Acessibilidade / Reportar erro

Benedito Calixto e a construção do imaginário republicano

RESENHAS

Lorena Avellar de Muniagurria* * Mestranda em Antropologia Social.

Universidade Federal do Rio Grande do Sul — Brasil

ALVES, Caleb Faria. Benedito Calixto e a construção do imaginário republicano. Bauru: EDUSC, 2003. 344 p.

Em Benedito Calixto e a Construção do Imaginário Republicano, Caleb Faria Alves recupera uma série de relações, processos artísticos e sociais presentes no cenário da Primeira República no Brasil a partir da análise da trajetória, dos textos e das obras do pintor e historiador Benedito Calixto de Jesus, radicado em Santos (Itanhaém, 1853 — São Paulo, 1927). Lançando mão da teoria dos campos de Pierre Bourdieu, do conceito de "invenção das tradições" de Eric Hobsbawm e Terence Ranger e da abordagem de obras de arte proposta por Baxandall, Alves trata a arte do período como ligada (e ligando-a analiticamente) à vida social, política e econômica nacional — conseqüentemente, aos processos de transformação que nela vinham ocorrendo com a passagem do regime imperial para a república.

Ao longo do livro, o autor lança luz sobre a posição ocupada por Benedito Calixto no cenário artístico de então, mostra suas aproximações e distâncias da pintura acadêmica e sua ativa participação na construção do passado de São Paulo e do imaginário republicano — evidenciando uma forte ligação de Calixto e sua arte ao movimento republicano paulista e seus ideais. Rebate, assim, tanto as idéias de um descompasso entre política e arte durante a Primeira República como as de que a produção artística do período seria uma continuidade decadente da pintura feita no império, correspondendo a uma "arte acadêmica anêmica, por isso, permeável e de baixa relevância estética" (p. 23).

Portanto, ao mesmo tempo em que caracteriza o momento da construção do imaginário republicano, da relativa perda de hegemonia do Rio de Janeiro e da constituição de São Paulo enquanto instância relevante na vida política, econômica e cultural do país, ele reconstrói de modo rico e profícuo o cenário artístico então existente, colocando em novos termos e valores a produção artística do período, tida usualmente e de modo genérico enquanto "acadêmica". Desse modo, alinha-se a uma série de iniciativas "revisionistas" por ele descritas da arte pré-modernista — empreendidas tanto no Brasil como na Europa e nos Estados Unidos — que procuram uma nova classificação do papel e da importância de acontecimentos e artistas anteriores ao modernismo. Trata-se de evitar os reducionismos que caracterizaram grande parte das análises, da história e da crítica de arte posteriores a tal movimento, devidos à adoção do "ponto de vista modernista" como referência a partir da qual pensar, conhecer (e avaliar e julgar) qualquer artista, evento ou produção artística.

Benedito Calixto teve uma trajetória artística inusual para a época: inicia sua formação em oficinas de artesãos, voltada às artes aplicadas; passa a fazer pinturas paisagísticas e históricas do estado; e, já com 30 anos de idade, é enviado diretamente a Paris para estudar pintura — sem ter passado pela academia brasileira — graças ao apoio da prefeitura da cidade de Santos. Até esse momento, quando um pintor ia ao exterior complementar seus estudos, o fazia sob o auspício do império e necessariamente após ter-se dedicado ao estudo acadêmico desde muito jovem — nunca às artes aplicadas, o que era motivo para afastamento da academia caso descoberto — e ter sido recomendado por um mestre como pintor promissor.

Alves encontra a explicação para a possibilidade de tal trajetória diferenciada no contexto de crescimento econômico paulista e das pretensões de poder político do estado. A cidade de Santos, desejosa de modernização e de novos espaços e meios de socialização e legitimação simbólica condizentes com sua nova posição, lança-se num processo de reatualização no campo das artes. A experiência mais marcante, nesse sentido, foi a dos clubes dramáticos e das mobilizações para a construção do novo teatro, que terminou por colocar a arte em geral em um novo patamar de importância na cidade — trazendo maior prestígio também para a pintura. Aumentaram, então, as demandas por trabalhos artísticos e o desejo de produzir artistas próprios, pois tanto havia dificuldade em atrair pintores cariocas quanto necessidade em diferenciar-se do Rio de Janeiro e de sua arte ligada à exaltação da figura do imperador — que seria contraditório com as "aspirações de uma cidade abolicionista e republicana" (p. 73). Assim, foi a quebra de hegemonia carioca que abriu os novos espaços artísticos que Calixto termina por ocupar.

