d'Abbeville e Yves d'Evreux consideram o domínio da língua indígena nessa perspectiva teológico-política. No interior de um capítulo dedicado aos discursos que os missionários fizeram aos selvagens, a fim de atraí-los "pela gentileza" ao conhecimento de Deus e à obediência do rei (Yves d'Evreux, 1864, p. 264-271)26 26 O capítulo se intitula Formulaire des Harangues que nous faisions aux Sauvages quand ils nous venoient voir, pour les attirer a la cognoissance de nostre Dieu, & à l'obeissance de nostre Roy. o padre Yves trata dos "frutos e emolumentos que eles [os índios] deviam esperar de nossa amizade, a saber, a reforma de sua vida e o conhecimento do verdadeiro Deus, além da proteção de nosso Rei contra seus inimigos" (Yves d'Evreux, 1864, p. 269, tradução minha).27 27 "[ ] fruicts & esmolumens qu'ils devoient attendre de nostre amitié, à sçavoir la reformation de leur vie & la connoissance du vrai Dieu & en outre la defence de nostre Roy contre leurs ennemis". Transcrito inicialmente em tupi e depois traduzido em francês, esse discurso é seguido do relato da recepção da audiência. Sendo parte integrante do projeto global de "reforma" da vida indígena desenvolvido por Yves d'Evreux no primeiro tratado de seu livro, a língua selvagem serve ao conversor, antes de mais nada, como veículo de comunicação primordial no processo de conversão, mas deverá ser substituída, em seguida, nas novas gerações convertidas, pela língua da revelação:

Em nada duvidavam de que aprenderiam grandes coisas de Deus, especialmente se nós [os padres] conhecêssemos bem sua língua. Pois, dizem eles, os línguas não falaram a Deus como vós; não podem dizer outra coisa senão o que vós lhes dizeis. Mas se falásseis conosco, dir-nos-íeis aquilo que Deus vos disse. Nossos filhos terão mais sorte que nós: pois poderão aprender de vós a língua francesa, assim como nos prometestes [ ]. (Yves d'Evreux, 1864, p. 270, tradução minha).28 28 "Ils ne doutoient aucunement qu'ils n'aprissent de grandes choses de Dieu, specialement quand nous [les Pères] sçaurions bien leur langue, Car, disoient-ils, les Truchements n'ont point parlé à Dieu comme vous. Ils ne peuvent dire autre chose que ce que vous leurs dittes: mais si vous parliez à nous, vous nous diriez ce que Dieu vous a dit. Nos enfants seront plus heureux que nous: car ils pourront apprendre la langue Française de vous, ainsi que vous nous avez promis [ ]."

No segundo tratado do livro do padre Yves d'Evreux, que tem um conteúdo mais "espiritual" do que "temporal", inaugura-se o relato das conversões exemplares ocorridas no Maranhão. Ao longo dessas páginas edificantes, o capuchinho constrói os modelos de conversão aplicáveis às crianças, aos doentes, aos "anciãos", e aos adultos.29 29 Infelizmente, esses capítulos não aparecem na edição que Hélène Clastres fez do relato do padre Yves. Trata-se dos capítulos de I a V do segundo tratado (Yves d'Evreux, 1864, p. 227-263). Em seguida, é sob a forma dos "formulários" — mais propriamente fórmulas — que Yves d'Evreux estabelece um verdadeiro "manual [bilíngüe] do conversor", calcado no estabelecimento "[ ] da Doutrina Cristã, a qual os Catecúmenos aprendiam e recitavam de cor antes de serem batizados", contendo orações, os dez mandamentos de Deus e os da Igreja, e os sete Sacramentos (Yves d'Evreux, 1864, p. 271-277, tradução minha).30 30 Formulaire de la Doctrinne Chrestienne, laquelle les Cathecumenes apprennoient & recitoient par coeur avant d'estre baptisez. À leitura desse capítulo, toda uma série de termos traduzidos em tupi aparecem como neologismos criados em função das necessidades dos conversores e segundo a interpretação destes para o universo mental tupinambá. É o caso dos termos que significam o diabo ( jurupari), batismo ( iemongaraïve), bispo ( Karaive), penitência ( oyekoacouvuve), confissão ( oyembeou), etc. Para uma melhor compreensão dos termos indígenas contidos na obra do capuchinho Claude, consulte-se Rodolpho Garcia (1927).

Os capítulos seguintes constituem um importante ensaio sobre a religião dos Tupinambá, com o objetivo de demonstrar a sua crença natural em Deus, ou seja, Tupã, não obstante seu longo cativeiro entre as mãos do diabo. Neles, o relato assume todo o seu valor de testemunho vivo, pois Yves d'Evreux recorda a sua prática de pregador, que visava em especial à conversão dos bourouvichaves, isto é, os "principais", os líderes espirituais das tribos locais (Yves d'Evreux, 1864, p. 325). Eles costumavam ir ao forte São Luís para conversar com os pays capuchinhos, como conta o padre Yves.

