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A camisola do dia e o seu divino conteúdo

Resumos

Este artigo trata da dimensão simbólica das chamadas camisolas do dia, peças especiais pelo requinte de elaboração e simbolismos associados a seu uso, que era socialmente prescrito para as noivas/esposas recém-casadas (em primeiro casamento), na primeira vez que dormiam com seus noivos/maridos. A observância quase absoluta dessa prescrição, percebida como imperativa, autoriza classificar a camisola do dia como autêntica instituição social. Sua análise é contextualizada nas camadas sociais médias e superiores do Brasil nos anos 30 a 50 do século passado.

camisola do dia; casamento; noite de núpcias; simbolismo


This article is about the symbolic aspect of the so-called camisola do dia (wedding-night gown), a piece of garment of exquisite elaboration and symbolism, which first-time, just-married brides or wives were supposed to wear during their wedding night. The almost absolute observance of such custom, which was regarded as an imperative allows to the categorization of the wedding-night gown as an true social institution. Its analysis is contextualized within the Brazilian upper and upper-middle classes of the 1930s to 50s.

marriage; symbolism; wedding night; wedding-night gown


ESPAÇO ABERTO

A camisola do dia e o seu divino conteúdo

Sérgio Alves Teixeira

Universidade Federal do Rio Grande do Sul — Brasil

RESUMO

Este artigo trata da dimensão simbólica das chamadas camisolas do dia, peças especiais pelo requinte de elaboração e simbolismos associados a seu uso, que era socialmente prescrito para as noivas/esposas recém-casadas (em primeiro casamento), na primeira vez que dormiam com seus noivos/maridos. A observância quase absoluta dessa prescrição, percebida como imperativa, autoriza classificar a camisola do dia como autêntica instituição social. Sua análise é contextualizada nas camadas sociais médias e superiores do Brasil nos anos 30 a 50 do século passado.

Palavras-chave: camisola do dia, casamento, noite de núpcias, simbolismo.

ABSTRACT

This article is about the symbolic aspect of the so-called camisola do dia (wedding-night gown), a piece of garment of exquisite elaboration and symbolism, which first-time, just-married brides or wives were supposed to wear during their wedding night. The almost absolute observance of such custom, which was regarded as an imperative allows to the categorization of the wedding-night gown as an true social institution. Its analysis is contextualized within the Brazilian upper and upper-middle classes of the 1930s to 50s.

Keywords: marriage, symbolism, wedding night, wedding-night gown.

Introdução

É, talvez, na mistura de elementos puramente sensuais com elementos românticos, e nas amplas e importantes conseqüências sociológicas do que pode ser considerado o mais pessoal dos acontecimentos, é nessa riqueza e multiplicidade do amor que reside o seu mistério filosófico, o seu encanto para o poeta e o seu interesse para o antropólogo.

Bronislaw Malinowski - A Vida Sexual dos Selvagens

Este artigo trata da dimensão simbólica de um dado bem particular do casamento que, presente em grupos e em tempos diversos, será considerado a partir de sua manifestação nas camadas sociais médias e superiores do Brasil, nas décadas de 30 a 50 do século passado. Refiro-me às chamadas camisolas do dia, peças especiais pelo requinte de elaboração e simbolismos, de uso socialmente prescrito para as noivas/esposas recém-casadas1 1 Em primeiro casamento. na primeira vez que dormiam com seus noivos/maridos. A observância quase absoluta dessa prescrição, percebida como imperativa, autoriza classificar a camisola do dia como autêntica instituição social.

A abordagem do tema naqueles espaços sociais e temporais se deve a dois fatores: a) por neles ser institucional o uso da camisola do dia; b) por possibilitar a execução de uma etapa fundamental do plano de trabalho a que me propus como pesquisador individual: a obtenção de informações qualitativas, através de diálogos abertos, com os atores sociais — à época em que se deram os fatos de interesse deste estudo —, mais diretamente envolvidos no processo. Isto é, noivas, noivos e costureiras, que aqui sempre serão assim identificados. Tais informações se constituem em material estratégico para as minhas reflexões.

Se a delimitação dos mencionados espaços sociais e o ponto inicial do espaço temporal se explica pelo que já foi dito, o marco final deste requer uma explicação, ainda que sucinta. Ou seja: investigação exploratória mostrou que a instituição, que já dava sinais de esvaziamento no final dos anos 1950, desaparece nos anos 1960. O que se dá por transformações estruturais na vida das mulheres por conta, sobretudo, da ampla entrada delas no mercado de trabalho. Devido a isso, na atualidade, praticamente, ela só é conhecida com alguma consistência por parte da população com idade superior a 50 anos e daqueles mesmos estratos sociais.

Entendo lícito dizer que resulta evidente, já a partir dessas mínimas informações, e pelo fato da literatura antropológica sobre o tema ser no mínimo muito reduzida, que a camisola do dia se apresenta como instituição social mais exótica do que familiar para antropólogos e seu público. Assim, sua compreensão implica o exercício de uma orientação muito própria à investigação antropológica e bem expressa por Da Matta (1978a, p. 28, grifo do autor) quando diz que o antropólogo deve "transformar o exótico no familiar e/ou transformar o familiar em exótico".

Em conformidade com meu plano de trabalho foram realizadas 52 entrevistas,2 2 Em 2003 e 2004. com a seguinte distribuição pelos atores sociais já indicados: noivas, 45; noivos, 5; costureiras, 2. A disparidade desses números em favor das primeiras se impõe como natural por elas estarem no centro dos interesses deste trabalho.

As entrevistas com as noivas foram realizadas em 15 cidades, dos seguintes estados:3 3 Incluídas as respectivas capitais, exceto por Florianópolis e Salvador. Alagoas, Bahia, Ceará, Pernambuco, Rio Grande do Norte, Rio Grande do Sul, Rio de Janeiro e Santa Catarina.4 4 A realização das entrevistas nestes Estados se deu por facilidade operacional: no Rio Grande do Sul por eu aí residir (mais precisamente, em Porto Alegre); nos demais, aproveitando oportunidades decorrentes de viagem de carro, percorrendo perto de 12.000 km, em 50 dias. Em seu conjunto, elas casaram em 14 dos atuais 26 Estados brasileiros, distribuídos por todas as regiões do país.

As entrevistas com os noivos, que casaram em dois daqueles Estados, e com as costureiras5 5 Ambas com carreiras profissionais em Porto Alegre e uma também em Curitiba. Com atuação, respectivamente, nas décadas de 1930 a 1950 e 1940 a 1960. foram realizadas em Porto Alegre.

Exceto pelas costureiras, que foram procuradas por indicação de outras pessoas, os demais atores sociais foram contatados aleatoriamente,6 6 Exceto por três noivas e um noivo, pessoas já do meu conhecimento. a partir de minha suposição de se enquadrarem no perfil já indicado. O que se deu na maioria absoluta dos casos das pessoas abordadas: mais precisamente, 7 homens7 7 Destes, um era solteiro e um casou na década de 1960. e 52 mulheres.8 8 Destas, duas eram solteiras, duas casaram na década de 1970 e uma, imigrante polonesa, casou com um imigrante alemão, no início da década de 1940, pouco tempo após a chegada de ambos ao Brasil. Ainda assim, sucintamente informada sobre a camisola do dia, disse que no universo de suas relações, na Europa e no Brasil (com outros imigrantes), o tema era desconhecido e que ela e seu noivo já mantinham relacionamento sexual antes do casamento. Excluindo 6 noivas,9 9 Destas, quatro foram procuradas inicialmente, a meu pedido, por filhos/filhas de minhas relações e duas, sabedoras da pesquisa, por outra já entrevistada, mostraram interesse de também o ser. Isso se deu em uma pousada em São Miguel do Gostoso (RN). todas as pessoas entrevistadas foram diretamente procuradas por mim. Com exceção das costureiras e de 4 noivas, entrevistadas por telefone, as demais entrevistas se deram através de contatos diretos. Uma outra exceção nas entrevistas, como regra individuais, foi a realização de duas delas em conjunto. Elas se deram com grupos de duas e de três noivas, reunidas em festas, com resultados satisfatórios. A proximidade estimulava-as a fornecer informações e a tecer comentários.

Afim com os interesses deste estudo, as informações a seguir compõem um conjunto de dados situacionais sobre as noivas e os noivos objetos das entrevistas e suas correspondentes parcerias. Os números referem-se, respectivamente, à situação delas e deles quando do casamento.

Quanto à etnicidade, ao contrário do que se dá com os dados situacionais anteriores, os que lhes dizem respeito não comportam expressão numérica. Isto porque os numerosos elementos potencialmente mobilizáveis para compô-los não só não excluem quaisquer combinações como, emicamente, elas são operacionalizadas por avaliações marcadas pela subjetividade. Assim, não obstante, a concepção do famoso cientista Lord Kelvein de que tudo que é verdadeiro tem expressão numérica, tudo o que pode ser dito sobre tais dados, com razoável objetividade e de significativo para este estudo, é que os mesmos estão afinados com a própria etnicidade brasileira, que tem naquelas combinações e operacionalização sua característica mais marcante.12 12 Ver Teixeira (2001a).

Mais do que pela expressão numérica, é por sua abrangência geográfica e consistência de seus dados que minha amostra autoriza a pensar que ela aponta para um padrão bastante consistente e representativo do complexo camisola do dia no Brasil. Pelo que se torna desnecessária a abordagem particularizada de seus dados pelos espaços geográficos, sociais e temporais aqui considerados.

Mais do que a informação do caráter acadêmico do trabalho e de seu interesse pela dimensão simbólica do tema, dada aos possíveis entrevistados já no início de sua abordagem, a referência que sempre fazia a uma canção de Herivelto Martins e David Nasser, de 1957, justamente intitulada A Camisola do Dia,13 13 Ela integra o rico e variado repertório da música popular brasileira, é executada com boa freqüência e objeto de muitas gravações, inclusive recentes, por orquestras e intérpretes consagrados. foi determinante para atenuar ou superar desconfianças ou desinteresses iniciais em colaborarem com o estudo. Sua lembrança constituiu-se num verdadeiro "abre-te, Sésamo".14 14 Todos mostraram interesse por ela. Os que a conheciam procuravam cantarolá-la ou dizer sua letra. Os demais se interessavam em conhecê-la. Sua letra, que também subsidia o título deste trabalho e é apresentada como epígrafe de sua terceira parte, será objeto de atenção.

O mesmo procedimento também se mostrou estratégia eficaz para despertar o interesse de outras pessoas procuradas para colaborar sobre questões específicas do trabalho, bem como de outras, em torno de 20, com formação e atividades profissionais variadas, que podem ser chamadas de informantes de ocasião,15 15 Por contatá-las em ocasiões não planejadas, que se apresentavam favoráveis para meu intento. para as quais falava a respeito de meu estudo, com o intuito implícito de estimulá-las a me fornecer subsídios. Em casos mais particulares tais informantes poderão ser identificados pessoal e/ou institucionalmente. O interesse em colaborar com a pesquisa fez com que pessoas já entrevistadas me procurassem diretamente ou por telefone16 16 Diversas pessoas pediram meu telefone para possível contato com tal finalidade e/ou para saber da publicação do trabalho, com vistas à sua aquisição. para complementarem informações com dados que julgavam oportunos.

Um outro procedimento, na verdade não mais que um detalhe, mas que também se mostrou eficaz para aqueles fins, foi ressaltar meu interesse pela camisola que as noivas usavam em tempos d'antanho. Essa expressão que, pelo seu quase desuso, no mais das vezes, ensejava um certo sorriso e em algumas era repetida, de fato, revelou-se útil.

Encerrando esta parte se impõem reconhecer meu débito para com os autores de A Camisola do Dia pela contribuição importante a este estudo e agradecer a todas às outras numerosas pessoas que, sempre com boa vontade, e por vezes com ônus não pequeno, colaboraram com ele. De modo mais particular destaco as colaborações dos 52 atores sociais entrevistados, chamando a atenção para o fato de que dentre eles 17 tinham mais de 80 anos. Dos quais, cinco com mais de 90. Nominalmente agradeço às pessoas a seguir, pela colaboração mais específica. Ao casal Ivone e Milton Miguel, Rosana Fischer Dalla Lana e Flávia Iriarte, por terem cedido e autorizado a publicação de suas fotografias. À professora Telma Camargo da Silva,17 17 Informante de ocasião. da Universidade Federal de Goiás, por ter realizado, especialmente para este estudo e por iniciativa própria, fotografia da camisola do dia reproduzida mais à frente. À professora Carmem Maria Ulrich Teixeira, minha mulher que, como se deu com maioria de meus trabalhos, também me brindou neste com sua revisão redacional acompanhada, como sempre, de sugestões sobre formas e conteúdos. Por lhe dever muito mais do que isso, este trabalho é dedicado a ela.