Mas o autor se pergunta: por que Calixto? No livro, são apontadas duas características principais da obra e da pessoa do pintor que teriam motivado o investimento que o público santista realizou em sua carreira: o interesse e conhecimento da história e do litoral de São Paulo e a escolha pela pintura paisagística. Em relação à primeira característica, percebe-se a importância e o papel que referências pictóricas podem desempenhar em um momento de construção e legitimação como o que São Paulo vivia — e, como Alves mostra, de fato desempenharam. Em relação à segunda, no cenário artístico nacional, a pintura de paisagem surgia como meio de construção de uma arte "tipicamente brasileira" a partir da inspiração nas paisagens do país, e passou a ser vista como contraposição ao academicismo e seus "estrangeirismos" — temáticas, estéticas, luminosidades e cores que não correspondiam à natureza local. A pintura ao ar livre e voltada para temas de interesse local representava, então, uma alternativa disponível aos paulistas para atender à necessidade de diferenciação em relação à capital carioca.

O autor também se esforça em desfazer as idéias de que Calixto teria vivido em isolamento quando na Europa e que teria tido dificuldade em tomar contato e entender os movimentos estéticos e políticos da França. Através da apresentação de alguns aspectos e eventos relativos à viagem, à sua vida em Paris, aos seus professores e às escolas que freqüentou, evidencia-se que Calixto não só tomou contato com a arte impressionista e seus acontecimentos como tinha opinião formada sobre ela (uma avaliação negativa), além de perceber a relação existente entre certas escolas artísticas e movimentos políticos (Calixto se refere a "idéas anarchizadoras, na política e na arte"). Assim, nos é retratado um pintor que viveu a modernidade parisiense e esteve a par de novidades políticas, culturais e sociais da cidade, e cujas opções estéticas não podem, portanto, ser explicadas a partir da sua ignorância das novas correntes artísticas. Enviado à Europa por um barão do café, representante da burguesia paulista republicana ascendente, ele nem podia seguir os passos de um pintor agraciado pelo governo imperial, nem podia filiar-se a uma escola em franca oposição à república burguesa.

Conforme a análise exposta ao longo de todo o livro, tanto antes como depois de seus estudos em Paris, Calixto não podia ser considerado "acadêmico": não teve formação propriamente acadêmica; privilegiava o gênero paisagístico, visto como contraposto à academia; recusava um acabamento demorado da pintura e não lançava mão de referências a grandes mestres, recursos esses valorizados pela tradição acadêmica por demonstrarem respectivamente técnica aprimorada e erudição; incorporava a imagem de pintor excluído, separado da sociedade e em contato com a natureza, que, na Europa, correspondia à de vários pintores impressionistas. Para o autor, de fato, não se trata de procurar uma ruptura ou uma continuidade absolutas em relação à academia, pois o próprio ensino acadêmico trazia em si diversos elementos ou possibilidades que depois foram características das novas escolas.

No Brasil, esta transição que se segue à perda de hegemonia da academia foi marcada pela oposição entre "academismo", de um lado, e "naturalismo" ou "realismo", de outro. As semelhanças e diferenças existentes entre ambas são exploradas e apresentadas no livro através de uma rica análise da crítica da época, em especial a que se seguiu à Exposição Geral da Academia Imperial de Belas-Artes, em 1879, e que esteve centrada na avaliação dos quadros A Batalha de Guararapes, de Victor Meirelles, e Batalha do Avahy, de Pedro Américo. A principal distinção entre ambas posições pictóricas refere-se à exigência acadêmica de definição de hierarquia entre os elementos presentes na tela — obtida através dos recursos de perspectiva, da luminosidade e das dimensões dos elementos. Em contraposição a Victor Meirelles, identificado pelos críticos como pintor acadêmico, Pedro Américo, à sua revelia ou não, foi "tomado como baluarte das qualidades desejáveis numa pintura genuinamente nacional" pelos partidários do realismo, e sofreu ácidas críticas dos defensores do academismo (p. 153). Os críticos simpatizantes do realismo pregavam ser a natureza do país a fonte fundamental a partir da qual seria possível constituir uma pintura brasileira, e negavam as regras e hierarquias prescritas pelas academias por considerá-las amarras que impediam que tal natureza fosse retratada; ainda, sem negar a importância do "desenho", o subordinavam à emoção e à empatia que a obra viesse a causar no público. Segundo Alves, o que estava de fato em jogo eram os critérios a partir dos quais avaliar os quadros, a construção de um novo apreciador de arte e de um novo papel social para o pintor.