O capuchinho Yves d'Evreux pôde assim estabelecer toda uma série de "conferências" com os chefes índios, transcritas ulteriormente por ele "ao pé da letra", em capítulos distintos situados no final do segundo tratado. Essas páginas são de grande valor para a Etnografia contemporânea, como revela, entre outros, os trabalhos do antropólogo francês Alfred Métraux (1928). Em termos de "estratégia de conversão", é claro, essa prática não é nova. Em contrapartida, ela inova em termos "escriturários" por sua formulação, conteúdo e intenção:

Advirta-se o leitor de que é fácil representar por escrito as palavras e o discurso desse selvagem — diz o padre Yves sobre o chefe de Oroboutin —, mas não os gestos e a vivacidade de espírito com os quais conversava comigo: posso apenas dizer que seus discursos eram acompanhados de lágrimas e de uma voz carregada de fervor e devoção, pela qual ele me fazia ver que estava tocado pelo Espírito Santo, e possuía um ardente desejo de ser cristão. (Yves d'Evreux, 1864, p. 258, tradução minha).31 31 "Le lecteur doit être averti qu'il est aisé de représenter par écrit les paroles et le discours de ce Sauvage — dit le P. Yves sur le chef d'Oroboutin —, mais non par les gestes et la vivacité d'esprit avec lesquels il m'entretenait: je puis dire seulement que ses discours étaient accompagnés de larmes et d'une voix pleine de ferveur et de dévotion, par laquelle il me faisait voir qu'il était touché par le Saint-Esprit, et avait un désir ardent d'être chrétien."

Se faltam os gestos e a emoção do momento, a representação "por escrito das palavras e dos discursos" dos índios é o suficiente para permitir, de todo modo, a analogia entre conversão lingüística e conversão religiosa, que se fundamenta no fato de que a tradução é a garantia do princípio de onipresença de Deus.

Lado a lado com as estratégias de conversão implementadas no Maranhão que implicam o uso da língua indígena, determinadas estratégias de natureza gráfica têm por objetivo fazer com que a conversão religiosa dos Tupinambá seja representada, aos olhos do leitor francês, através das obras dos capuchinhos.

No relato de Claude d'Abbeville, uma primeira operação ocupa um lugar central e aponta para a diferenciação entre o oral e o escrito e entre a língua indígena e o francês. Várias vezes, Claude d'Abbeville transcreve integralmente, segundo afirma, os discursos proferidos em tupi: as passagens transcritas são impressas em caracteres itálicos, sempre seguidas da tradução em língua francesa, que aparece em caracteres romanos como o resto do texto.32 32 As citações em latim ou italiano, no relato de Claude d'Abbeville, são impressas também em itálico. Como uma verdadeira operação de "conversão lingüística", que permite passar do itálico aos caracteres romanos, do oral ao escrito e em seguida do tupi (escrito) ao francês, Claude d'Abbeville proporciona ao seu leitor uma relação possível com o mundo "selvagem". Trata-se, com efeito, de uma representação do exótico — o que vem de fora — na linguagem e no escrito. À leitura, a língua exótica, não conhecida, deve necessariamente querer dizer alguma coisa, já que é passível de ser escrita e traduzida. Portadora de uma intencionalidade, para além do sentido, a escrita e a tradução da língua selvagem eliminam o espectro do falar indecifrável do outro, garantindo assim a finalidade totalizante da conversão religiosa.

As conseqüências mais profundas dessa operação de "conversão lingüística" e suas relações com a conversão religiosa ultrapassam, é claro, o âmbito material de análise de um objeto impresso. Michel de Certeau demonstrou bem, em seu estudo sobre a Histoire d'un Voyage de Jean de Léry, como o dicionário pôde se tornar um instrumento teológico:

Enquanto a linguagem religiosa é pervertida por um uso que é "difícil de conhecer" e que remete para o insondável das "intenções" ou do "coração", eis que, instalada sobre a própria linha que delineava a fratura do universo, a tradução faz com que a realidade selvagem passe para o discurso ocidental. Para tanto, basta poder "converter" uma língua em outra. A operação tradutora deixa de tornar necessária — já o sugeria Calvino — a redução das linguagens a uma língua primeira da qual todas decorreriam; ela substitui o "estar" de uma origem por uma transformação que se desenrola na superfície das línguas, que faz transitar um mesmo sentido de língua em língua [ ] (Certeau, 1975, p. 232-233, tradução minha).

É essa mesma idéia de uma transformação em superfície que torna possível a versão das orações católicas em tupi, que permitem que o convertido articule a verdade sobre a revelação. Isso ratifica o princípio unitário da verdade divina profunda e a multiplicidade superficial das línguas humanas — inclusive as indígenas, em um grau decerto muitíssimo afastado da profundidade do Verbo divino — desde a dispersão da unidade da língua adâmica no mundo quando do episódio de Babel (Daher, 1999).

Não é de estranhar, portanto, que, mesmo na França, os três Tupinambá batizados solenemente em Paris tenham orado, publicamente, em sua própria língua:

Monsenhor Bispo de Paris iniciou as perguntas acerca do batismo e, a cada uma delas, eu [Claude d'Abbeville] os fazia ouvir em sua própria língua a que eles mesmos responderam, e em seguida disseram o Padre-Nosso, a Ave-Maria e o Credo também em sua língua. (Claude d'Abbeville, 1614, p. 368, tradução minha).33 33 "Monseigneur l'Evesques de Paris commença les interogations du Baptesme qu'à chaques fois je leur fasois entendre en leur langue ausquelles ils respondaient eux mesmes, puis ils dirent le Pater noster, l'Ave Maria & le Credo aussi en leur langue."

