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Apresentação

Apresentação

Pelo menos há mais de três décadas que o termo "performance" vem adquirindo visibilidade e espaço de interlocução na literatura antropológica internacional, sobretudo a anglo-americana. Por outro lado, no Brasil, a sua inserção no vocabulário cotidiano para expressar desde o bom desempenho de uma máquina, de um político ou de uma atividade burocrática até a artisticidade de um ator, de um cantor ou uma banda de rock, bastaria para enfatizar a pertinência do olhar antropológico sobre tal fenômeno. Com efeito, esse termo transfronteiriço, de poucas transparências, ora reclamado individualmente pelas artes, ora consorciado com as humanidades, despertou o seu interesse na antropologia como categoria artística, epistemológica, heurística, graças a observações pontuais presentes já nos estudos etnográficos pioneiros de Malinowski, Radcliffe-Brown e Franz Boas. Portanto, estamos falando de uma herança deixada pelos clássicos – em estado latente, é bem verdade – que vem se reatualizando conjuntamente com outras questões que interpelam a teoria e a prática antropológica na contemporaneidade. Acreditamos que a variabilidade semântica e o deslizamento conceitual da performance, como não poderia deixar de ser, em se tratando de um termo reivindicado por uma multiplicidade de campos e vozes disciplinares, estimula ainda mais o diálogo e o posicionamento estratégico das etnografias antropológicas em um espaço acadêmico multissituado. É nessa perspectiva que enquadramos a contribuição do presente volume de Horizontes Antropológicos.

Como ponto de partida, lembramos que a centralidade do antropólogo anglo-americano Victor Turner (1920-1983) nos estudos teóricos e etnográficos da performance começa finalmente a despontar na literatura antropológica brasileira, depois de um longo período em que o conhecimento desse autor ficou restrito à tradução em português do seu livro O Processo Ritual, acrescido mais recentemente da tradução de A Floresta de Símbolos. Talvez tenhamos perdido nesse tempo um nexo importante que ligou Turner, o seu trabalho teórico sobre performance e muitas das discussões que se geraram em torno da chamada virada pós-moderna na antropologia americana. Os seus pronunciamentos em seus escritos finais em favor de uma antropologia liberada do peso da tradição do cientificismo modernista – inscrito segundo reconhece na sua identidade prévia como antropólogo funcionalista – revelam o seu empenho em uma práxis antropológica revigorada pelo humanismo intenso do encontro intersubjetivo em campo. É assim que Turner recupera a sua densa experiência etnográfica na África e a projeta, juntamente com as colaborações teóricas desenvolvidas nos Estados Unidos com o sociólogo E. Goffman e com o diretor de teatro Richard Schechner, para o cenário de uma antropologia que coloca sob suspeição a fixidez e coerência de sistemas sociais em favor do foco em eventos esquecidos, desprezados, que emergem nas descontinuidades, ambigüidades, mesclas e indeterminações processuais do cotidiano. Este "programa" teórico encontrará no caráter emergente, movente da noção de performance em rituais, gêneros artísticos, formas da cultura expressiva e microinterações da vida cotidiana um campo aberto a inúmeras experimentações e refinamentos posteriores nas etnografias de corte menos "realista". As observações etnográficas focadas na performance situam o late Turner junto daqueles que passam a rejeitar a noção de cultura como uma resposta a normas de conduta preestabelecidas pela estrutura social, redirecionando o foco analítico para o construtivismo social, o agenciamento, a historicidade das práticas sociais, retomadas em suas descontinuidades, no fluxo e fluidez do encontro de intersubjetividades em campo. Assim, a importância hermenêutica da performance na análise do processo social vai se delineando juntamente com as discussões na antropologia do paradigma "pós-moderno", um conceito cujas implicações para a disciplina Turner antecipara em seus últimos trabalhos.

Os vinte e tantos anos decorridos desde os primeiros confrontos epistemológicos e discussões sobre o tema da pós-modernidade nas ciências humanas ajudaram a "naturalizar" certos termos do debate, ao ponto de não mais causarem estranhamento certas categorias que nem mesmo chegaram a passar pelo crivo da estréia e já se instalaram no discurso acadêmico. Esse parece ser o caso em especial da performance. Portanto, quando se trata de historicizar ou problematizar o seu percurso teórico, como o fazem alguns textos desta coletânea, não é por acaso que Turner constitui-se em uma espécie de Leitmotiv, ainda que outras linhagens mesmo dentro da antropologia possam ser identificadas, como é o caso da "etnografia da fala", com importantes ramificações dentro e fora da antropologia ou das teorizações desenvolvidas mais especificamente no campo da antropologia da política entre poder e performances culturais, notadamente pelo antropólogo inglês Abner Cohen, como Turner, outro ex-aluno de Max Gluckman oriundo da "Manchester School".

Se, mesmo quando ausente, a presença das idéias de Turner é sentida nas constatações, contrapontos e superações propostas na interface antropologia e performance, esta coletânea contempla justamente essa centralidade sem perder de vista as implicações que a historicidade do pensamento turneriano acarreta para aqueles que realizam hoje a sua exegese e para os que exploram outras possibilidades.

