Acessibilidade / Reportar erro

O triste caso do vestibular da Universidade de Brasília

ESPAÇO ABERTO

O triste caso do vestibular da Universidade de Brasília

Sérgio D. J. Pena

Universidade Federal de Minas Gerais – Brasil

Stanislaw Ponte Preta (o inesquecível Sérgio Porto) lançou, em 1966, em plena vigência da ditadura militar (que ele chamava de "Redentora") um livro que se tornou um dos clássicos da literatura humorística brasileira, o Festival de Besteira que Assola o País – FEBEAPÁ (Nogueira, [s.d.]). Stanislaw afirmava ser difícil estabelecer com certeza o dia em que as besteiras começaram a assolar o Brasil (suspeito que tenha sido em 22 de abril de 1500), mas certamente as besteiras rolavam soltas em 1966. Pois bem, desde que foi iniciada recentemente a discussão de cotas raciais no Brasil o besteirômetro tem acusado alta contínua. Muitas asneiras têm sido ditas e escritas por políticos, professores e palpiteiros em geral. Mas certamente o festival atingiu níveis tsunâmicos com a decisão da Universidade de Brasília (UnB) de montar uma comissão para homologar a "identidade racial" dos candidatos ao vestibular pela análise de fotografias.

Eu não desejo entrar na discussão da constitucionalidade do sistema de cotas ou da eficiência do mesmo em alavancar mudanças sociais. Thomas Sowell mostrou em seu livro Affirmative Action Around the World (2004) que até hoje a experiência mundial com cotas não tem sido muito boa, mas, quem sabe, no Brasil as coisas não podem ser diferentes?

De acordo com o Guia do 2º Vestibular de 2004 da UnB, para concorrer às vagas reservadas pelo sistema de cotas, cada candidato deveria ser de cor preta ou parda, declarar-se negro(a) e optar pelo sistema de cotas para negros. Para satisfazer o primeiro quesito o candidato tinha então de ser fotografado no momento da inscrição e essa foto analisada por uma comissão que poderia homologar ou não a inscrição do candidato. Maio e Santos discutem lucidamente o absurdo deste retorno a práticas atávicas do nefasto regime nazista, quando comissões se reuniam para decidir se um indivíduo era judeu ou não. Mas o ponto que eu gostaria de discutir é a total falta de relevância dos critérios morfológicos usados pela comissão. Afinal, qual é o significado da presença em um candidato, dos traços icônicos da negritude (pele pigmentada, cabelo crespo, olhos escuros, lábios grossos e nariz achatado)? De acordo com os nossos estudos na população brasileira (Parra et al., 2003), praticamente nenhum. Usando marcadores genéticos de ancestralidade africana e critérios morfológicos muito similares aos usados pela comissão da UnB, observamos que no Brasil há apenas uma muito tênue correlação entre cor e ancestralidade. Em outras palavras, em nível individual, não é possível fazer uma estimativa confiável do nível de ancestralidade africana de uma pessoa pelas suas características físicas.

Do ponto de vista puramente morfológico não é raro verificar no Brasil que dois irmãos diferem substancialmente em "categorias de cor". Não seria ridículo se a comissão homologasse um candidato e deixasse de homologar seu irmão ou irmã? Uma justificativa da comissão da UnB para a utilização do critério morfológico é que os candidatos com mais características físicas africanas teriam mais chance de ser discriminados e assim a comissão deveria examinar os candidatos com os "olhos da sociedade". Esse é um argumento absurdo, digno de medalha de ouro no FEBEAPÁ. Quer dizer então que a candidatura do filho claro do favelado negro não deve ser homologada, enquanto a do filho moreno do rico branco (lembremos que no Brasil o dinheiro embranquece) está perfeitamente de acordo com as normas e regulamentos da UnB? Não seria esperado que a universidade pública abrisse o caminho e ensinasse à sociedade que o preconceito é injustificado, irracional, perverso e cruel? Ao invés disso, não estaria a UnB absorvendo e internalizando os preconceitos da sociedade? Se os "olhos da sociedade" são racialistas, a universidade deve se tornar racialista também?

O único critério admissível para cotas é a autodeclaração. Se a UnB considera esse sistema suscetível a fraudes, pecou ao tentar corrigi-lo usando uma metodologia cientificamente inválida e socialmente ofensiva. Seria como se ao comprar um carro eu, por desconfiar da palavra do vendedor, me baseasse somente na sua aparência externa e na sua cor. Com a agudeza dos cartunistas, Angeli retratou a situação do FEBEAPÁ das cores no Brasil de maneira magistral:

Referências

NOGUEIRA Jr., A. Projeto Releituras: Stanislaw Ponte Preta (Sergio Porto). [s.d.]. Disponível em: <http://www.releituras.com/spontepreta_bio.asp>. Acesso em: 2 maio 2005.

PARRA, F. C. et al. Color and genomic ancestry in Brazilians. Proceedings of the National Academy of Sciences of the U.S.A., v. 100, p. 177-182, 2003.

SOWELL, T. Affirmative action around the world: an empirical study. New Haven: Yale University Press, 2004. 239 p.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    24 Ago 2005
  • Data do Fascículo
    Jun 2005
Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social - IFCH-UFRGS UFRGS - Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Av. Bento Gonçalves, 9500 - Prédio 43321, sala 205-B, 91509-900 - Porto Alegre - RS - Brasil, Telefone (51) 3308-7165, Fax: +55 51 3308-6638 - Porto Alegre - RS - Brazil
E-mail: horizontes@ufrgs.br