Nem tapouco causa estranheza encontrarmos a íntegra do discurso feito pelo embaixador tupinambá Itapoucou (batizado Louis Marie) ao rei de França, Luís XIII, em 1613, transcrito em tupi e traduzido em francês, no relato de Claude d'Abbeville:

Grande Monarca, tu te dignaste mandar-nos grandes personagens em companhia de Profetas para nos ensinarem a Lei de Deus e nos protegerem contra os nossos inimigos. Sempre te seremos agradecidos, posto que até hoje levamos uma vida miserável, sem lei nem fé, devorando-nos uns aos outros. Admiro tua grandeza como Monarca de tão grande país, e envergonho-me de me apresentar diante de ti, reconhecendo a diferença que há entre os filhos de Deus, que sois, e os filhos de Ieropary [diabo] que sempre fomos. Tu te honraste enviando-nos tais Profetas e tão valentes cavaleiros; e muito bem fizeste, porquanto não foram inúteis. Em sinal de gratidão, os principais de nosso país para aqui nos enviaram, em nome de nossa nação, para prestar, como é de nosso dever, homenagem à tua grandeza e suplicar-te que nos envies maior número de Profetas para nos fazerem filhos de Deus; e grandes guerreiros para nos protegerem, prometendo que permaneceremos teus súditos e servos mui humildes e fidelíssimos, e fiéis amigos de todos os franceses. (Claude d'Abbeville, 1614, p. 341vº-342, tradução minha).34 34 Harangue faicte au Roy en presence de la reyne Regente sa Mere par Itapoucou du depuis nommé Louys Marie au nom des Maragnans: "Grand Monarque, tu as eu agreable de nous envoyer des grands personnages avec des Prophetes pour nous enseigner la Loy de Dieu & nous maintenir contre nos ennemis. A iamais nous t'en serons redevables: d'autant que iusques à present nous avons mené une vie miserable, sans loy & sans foy, nous entremangeans les uns les autres. I'admire ta grandeur te voyant le Monarque d'une telle nation et d'un si grande païs. Et suis honteux de me presenter icy devant toy, reconnoissant la difference qu'il y a entre les enfans de Dieu, que vous estes, et les enfants de Ieropary [diable], tel que nous avons tousiour esté. Tu as bien de l'honneur de nos avoir envoyé de tels prophetes & de si braves hommes; & tu as fort bien fait, car ils n'ont pas esté inutiles. En reconnoissance de quoy les principaux de nostre païs nous ont icy envoyé au nom de toute nostre nation pour faire hommage à ta grandeur telle que nous devons, & te supplier de nous envoyer nombre desdits Prophetes pour nous faire enfans de dieu & de grands guerriers pour nous maintenir, protestants qu'à iamais nous demeurons tes subiects & tes serviteurs treshumbles & tres-fideles, & fideles amis de tous les François."

O selvagem dotado de palavra

Nesse mesmo movimento, se contrói, com a escrita dos capuchinhos franceses, uma representação, ou mais ainda, um mito, o do "selvagem convertível" (Daher, 2002). Essa construção é resultante de determinadas condições históricas que implicam diretamente os usos da língua indígena, particularmente a sua transposição gráfica.

Primeiramente, os capuchinhos foram tributários da atitude de autópsia da "realidade indígena" e de idealização do índio que havia fundado a escrita do relato de Jean de Léry (Lestringant, 1990), considerada etnológica, antes da etnologia (Certeau, 1975).

O parentesco entre os quadros de "singularidades humanas" descritos por Léry e por Claude d'Abbeville mostra que o capuchinho assumiu uma postura muito próxima ou mesmo equivalente à do huguenote para fazer com que o índio triunfasse. O padre Claude parafraseou várias passagens do relato de Léry, mas essa paráfrase católica do texto huguenote, cuidadosamente inserida na dispositio do relato missionário, tornou possível tomar o Tupinambá como objeto de análise etnográfica, sem excluí-lo no entanto da possibilidade de salvação, como fez Léry (Daher, 2002).

A presença forte de trascrições de discursos proferidos em tupi nos relatos dos capuchinhos justifica-se, mais ainda, posto que a tolerância e o respeito à integridade física e moral dos Tupinambá — que são a base do que é caracterizado como uma primeira "etnografia" — são enunciados pelos próprios índios, desejosos da proteção militar e da salvação de suas almas, oferecidas pela aliança franco-tupi.

Em segundo lugar, os capucinhos foram detentores da herança cultural das relações franco-tupi, estritamente relacionadas ao projeto político e econômico aplicado ao Brasil, baseado na aliança amigável. A penetração dos franceses no tecido social indígena foi uma das condições essenciais dessa aliança, visando, como vimos, garantir, num primeiro momento, a eficácia das relações comerciais.

Foram essas relações, inerentes à prática do escambo, que tornaram possível o emprego pelos franceses de uma mão-de-obra benévola para o carregamento dos navios. Um comércio da amplitude do de pau-brasil teria sido, com efeito, impraticável sem a cooperação sistemática dos índios. Com efeito, a precocidade e a importância do tráfico de pau-brasil contribuiu fortemente para a formação de um modelo de relação comercial, que foi também aplicado no Canadá e onde garantiu a predominância francesa no tráfico de peles, no mesmo momento (Dickason, 1984).