Assim, o texto de John Dawsey – O Teatro dos "Bóias-Frias": Repensando a Antropologia da Performance – propõe um olhar ao inverso: se os estudos de Victor Turner sobre performance, sobre os paradigmas de teatro na antropologia são sugestivos para a análise de uma etnografia entre trabalhadores dos canaviais no interior paulista, a contrapartida é que esse "teatro de canaviais e carrocerias de caminhões" também é sugestivo para se repensar um conjunto de questões sobre os limites e alcances teóricos das interfaces da performance e antropologia.

Na seqüência, Rubens Alves da Silva retoma detalhadamente a discussão sobre a noção de performance e drama na antropologia ao modo de uma genealogia dessa problemática, traçada a partir do diálogo com textos fundantes de Victor Turner, Clifford Geertz, Michael Taussig e Richard Schechner.

Em Ritual, Schechner e Performance, Regina Polo Müller, ao modo de uma auto-etnografia, reflete sobre os diferentes posicionamentos vividos em sua trajetória acadêmica ao enfrentar como antropóloga-performer profissional um novo estranhamento – o do teatro experimental do conhecido parceiro intelectual de Turner, Richard Schechner. Ao mergulhar neste próximo-distante campo da cultura acadêmica e artística, revisitando teoria antropológica e performance ao vivo sob a supervisão do próprio Schechner, a autora devolve ao leitor preciosas nuanças do ofício antropológico apreendido no jogo de tensões criativas entre teatro-performance-etnografia.

No mesmo registro reflexivo, em Mestres do Tao: Tradição, Experiência e Etnografia, José Bizerril Neto trama a experiência vivida (Erlebnis) em um campo de sociabilidades multissensoriais como o do taoísmo, para refletir sobre o etnógrafo como um performer, nos seus usos específicos e ambivalentes da linguagem e do corpo e como isso se traduz na produção do conhecimento antropológico.

Em outro registro, focado nas performances vocais masculinas entre torcedores de futebol freqüentadores de partidas televisivas em bares, Édison Gastaldo nos faz lembrar que o interacionismo simbólico de sociólogos como Goffman, Garfinkel e Howard Becker constituiu-se em uma das vertentes alimentadoras dos estudos de performances da fala e oralidade, e que os métodos de observação e análise de situações clássicas de interação – o hospital, a fábrica, o escritório – muito contribuíram para o enquadre antropológico de microssituações de falas e conversas sob a ótica da performance.

Esse é o caso da etnografia desenvolvida por Luciana Hartmann sobre a performance nas narrativas orais dos contadores de "causos" da fronteira entre Argentina, Brasil e Uruguai, em que a autora, na esteira da etnografia da fala, enfrenta o desafio metodológico de textualizar as inflexões corporais e vocais dos narradores e reposicioná-las nos referentes do universo cultural em questão.

De certa forma, essa mesma questão metodológica reaparece no texto de Rose Satiko Gitirana Hikiji, transposta para um grupo de jovens da Febem, músicos de uma orquestra formada no âmbito de um dos muitos projetos sociais ora em andamento no país, em que as dimensões conflitivas das diferenças entre autoridades, público e participantes do projeto emergem nas falas sobre e nas performances do grupo.

Uma última mostra exemplar das possibilidades abertas pelos estudos focados na performatividade verbal nos é oferecida pelo trabalho de campo da diretora teatral Paula Vilas junto a uma comunidade quilombola do Estado de Goiás. A autora no seu estudo aponta valiosas sugestões de percurso teórico-metodológico para que as vocalidades afro-brasileiras, em seus múltiplos aspectos performativos captados pela etnografia, sejam a escuta da memória "incorporada" da diáspora afro-atlântica, da vocalidade enquanto produção histórico-social.

Inverter o olhar antropológico do Sul para o Norte, do nativo para o intérprete, eis a proposição do instigante artista mexicano Guillermo Gómez-Peña, contida em inúmeras de suas criações performáticas informadas pelas teorizações dos estudos pós-coloniais. Ao apresentarmos o volume com imagens na capa da performance El Naftazteca, preludiamos aos leitores uma seqüência de apresentações acadêmicas que foram performatizadas do ponto de vista teórico e artístico no texto do mesmo autor que encerra esta secção temática. Esperamos, assim, que as possibilidades heurísticas da performance, vistas de fora ou de dentro, sirvam para manter em permanente estado de atualização o diálogo sobre o caráter contingente, emergente e reflexivo do trabalho de campo na antropologia.

No Espaço Aberto deste número foram incluídas as contribuições de dois conhecidos antropólogos europeus – João de Pina Cabral e Fernando Giobellina Brumana –, revisitando, sob diferentes perspectivas, as tensões geradas pelo encontro colonial em África, bem como a colaboração da historiadora Celia Maria Marinho de Azevedo, que, em A Recusa da "Raça": Anti-Racismo e Cidadania no Brasil dos Anos 1830, desvela as ambigüidades que marcaram as primeiras gerações de militantes anti-racistas no país, sobretudo em seu conformismo com a escravidão.

Um último registro: a força do uso corrente do termo "performance" em português e em outras línguas latinas como o espanhol, o italiano e o francês, gerando inclusive neologismos como performero, em espanhol, ou o verbo "performatizar" e o adjetivo "performático", em português, nos fez empregá-lo neste volume sem o recurso do itálico.

Maria Elizabeth Lucas

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    15 Dez 2005
  • Data do Fascículo
    Dez 2005
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