O contexto

Eu sou eu e minhas circunstâncias.

Ortega y Gasset - Obras Completas

A fase erótica, embora seja a mais importante, é apenas uma entre as muitas em que os sexos se encontram e entram em relação um com o outro. Não pode ser estudada fora do seu contexto próprio, isto é, desligada do estatuto legal do homem e da mulher, de suas relações domésticas e da distribuição de suas funções econômicas.

Bronislaw Malinowski - A Vida Sexual dos Selvagens

Como se dá com todas as instituições sociais, a compreensão da camisola do dia como autêntica instituição social impõe considerar o contexto em que ela se insere. Assim, buscando compreendê-la, ocupar-me-ei de seu contexto com a profundidade que entendo necessária. E o faço perseguindo norma propugnada por aquele que tão exemplarmente a praticou e expressou ao dizer que "em suas observações, o antropólogo deve esforçar-se para compreender o nativo através de sua própria psicologia" (Malinowski, 1983, p. 22).

Naturalmente, nesse contexto, o casamento formal com as regras, as práticas e os valores que o envolviam ocupava posição de relevo. Tanto assim que além de ser legalmente indissolúvel18 18 O divorcio foi instituído no Brasil em 1977. Até então havia o desquite, que dissolvia a sociedade conjugal sem anular o vínculo matrimonial. Portanto, impedia um outro casamento. (o que na maioria dos casos era reforçado pela indissolubilidade de união religiosa19 19 Em particular pela Igreja Católica, da qual a imensa maioria da população era adepta e que tem na indissolubilidade matrimonial um elemento forte de sua pregação. ), o casamento definia status e papéis sociais, disciplinava importantes atividades da vida cotidiana e se constituía em norma social prescrita para todas as pessoas que apresentassem condições legais de efetivá-lo.

Embora seja evidente que tal norma atingisse homens e mulheres com forte intensidade, esta se mostrava ainda mais forte em relação a elas. E isso tem sua lógica. Numa época em que as mulheres, por questões estruturais, tinham pouca ou nenhuma ingerência mais autônoma na vida política e econômica, com efeitos correlatos importantes, como a ausência ou pouca expressão de renda própria, assim como menor escolaridade em comparação com os homens, tornavam-se muito ou totalmente dependentes deles. Daí ser conseqüente que o casamento se apresentasse para elas como caminho natural a ser seguido uma vez atingida a idade núbil. Daí também as precauções delas e de suas famílias para não só casar, como casar bem ou fazer um bom casamento, como continua a ser dito. Tais precauções se estendiam da infância até o casamento.

Thales de Azevedo (1986), num esmerado ensaio intitulado As Regras do Namoro à Antiga, com abordagem comparativa e diacrônica, porém bastante centrado nas mesmas camadas sociais do Brasil aqui consideradas e na primeira metade do século passado, chama atenção para um dado do namoro que ressalta a relevância daqueles cuidados e sua finalidade. Ele assinala que, no quadro brasileiro, normalmente cabendo aos homens a iniciativa para provocar o namoro "[ ] as moças ficam, em princípio, reduzidas a escolher apenas um entre aqueles que as provocam, já que elas não devem oferecer-se" (Azevedo, 1986, p. 67-68). Mesmo em bailes, espaços privilegiados para as preliminares e/ou consolidação de namoros,20 20 O que se deu com 24 dos casais considerados na pesquisa. a iniciativa para dançar cabia aos homens. Todavia, em insinuando-se, elas deviam agir com sutiliza para não serem percebidas como assanhadas e outras noções correlatas. Assim, já de saída, elas se encontravam em desvantagem neste "sistema de mercado", como o qualifica Goodie (1970, p. 59). Em larga medida aí radica a explicação para os cuidados antes mencionados.

Com a expectativa de oportunizar um bom casamento, esses cuidados visavam, em essência, restringir as possibilidades dos pares de namorados ou mesmo de noivos "avançarem o sinal" em termos de sexualidade e de demonstração de afeto para, assim, preservar as moças de críticas em tais questões, mesmo que falsas. A expressão consagrada universalmente21 21 E aplicável a questões de honestidade em qualquer área. de que "à mulher de César não basta ser honesta, tem que parecer honesta" e outra, mais restrita ao Brasil, segundo a qual "mulher é como espelho: pra se sujar basta o bafo", registrada por Mota (1982) em seu Adagiário Brasileiro, ilustram bem as preocupações com possíveis críticas. Tanto mais que as fofocas nessa área tinham campo fértil e efeitos que, no quadro, podiam ser devastadores.

Afora os esforços via socialização, o que incluía até o controle de literatura,22 22 Azevedo (1986, p. 113-115, grifo do autor) aborda literatura voltada para a formação de moças e adolescentes, " fundado em suas virtudes morais, num valor 'interior', que justamente pressupõe o controle da sexualidade". para que as moças se autopoliciassem para não tomar/aceitar iniciativas para avançar o sinal das interdições erótico-afetivas, coisa sabidamente sujeita a falhas, recorria-se também, para o mesmo fim, a estratégias de inibição externa. O que se dava pela mobilização de pessoas tidas como de confiança,23 23 De modo especial, irmãs, primas e amigas das vigiadas. que, pela presença sistemática junto ao casal ou próxima a ele, em espaços privados ou públicos, servissem de inibidores àquele avanço. A pesquisa levantou casos de moças que, por injunções mais peculiares, chegavam a ponto de requisitar tais agentes para acompanhá-las quando estivessem com seus namorados/noivos. Sua quase onipresença em certos namoros e noivados encontra bom exemplo no caso de dois casais de noivos que, até na entrega de convites para seus próprios casamentos, foram acompanhados por eles. Isso por imposição dos pais das noivas. Como regra, os agentes que acompanhavam os casais em espaços públicos eram femininos24 24 Quando masculinos, com idade máxima em torno de dez anos. Os mais velhos resistiam a tal papel. e não mais de um.25 25 Como regra, cabia aos namorados e noivos pagar as despesas que fizessem.

Ainda que figuras institucionalizadas, esses agentes, compreensivelmente, mais do que aceitos, eram tolerados pelos casais porque, usando uma expressão atual, como disse um noivo, faziam parte do sistema. E isso tem suporte na teoria antropológica desenvolvida por Van Genepp (1978) e Turner (1974), em estudos sobre os ritos de passagem, pela qual os vigiados eram pessoas que se encontravam na liminaridade. Pois, como diz o segundo:

Os atributos de liminaridade, [ ] são necessariamente ambíguos [ ] As entidades liminares não se situam nem aqui nem lá; estão no meio entre posições atribuídas e ordenadas pela lei, pelos costumes, convenções e cerimonial .podem ser representadas como se nada possuíssem [ ] Seu comportamento é normalmente passivo e humilde [ ]. (Turner, 1974, p. 117-118).

Pelo que foi apresentado é congruente a designação popular daqueles agentes como chá-de-pêra ou doce-de-pêra26 26 Não obstante Azevedo contribuir para este trabalho, suas considerações sobre o papel do " doce-de-pêra" (Azevedo, 1986, p. 29, grifo do autor), conflita com as minhas. Considera-os alcoviteiros. e vela ou segura-vela.27 27 As primeiras com mais presença no Rio Grande do Sul e as outras nos demais estados. Metaforicamente, as primeiras por alusão ao seu pouco sabor e as últimas à sua luz que, iluminando os casais, não lhes permitia passar despercebidos. Escrevendo sobre o namoro de seus pais na década de 1940, o cronista Vieira da Cunha (2004) faz considerações afinadas com as minhas sobre tais agentes ao dizer que "rígidos costumes obrigam os namorados — quando próximos — a encontros em dias determinados, sempre sob a vigilante companhia dos infalíveis chás-de-pêra".

Como é sabido, com a cumplicidade ou não daqueles "vigias", em regra geral, havia avanços de sinal. Porém, como regra ainda mais generalizada, sem avançar no mais enfático deles: o que interditava a violação da virgindade.

Por conta de potenciais avanços, favorecidos por namoros múltiplos, as moças mais namoradeiras, assim como os rapazes mais namoradores, despertavam desconfianças. Afim com tal juízo, ambos recebiam marcas negativas, sendo a delas mais forte, em conformidade com a moral sexual dualista que, enquanto liberava ou mesmo estimulava a sexualidade masculina constrangia a feminina, o que se manifestava desde muito cedo no processo de socialização, de modo mais ou menos direto. Os casos a seguir ilustram bem os fatos.

1) Um homem que pediu para um empregado de sua fazenda mostrar para dois meninos seus sobrinhos uma égua em processo de cobertura, e repreendeu-o por não ter evitado que a mesma cena fosse observada por sua filha e duas sobrinhas.

2) Três colégios femininos (em três Estados), pertencentes à ordem religiosas distintas, quando contando com a colaboração de professoras leigas no curso primário, não admitirem que elas fossem casadas ou com gravidez já aparente.

Moças namoradeiras eram genericamente rotuladas como sapecas, safadas, levadas, da pá virada, estouvadas, sovadas, tornavam-se faladas ou, mais claramente, mal-faladas. O mesmo se dava com outras que, por certos dados de suas trajetórias de namoradeiras, eram rotuladas individualmente. Tais são os casos de uma Marlene Artilharia, uma Verinha dos Cadetes e uma Regina Bisturi.28 28 Respectivamente, por namorarem alunos do curso de artilharia do Centro de Preparação de Oficiais da Reserva (CPOR), em Porto Alegre, cadetes do Exército em Campinas e estudantes de medicina em Recife. A esses rótulos podia-se agregar outro que, embora com rudeza, no essencial, sintetizava todos eles: mansas de baixo. Essa expressão resultava da ressemantização de uma outra, do regionalismo gaúcho, relativa à doma de cavalos para montaria: "amansar de baixo — tirar todas as cócegas do animal29 29 Manipulando seu corpo, com ênfase nas partes inferiores mais sensíveis ao toque, como entre as pernas traseiras. que vai ser domado, antes de montá-lo", registrada por Nunes e Nunes (1990) em seu Dicionário do Regionalismo do Rio Grande do Sul. Assim amansado, o animal pode ser manejado com facilidade e montado para a doma sem oferecer maiores resistências. Como se vê, o rótulo se auto-explica. O que, aliás, foi expressado com felicidade por uma noiva ao dizer que seus pais recomendavam para a ela, suas irmãs e uma sobrinha que morava com eles que "não trocassem de namorados como quem troca de roupa, para não falarem que elas já eram mansas de baixo, que qualquer um podia passar as mãos" (grifo meu).

Esta variedade de rótulos, por si, já se constituía em bom indicador da freqüência dos avanços de sinais que eles traziam à cena, e da preocupação com os mesmos.

As acusações implícitas nos rótulos, também por si, levantavam suspeitas e podiam inclusive desqualificar suas vítimas não só para um bom casamento como até mesmo para o casamento. Tanto mais que se acreditava, com certa dose de veracidade, que essa rotulagem predispunha os homens mais namoradores e tidos como pouco confiáveis a procurá-las com a idéia preconcebida de, com sucesso, avançar os sinais sem se comprometer com um futuro casamento. Note-se que este se apresentava como um bom caminho para os homens afirmarem a virilidade que lhes era individual e socialmente cobrada.

Embora sem a mesma nitidez dos rótulos atribuídos às namoradeiras, os namoradores também eram genericamente rotulados como mal intencionados, não respeitadores, aproveitadores e, portanto, também como falados/mal-falados. Havia a suposição de que, experientes por suas biografias, também buscavam se aproximar de moças sérias e interessadas em casar para delas igualmente se aproveitarem. Disso resultava em relação a eles uma certa cautela, maior do a usual, por parte daquelas e de suas famílias. As moças hesitavam em namorá-los, as famílias em aprovar o namoro, pelo risco potencial de terem suas imagens maculadas. Campbell (1973, p. 117), em considerações sobre os Sarakatsani, que se mostram pertinentes com este entendimento, reforça-o quando, tratando das avaliações sobre a honradez e dignidade femininas, diz que:

Nestas matérias uma mulher não pode nunca recolher-se à sua própria consciência. A sua honra depende da reputação que a comunidade está disposta a conceder-lhe, não da realidade dos fatos sempre difícil de determinar. Portanto uma mulher protege melhor a sua honra se se conformar, em todos os aspectos exteriores do seu comportamento, com um código de vergonha sexual.

Um outro dado a justificar a cautela é que, como é de regra nas acusações de desvios sociais, é difícil a concessão do benefício da dúvida e o acolhimento do princípio do in dubio pro reo. E isso tem sua lógica, pois as acusações, junto com preconceitos e discriminações que as acompanham, se constituem, por definição, em estratégias para a defesa, mais ou menos velada, de interesses de seus agentes, às custas dos acusados. Seu mecanismo é simples: simultaneamente o que é dito se passar com os acusados proclama que o inverso se passa com os acusadores.30 30 Para considerações mais abrangentes sobre o tema, ver Teixeira (2001a). Assim, os espaços que se pretende negar àqueles se pretende reservar a estes. No caso, especificamente, pela negação e afirmação da honra.