Não se pode dizer, no entanto, que os capuchinos do Maranhão tenham sido vítimas dos efeitos "perversos" do fenômeno de "endotismo" dos truchements franceses. Mas eles souberam muito bem adaptar o seu apostolado a uma realidade humana e natural cujos códigos relacionais já haviam sido estabelecidos previamente.

Em terceiro lugar, os capuchinhos foram também representantes das tendências da teologia missionária da época, que pregava o uso exclusivo da persuasão gentil (persuasion douce).

É precisamente num quadro de apologia da predicação gentil — e, por extensão, da colonização não violenta — que deve ser encarada a condenação de Claude d'Abbeville às "crueldades" cometidas pelos portugueses contra os índios. No interior da predicação considerada "moderna", a gentileza pregada pelos capuchinhos é também o fruto de uma lusofobia implicada no sistema de alianças com os índios que favorecia o modelo econômico francês no Brasil.

Mas o uso da gentileza como método evangélico induz traços originais na tática empregada pelos capuchinhos na conversão dos Tupinambá: a conversão gentil se expressa, antes de mais nada, por uma tomada de consciência dos futuros conversos que constitui a própria essência da instrução visada pelos missionários.

Exemplo disso é a predicação feita pelos capuchinhos na vila de Juniparanan, onde os missionários prescreveram alguns dias para deixar aos índios "a livre escolha de receber a marca e o caráter de verdadeiros filhos de Deus [ ], para deixar-lhes o tempo de sonhar com isso e a liberdade de disporem-se a tanto" (Claude d'Abbeville, 1614, p. 114, tradução minha).35 35 "[ ] le libre choix de recevoir la marque et le caractère des vrays enfans de Dieu [ ], pour leur laisser le temps d'y songer, et le loisir de s'y bien disposer". Não se trata, nesse caso, de atribuir ao índio a livre escolha de sua salvação, mas trata-se da ilustração, por parte do padre Claude, da passagem voluntária da inconsciência, da inocência e da ignorância à consciência, à razão e à fé, como o próprio fundamento da conversão das almas indígenas. Em seu relato, Claude d'Abbeville se esmera em dar a palavra ao índio para que ele enuncie, na sua própria língua, a verdade da Revelação e para que a conversão — da infidelidade à fé, do costume à lei, da língua tupi à língua francesa — se renove, a cada vez, aos olhos do leitor cristão.

Os três aspectos apontados aqui — a autópsia de uma primeira "etnografia" francesa, a herança cultural das relações amigáveis franco-tupi e a predicação gentil — são manifestos numa passagem notável do relato de Claude d'Abbeville que diz respeito aos costumes indígenas:

[ ] não obstante o antigo costume que têm de furar o lábio, de arrancar a barba e de pintar o corpo, entre outros, eles [Tupinambá] foram chamados à razão com o que os fizemos ouvir. Entretanto, não os pressionamos de tão perto e nem os importunamos sobre assuntos como estes. Pois, sendo esses costumes indiferentes à fé e não nos impedindo de lhes dar o batismo, contentamo-nos em lhes dizer somente que, quanto a isso, os deixávamos livres e que não nos preocupávamos com isso.

Ao contrário, dissemo-lhes, se quereis ainda furar as bochechas e as narinas assim como a boca, furai-as de todos os lados e estaremos contentes com isso; e até mesmo se desejareis pintar o corpo, faremos vir belas tintas da França que não há em vosso país, para que fiqueis mais belos e vos pintais mais ainda. Mas se quiserdes crer em nosso conselho, fareis como nós. (Claude d'Abbeville, 1614, p. 314vº, tradução minha).

E depois de pregar no sentido de "persuadir [os Tupinambá] a deixar os seus modos de fazer", o padre Claude conclui:

É algo admirável que, falando-lhes assim gentilmente e amigavelmente, fazendo-os ver minuciosamente que aquilo com o que estavam acostumados não era bem, isso os fazia entrar em si mesmos [sic]. De tal forma que, atraídos pela gentileza e convencidos pela razão, reconheceram imediatamente a verdade e tiraram eles mesmos [sic] esta conclusão em sua língua Aié catou, Toupan remimognen iémogan motar ypotar eum mé noroyco chuéne sese. Dizeis a verdade, Deus fez isso posto que fora necessário, no entanto se ele não o quer em absoluto, não o faremos mais. (Claude d'Abbeville, 1614, p. 314vº, tradução minha).36 36 "[ ] non obstant l'ancienne coustume qu'ils ont de percer la levre, de s'arracher la barbe, de se peindre le corps & autres, ils se mirent à la raison sur ce que nous leurs fismes entendre. Et toutefois nous ne les pressions pas de fort pres & si nous ne les importunions sur semblables suiects. Car telles coustumes estant indifferentes de foy & qu'elles n'empeschoient de leur donner le batesme, nous nous contentámes de leur dire seulement que nous les laissions pour cela à leur liberté & que nous ne nous en soucions pas. [ ] C'est une chose admirable que leur parlant ainsi doucement et amiablement, leur faisant voir par le menu que ce qu'ils avoient accoustumé n'estoit pas bien, cela leur faisaient rentrer en eux mesmes [sic]. Tellement qu'attirez par la douceur et convaincus par la raison, ils reconneurent à l'instant la vérité & tirerent eux mesmes [sic] cette conclusion, nous disant en leur langage Aié catou, Toupan remimognen iémogan motar ypotar eum mé noroyco chuéne sese. Tu dis vray, Dieu eust faict cela s'il eust esté necessaire, puis donc qu'il ne le veut point, nous ne le ferons plus."

