Acessibilidade / Reportar erro

O retorno do objetivismo ou dos males de ser científico

ESPAÇO ABERTO

O retorno do objetivismo ou dos males de ser científico

Lilia Moritz Schwarcz

Universidade de São Paulo – Brasil

"Nesse momento evolutivo de nossa sciencia, nesta fase segura de nosso peregrinar [ ] aí estão os alicerces mais estáveis para a construção de um terreno novo, que representa uma sciencia nossa, objetiva, capaz de dar contas de qualquer mistério dos homens." Era dessa maneira, quase apoteótica, que, em 1884, a Gazeta Médica da Bahia (GMB), órgão da Escola de Medicina da Bahia, definia a função dos "médicos cientistas", que se valiam da ciência da época para garantir seu novo papel na sociedade. Prevenir a irregularidade e dar conta dos desajustes – no que se refere à criminalidade e à alienação – era o objeto central desses médicos, que se faziam intérpretes das necessidades de uma sociedade considerada doente.

É também imbuídos dessa mesma missão que o grupo pertencente à, assim chamada, escola Nina Rodrigues, encetava uma campanha com vistas a garantir o controle na conformação do, então, novo Código Penal, que, diziam eles, devia ser elaborado por médicos especialistas na criminalidade e não por juristas, pouco aptos, segundo esse ponto de vista, a lidar com as vicissitudes desse tipo de personagem, sujeito aos desequilíbrios próprios de raças miscigenadas.

Na verdade, estava em questão o princípio do jus-naturalismo, que regia a elaboração das regras do Código, e a própria noção de livre-arbítrio, que, sob essa perspectiva, resultava quase que numa "ingenuidade teórica":

O código penal está errado, vê crime e não o criminoso. De ordem secundária é a natureza do delito. Antes de tudo a identificação mental dos criminosos, a inspeção medica-physica e physica e sua qualificação à espécie que pertence é o que interessa. (GMB, 1897, p. 218-219).

Tratava-se, dessa maneira, de garantir critérios "rigorosos" e demonstrar como só haveria "sciencia" a partir da análise fisionômica e das características físicas dos elementos culposos ou sob suspeita. Fazendo coro às teses de Nina Rodrigues, em seu livro As Raças Humanas e a Responsabilidade Penal no Brazil, publicado em 1894, que por várias vezes sublinhara a impossibilidade de se punir da mesma maneira raças com níveis diversos de evolução, os redatores da GMB partiam conjuntamente para a negação da igualdade humana, suposta no código nacional:

Não pode ser admissível a igualdade de direitos, sem que haja, igualdade na evolução [ ] No homem alguma cousa mais existe além do indivíduo. Individualmente, sob certos aspectos, dois homens poderão ser considerados iguaes: jamais o serão porém se se attender ás suas funções physionômicas. Fazer-se do indivíduo o princípio e o fim da sociedade, conferir-lhe uma liberdade sem limitações, como sendo o verdadeiro espírito da democracia, é um exagero da demagogia, uma aberração do princípio da utilidade pública. (GMB, 1906, p. 256-257).

Assim, tendo como justificativa uma suposta especialidade científica, buscava-se nos traços fisionômicos critérios suficientes de definição e hierarquização das raças. Ao mesmo tempo, o livre-arbítrio virava um pressuposto idealista, uma falsa questão, como se a igualdade fosse apenas uma ideologia arbitrária. Por sinal, naquele momento, a ciência surgia como elemento fundamental para, no limite, determinar onde estava localizada a criminalidade e a degeneração.

Não é o caso de ficarmos debatendo esse momento de finais do século XIX, quando se constituía uma antropologia, no Brasil, umbilicalmente ligada à medicina e a um projeto científico determinista. Basta lembrar que, já nesse contexto, a antropologia era utilizada para determinar certos traços físicos, que delimitariam a sorte dessas populações, assim, colocadas à margem da cidadania.

Em questão não estava o indivíduo, muito menos sua vontade ou definição. O suposto era que a "sciencia" trabalhava com critérios rígidos, externos à manipulação do sujeito. Dessa maneira, mais do que um debate entre médicos e juristas, estava em pauta a competência – por certo científica – para julgar desajustes sociais, próprios de determinadas raças miscigenadas e, portanto, inferiores.