Porque tais ônus podiam ser elevados para os indivíduos e suas famílias, os instrumentos do controle da sexualidade feminina não se restringiam aos institucionais, já considerados ou não. Apelava-se para um número maior, de caráter mais particular, diria mesmo, circunstancial. Cito dois casos que entendo significativos. Um pai de quatro filhas, sendo uma casada e as outras solteiras, instava com aquela e seu marido para evitarem demonstração de afeto, na parte externa de sua residência ou próxima a ela, porque, talvez, quem os visse assim não distinguisse a casada das solteiras. O outro caso é o de um pai que, com dificuldades financeiras para manter duas filhas adolescentes no colégio particular feminino em que estudavam, afastou-as dos estudos por todo um ano, para não matriculá-las em estabelecimento público, onde as classes eram mistas.

Desconsiderada a questão de sua intencionalidade ou circunstâncias, Azevedo (1986, p. 58) destaca um dado que minimiza a possibilidade de acusações na área em apreço, quando diz que:

Um motivo de orgulho e mesmo uma prova de dignidade para a mulher é haver casado com seu primeiro namorado, o que significa que não dividiu sua afeição com outro. Esse é, por assim dizer, um atributo moral da virgindade e da castidade perfeitas e um elemento da monogamia.

A propósito, 17 noivas e 2 noivos informaram, respectivamente, haver casado com o primeiro namorado31 31 Das quais, seis disseram que hoje pensam que talvez teria sido melhor ter tido outras experiências, sete ressaltaram o fato como positivo e oito não fizeram comentários. O que, aliás, não foi solicitado a nenhuma delas. e que foram os primeiros namorados32 32 Ambos mostraram-se satisfeitos com o fato. Um ressaltou que "foi bom por ser certo que ninguém tirou casquinha dela". de suas esposas. Três dessas noivas disseram que até casarem não sabiam quase nada de sexo. Sendo que uma disse que "era mesmo uma babaca".

Pelas razões expostas na abertura desta parte, a norma social que recomendava o casamento a todos os aptos era mais enfática em relação às mulheres. Daí ser compreensível a maior preocupação delas e com elas para preservar a virgindade, tida como atributo necessário para casar, observando os cânones que lhes eram próprios. Compreensível também era a posição de inferioridade que atingia as que não conservavam aquele atributo e/ou não casavam.

Não casar, independentemente das razões, sempre se constituía em ônus para as mulheres. De imediato será considerada a situação das que se mantiveram virgens e solteiras. Mais adiante tratarei das que não casaram por não terem preservado a virgindade.

Mais do que o status de solteiras, elas carregavam o estigma de solteironas. O divisor entre uma situação e outra, naturalmente impreciso, situava-se em torno dos trinta anos de idade. Prenunciando a passagem e ressaltando sua negatividade, era comum dizer que elas "já estavam passando"; "já não cozinhavam na primeira fervura". Configurada a situação, também era comum se referirem a elas com expressões do tipo "já tinham passado" ou "tinham ficado para titia."

Em geral morando na casa paterna até a morte dos pais, era usual que depois viessem a morar com algum parente próximo, em especial irmão ou irmã casada. Quando isso se dava por falta de outras alternativas havia uma forte tendência do acolhimento ser considerado pelos dois lados como não exatamente espontâneo. Situação que fazia com que, numa espécie de compensação, elas assumissem tarefas e papéis não necessariamente agradáveis para elas e/ou todo o pessoal da casa. Dentre as coisas que comumente se/lhes atribuíam constavam a responsabilidade por trabalhos domésticos diversos e agradar, obedecer e fiscalizar jovens da casa. Nos namoros de sobrinhos/sobrinhas podiam agir como tias boas ou más, pela cumplicidade ou severidade com eles/elas. A tais desconfortos podiam se somar ofensas como serem rotuladas de recalcadas e de histéricas, por não terem casado e (presumidamente) não terem vida sexual.

A ida para o convento ou a aceitação de quase qualquer chance de casamento, a chamada tábua de salvação, se constituíam nas quase únicas alternativas para elas se livrarem de tal situação. Por tudo isso era impensável uma canção que exaltasse a vida da solteira como se dava com a do solteiro, em relação a seus respectivos opostos, como no samba justamente intitulado Solteiro é Melhor, de Rubens Soares e Felisberto Silva, de 1939.

Como já visto, mesmo avançando os sinais das interdições erótico-afetivas, os casais de namorados/noivos respeitavam, em regra geral, o que interditava a violação da virgindade. A razão para tal é simples: o valor simbólico atribuído à virgindade, no quadro das expectativas sociais em relação às mulheres, em que o casamento se apresentava como meta maior. Dentre outros pesquisadores, Azevedo (1986) e Motta (1998) contribuem com o tema. O primeiro, teorizando, diz que

o controle exercido sobre a díade heterossexual durante o namoro tem como referência imediata a preservação da honra, da reputação, da pureza da moça representada, em última análise, pela virgindade como supremo bem de troca para o matrimônio na família burguesa. (Azevedo, 1986, p. 43).

Já a segunda, com dados etnográficos, colhidos em pesquisa centrada na vida sexual e afetiva de mulheres com idade superior a 60 anos, na maior parte viúvas, que haviam casado na mesma época das noivas aqui consideradas, porém de condição social um pouco inferior. Por emblemáticas, reproduzo manifestações de duas de suas entrevistadas.

1) [ ] (os namorados) iam pra praça e sentavam um do lado do outro. No máximo dava pra pegar a mão (Após indicar por gestos que tinha vontade de transar) É! Tem umas que faziam mesmo assim. Iam levar o namorado no portão e faziam ali mesmo no meio das pernas. Até virgens! Casavam grávidas e virgens!33 33 Ouvido um médico a respeito, ele informou que tal é possível, e com registro na literatura médica, desde que com ejaculação no intróito vaginal. 2) No meu tempo, a mocidade era muito mais romântica. Agora é só dar uma namoradinha e já trepa. Num dia beija, no outro já monta. Antes tinha de esperar Coisa mais linda Minha mãe dizia para a gente: "Deixa pegar na mão, beija, bituca, mas não deixa pegar na fruta" E nós namorava, beijava, bitucava, como ela dizia, mas não deixava pegar na fruta! (Motta, 1998, p. 96-97).

Embora eu não tenha apresentado a questão de modo direto,34 34 Em muitos casos nem indiretamente. Bastava perguntar pela camisola e elas falavam. Nos demais me referia à letra da canção que a tem por tema, para falarem. todos os noivos e noivas, exceto dois deles e sete delas, disseram explicitamente ou indicaram que suas noivas e elas próprias chegaram virgens ao casamento. Das exceções, os noivos nada informaram, o mesmo se dando com cinco noivas. Das outras, uma, se reconhecendo como exceção, disse "já ter deitado com o noivo, mas bem perto do casamento" e a outra informou que "pensando bem, eu acho que eu era semivirgem(?)". Chamo a atenção para três noivas que ressaltaram que mesmo não tendo casado usando vestido de noiva35 35 Por luto recente na família, por dificuldades financeiras e por não ter tido casamento religioso. poderiam tê-lo feito, por serem virgens. Uma delas enfatizou sua virgindade dizendo que era "filha de Maria".36 36 Título ostentado pelas moças solteiras — por definição tidas por virgens — que integravam a Congregação Mariana, da Igreja Católica, voltada para o culto à Virgem Maria. Acrescente-se que para esta religião, amplamente dominante no Brasil na epoca, o relacionamento sexual fora do casamento se constitue em grave pecado. Após uma pausa ainda acrescentou que "era impensável uma moça não virgem ser filha de Maria". Constantino (2004), narra um episódio significativo a respeito da virgindade como legitimadora para o uso do vestido de noiva. Trata-se da frustração de meninas com idades em torno dos 12 anos, que na década de 193037 37 Embora o texto não o indique, esse dado me foi fornecido pela autora. prepararam uma grande festa para o casamento de dois bruxinhos de pano, ao descobrirem que "na cama cuidadosamente preparada para os noivos os dois bruxinhos dormiam sem roupas bem abraçados" (por obra de uma prima mais velha). O que impediu a realização casamento, visto que "uma noiva em tais condições não poderia usar vestido branco, com véu e grinalda de flores de laranjeira" (Constantino, 2004, p. 80-81).

Por emblemáticos, cito mais dois casos de associação da virgindade com o uso do vestido de noiva. O primeiro é o de uma noiva cujo casamento civil se deu na cidade do Rio de Janeiro e o religioso, cinco dias depois, na cidade de Salvador, na Bahia, para que seus pais pudessem assistir à cerimônia, com ela usando vestido de noiva. Declarou que para tornar isto possível ela e o noivo/marido só foram dormir juntos após o casamento religioso, o que se deu com a total compreensão deste. O segundo é o de uma mulher do Maranhão, empregada doméstica na casa de um casal de colegas de mestrado em Antropologia na Unicamp, com os quais eu estudava com regularidade, nos anos 1970. Registrei o fato dela haver falado de seu temor de, não sendo virgem e mesmo assim casar usando vestido de noiva, que seu véu e grinalda caíssem na hora do casamento na frente do sacerdote e de todos os participantes da cerimônia, como castigo por sua falta.38 38 Isso confirma fato sabido de que a virgindade como valor também tinha curso nas camadas socialmente inferiores, já na década de 1960, quando se deu o fato. Essa concepção também apareceu na pesquisa.

Um conjunto de informações mais particulares, mas significativas, levantadas na pesquisa e listadas a seguir concorrem para a credibilidade daqueles números e/ou servem de indicadores, juntamente com outros de cunho mais institucional, do peso da socialização para a preservação da virgindade e controle da sexualidade pré-nupciais.

1) Um considerável número de noivas e um noivo reportaram-se à idade do primeiro filho para indicar o ano em que casaram, acrescentando algo "como no meu tempo, naquele tempo, o primeiro filho não nascia antes de transcorridos nove meses do casamento". A propósito, algumas dessas noivas comentaram sobre mulheres que eram conhecidas por cotejarem as datas de casamento de determinados casais com as de nascimento dos respectivos primogênitos.39 39 Isso propiciou um caso de fina ironia com uma de tais mulheres quando visitava uma conhecida pelo nascimento de seu primogênito, ocorrido justamente no dia em que completava nove meses de casamento. Disse-lhe esta que se sentia tranqüila por a visitante, sabendo o dia em que ela casara, poderia atestar que no seu caso nada de indevido ocorrera.

2) Uma noiva, estudante universitária, pouco antes do casamento disse que, por honestidade com o noivo, informou-o de que já havia se masturbado. Acrescentou que ficou satisfeita por ele tê-la tranqüilizado quanto ao fato e destacado sua honestidade.

3) Três estudantes universitárias que foram aias no casamento de uma colega não cogitaram, por inimaginável para elas, que aquela havia casado grávida, como se deu, mesmo tendo percebido que ela havia engordado bastante nos poucos dias da lua-de-mel. Como estratégia para dissimular o fato, sua família, alegando uma suposta tuberculose, a enviou para o Estado de Minas Gerais, para lá se tratar, o que seria favorecido pelo seu clima. Isso já na década de 1950.40 40 Informações dadas por uma das aias, que enfatizou que para ela e as companheiras a gravidez da noiva era fato inimaginável.

4) Um noivo que ao se despedir da noiva e do futuro sogro (na residência de ambos) e ver a expressão amargurada dele e, ainda assim silenciar, ao perceber sua visível ereção (não mais do que pelo estímulo de beijos e abraços), ficou "com imensa pena dele, envergonhado, quase com remorso", não por assim ser pilhado nem pelo que fez, mas por senti-lo tão profundamente atingido pelo fato que remetia à honra de sua filha e, indiretamente, também à sua, pois o noivo bem sabia de seu zelo pela castidade dela e de sua irmã.

5) Os casos de duas prostitutas virgens, que preservavam o hímen não praticando sexo vaginal. Diziam assim proceder, uma por querer "casar direito", e a outra por "se guardar para o noivo" que morava em outra cidade.41 41 Informações fornecidas por um graduado funcionário aposentado da Receia Federal, e cliente de ambas (em Belo Horizonte e Porto Alegre), quando estudante de direto e freqüentador assíduo de bordéis, na década de 1950. Acrescentou que de fato elas eram virgens e que, responsáveis pelas casas onde atuavam, sempre alertavam seus freqüentadores, que se interessavam pelas mesmas, sobre tal peculiaridade. O que aumentava o interesse por elas, inclusive como desafio, para tentar deflorá-las. Sem sucesso, pela própria experiência e de alguns amigos. Hipocrisia à parte, esse é um caso típico em que a necessidade se transforma em virtude.