O Tupinambá que fala, na primeira pessoa e em nome dos seus, nos relatos dos capuchinhos franceses, é o "selvagem convertível". Esta representação, ou este mito, prefigura e, sobretudo, prepara, nas primeiras décadas do século XVII, o mito do selvagem naturalmente bom.

Recebido em 14/07/2004

Aprovado em 02/08/2004

  • BERREDO, Bernardo Pereira de. Annaes Historicos do Estado do Maranhão, em que se dá noticia de seu descobrimento, e tudo mais que nelle tem sucedido desde o anno em que foi descuberto até o de 1718: offerecidos ao Augustissimo monarca d; João V. Nosso senhor, escritos por Bernado Pereira de Berredo, do Conselho de S. Magestade, Governador, e Capitão General que foy do mesmo Estado, e de Maragão Lisboa: Na officina de Francisco Luiz Ameno, 1749.
  • CAMPOS MORENO, Diogo. Jornada do Maranhão por Ordem de S. Magestade feita o anno de 1614. In: Collecção de notícias para a história e geografia das nações ultramarinas que vivem nos domínios portuguezes, ou lhes são visinhas, publicada pela Academia Real das Sciencias. Tomo I, num. I, II e III. Lisboa: Na Typographia da mesma Academia, 1812. Com licença de S. Alteza Real. p. 2-118.
  • CERTEAU, Michel de. Etno-graphie, l'oralité ou l'espace de l'autre: Léry. In: CERTEAU, Michel. L'ecriture de l'histoire Paris: Gallimard, 1975. p. 215-248.
  • CLASTRES, Helène. La Terre sans Mal: le prophétisme tupi-guarani. Paris: Seuil, 1975.
  • CLAUDE D'ABBEVILLE. Histoire de la Mission des Pères Capucins en l'Isle de Maragnan et terres circonvoisines où est traicté des singularitez admirables & des moeurs merveilleuses des Indiens habitants de ce païs Paris: François Huby, 1614.
  • DAHER, Andrea. Ecrire la langue indigène: la grammaire tupi et les catéchismes bilingues au Brésil (XVIe siècle). In: MÉLANGES de l'Ecole Française de Rome. Roma: MEFRIM, 1999. t. 111, p. 231-250.
  • DAHER, Andrea. Les Singularités de la France Equinoxiale: Histoire de la Mission des Pères Capucins au Brésil. Paris: Honoré Champion, 2002.
  • DICKASON, Patricia Olive. The Brazilian Connection: a Look at the Origin of French Techniques for Trading with Amerindians. Revue Française D'Histoire D'Outre-Mer, t. 71, n. 264, p. 129-146, 1984.
  • GARCIA, Rodolpho. Glossário das palavras e phrases da língua tupi contidas na Histoire de la Mission des Pères Capucins do padre Claude d'Abbeville. Revista do Instituto Histórico Brasileiro, Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, t. 94, v. 148, 1927.
  • HANSEN, João Adolfo. Sem F, sem L, sem R: cronistas, jesuítas e índios no século XVI. In: KOSSOVITCH, E. A. (Org.). A conquista da América Campinas: CEDES: Papirus, 1993. p. 45-55. (Cadernos CEDES, n. 30).
  • LÉRY, Jean de. Histoire d'un voyage fait en la terre du Bresil, autrement dite Amerique. Contenant la navigation, & choses remaquables, veuës sur mer par l'aucteur. [...] Reveue, corrigee, et bien augmentee en ceste seconde Edition Genève: A. Chuppin, 1580.
  • LESTRINGANT, Frank. Les débuts de la poésie latine au Brésil: le "De Rebus Gestis Mendi de Saa" (1563). In: DE VIRGILE à Jacob Balde: Hommage à Mme Andrée Thill: Etudes recueillies par Gérard Freyburger. Publication du Centre de Recherches et d'Etudes Rhénanes. Université de Haute-Alsace (diffusion: Les Belles Lettres), 1987. p. 231-245.
  • LESTRINGANT, Frank. Le Huguenot et le Sauvage Paris: Aux Amateurs des Livres, 1990.
  • MÉTRAUX, Alfred. Migrations historiques des tupi-guaranis Paris: Maisonneuve Frères, 1927.
  • MÉTRAUX, Alfred. La religion des Toupinamba et ses rapports avec celle des autres tribus Tupi-guarani Paris: Librairie Ernest-Leroux, 1928.
  • NÓBREGA, Manoel da. Diálogo sobre a conversão do gentio. In: LEITE, Serafim. Cartas dos primeiros Jesuítas do Brasil São Paulo: Comissão do IV Centenário da Cidade de SP, 1954. v. 2, p. 317-345.
  • STURTEVANT, William. La tupinambisation des Indiens d'Amérique du Nord. In: THERRIEN, G. (Org.). Les figures de l'Indien Montréal: Université du Québec à Montréal, 1988. p. 293-303.
  • YVES D'EVREUX. Suitte de l'histoire des choses plus mémorables advennues en Maragnan, ès années 1613 & 1614. Second Traité Paris: De l'Imprimerie de François Huby, ruë sainct Iacques à la Bible d'Or, & en sa boutique au Palais en la galerie des prisonniers, 1615. Avec privilege du Roy.
  • YVES D'EVREUX. Voyage dans le Nord du Brésil Paris: Librairie A. Franck, 1864. Introdução e notas por Ferdinand Denis.
  • YVES D'EVREUX. Voyage au nord du Brésil: fait en 1613 et 1614. Paris: Payot, 1985. Apresentação e notas de Hélène Clastres.
  • 1
    Léry (1580), segunda edição por Antoine Chuppin, em Genebra. Em 1585, o livro obtém uma edição ampliada, ainda em Genebra, pelo mesmo editor. A primeira edição latina do relato é de 1586 (em Genebra, por Eustache Vignon), antes de sua inserção em 1592 na