Por certo, estamos distantes desse debate e já dobramos, a estas alturas, mais que um século. Também faz tempo que, como um ganho fundamental das escolas culturalistas e funcionalistas, se criticaram e derrogaram os critérios deterministas raciais, vigentes até os anos 1930. O debate parece estar, porém, de volta, mesmo que sob uma forma invertida.

Trata-se do retorno da crença na delimitação precisa de características fisiológicas e externas, como critério de definição, nesse caso, para a política de cotas para negros.

Dessa maneira, é mais que oportuna a publicação do texto de Marcos Chor Maio e Ricardo Ventura Santos, que não só apresenta um ótimo balanço sobre o crescimento da temática das cotas, no "país da democracia racial", como aborda a questão do vestibular da UnB; talvez o mais radical exemplo de aplicação de tal política em nosso país.

Para Nina Rodrigues e seus seguidores, tratava-se de apelar para uma ciência determinista e raciológica com vistas a determinar, e isolar, aqueles que "vexavam a nação". Por isso se atentava para o criminoso (e sua conformação racial) e não para o crime, já que o indivíduo não passava de um compósito de sua raça. No caso da UnB, descontadas as especificidades contextuais, os procedimentos parecem aparentados com os velhos critérios deterministas, no sentido de buscar em uma certa antropologia os "especialistas das raças" e de escolher nos traços fisionômicos elementos objetivos e científicos para definir, ora quem, a identidade.

Se isso não fosse o suficiente, bastaria seguir o andamento do artigo, que revela outros procedimentos acionados no sentido de "aprimorar" os critérios de separação entre – digamos assim – "verdadeiros e falsos negros". O resultado é que, para além da organização de uma comissão de especialistas, do registro em fotos, da análise das mesmas fotos e da caracterização psicológica (nesse caso misturando critérios ainda mais díspares, como o pertencimento ou não ao movimento negro), os candidatos são expostos à própria condição de "suspeitos".

É sob suspeita que afirmam ser "constrangedor" ter que tirar uma foto, ou ficar em filas separadas, ou ser submetido a entrevistas especiais. Por sinal, todos esses constrangimentos resultam dessa nova investida em desclassificar, ou tornar pouco eficiente, o único critério possível de seleção, que é o da autodefinição. Se raça não se sustenta mais como critério científico, o que dizer desse projeto de retorno aos modelos "objetivistas" do século XIX que, tomando como base um modelo racial – e que privilegia a aparência –, anulam o indivíduo em nome de um conjunto de traços fisionômicos?

Afinal, qual é o novo critério que fará pender a balança: aparência, origem social, hereditariedade, passado histórico ou então militância política?

É incrível como, em sentido inverso, mais uma vez se "naturalizam diferenças", ou joga-se para o terreno da biologia o que é, de fato, da política dos homens. Diante dessa postura, mais uma vez, de nada vale a vontade do indivíduo, reduzido à sua condição biológica. Ou melhor, a autodefinição vira critério "subjetivo" diante da nova eficácia dos também novos especialistas das raças, equipados com suas modernas máquinas azeitadas de medição.

Cotas e o tema da desigualdade fazem parte de uma agenda nacional inadiável. No entanto, o que está em pauta, como dizem Maio e Ventura Santos, são, justamente, as "formas desse enfrentamento". Para tanto, de nada vale esquecer que raça é um "construto social" e retornar a um modelo essencializado, pautado por critérios físicos, novamente alçados à condição de "científicos". É hora de dizer não à ilusão dos, assim chamados, critérios objetivos. Caso contrário estaremos assumindo o modelo do caranguejo: um passo para frente, mas, pelo menos, três para trás.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    24 Ago 2005
  • Data do Fascículo
    Jun 2005
Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social - IFCH-UFRGS UFRGS - Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Av. Bento Gonçalves, 9500 - Prédio 43321, sala 205-B, 91509-900 - Porto Alegre - RS - Brasil, Telefone (51) 3308-7165, Fax: +55 51 3308-6638 - Porto Alegre - RS - Brazil
E-mail: horizontes@ufrgs.br