6) O fato de hotéis, verdadeiramente institucionalizados como lugares para passar lua-de-mel, serem conhecidos como cemitérios das virgens. Entre outros, isto se dava com o Hotel das Hortênsias,42 42 Ainda existente. em Gramado, no Rio Grande do Sul, e com o Grande Hotel Tavares Corrêa, em Garanhuns, em Pernambuco.

Como próprio às normas sociais importantes, a preservação da virgindade também era estimulada por um sistema de recompensas e penalidades institucionalizadas, de aplicação majoritariamente ad hoc. O que se dava, respectivamente, para as que preservavam ou não a virgindade, pela qualificação ou desqualificação de base para o casamento tido, pelo consenso geral, como desejável e para uma reputação com a marca da respeitabilidade.

Como as recompensas se evidenciam por si, vejamos o que se passava, em essência, com as penalidades. No campo das coisas mais práticas elas se constituíam em obstáculos de difícil transposição para o casamento desejável e, por vezes, para qualquer outro. Tanto que, ainda assim ocorrendo o casamento, era passível de anulação, por "erro essencial quanto à pessoa do outro cônjuge". Isso consta no artigo 218, do Código Civil, que vigorou até 2002. Entre os erros essenciais listados encontra-se, no inciso IV, "o defloramento da mulher, ignorado pelo marido". Se em algumas das tentativas de anulação do casamento sob tal alegação os autores foram bem sucedidos, em outras eles passaram pelo constrangimento de terem-na refutada por perícia médica, procedimento obrigatório nesse tipo de processo. Esse foi o caso de um fazendeiro, em Minas Gerais, na década de 1940 que, suspeitando da virgindade de sua esposa na noite de núpcias na fazenda a humilhou "vestida só com a camisola" (do dia), acusando-a de tê-lo enganado. Tudo isto na frente de seus empregados e respectivos familiares, convocados por ele para testemunharem sua reação àquele ultraje. A humilhação continuou logo ao clarear do dia seguinte, com ele levando a mulher à casa dos pais dela, em pequena cidade próxima, para, com alarde, devolvê-la para eles. Instalado o processo de anulação do casamento e constatada, por perícia médica, a improcedência da acusação, o marido buscou e obteve reconciliação. O que se deu após ele ser duramente admoestado pelo médico que procedeu à perícia e pessoa de prestígio na cidade. Como o caso tornou-se de conhecimento público, durante muito tempo o marido enfrentou o desconforto da situação. Talvez a crítica que mais o atingiu, pela larga circulação entre as pessoas que o conheciam, foi a de que ele "não entendia nada de mulher".43 43 Todas as informações sobre o caso foram dadas por uma das noivas entrevistadas, e prima da esposa em questão.

Um outro obstáculo para o casamento de não-virgens era a crítica social que recaía sobre os homens que casavam com elas. Eram suspeitos de haver casado em troca de vantagem material (o que não era incomum) e expostos ao deboche público, por rótulos grosseiros como pedreiro, tapa-buraco, comedor de restos. Deboches também grosseiros atingiam as não-virgens, rotuladas, em especial pelos homens, de comidas, descabaçadas, destapadas, furadas, fodidas, mulheres, rompidas, trepadas. As mulheres, que também não lhes eram condescendentes, as rotulavam como depravadas, imorais, imundas, nojentas, porcas, sujas, vagabundas. Como se vê, embora todos esses rótulos contemplassem a noção de impureza moral, os empregados pelas mulheres remetiam mais diretamente à noção de sujeira. Todavia, como é inerente à vida social, as nuances aqui também se faziam presentes, com os homens empregando os mesmos rótulos utilizados por elas para rotular as mulheres que lhes eram próximas por parentesco, com destaque para filhas e irmãs. Uma outra nuance neste quadro de rotulagens e acusações, feitas por homens e mulheres às mulheres que lhes eram próximas por parentesco, é que isso se dava no âmbito restrito das respectivas famílias. Logicamente, o contrário se dava quando os alvos das críticas eram outras mulheres. As razões para tudo isso se mostrarão evidentes mais à frente.

Sendo correta essa correlação, é conseqüente pensar que ela se apresenta afinada com o entendimento de Mary Douglas (1976), para quem "sujeira é algo fora do seu lugar." Daí ela concluir que:

Sujeira, então, não é nunca um acontecimento único, isolado. Onde há sujeira há sistema. Sujeira é um subproduto de uma ordenação e classificação sistemática de coisas, na medida em que a ordem implique em rejeitar elementos inapropriados. Esta idéia de sujeira leva-nos diretamente ao campo do simbolismo e promete uma ligação com sistemas mais obviamente simbólicos de pureza. (Douglas, 1976, p. 50).

Como aqueles rótulos põem em primeiro plano fatos que se deram fora do lugar socialmente programado para eles — o casamento legal — a associação entre solteiras não-virgens e sujeira, neles implícita, é coerente. Assim como a reação do ordenamento social à quebra daquela programação.

Uma análise mais acurada daqueles rótulos revela como se dava essa reação.

Como se percebe, os rótulos mobilizados pelos homens em relação às mulheres que não lhes eram próximas por parentesco ressaltavam um estado que as desqualificavam duplamente. Primeiro para o chamado bom casamento ou mesmo para o casamento. Segundo por proclamá-las de instrumentos de afirmação real e/ou potencial de virilidade. Essa potencialidade baseava-se numa suposição e num dado bastante real. A suposição está bem expressa no ditado popular de que onde passa um boi passa uma boiada. O dado real foi bem expresso por Cândido (1951, p. 309), quando disse que:

Com muito poucas exceções, a mulher que perdeu a virgindade ou consegue manter o sucedido em segredo, e tudo lhe corre bem, ou só tem três alternativas: a prostituição discreta ou, se fosse pobre, declarada; o celibato ou usm casamento arranjado.

Já os rótulos empregados em comum por mulheres e homens ressaltavam um comportamento que também desqualificava duplamente as rotuladas. Primeiro, para o casamento, como se dava no caso anterior. Segundo, para a convivência moralmente simétrica com as mulheres virtuosas e com os homens honrados que lhes eram próximos por parentesco. Essa desqualificação se dava pela materialização do enunciado de um ditado popular, qual seja, diz-me com quem andas que te direi quem és.44 44 Sobre teorização e uso de ditados populares, refrões, etc., ver Teixeira (2001b). Consideradas impuras, o convívio com elas, por definição, era contagioso. Assim, como prevenção, elas estavam sujeitas a uma série de medidas de caráter mais ou menos impositivo, no geral institucionalizadas. As mais comuns eram o isolamento, a negativa de convívio social mais amplo, a incompatibilidade para o exercício de atividades profissionais que exigissem boa reputação,45 45 Como três professoras que foram demitidas/coagidas a se demitir. a expulsão de casa, a coação para casamentos arranjados. O que não excluía a possibilidade de agressões verbais e/ou físicas.

Em casos esporádicos, a mulher que perdia a virgindade via no suicídio a única saída para enfrentar fortes constrangimentos desencadeados pelo sentimento de culpa, pela negativa do parceiro em assumir suas responsabilidaddes e/ou pelas reações familiares e públicas.

O sepultamento de uma tal suicida em esquife branco pôs em primeiro plano uma interessante questão simbólica, pelos intensos comentários que suscitou na pequena cidade onde o fato ocorreu, no final dos anos 1930. O uso de urna funerária branca era, de modo institucional, reservado para crianças e jovens virgens.46 46 Registrei na pesquisa o caso de uma mulher que morreu com idade aproximada de 80 anos e que foi enterrada em tal tipo de urna, atendendo a seu desejo, por ser virgem. Enfatizando a virgindade/pureza, estas eram vestidas de branco.

Afim com a noção de sujeira antes enfocada, é conseqüente dizer que o casamento com mulher limpa, isto é, virgem, também visava à prevenção do aparecimento de sujeira no seu desenrolar, por conta de possível relação extraconjugal da mulher. Ainda uma vez, recorro a Azevedo (1986, p. 71), transcrevendo o que tão judiciosamente ele escreveu a respeito de tal cautela:

Os namorados e os noivos, muitas vezes, tomam como razão para romperem seu compromisso o fato de sua namorada ou noiva se ter prestado ou acedido em ter relações sexuais com eles mesmos; supõe-se que isto é um indício de experiências anteriores não-confessadas ou, pelo menos, de "facilidade em oferecer-se" e de prevaricar no casamento.

Tendo presente que o trato com situações e pessoas com a marca de ambigüidade, pela imprecisão que lhes é inerente, recomenda um certo acautelamento, tal rompimento não era destituído de lógica.

Dois consagrados autores, não só de distintas áreas de estudos como com preocupações igualmente diferentes, também contribuem para a compreensão dessa mesma lógica.

Um é o antropólogo Pitt-Rivers (1973), que, reportando-se à questão no contexto mais particular da Andaluzia, Espanha, faz considerações compatíveis, no essencial, com o caso em foco. Diz ele que:

A hombridade de um marido deve manifestar-se sobretudo na defesa da honra de sua mulher, de que a sua própria honra depende. O adultério da mulher representa portanto não só um infração aos direitos do marido mas a demonstração de que este não esteve à altura de seus deveres. (Pitt-Rivers, 1973, p. 34).

O outro é o psicólogo Daniel Kahneman, que com pesquisas sobre o behaviorismo econômico dividiu com o economista Vernon Smith, seu parceiro de pesquisas, o Prêmio Nobel de Economia de 2002. Em entrevista concedida a Osmar Freitas Jr. e intitulada A Economia no Divã, conclui, tendo por pano de fundo a condição humana, que "alguns experimentos mostram que as pessoas dão muito maior valor àquilo que podem perder do que àquilo que podem ganhar" (Isto É, 2003).

Assim, no contexto em questão, o adultério47 47 Masculino ou feminino era motivo para desquite. Porém, era recurso pouco usado pelas esposas, pela tolerância quase institucionalizada à infidelidade dos maridos. Mesmo quando reiterada e publicamente assumida. da mulher representava mais do que grave ofensa à honra do marido, poderia significar a perda da honra dele. Frise-se, este não era só um sentimento do marido traído, mas em larga medida também um sentimento coletivo. Daí que era esperada, e mesmo estimulada socialmente, uma forte reação do ofendido para defender/recuperar sua honra. O apoio ou o opróbrio dispensado ao ofendido por reagir ou não de conformidade com o esperado se constituía em indicador seguro da pertinência de tal entendimento.

O primeiro caso tem bom exemplo nos tribunais de júri quando julgavam um responsável pela mais forte daquelas reações: o assassinato de um ou dos dois48 48 Por vezes mais. adúlteros. O apoio se materializava pelo acatamento total ou parcial da tese de legítima defesa da honra, quase que invariavelmente apresentada pela defesa.

O segundo tem bom exemplo no rótulo aplicado aos que não reagiam à ofensa: corno manso. Esta era percebida como a maior ofensa moral a um homem honrado. Pois, como disse a mesma pessoa que informou sobre as prostitutas virgens, "até um corno manso juramentado era capaz de reagir ao insulto de assim ser chamado, mais ainda se fosse em público". Acrescentou que, advogado recém-formado, participou como assistente da defesa do júri que absolveu um réu que por tal motivo assassinou o ofensor. A defesa sustentou a tese da legítima indignação em defesa da honra.

Verdadeiro (como me foi assegurado) ou não, o episódio a seguir, que ocorreu/teria ocorrido em cidade da região dos Campos de Cima da Serra, no Rio Grande Sul, no final da década de 1930, e uma anedota ilustram, de modo emblemático, no campo das representações, a questão adultério feminino/honra masculina. Antes de reproduzir o episódio e a anedota transcrevo considerações que fiz em outro trabalho sobre anedotas, pensamentos e provérbios, quais sejam:

Como veículos (que) fazem circular amplamente e quase livre de censuras, temas e idéias de interesse e/ou acatamento generalizado.

As anedotas, em permanente processo de renovação e atualização, por novas histórias e novas versões, por trazerem à luz e com naturalidade, temas e juízos que despertam ávido e geral interesse, mas mantidos na penumbra pelo controle social. Este interesse, somado à jocosidade, ironia e manifestação de certa dose de hostilidade a determinados comportamentos, gostos, etc. e a indivíduos, tipos sociais e grupos, como coisas inerentes às anedotas, asseguram tal naturalidade. Mesmo quando aqueles temas e juízos, como se dá o mais das vezes, são apresentados em linguagem livre e com forte apelo ao politicamente incorreto. (Teixeira, 2001b, p. 193).