    Collection des Grands Voyages, de Théodore de Bry (
    America Tertia Pars Memorabile provinciae Brasiliae Historiam , Francfort, Theodore de Bry, 1592). Outras edições se seguem: uma edição latina em Genebra, por E. Vignon, em 1594; a quarta edição francesa surge ainda em Genebra, pelos herdeiros de E. Vignon, em 1599 (seguida de outra, datada de 1600); e a quinta e última edição francesa, dedicada à Princesa de Orange, é editada por Jean Vignon, em Genebra, em 1611. A tradução brasileira de Sérgio Milliet apresenta passagens totalmente mutiladas, o que me faz optar pela tradução direta dos trechos citados, a partir da edição de 1580.
  • 2
    [ ]
    A Anvers, Chez les heritiers de Maurice de la Porte , 1557. Avec privilege du Roy. Alguns exemplares trazem a data de 1558. Uma segunda edição foi publicada em Paris, por Christophe Plantin, em 1558.
  • 3
    Claude d'Abbeville (1614, p. 12vº). A tradução brasileira de Sérgio Milliet, tal como a de Jean de Léry, não me autoriza a citação, que opto por fazer livremente.
  • 4
    Claude d'Abbeville (1614).
  • 5
    Yves d'Evreux (1615)
  • 6
    Alfred Métraux (1927, p. 6-7) cita outras narrativas concordantes com a de Claude d'Abbeville, a fim de assegurar-se do período provável dessa primeira migração (entre 1560 e 1580), especialmente a do português Soares de Souza (
    Tratado Descriptivo do Brasil) que afirma, em 1587, que a costa atlântica, do Amazonas à Paraíba, era povoada pelos Tapuia. Essa primeira migração é a única que teve como resultado, segundo Métraux, uma nova extensão dos Tupi.
  • 7
    Duas razões essenciais levaram os índios a migrar para o Maranhão. A primeira foi a busca da "terra sem mal", o paraíso terrestre dos povos tupi. Ela foi a causa primordial de uma migração que se termina em 1609, apenas três anos da instalação da França Equinocial. A segunda foi a fuga dos índios em função do avanço dos portugueses.
  • 8
    "Première conférence avec
    Pacamont, grand sorcier de Comma: J'ai eu soin de fréquenter les Français et de les ouïr. Je sais de mes aïeux l'histoire de Noé [ ] Noé fut notre père à tous. Je sais aussi que Marie a été Mère du Toupan et qu'elle n'a été connue d'aucun homme, mais Dieu lui-même s'est fait un corps dans son ventre. Et quand il fut grand, il envoya des
    maratas, des apôtres, partout: nos pères en ont eu un dont nous avons encore des vestiges [ ]."
  • 9
    O termo "selvagem" é usado ao longo deste texto por razões de coerência com o vocabulário empregado pelos cronistas franceses para referirem-se ao índio americano. Lembremos, ainda, que a representação do Tupinambá foi generalizada, na França, recobrindo todos os selvagens americanos, desde o século XVI, como demonstra Sturtevant (1988).
  • 10
    Os colonizadores portugueses serviram-se pontualmente desses especialistas franceses da língua, costumes e geografia de certas regiões da costa. Há alguns exemplos na documentação lusa, como o relatório manuscrito que Diogo de Campos Moreno fez da primeira expedição encarregada de expulsar os franceses, onde consta que os portugueses fizeram-se guiar numa expedição de reconhecimento por um "grande piloto da costa francês", chamado pelo nome indígena de Otuimiri, sem o qual jamais teriam conseguido penetrar nas terras do Maranhão, em 1614 (cf. Campos Moreno, 1812, p. 2).
  • 11
    Sobre as variações dialetais e a fixação gráfica da língua indígena feita por Claude d'Abbevile, ver Garcia (1927).
  • 12
    "Informação do Padre Luis Figueira", conservada no
    Archivum Romanum Societatis Jesu. O padre Figueira era também um especialista notável da língua geral, autor de uma
    Arte da Grammatica da língua brasílica Lisboa, Na Officina de Miguel Deslandes 1687.
  • 13
    Colloque de l'entree ou arrivee en la terre du Bresil, entre les gens du pays nommez Tououpinambauoults, & Toupinenkins en langage Sauvage & François: "[ce colloque] fut fait au temps que j'estois en l'Amérique à l'aide d'un truchement: lequel non seulement pour y avoir demeuré sept ou huit ans, entendoit parfaitement le langage des gens du pays, aussi parce qu'il avait bien estudié, mesme en la langue Grecque, de laquelle (ainsi que ceux qui l'entendent ont jà peu voir ci-dessus) cette nation des Tououpinambaoult a quelques mots, il le pouvoit mieux expliquer".
  • 14
    Ce qu'on peut appeler religion entre les Sauuages Ameriquains: des erreurs, ou certains abuseurs qu'ils ont entr'eux nommez Caraibes les detiennent: & de la grande ignorance de Dieu où ils sont plongez.
  • 15