É nesse contexto, e tendo como importante fonte de inspiração, entre outras, a obra de Pedro Américo, que Calixto retrata a modernização de Santos. Alves considera, em especial, a referência da tela Independência ou Morte, pintada em meio à controvérsia academismo versus naturalismo e em pleno movimento republicano por Pedro Américo para o edifício-monumento à Independência — prédio finalmente destinado ao Museu Paulista quando do fim do império. Para o autor, a tela é um elemento importante no processo de criação de uma nova imagem do paulista: ressignificação do atraso em bravura, integridade, arrojo, progresso, superioridade racial (pela mistura), democracia e liberdade. O isolamento do paulista não é questionado, mas é positivado: São Paulo teria sido o recôndito onde se conquistou o território nacional e gestou a alma nacional, em contato com a natureza e distante do projeto português (urbano e estrangeiro). A figura do carroceiro presente na tela de Américo, pintada para satisfazer o pedido feito por republicanos paulistas de que o ambiente e o sujeito local fossem representados, corresponde a tal imagem: "Trata-se de apresentar uma São Paulo naturalmente condizente com a República" (p. 288). O carroceiro está em relação privilegiada com a natureza: ele é parte da paisagem e "moldou um lugar livre dos vícios urbanos e da subordinação à metrópole." (p. 190).

Segundo Alves, assim como Américo inaugurou uma representação mais grandiosa do paulista, Calixto o fez com São Paulo, pois ele também retrata elementos da cidade antes tidos como atraso agora como conciliados com a modernização e com as atividades urbanas (por exemplo, no quadro Inundação da Várzea do Carmo). Em especial, as pinturas de Calixto retratam uma cidade em harmonia com a natureza — o que é condizente com a necessidade do movimento republicano de "reconciliar-se com a cidade" porque, apesar da natureza ser identificada nesse período enquanto fonte e espaço de constituição da nacionalidade, o movimento surgiu muito ligado ao processo de urbanização. Em suas telas, correspondendo a uma perspectiva histórica positivista, a natureza e a cidade não aparecem contrapostas, mas sim em sintonia e complementaridade: a cidade desenvolve-se ao longo de etapas a partir de um projeto racional próprio à natureza, a cidade "é moderna porque credora do seu passado, isto é, credora da conjunção dos fatores que permitiram o seu desenvolvimento" (p. 268).

Esta produção iconográfica e histórica a respeito de São Paulo e do paulista — que teve por centro o Museu Paulista — correspondeu, na análise de Alves, à construção do imaginário republicano e a um processo de ressignificação dos símbolos do império por parte dos republicanos: a imagem do imperador, o edifício-monumento e a nação tropical oriunda das várias raças. O autor, assim, afirma a importância do campo cultural para a consolidação e difusão da posição republicana, e termina rebatendo posições que postulam a ausência de uma estética própria aos republicanos: "O investimento na figura feminina não era o único caminho possível para a produção de uma estética republicana de cunho positivista. Em São Paulo, a sua forma foi o Museu Paulista" (p. 294-295).

  • *
    Mestranda em Antropologia Social.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      28 Jan 2005
    • Data do Fascículo
      Dez 2004
    Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social - IFCH-UFRGS UFRGS - Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Av. Bento Gonçalves, 9500 - Prédio 43321, sala 205-B, 91509-900 - Porto Alegre - RS - Brasil, Telefone (51) 3308-7165, Fax: +55 51 3308-6638 - Porto Alegre - RS - Brazil
    E-mail: horizontes@ufrgs.br