O episódio(?). No início da noite um homem, muito nervoso e agitado, vai à casa do juiz da cidade (que é seu amigo) e relata que ao voltar do trabalho encontrou a esposa cometendo adultério em sua própria cama. O juiz, após tentar tranqüilizá-lo, dizendo que certamente ele teria atenuantes, perguntou-lhe se havia morto, ferido, ou surrado um ou os dois adúlteros. Ante as suas negativas, o juiz perguntou: "Então, ao menos, deste umas boas chifradas neles?"

A anedota. Dois amigos se encontram após longo período sem terem informações recíprocas. Perguntam e trocam informações sobre as respectivas famílias. Um, que tinha três filhas, dá detalhes sobre os bons casamentos feitos por duas delas, silenciando sobre a terceira, a mais jovem e bonita das três. Tal silêncio levou o amigo a perguntar sobre seu possível casamento. Obteve como resposta que ela foi a única que se deu mal no casamento: "Casou com um sacana, que deu pra corno manso."

Por outro lado e sem prejuízo de considerações anteriores, a perda da virgindade em certas circunstâncias, e de modo institucionalizado, podia se constituir em estratégia eficaz para superar barreiras, mesmo muito fortes, a determinados casamentos. Pois, dada a magnitude da desonra pela perda da virgindade, era freqüente que a mulher desvirginada e/ou sua família aceitassem ou mesmo pressionassem por uma união anteriormente não desejável. Mesmo com a perspectiva de sua curta duração.49 49 Mesmo considerando que a responsabilidade pela separação de direito, pelo desquite, ou de fato, como regra, fosse imputada à mulher por alguma falha e com os ônus conseqüentes. Em essência, no caso, tratava-se de avaliar o que conviria mais para o homem, sua parceira e/ou suas famílias: casar ou enfrentar os ônus por tirar/perder a virgindade. Ou, o que era menos oneroso: a desonra não reparada ou reparada por um casamento não ideal? Deve ser considerado que sendo a mulher maior de 14 e menor de 18 anos, tratava-se de sedução, definida pelo código de processo penal e passível de punição carcerária. Um estudo já considerado clássico de Martinez-Alier (2001), embora contextualizado em Cuba do século XIX, analisa bem toda essa situação, inclusive com o rapto consentido, para que o homem, desonrando a mulher pelo desvirginamento, pudesse habilitar-se a honrá-la pelo posterior casamento (Martinez-Alier, 2001, cap. 7).

Tal situação também se prestava, se não à fraude, com certeza, à sua tentativa. Na pesquisa foram levantados dois casos reais. Em um deles, a mãe da adolescente envolvida, identificando o médico que atestou a virgindade, procurou-o para tirar satisfação e, contestando seu laudo, gritava que ele "não entendia nada do assunto". Isso se passou no corredor de um hospital e foi presenciado por várias pessoas.

Expressões/palavras que integravam o léxico do desvirginamento da mulher no Brasil traziam à cena importantes questões práticas e de semântica simbólica. Refiro-me a perda/perder/se perdeu — deflorar/deflorada — fazer mal — sedução/seduzir — mau passo — deu/se entregou — virou mulher.

Uma vez que perda/perder/se perdeu, formalmente, não decorre de ato de vontade, quando muito de falta de atenção ou de cuidado, e mau passo lhe é conseqüência, examinando-se todas as outras expressões vê-se que, de modo formal, caberia responsabilidade exclusiva à mulher, por ato de vontade, somente por deu/se entregou. Logicamente, a responsabilidade pelas demais ações caberia ao homem.50 50 Ainda que correndo o risco de pecar por excesso, me permito lembrar que deflorar, fazer mal e seduzir, respectiva e literalmente, significam desfazer a flor, fazer algo moralmente errado e iludir com promessas e encantos. Porém, em termos do entendimento social, excluída a responsabilidade legal masculina em relação à mulher menor de idade — no caso de ser instaurado processo criminal — a responsabilidade pela perda da virgindade era, na concepção geral, atribuída à mulher. Inclusive, às vezes, quando se tratava de menor de idade. Tudo isso tem fortes bases estruturais, como se verá.

Um primeiro elemento desta equação, e também o mais evidente, mas, talvez, não o mais importante, era a moral sexual dualista, já considerada. O segundo diz respeito à equalização da não-virgem à sujeira, por ter tido relação sexual sem respeitar os cânones legitimadores definidos pelo ordenamento social, igualmente já considerado. Por isso, simbolicamente, ela teve o hímen violado, arrombado, e não simplesmente transposto, como se daria se houvesse respeitado a programação social. Assim, simbolicamente, ela sofreu uma espécie de mutilação ilegítima, com o agravante de ser, em termos práticos, irreversível. Os comentários que circulavam, mesmo em época bem posterior à aqui enfocada, sobre supostas restaurações cirúrgicas,51 51 Consultados dois cirurgiões plásticos e um anestesista, todos com cerca de 30 anos de atividades profissionais, disseram não saber de nenhum caso concreto e que tais comentários fazem parte do "folclore médico". Um daqueles ressaltou que, em termos técnicos, certamente seria viável um procedimento para obtenção de resultado aproximado. só ressaltavam os pesados ônus dela decorrentes. Era tal sua visibilidade moral que ela estigmatizava a mulher. Por conta do não atendimento ao programado, seu status social mudava de moça/donzela para mulher, e não para senhora/esposa, como se daria se fosse respeitada aquela programação. Isso porque ela enfrentou esta etapa do rito de passagem para fazer essa mudança de status antes de estar apta para ela. Como bem sabemos, os neófitos só são submetidos a cada uma das etapas que compõem aquele rito quando se sabe de antemão que a enfrentarão com (quase) certeza de sucesso. O rito é tão somente a oportunidade para consagrar o que, sabidamente, (acredita-se) ocorrerá52 52 Ver Teixeira (1981). . Daí o mal-estar e constrangimento que causa uma não passagem ou passagem desvirtuada, "suja", como a aqui tratada.

A camisola do dia

Como apresentado na parte anterior, sendo o casamento meta socialmente programada para todas as mulheres e, por princípio, viável para as que respeitassem determinadas normas, era natural que as "moças casadoiras", conforme expressão comum na época, e suas famílias dessem grande atenção ao enxoval, que, também por prescrição social, se constituía na contribuição mínima delas esperada para equipar o novo lar que surgia por efeito do casamento. O enxoval era composto por itens institucionalmente definidos para uso regular, como lençóis, toalhas, roupas pessoais, etc., e também por um item especial: a camisola do dia. Como é fácil perceber, é nela que se concentram os interesses deste trabalho.

Como casar era quase uma certeza, a parte do enxoval composta por peças para uso regular podia começar a ser providenciada mesmo quando as futuras esposas ainda eram crianças ou quando as moças nem tinham namorado. E por razões bem práticas: diluição de custos; maior tempo para confecção; antecipar a preparação das núbeis. Por conta disso não era incomum que desde cedo já fosse providenciado o chamado "baú da noiva", para nele guardar o enxoval em elaboração.

Já com a camisola do dia as coisas se passavam de modo bem distinto, sendo ela providenciada em período mais próximo do casamento. O que se dava por questões práticas e subjetivas. Pelo lado das coisas práticas, não podia ser elaborada enquanto a futura usuária não tivesse desenvolvimento corporal razoavelmente definido; como peça única, questões de custo e de tempo de confecção eram minimizadas. Pelo lado das subjetividades, como precaução para não ampliar possível frustração no caso do casamento desejado/programado não se efetivar. Esse entendimento foi manifestado por diversas noivas e uma costureira. Esta, como deixou claro, reproduzindo "conversas" que ouvia a respeito em seu ateliê. Uma noiva foi direto ao ponto lembrando que sua mãe, responsável pelo gerenciamento do preparo dos enxovais da informante e de suas duas irmãs, costumava dizer que "para começar a costurar as rendas (da camisola do dia), só com a certeza do sim no cartório e na igreja".

Confirmando que tudo isso se dava por conta de um padrão ideal, registrei três exceções: uma noiva entrevistada e outras duas referidas, que compraram/encomendaram todo o enxoval, incluindo o vestido de noiva e a camisola do dia, de uma só vez, em Buenos Aires, Paris e no Rio de Janeiro.

Como o enxoval era compromisso da família da noiva e dela mesma, só era aceitável a colaboração de alguém muito próximo, como madrinha/padrinho da própria. Assim, se já era inviável que a família do noivo viesse a contribuir para aquele enxoval, era fora de propósito pensar que ele viesse a ofertar a camisola do dia para sua noiva. O que se explica não por mera norma de etiqueta, mas por imperativo social de recato. Assim o verso de A Camisola do Dia que diz que eu dei de presente a ti, sem dúvida, se deve ao exercício da liberdade poética pelos autores, e para efeito de rima. Tanto mais legítimo que a poesia não tem compromissos etnográficos.

Embora até aqui sempre tenha falado em camisola do dia, de fato ela formava um conjunto com outras três peças: chambre ou négligé, sutiã e calcinha. Idealmente a noiva/esposa deveria usá-las na noite de núpcias, quando se apresentasse ao noivo/marido, para o presumível primeiro encontro íntimo entre eles. Ocasião programada para, em linguagem jurídica, a consumação do casamento. Alargando as informações, durante a lua-de-mel a camisola do dia, fazendo jus a seu nome, era usada só para aquele primeiro encontro. Para os dias seguintes havia outras camisolas, de cores distintas e também "coisa fina",53 53 Era comum que tais camisolas assim como a do dia fossem acompanhadas por combinação/saia de baixo e/ou anágua, nas mesmas cores, para uso externo posterior para evitar transparências. na expressão usada por duas noivas. Embora, mais comumente, as noivas tivessem três de tais camisolas, registrei casos de noivas com até seis dessas peças. Passado o período da lua-de-mel, ao contrário do que se dava com as outras camisolas que entravam em uso cotidiano, as do dia, como regra, eram retiradas de circulação para preservá-las54 54 A camisola do dia preservada por mais tempo que registrei o foi por 59 anos. ou, mais raramente, por incômodas.55 55 Por certos detalhes, como serem muito volumosas, com muitas rendas e até uma pequena cauda, "que se arrastava pelo chão". Nesse caso também podiam ser reformadas para uso cotidiano.

Registrei casos de camisolas que, retiradas de circulação para preservá-las, foram usadas seletivamente pelas noivas/esposas, com veremos adiante, e de outras que foram entregues/doadas a alguma filha para também preservá-las e/ou usá-las como vestido de festa, por vezes com alguma adaptação. Esse é o caso da camisola da foto a seguir. Branca, e originalmente usada em 1951, cerca de trinta anos depois quando de sua doação, ela foi tingida de cinza e usada como vestido de festa pela beneficiada.Ela preserva-a até hoje "por lembrar algo de bom" para a sua mãe56 56 Informação repassada pela professora Telma Camargo da Silva que, a meu pedido, lhe perguntou por que a preservava. .

Aliás, com formulação variada, foi esse o tipo de explicação dada pelas noivas para preservar suas próprias camisolas. Cito como exemplo a resposta de uma delas sobre o porquê de preservar sua camisola do dia: "Olha, a gente guardava a camisola e o vestido de noiva pelo mesmo motivo: pra lembrar coisas lindas, que todas as moças sonhavam viver. Eu posso dizer que vivi os meus sonhos de noiva."

Seguindo a estruturação pensada para este trabalho, questões importantes a respeito das cores daquelas outras camisolas e o uso seletivo da do dia serão desenvolvidas na próxima e última parte.

Com aquela identificação do todo pela parte sigo um critério êmico de lógica evidente: toda a atenção era colocada na camisola do dia. De fato, só ela era vista como vestindo a noiva naquele primeiro encontro. As outras peças eram percebidas como complementos. Mesmo, como era regra, se elaboradas com os requintes da camisola, como se dá com a calcinha considerada a seguir.

Tal peça, que fez parte do conjunto da camisola do dia da mãe de uma artista plástica, nos anos 1930, pelo seu requinte, foi utilizada por esta como elemento principal para criar uma instalação artística, mais precisamente uma luminária. Lamentavelmente meus esforços para reproduzir aqui uma foto de tal trabalho foram infrutíferos.57 57 Informado sobre o trabalho por pessoa de minhas relações e informante de ocasião, entrei em contato com a autora que, no primeiro momento acolheu com simpatia meu pedido. Situação que se inverteu após ela haver consultado sua mãe, sob a alegação de envolver assuntos íntimos.

Retomando as considerações a respeito da beleza e do requinte das respectivas camisolas, isso foi referido, de modo mais ou menos explícito, por quase todas as noivas. Mais ainda, ao se alongarem em comentários sobre elas expressavam sentimentos que iam da satisfação comedida ao pleno encantamento, exceto por duas. Uma, que casou em 1954, disse que por julgar a camisola artesanal e presente de sua mãe, feita por uma renomada costeira, "uma coisa muito grande", optou, poucas semanas antes da data marcada para o seu casamento, por usar uma industrializada, "mais leve e simples" e de nylon, material "que estava na moda". Preservou a primeira no enxoval e comprou a segunda, "em segredo", nunca revelado à mãe, para não desgostá-la. A outra, que casou em 1956, disse que as "mangas bufantes" de seu chambre faziam com que ela parecesse "uma princesa de filme de Drácula. Hoje seria um horror." Assim, já se percebe, tais comentários podiam ser estendidos aos chambres. O que não se deu com sutiãs e calcinhas.