    "[ ] quant à ce qui concerne la beatitude & felicité eternelle [ ] nonbstant les sentiments que i'ay dit, qu'ils [les Tupinamba] en ont: c'est vn peuple maudit & delaissé de Dieu, s'il y en a un autre sous le ciel [ ], il semble qu'il y a plus d'apparence de conclure qu'ils soyent descendus de Cham [ ]: il pourrait être aduenu (ce que ie di sous correction) que les Maieurs & ancestres de nos Ameriquains, ayans esté chassez par les enfans d'Israel de quelques contrees de ce pays de Chanaan, s'estan mis dans des vaisseaux à la merci de la mer, auroyent esté iettez & seroient abordez en ceste terre d'Amerique."
  • 16
    Somente a partir de 1580, a atitude anticolonialista que caracterizava o partido huguenote francês — que caracteriza o pessimismo radical de Léry quanto às possibilidades de conversão dos Tupinambá — muda radicalmente no sentido da possibilidade de constituição de uma política colonial, com fins comerciais e em nome do livre exercícios da religião reformada (Lestringant, 1990, p. 126-132).
  • 17
    "Tououpinambaoult. —
    Ere-ioubé? Es-tu venu? François —
    Pa-aiout. Ouy, je suis venu.T. —
    Teh! auge-ny-po. Voilà bien dit. T. —
    Mara-pé-déréré? Comment te nommes-tu? F. —
    Lery-oussou. Une grosse huitre."
  • 18
    "[ ] quelques Truchements de Normandie, Qui aoyent demeuré huict ou neuf ans en ce pays-la, pour s'acommoder à eux, menans une vie d'Atheistes, ne se polluoyent pas seulement en toute sortes de paillardises & vilenies parmi les femmes & les filles, [ ] mais aussi surpassans les sauvages en inhumanité, i'en ay ouy q se vantoyent d'avoir tué &mangé des prisonniers".
  • 19
    "[nous] frequentions, mangions & beuvions parmi les Sauvages, lesquels sans comparaison nous furent plus humains que celuy [Villegaignon] lequel sans luy avoir meffait ne nous peut souffrir avec luy".
  • 20
    "vaincre ledit vieillard & contenter les autres Indiens".
  • 21
    "pour faire leurs jardins & pour accomoder toutes choses qui leur sont necessaires".
  • 22
    "[ ] depuis que tu les connois, as tu jamais veu qu'ils ayent fait aucune chose que ce soit pour s'establir icy, en la maniere que tu confesse que les
    Pero ont fait à
    Fernambourg &
    Potyiou? Ils ne l'ont pas fait, tu le sçay bien, & ne le feront jamais, n'estant en leur puissance de rien faire contre leur bon naturel, qui ne les porte qu'à toute sorte de biens & de douceur. Penses tu qu'il y aye nation au monde qui s'approche de la bonté des François? Non, non. La raison est que les François sont les premiers nays de l'Eglise, & les vrais enfans que le grande
    Toupan a choisi des premiers pour leur donner sa loy, aussi ont ils esté des premiers à l'enseigneer aux autres. Les
    Pero comme les autres nations, ne l'ont receuë que longemps apres eux; tellement qu'ils sont encore jeunes, & ne sont si bien instruits que les François. Les
    Pay mesme qui sont entre eux, ne sont encore qu'apprentifs des vrais Pay; & n'observent pas si bien les choses que le grand Toupan enseigne, comme ils font."
  • 23
    "S'il y a nation au monde portée à faire bon accueil à ses amis nouvellement arrivés, à les recevoir dans les maisons pour les traiter aussi bien que possible, les Tapinambos envers les Français doivent tenir le premier rang [ ]."
  • 24
    "Voilà les navires de France qui viennent, se dit le sauvage, je ferai un bon compère: il me donnera des haches, des serpes, des couteaux, des épées et des vêtements; je lui donnerai ma fille, j'irai à la chasse et á la pêche pour lui, je ferai force cotons, je chercherai des aigrettes et de l'ambre pour lui donner [ ]."
  • 25
    É isso que postulava Nóbrega (1954, p. 318), quando previa a graça de que devia ser dotado todo conversor para o domínio a língua.
  • 26
    O capítulo se intitula
    Formulaire des Harangues que nous faisions aux Sauvages quand ils nous venoient voir, pour les attirer a la cognoissance de nostre Dieu, & à l'obeissance de nostre Roy.
  • 27
    "[ ] fruicts & esmolumens qu'ils devoient attendre de nostre amitié, à sçavoir la reformation de leur vie & la connoissance du vrai Dieu & en outre la defence de nostre Roy contre leurs ennemis".
  • 28
    "Ils ne doutoient aucunement qu'ils n'aprissent de grandes choses de Dieu, specialement quand nous [les Pères] sçaurions bien leur langue, Car, disoient-ils, les Truchements n'ont point parlé à Dieu comme vous. Ils ne peuvent dire autre chose que ce que vous leurs dittes: mais si vous parliez à nous, vous nous diriez ce que Dieu vous a dit. Nos enfants seront plus heureux que nous: car ils pourront apprendre la langue Française de vous, ainsi que vous nous avez promis [ ]."
  • 29
    Infelizmente, esses capítulos não aparecem na edição que Hélène Clastres fez do relato do padre Yves. Trata-se dos capítulos de I a V do segundo tratado (Yves d'Evreux, 1864, p. 227-263).