A noiva das "mangas bufantes" também apresentou uma outra exceção: disse que seu noivo, na noite de núpcias, a seu pedido, usou um pijama de cetim preto, "para ficar diferente", sem fazer outras considerações. Todos os demais noivos usaram pijamas convencionais, artesanais/industriais novos e de boa qualidade.

As noivas que se alongavam em considerações sobre suas camisolas destacavam elementos gerais e particulares que julgavam importantes para acentuar seu requinte.

Dos primeiros, ressaltaram os tecidos de seda e cetim para as camisolas e, também, organdi suíço para o chambre, como regra na cor branca58 58 Registrei somente duas camisolas do dia em outras cores: azul e rosa, em tons suaves. para ambas as peças. Nesse quadro registrei uma notável exceção que, por isso mesmo, serve para confirmar a regra. Trata-se do caso de uma noiva que, morando em área rural e bastante isolada do Rio Grande do Sul, casou em 1934, aos 17 anos, usando na noite de núpcias não uma camisola do dia, mas um pijama do dia, estilo cossaco e vermelho. Informou que escolheu tal modelo por achá-lo bonito ao vê-lo em uma revista sem qualquer associação com casamento. "Simplesmente achei muito bonito", disse ela. Já o tecido, de seda francesa, comprado em pequena cidade do Uruguai, mais do que escolhido, se impôs pela falta de outras opções. Inquirida, ressaltou também que tal roupa não tinha qualquer sentido de contestação, e que sua família e noivo encararam sua escolha com naturalidade. Fica claro que, no caso, a cor vermelha também não teve a conotação a ser considerada na parte final deste trabalho.

Dos segundos, os elementos mais particulares das camisolas, e também os mais variados, chamavam a atenção para detalhes mais decorativos, como presença e tipos de caudas e bordados; materiais utilizados, com destaque para arminho, contas e rendas francesas, como a richelieu; técnicas de confecção, como o predomínio do trabalho manual e tipos de pontos empregados nas costuras, como o turco e o de sombra; estilos, como tipos de decotes e comprimento de mangas. Em síntese, gostaram de recordar de suas camisolas. Terminando uma entrevista e demonstrando esse sentimento uma noiva, casada em 1938, disse "até que foi bom falar dessas bobagens depois de tanto tempo".

A grande maioria das camisolas foi confeccionada artesanalmente ou, para ser exato, das 47 sobre as quais disponho de informações,59 59 Três noivos não souberam informar a respeito das camisolas de suas respectivas noivas. 42 foram assim produzidas, contra 5 de confecção industrial (das quais 4 foram compradas na década de 1950). Daquelas, 23 foram confeccionadas nas famílias das noivas, e 19 por costureiras. Quinze noivas tiveram participação efetiva na confecção de suas próprias camisolas.

No caso das confeccionadas artesa-nalmente, foram reiteradas as referências elogiosas às habilidades e técnicas das pessoas que executaram e/ou supervisionaram os trabalhos. O que servia também para reafirmar a beleza e o requinte das próprias camisolas do dia, ressaltando, assim, que elas exibiam duas características que lhes eram inerentes. Por conta disso uma noiva declarou que sua camisola, concebida e confeccionada por ela e uma ajudante, "era tão linda, mas tão linda mesmo, que até poderia ter casado com ela".60 60 Usando-a como vestido de noiva. Fato, aliás, que se deu realmente em Buenos Aires, Argentina61 61 País onde a camisola do dia teve histórico semelhante ao que se deu com ela no Brasil. , em 2001, com uma jovem que casou usando como vestido de noiva uma camisola do dia da década de 1930, adquirida em um brechó na mesma cidade62 62 Jorge Iriarte, meu amigo de Buenos Aires e informante de ocasião, me informou do fato e fez os contatos iniciais para a publicação da foto, da qual não tenho registro de autoria. , cuja foto, por significativa, é publicada ao lado.

Pelo que já foi dito é compreensível que as costureiras também se ocupassem em destacar a própria competência. O que fizeram de maneira explícita. Uma disse que por sua "boa fama tinha freguesia até de outras cidades". Já a outra, frisando que era modista e não costureira, declarou que "por merecer confiança fiz as camisolas para as moças de umas quantas famílias importantes". Ao se dizer modista ela chamava atenção para o diferencial que isso representava. Coisa, aliás, que algumas noivas destacaram ao falarem de suas camisolas, inclusive se confeccionadas na família, como verdadeiro trabalho de modista. A propósito, uma das noivas que falou com mais desenvoltura e encanto sobre sua camisola do dia destacou sua alegria ao abrir o pacote recebido pelo correio e ver "aquela jóia maravilhosa", presente da madrinha, feita por modista famosa do Rio de Janeiro.

Afim com isto, expressando um sentimento que entendo era comum ao conjunto das noivas, uma delas disse que usar "uma camisola do dia, bem linda, era um sonho de toda moça, uma coisa meio parecida com (usar) o vestido de noiva".63 63 O que se deu também com aquelas três noivas que não usaram vestido de noiva. Uma delas usou a camisola no trem onde passou a noite de núpcias, durante a viagem para Buenos Aires, onde passou a lua-de-mel. As duas noivas que se disseram não-virgem e semi-virgem (?) antes de casarem, ressaltaram que mesmo, no caso delas, destituídas de seu simbolismo, levaram suas camisolas do dia para a lua-de-mel. O que se deu como estratégia para não despertar desconfianças de suas respectivas famílias sobre aqueles fatos. Os noivos também informaram que esperavam que suas noivas as usassem. Destaco que o uso e estilo das camisolas independia do local programado para a noite de núpcias/lua-de-mel. Como disse uma noiva, "não importava onde, mas com quem" (passar a lua-de-mel). No caso, se apresenta como emblemático o uso do lindo conjunto formado pela camisola e chambre, que aparecem com destaque nas duas fotos publicadas no final deste estudo: usado na noite de núpcias passada em uma casa simples de madeira,64 64 No dia seguinte ao casamento. Em razão de fortes chuvas que tornaram intrafegável a estrada para lá, os recém-casados dormiram na noite seguinte ao casamento nas casas de seus respectivos pais, na cidade. de uso quase sazonal e isolada em meio a uma grande plantação de arroz,65 65 Era época de intenso trabalho na plantação e o noivo, sócio da lavoura, não podia dela se afastar. em 1951, no município de Rio Pardo (RS). A elegância das vestes, contrastando com singeleza do local, por si, já destacava seu significado simbólico.

Cotejando o uso da camisola do dia com o uso do vestido de noiva, é conveniente assinalar que registrei dois casos de utilização do segundo por mais de uma pessoa (parentes e em cidades distintas), e a utilização exclusiva da primeira. Pois, como disse uma noiva, "ela era só da gente". Por conta disso houve uma noiva que disse haver mostrado sua camisola, "linda que só ela", para amigas sob juramento de não copiarem-na. Mesmo assim, como mais uma exceção que confirma a regra, encontrei um caso de uma noiva, justamente a que recebeu "aquela jóia maravilhosa", que, poucos meses após o casamento, se estabelecendo como comerciante, vendeu-a, como se não tivesse sido usada, "por um preço muito bom".

Foi com visível satisfação que muitas das noivas informaram que seus noivos, ao vê-las com as camisolas disseram que elas pareciam uma rainha, uma princesa, etc. Alguns pediram que desfilassem para eles.

As respostas à pergunta feita a todas as noivas do porquê de uma camisola com tais características, por variadas que fossem as formulações, podem ser sintetizadas pela resposta dada por uma delas: "para um momento tão especial a camisola também devia ser especial". Tal preocupação, em um caso concreto, levou a resultados operacionais não de todo satisfatórios. Foi o que se deu com uma noiva que queria para a noite de núpcias algo "muito especial, queria ser uma princesa". Sua camisola ficou tão grande que, como disse, "parecia um poncho de cetim. Atrapalhou tudo!"

O simbólico

Não está na idéia deles [trobriandeses] privar a sexualidade do seu poder de transformar os grosseiros fatos materiais em experiências espirituais admiráveis, de envolver com a auréola romântica do amor os ângulos excessivamente técnicos da aproximação amorosa.

Bronislaw Malinowki - A Vida Sexual dos Selvagens

Abro a última parte deste estudo me reportando a considerações de Leslei A. White, a respeito da capacidade humana para simbolizar, em trabalho de 1959. Já na abertura do primeiro capítulo, ao listar características que habilitam o animal humano para a cultura, diz que "a mais importante qualificação de todas elas é a habilidade para simbolizar" (White, 1959, p. 3, tradução minha). Linhas adiante, na mesma página, ele cita a água benta como bom exemplo desta capacidade, dizendo que ela "é um líquido que existe na natureza plus um significado ou valor derivado do homem" (White, 1959, p. 3, tradução minha, grifo do autor).

De modo semelhante, isto se dá com as relações sexuais humanas, acontecimentos que, com fortes e necessárias raízes na biologia, são disciplinados por regras sociais que, na sua origem, com a proibição do incesto, como proclama Lévi-Strauss, baliza o início da organização social. A partir daí, e por definição, elas agregam importantes significados e juízos valorativos, que lhes são atribuídos por pessoas e/ou grupos, a partir de códigos sociais/morais vigentes nos universos onde elas se dão. Daí ser conseqüente que certas relações sexuais sejam objeto de atenção especial, como se dá com a primeira relação das mulheres no contexto aqui considerado. Aí, aqueles significados e juízos decorriam de avaliações centradas no acatamento ou não das normas socialmente prescritas para essa primeira relação. Tão importantes podiam ser os elementos agregados às mulheres pela sua primeira relação, que eles podiam até orientar fortemente suas vidas e a de pessoas que lhes eram próximas. Como, pelos interesses deste estudo, os fatos decorrentes do não acatamento já foram considerados, o mesmo se dando com os comportamentos que antecediam e preparavam a primeira relação, respeitando os cânones para ela previstos, agora cabe, tão-somente, abordar a moldura ritual idealizada/montada para seu epílogo. O qual, uma vez concluído, agregava a mulher ao seu novo grupo: o das senhoras casadas e futuras mães de família.

Turner (1980) fornece suporte teórico para a montagem daquela moldura e o papel relevante nela ocupado pela camisola do dia.

Primeiro, quando considerando a fascinação de Durkheim, pela razão de muitas normas e imperativos sociais serem considerados "obrigatórios" e "desejáveis" por quem devia observá-los, diz que "os estudiosos estão se dando conta de que o ritual é precisamente um mecanismo que periodicamente converte o obrigatório em desejável" (Turner, 1980, p. 33). Da Matta (1978b, p. 11) mostra-se afinado com ele quando, em apresentação de edição brasileira de Os Ritos de Passagem, de Van Genepp (1978), diz que desde seu aparecimento esse livro é utilizado "como uma fonte de inspiração teórica para o problema básico da natureza sociológica dos ritos e atos teatrais, essas ações que tornam a rotina diária senão suportável ou justa, pelo menos revestem-na com um certo toque de mistério, dignidade e elegância".

Segundo, por considerações generalizantes sobre símbolos dominantes e símbolos instrumentais. O fato de centrá-las no universo ritual ndembu não limita sua abrangência. Sobre os símbolos dominantes, diz que se pode considerá-los "como fins em si mesmos, representativos dos valores axiomáticos da sociedade [ ]" (Turner, 1980, p. 35). A respeito dos símbolos instrumentais, diz que "cada ritual tem sua própria teleologia, tem seus fins explícitos, e os símbolos instrumentais podem ser considerados como meios para a consecução destes fins" (Turner, 1980, p. 35).

Consideremos em nosso caso específico cada um desses dois pontos, iniciando pelo obrigatório desejável. Tenho por certo que duas ordens de elementos concorrem para tal equalização: a das coisas práticas e a dos sentimentos.

Na ordem das coisas práticas encontravam-se as penalidades e recompensas pelo acatamento ou não dos imperativos sociais. Como as primeiras já foram vistas, para saber da essência do que se passava com as segundas basta ter presente que elas surgiam naturalmente em oposição ao se passava com aquelas. Todas vinculadas ao não casamento/não bom casamento — casamento/bom casamento e, por definição, imbricadas na norma do acatamento da preservação da virgindade feminina pré-matrimonial. Em síntese, o temor das penalidades e a satisfação/conformidade pelas gratificações, ambas importantes, concorriam para tal desejabilidade.

Na ordem dos sentimentos ela encontrava estímulos nos rituais que envolviam a questão, como há pouco apresentada, e na sincera adesão à norma da preservação da virgindade pré-nupcial, posta em cena pelo processo de socialização, de modo mais ou menos direto ou mesmo marcadamente difuso. Sem prejuízo das considerações sobre a vigilância dos namoros e noivados, considerada na parte que trata do contexto, é significativa a apreciação de uma noiva66 66 Professora universitária aposentada quando da entrevista. a respeito daquela adesão: "A gente [adolescentes de seu círculo de amigas e/ou de colegas de colégio] achava mesmo que era coisa muito natural [preservar a virgindade]. Não passava, acho, pela cabeça de ninguém fazer ao contrário." Acrescentou que, em encontro social recente de parte daquele grupo, falaram da questão, "ficando claro que nossos pais nunca nos falaram disso. Era uma coisa natural."

Feito isso, consideremos agora as questões do significado dos símbolos dominantes e do significado dos símbolos instrumentais, na composição da moldura ritual montada para aquela primeira relação sexual.

O primeiro, representando os valores axiomáticos da sociedade, tinha por símbolo o próprio corpo intocado da mulher, sendo o hímen íntegro emblema desse estado.

O segundo, representando meio para a consecução da finalidade daquele ritual, tinha por símbolo a camisola do dia. Ou, mais precisamente, o conjunto, do qual ela era a peça principal, como já considerado.

É precisamente na combinação desses dois significados que radicava a razão para o uso de todo o conjunto e não só a camisola isoladamente. Seu uso sinalizava, idealmente, mais que a explícita predisposição, a disponibilidade da mulher para a sua primeira relação sexual, e permitia que ela mantivesse o recato próprio de mulher honrada.

Vejamos tais questões, iniciando pela sinalização daquela disponibilidade. De fato, como a iniciativa para o sexo era deferida ao homem, e inconcebível para a mulher, o máximo que lhe cabia era se mostrar disponível. Todos os noivos entrevistados manifestaram o mesmo entendimento. Verídicos ou não, mas significativos, na pesquisa foram referidos três casos de noivos que reagiram com indignação à disposição mais franca de suas noivas para o sexo.

Tal fato já apontava para a preservação do recato, por princípio, para satisfazer interesse de ambos os cônjuges. Concepção expressa por todos os noivos e algumas noivas. Uma noiva avaliou a questão dizendo que "o desnudamento começava pelo chambre, sem se saber aonde ia chegar. Ia até onde o homem quisesse." Uma outra disse que "para a mulher, tão reprimida naquele tempo, era bem complicado se mostrar [para o marido]". Registrei um caso, ocorrido na década de 1940, de um noivo que recomendou à futura sogra, quando esta preparava o enxoval de sua noiva, que evitasse decotes e aberturas nas camisolas porque ele "não queria saber de carne exposta".67 67 Um outro caso, significativo também, por ter se dado em camada social inferior, me foi fornecido por um informante de ocasião e antropólogo da Universidade Federal do Ceará. Informou ele que uma mulher, empregada doméstica em sua casa por muitos anos e mãe de 26 filhos, disse que seu marido nunca a viu despida.

Claro que tudo isso se dava por referência a um padrão ideal que, como tal e exceção que confirmava a regra, nem sempre se concretizava. Surgiram na pesquisa três casos fora do padrão, referidos por noivas. Disseram elas a respeito: "não deu tempo para abrir a mala e procurar a camisola"; "não era hora para pensar em camisola"; "marido fogoso não quis saber de nada, tirou tudo [o conjunto] na hora, como eu queria".

Em certos casos, aparentemente mais numerosos que os anteriores, aquela mesma roupagem se constituía em amparo para as noivas enfrentarem constrangimentos decorrentes da desinformação, bem concreta e generalizada, sobre tal relação. O fato é bem ilustrado pela declaração de uma noiva68 68 Professora do ensino médio, aposentada quando da entrevista. que, destacando falar em tese, disse: "A camisola e tudo o mais ajudava a enfrentar o desconhecido. Isto se deu comigo e, imagino, com outras [noivas] também." Nesse "tudo o mais", esclareci com ela, se incluía a beleza e o requinte da camisola, como elementos de segurança por bem adequá-la para o momento. Mesmo que para outro contexto, juízo aproximado sobre vestimenta requintada foi expresso pelo diretor de cinema de Hollywood, Cecil B. De Mile69 69 Em matéria jornalística sobre grandes diretores de cinema, que li há tempos, e da qual não tenho registro. ao receber a sugestão de substituir o tecido previsto, de alto custo, para o vestido de noiva para cenas de casamento da atriz principal em um de seus filmes, por outro de custo muito menor, sob a alegação de que os futuros espectadores do filme não perceberiam a troca. Ele rejeitou a proposta dizendo que a atriz perceberia e que isso prejudicaria seu despenho. Quatro casos exemplares70 70 Os dois primeiros ocorridos na década de 1940 e os outros na de 1950. O último foi referido por uma informante de ocasião e cunhada de uma das testemunhas do episódio, que lhe falou sobre ele. Os demais vivenciados por noivas entrevistadas. , referidos a seguir, mostram, concretamente, o elevado grau de intensidade que podiam atingir tais constrangimentos.

1) Noiva que casou pela manhã, teve um almoço como festa de casamento e foi para sua nova residência no meio da tarde. Tão logo lá chegou, pensou "naquelas coisas", pediu para o marido comprar pão e leite, tomou banho, vestiu o conjunto da camisola e, "meio apavorada", foi para cama "coberta até o pescoço".

2) Noiva que, tão logo chegou ao hotel para passar a lua-de-mel, "sem saber bem o que fazer e o que poderia acontecer", pôs-se a desfazer as malas e arrumar as roupas no armário.

3) Noiva que, no segundo dia após o casamento, lavou a camisola do dia e colocou-a a secar exposta ao sol, "quase morreu de vergonha" de uma vizinha que foi visitá-la e, vendo a camisola na corda, certamente pensou no que "tinha acontecido".

4) Noiva que, na noite de núpcias na grande casa de seus pais, em que dormiam também três de suas mais íntimas amigas e colegas de curso universitário71 71 As quais, como a noiva, residiam na capital de seu Estado, onde estudavam, muito distante da cidade onde ocorreu o casamento. , perturbada pelo avantajado tamanho do pênis de seu noivo, deixou-o no quarto que compartilhava com ele e dirigiu-se ao delas, como que pedindo socorro. Nele entrando, simultaneamente com o gesto das mãos espalmadas e afastadas em paralelo para indicar quão grande era aquele, repetia "é uma coisa deste tamanho". Passou-se bom tempo até que, tranqüilizada, ela voltasse ao quarto, onde o noivo a aguardava.

Pelo que colhi na pesquisa, certamente que não era raridade o caso de noivas que somente na noite de núpcias tiveram a real dimensão do que seria participar "do que pode ser considerado o mais pessoal dos acontecimentos", como disse Malinowski (1983) e já apresentado na epígrafe que abre este estudo. Pela mesma razão também se mostrava pertinente para elas a clássica frase de Eça de Queiroz, que diz: "sob o véu diáfano da fantasia, a nudez forte da verdade". Pois, em linguagem atual, era quando "caía a ficha".

Essa primeira vez, compreensivelmente pelo já visto, também afetava com intensidade a emoção dos noivos em termos de recato e erotismo. Embora os noivos, além de serem em menor número do que as noivas e se mostrassem mais reservados do que elas em falar a respeito do tema, ele apareceu com nitidez através de manifestações de dois deles, que disseram: "A mulher da gente tinha que ser respeitada, muito mais na primeira vez que a gente se encontrava. Mulher da vida era outra coisa, não tinha vez." E "a mulher [vestida com a camisola], parecendo uma princesa, mexia com o sujeito. Depois de tanto esperar a gente podia chegar no paraíso." Instigado por esse paraíso perguntei para ele, que foi o primeiro noivo entrevistado, e para os demais o que achavam de seu equivalente na formulação de um certo José Soares da Cunha, em 1833,72 72 Em petição apresentada a um juiz de paz em Laguna, Santa Carina, que, em linguagem e com detalhes hoje pitorescos, pede punição a um tipo desqualificado que, com "forte e tremenda umbigada", fez com que sua mulher caísse ao chão "com as partes bubendas a mestra" (sic). Tenho informações de que ela foi publicada em veículos diversos. Possuo cópia de sua transcrição fiel, da qual extraí os trechos citados, que me foi fornecida pelo jornalista Jayme Copstein, de Porto Alegre. quando designou-a como "aquela parte mimosa da geração73 73 Grifo meu. que só o suplicante e a parteira podiam ver e mais ninguém". Entenderam que era uma figura de retórica adequada ou, como disse um deles, "em [19]46 [quando casou], isso podia ser verdade e bonito. Hoje não. Tudo é muito fácil."

Por sua vinculação com a problemática do recato registro a interdição do uso de camisolas nas cores preta e vermelha, em especial durante a lua-de-mel. Isso porque tais cores, sendo consideras próprias de prostitutas, eram também percebidas como tendo um apelo erótico muito explícito. Esse entendimento, comum a todas as noivas que abordaram o tema, foi referendado pela jornalista Celia Ribeiro, especializada em moda e etiqueta. Ela acrescentou que na década de 1950, "como sinal dos tempos, para dar uma apimentada nas relações", apareceram camisolas nessas cores, já no período da lua-de-mel. Uma noiva disse que para comemorar o primeiro ano de casamento criou coragem e fez uma camisola vermelha "para mexer com a cabeça do marido".

Se tal se deu ou não, não importa. O que importa aqui é que a camisola do dia certamente mexia com as cabeças dos casais. Tanto mais que o ritual, como disse Da Matta (1978b), em citação anterior, reveste as coisas do "cotidiano com um certo toque de mistério, dignidade e elegância". A essa contribuição do antropólogo para o entendimento de tal fato, via sua teoria para a compreensão dos rituais em geral, junta-se a contribuição específica de dois poetas. Como já sugerido, refiro-me a Herivelto Martins e David Nasser, através da letra de A Camisola do Dia. Mais especificamente, em três de seus versos: E eu era o dono de tudo/ Do divino conteúdo/Que a camisola ocultava.

Com a sensibilidade e a forma próprias aos verdadeiros poetas, ao fazerem da poesia instrumento para proclamar a exclusividade do marido sobre o corpo da mulher, divinizar seu corpo e ressaltar seu recato, eles estabelecem em síntese perfeita a representação do homem sobre o que se passava naquele primeiro encontro. Com a devida licença, pode-se dizer que eles apresentam, de modo preciso e conciso, o que se pode chamar de uma etnografia poética da camisola do dia.

Sensibilidade, igualmente vinculada ao simbolismo da camisola do dia, também tiveram pessoas do circulo íntimo das relações do casal Ivone e Milton Miguel, quando da comemoração de suas bodas de ouro, em 2001, na cidade de Rio Pardo (RS). Providenciaram para que em meio à festa uma sobrinha deles desfilasse com a camisola e o chambre usados por Ivone em sua noite de núpcias. O que despertou grande interesse dos presentes. As duas fotos a seguir registram momentos do fato.

Retorno agora à questão das camisolas do dia retiradas de circulação para preservá-las, e que foram usadas seletivamente. Não obstante seu número não ser expressivo, cinco ao todo, seu simbolismo o é: lembrar a primeira vez. Os casos mais gerais foram os de maridos que pediram para as mulheres usarem-nas para desfilar para eles e delas usarem-nas para surpreendê-los. O caso mais particular foi o de um casal que, por razões circunstanciais, não pôde passar a lua-de-mel em Paris, como programado, mas lá comemorou o primeiro ano de casamento, com ela usando a camisola do dia e ele o mesmo pijama da noite núpcias. Na primeira noite, como disse ela, "fazendo uma certa mise-en-scène, que começou com o marido me carregando nos braços e champagne française". Como se vê, esses fatos se mostram afinados com o entendimento de Hobsbawn (2002, p. 12-13), quando diz que "os objetos e práticas só são liberados para uma plena utilização simbólica e ritual quando se libertam do uso prático".

Pelo que foi visto, o uso legítimo da camisola do dia simbolicamente atestava que a mulher observou todos o cânones para chegar à sua primeira relação sexual. De sua consecução, nesse quadro de legitimidade, resultam fatos notórios e outros nem tanto. Dentre os primeiros se destacavam a afirmação de sua honra e a dos que lhes eram próximos, e sua agregação legítima ao grupo das senhoras casadas e futuras mães de família. Dos segundos, resultantes de uma sutileza simbólica mais fina, chamo a atenção para o fato de que, obliterando a materialidade do resultado, não se pensava em perda de virgindade nem em defloramento. Portanto, assim, também não se pensava em perda nem em flor desfeita. Pelo que também se pode pensar que, metaforicamente e, com a autorização devida, a flor fora colhida.