  • 30
    Formulaire de la Doctrinne Chrestienne, laquelle les Cathecumenes apprennoient & recitoient par coeur avant d'estre baptisez. À leitura desse capítulo, toda uma série de termos traduzidos em tupi aparecem como neologismos criados em função das necessidades dos conversores e segundo a interpretação destes para o universo mental tupinambá. É o caso dos termos que significam o diabo (
    jurupari), batismo (
    iemongaraïve), bispo (
    Karaive), penitência (
    oyekoacouvuve), confissão (
    oyembeou), etc. Para uma melhor compreensão dos termos indígenas contidos na obra do capuchinho Claude, consulte-se Rodolpho Garcia (1927).
  • 31
    "Le lecteur doit être averti qu'il est aisé de représenter par écrit les paroles et le discours de ce Sauvage — dit le P. Yves sur le chef d'Oroboutin —, mais non par les gestes et la vivacité d'esprit avec lesquels il m'entretenait: je puis dire seulement que ses discours étaient accompagnés de larmes et d'une voix pleine de ferveur et de dévotion, par laquelle il me faisait voir qu'il était touché par le Saint-Esprit, et avait un désir ardent d'être chrétien."
  • 32
    As citações em latim ou italiano, no relato de Claude d'Abbeville, são impressas também em itálico.
  • 33
    "Monseigneur l'Evesques de Paris commença les interogations du Baptesme qu'à chaques fois je leur fasois entendre en leur langue ausquelles ils respondaient eux mesmes, puis ils dirent le Pater noster, l'Ave Maria & le Credo aussi en leur langue."
  • 34
    Harangue faicte au Roy en presence de la reyne Regente sa Mere par Itapoucou du depuis nommé Louys Marie au nom des Maragnans: "Grand Monarque, tu as eu agreable de nous envoyer des grands personnages avec des Prophetes pour nous enseigner la Loy de Dieu & nous maintenir contre nos ennemis. A iamais nous t'en serons redevables: d'autant que iusques à present nous avons mené une vie miserable, sans loy & sans foy, nous entremangeans les uns les autres. I'admire ta grandeur te voyant le Monarque d'une telle nation et d'un si grande païs. Et suis honteux de me presenter icy devant toy, reconnoissant la difference qu'il y a entre les enfans de Dieu, que vous estes, et les enfants de
    Ieropary [diable], tel que nous avons tousiour esté. Tu as bien de l'honneur de nos avoir envoyé de tels prophetes & de si braves hommes; & tu as fort bien fait, car ils n'ont pas esté inutiles. En reconnoissance de quoy les principaux de nostre païs nous ont icy envoyé au nom de toute nostre nation pour faire hommage à ta grandeur telle que nous devons, & te supplier de nous envoyer nombre desdits Prophetes pour nous faire enfans de dieu & de grands guerriers pour nous maintenir, protestants qu'à iamais nous demeurons tes subiects & tes serviteurs treshumbles & tres-fideles, & fideles amis de tous les François."
  • 35
    "[ ] le libre choix de recevoir la marque et le caractère des vrays enfans de Dieu [ ], pour leur laisser le temps d'y songer, et le loisir de s'y bien disposer".
  • 36
    "[ ] non obstant l'ancienne coustume qu'ils ont de percer la levre, de s'arracher la barbe, de se peindre le corps & autres, ils se mirent à la raison sur ce que nous leurs fismes entendre. Et toutefois nous ne les pressions pas de fort pres & si nous ne les importunions sur semblables suiects. Car telles coustumes estant indifferentes de foy & qu'elles n'empeschoient de leur donner le batesme, nous nous contentámes de leur dire seulement que nous les laissions pour cela à leur liberté & que nous ne nous en soucions pas. [ ] C'est une chose admirable que leur parlant ainsi doucement et amiablement, leur faisant voir par le menu que ce qu'ils avoient accoustumé n'estoit pas bien, cela leur faisaient rentrer en eux mesmes [sic]. Tellement qu'attirez par la douceur et convaincus par la raison, ils reconneurent à l'instant la vérité & tirerent eux mesmes [sic] cette conclusion, nous disant en leur langage
    Aié catou, Toupan remimognen iémogan motar ypotar eum mé noroyco chuéne sese. Tu dis vray, Dieu eust faict cela s'il eust esté necessaire, puis donc qu'il ne le veut point, nous ne le ferons plus."
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      28 Jan 2005
    • Data do Fascículo
      Dez 2004

    Histórico

    • Aceito
      02 Ago 2004
    • Recebido
      14 Jul 2004
    Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social - IFCH-UFRGS UFRGS - Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Av. Bento Gonçalves, 9500 - Prédio 43321, sala 205-B, 91509-900 - Porto Alegre - RS - Brasil, Telefone (51) 3308-7165, Fax: +55 51 3308-6638 - Porto Alegre - RS - Brazil
    E-mail: horizontes@ufrgs.br