Recebido em 21/06/2004

Aprovado em 13/07/2004

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  • 1
    Em primeiro casamento.
  • 2
    Em 2003 e 2004.
  • 3
    Incluídas as respectivas capitais, exceto por Florianópolis e Salvador.
  • 4
    A realização das entrevistas nestes Estados se deu por facilidade operacional: no Rio Grande do Sul por eu aí residir (mais precisamente, em Porto Alegre); nos demais, aproveitando oportunidades decorrentes de viagem de carro, percorrendo perto de 12.000 km, em 50 dias.
  • 5
    Ambas com carreiras profissionais em Porto Alegre e uma também em Curitiba. Com atuação, respectivamente, nas décadas de 1930 a 1950 e 1940 a 1960.
  • 6
    Exceto por três noivas e um noivo, pessoas já do meu conhecimento.
  • 7
    Destes, um era solteiro e um casou na década de 1960.
  • 8
    Destas, duas eram solteiras, duas casaram na década de 1970 e uma, imigrante polonesa, casou com um imigrante alemão, no início da década de 1940, pouco tempo após a chegada de ambos ao Brasil. Ainda assim, sucintamente informada sobre
    a camisola do dia, disse que no universo de suas relações, na Europa e no Brasil (com outros imigrantes), o tema era desconhecido e que ela e seu noivo já mantinham relacionamento sexual antes do casamento.
  • 9
    Destas, quatro foram procuradas inicialmente, a meu pedido, por filhos/filhas de minhas relações e duas, sabedoras da pesquisa, por outra já entrevistada, mostraram interesse de também o ser. Isso se deu em uma pousada em São Miguel do Gostoso (RN).
  • 10
    Fazendo-se equivalência com o sistema atual. É oportuno registrar que em diversos casos os estudos não tiveram seguimento por entraves decorrentes da inexistência de escolas adequadas para tal nas localidades de residência das pessoas em questão. Também é oportuno lembrar que o antigo curso ginasial, que corresponde atualmente às três últimas séries do ensino fundamental inicia seu processo de universalização, e nos Estados mais desenvolvidos, na década de 1950. Na época, os esforços para a instalação de tal curso, público ou privado, mobilizavam as lideranças locais das cidades.
  • 11
    Oficiais do Exército.
  • 12
    Ver Teixeira (2001a).
  • 13
    Ela integra o rico e variado repertório da música popular brasileira, é executada com boa freqüência e objeto de muitas gravações, inclusive recentes, por orquestras e intérpretes consagrados.
  • 14
    Todos mostraram interesse por ela. Os que a conheciam procuravam cantarolá-la ou dizer sua letra. Os demais se interessavam em conhecê-la.
  • 15
    Por contatá-las em ocasiões não planejadas, que se apresentavam favoráveis para meu intento.
  • 16
    Diversas pessoas pediram meu telefone para possível contato com tal finalidade e/ou para saber da publicação do trabalho, com vistas à sua aquisição.
  • 17
    Informante de ocasião.
  • 18
    O divorcio foi instituído no Brasil em 1977. Até então havia o desquite, que dissolvia a sociedade conjugal sem anular o vínculo matrimonial. Portanto, impedia um outro casamento.
  • 19
    Em particular pela Igreja Católica, da qual a imensa maioria da população era adepta e que tem na indissolubilidade matrimonial um elemento forte de sua pregação.
  • 20
    O que se deu com 24 dos casais considerados na pesquisa.
  • 21
    E aplicável a questões de honestidade em qualquer área.
  • 22
    Azevedo (1986, p. 113-115, grifo do autor) aborda literatura voltada para a formação de moças e adolescentes, "
    fundado em suas virtudes morais, num valor 'interior', que justamente pressupõe o controle da sexualidade".
  • 23
    De modo especial, irmãs, primas e amigas das vigiadas.
  • 24
    Quando masculinos, com idade máxima em torno de dez anos. Os mais velhos resistiam a tal papel.
  • 25
    Como regra, cabia aos namorados e noivos pagar as despesas que fizessem.
  • 26
    Não obstante Azevedo contribuir para este trabalho, suas considerações sobre o papel do "
    doce-de-pêra" (Azevedo, 1986, p. 29, grifo do autor), conflita com as minhas. Considera-os alcoviteiros.
  • 27
    As primeiras com mais presença no Rio Grande do Sul e as outras nos demais estados.
  • 28
    Respectivamente, por namorarem alunos do curso de artilharia do Centro de Preparação de Oficiais da Reserva (CPOR), em Porto Alegre, cadetes do Exército em Campinas e estudantes de medicina em Recife.
  • 29
    Manipulando seu corpo, com ênfase nas partes inferiores mais sensíveis ao toque, como entre as pernas traseiras.
  • 30
    Para considerações mais abrangentes sobre o tema, ver Teixeira (2001a).
  • 31
    Das quais, seis disseram que hoje pensam que talvez teria sido melhor ter tido outras experiências, sete ressaltaram o fato como positivo e oito não fizeram comentários. O que, aliás, não foi solicitado a nenhuma delas.
  • 32
    Ambos mostraram-se satisfeitos com o fato. Um ressaltou que "foi bom por ser certo que ninguém tirou casquinha dela".
  • 33
    Ouvido um médico a respeito, ele informou que tal é possível, e com registro na literatura médica, desde que com ejaculação no intróito vaginal.
  • 34
    Em muitos casos nem indiretamente. Bastava perguntar pela camisola e elas falavam. Nos demais me referia à letra da canção que a tem por tema, para falarem.
  • 35
    Por luto recente na família, por dificuldades financeiras e por não ter tido casamento religioso.
  • 36
    Título ostentado pelas moças solteiras — por definição tidas por virgens — que integravam a Congregação Mariana, da Igreja Católica, voltada para o culto à Virgem Maria. Acrescente-se que para esta religião, amplamente dominante no Brasil na epoca, o relacionamento sexual fora do casamento se constitue em grave pecado.
  • 37
    Embora o texto não o indique, esse dado me foi fornecido pela autora.
  • 38
    Isso confirma fato sabido de que a virgindade como valor também tinha curso nas camadas socialmente inferiores, já na década de 1960, quando se deu o fato.
  • 39
    Isso propiciou um caso de fina ironia com uma de tais mulheres quando visitava uma conhecida pelo nascimento de seu primogênito, ocorrido justamente no dia em que completava nove meses de casamento. Disse-lhe esta que se sentia tranqüila por a visitante, sabendo o dia em que ela casara, poderia atestar que no seu caso nada de indevido ocorrera.
  • 40
    Informações dadas por uma das aias, que enfatizou que para ela e as companheiras a gravidez da noiva era fato inimaginável.
  • 41
    Informações fornecidas por um graduado funcionário aposentado da Receia Federal, e cliente de ambas (em Belo Horizonte e Porto Alegre), quando estudante de direto e freqüentador assíduo de bordéis, na década de 1950. Acrescentou que de fato elas eram virgens e que, responsáveis pelas casas onde atuavam, sempre alertavam seus freqüentadores, que se interessavam pelas mesmas, sobre tal peculiaridade. O que aumentava o interesse por elas, inclusive como desafio, para tentar deflorá-las. Sem sucesso, pela própria experiência e de alguns amigos.
  • 42
    Ainda existente.
  • 43
    Todas as informações sobre o caso foram dadas por uma das noivas entrevistadas, e prima da esposa em questão.
  • 44
    Sobre teorização e uso de ditados populares, refrões, etc., ver Teixeira (2001b).
  • 45
    Como três professoras que foram demitidas/coagidas a se demitir.
  • 46
    Registrei na pesquisa o caso de uma mulher que morreu com idade aproximada de 80 anos e que foi enterrada em tal tipo de urna, atendendo a seu desejo, por ser virgem.
  • 47
    Masculino ou feminino era motivo para desquite. Porém, era recurso pouco usado pelas esposas, pela tolerância quase institucionalizada à infidelidade dos maridos. Mesmo quando reiterada e publicamente assumida.
  • 48
    Por vezes mais.
  • 49
    Mesmo considerando que a responsabilidade pela separação de direito, pelo desquite, ou de fato, como regra, fosse imputada à mulher por alguma falha e com os ônus conseqüentes.
  • 50
    Ainda que correndo o risco de pecar por excesso, me permito lembrar que
    deflorar,
    fazer mal e
    seduzir, respectiva e literalmente, significam
    desfazer a flor,
    fazer algo moralmente errado e
    iludir com promessas e encantos.
  • 51
    Consultados dois cirurgiões plásticos e um anestesista, todos com cerca de 30 anos de atividades profissionais, disseram não saber de nenhum caso concreto e que tais comentários fazem parte do "folclore médico". Um daqueles ressaltou que, em termos técnicos, certamente seria viável um procedimento para obtenção de resultado aproximado.
  • 52
    Ver Teixeira (1981).
  • 53
    Era comum que tais camisolas assim como a
    do dia fossem acompanhadas por combinação/saia de baixo e/ou anágua, nas mesmas cores, para uso externo posterior para evitar transparências.
  • 54
    A camisola do dia preservada por mais tempo que registrei o foi por 59 anos.
  • 55
    Por certos detalhes, como serem muito volumosas, com muitas rendas e até uma pequena cauda, "que se arrastava pelo chão".
  • 56
    Informação repassada pela professora Telma Camargo da Silva que, a meu pedido, lhe perguntou por que a preservava.
  • 57
    Informado sobre o trabalho por pessoa de minhas relações e informante de ocasião, entrei em contato com a autora que, no primeiro momento acolheu com simpatia meu pedido. Situação que se inverteu após ela haver consultado sua mãe, sob a alegação de envolver assuntos íntimos.
  • 58
    Registrei somente duas
    camisolas do dia em outras cores: azul e rosa, em tons suaves.
  • 59
    Três noivos não souberam informar a respeito das camisolas de suas respectivas noivas.
  • 60
    Usando-a como vestido de noiva.
  • 61
    País onde a
    camisola do dia teve histórico semelhante ao que se deu com ela no Brasil.
  • 62
    Jorge Iriarte, meu amigo de Buenos Aires e informante de ocasião, me informou do fato e fez os contatos iniciais para a publicação da foto, da qual não tenho registro de autoria.
  • 63
    O que se deu também com aquelas três noivas que não usaram vestido de noiva. Uma delas usou a camisola no trem onde passou a noite de núpcias, durante a viagem para Buenos Aires, onde passou a lua-de-mel. As duas noivas que se disseram não-virgem e semi-virgem (?) antes de casarem, ressaltaram que mesmo, no caso delas, destituídas de seu simbolismo, levaram suas
    camisolas do dia para a lua-de-mel. O que se deu como estratégia para não despertar desconfianças de suas respectivas famílias sobre aqueles fatos.
  • 64
    No dia seguinte ao casamento. Em razão de fortes chuvas que tornaram intrafegável a estrada para lá, os recém-casados dormiram na noite seguinte ao casamento nas casas de seus respectivos pais, na cidade.
  • 65
    Era época de intenso trabalho na plantação e o noivo, sócio da lavoura, não podia dela se afastar.
  • 66
    Professora universitária aposentada quando da entrevista.
  • 67
    Um outro caso, significativo também, por ter se dado em camada social inferior, me foi fornecido por um informante de ocasião e antropólogo da Universidade Federal do Ceará. Informou ele que uma mulher, empregada doméstica em sua casa por muitos anos e mãe de 26 filhos, disse que seu marido nunca a viu despida.
  • 68
    Professora do ensino médio, aposentada quando da entrevista.
  • 69
    Em matéria jornalística sobre grandes diretores de cinema, que li há tempos, e da qual não tenho registro.
  • 70
    Os dois primeiros ocorridos na década de 1940 e os outros na de 1950. O último foi referido por uma informante de ocasião e cunhada de uma das testemunhas do episódio, que lhe falou sobre ele. Os demais vivenciados por noivas entrevistadas.
  • 71
    As quais, como a noiva, residiam na capital de seu Estado, onde estudavam, muito distante da cidade onde ocorreu o casamento.
  • 72
    Em petição apresentada a um juiz de paz em Laguna, Santa Carina, que, em linguagem e com detalhes hoje pitorescos, pede punição a um tipo desqualificado que, com "forte e tremenda umbigada", fez com que sua mulher caísse ao chão "com as partes bubendas a mestra" (sic). Tenho informações de que ela foi publicada em veículos diversos. Possuo cópia de sua transcrição fiel, da qual extraí os trechos citados, que me foi fornecida pelo jornalista Jayme Copstein, de Porto Alegre.
  • 73
    Grifo meu.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      28 Jan 2005
    • Data do Fascículo
      Dez 2004

    Histórico

    • Recebido
      21 Jun 2004
    • Aceito
      13 Jul 2004
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