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Des maux indicibles: sociologie des lieux d'écoute

RESENHAS

Fassin, Didier. Des maux indicibles: sociologie des lieux d'écoute. Paris: La Découverte, 2004. 197 p.

Jaqueline Ferreira

Universidade Federal Fluminense - Brasil

Uma nova linguagem se impôs no contexto da ação social e mais acentuadamente no espaço público francês para qualificar os problemas da sociedade contemporânea durante a década de 1990: o do "sofrimento psíquico". Desempregados, adolescentes-"problema", jovens usuários de drogas, imigrantes em situação de clandestinidade, mulheres vítimas de violência e moradores de rua, mas igualmente trabalhadores sociais e agentes administrativos que exercem suas atividades junto à estes, passam a ser considerados como vítimas de uma fragilidade psicológica, justificando a intervenção do poder público e agentes do setor privado. A fim de remediar esta nova desordem, foram criados pelo Estado, através de circulares ministeriais "locais de escuta" (lieux d'écoute), que se multiplicaram pela França durante esse período.

É sobre este fenômeno, as modalidades de ação e seus significados que trata o livro organizado por Didier Fassin, antropólogo, sociólogo e médico que mobilizou uma equipe de pesquisadores ligados ao Centre de Recherche sur les Enjeux Contemporains em Santé Publique (Cresp), dirigido por ele, para a realização de uma pesquisa etnográfica e entrevistas em vários destes locais de escuta. A pesquisa foi realizada em cinco instituições diferentes que foram beneficiadas com verbas deste programa: um centro de apoio psicológico, um espaço de sociabilidade para adolescentes, um local de acolhimento e assistência aos pobres (busca de alojamentos, alimentação), um local de encaminhamento para o trabalho e inclusão social, um conselho jurídico para vítimas de violência.

O livro inicia com uma introdução de Didier Fassin que nos mostra o nascimento dessa política em todas as suas modalidades e implicações na relação entre pobreza e sofrimento, questões sociais e urbanas, ordem pública e saúde pública, cuja proposta de ação não se encontra nem no âmbito social e nem na psiquiatria, mas sobretudo uma complementação destas duas esferas que necessita ser posta em prática. Há uma dificuldade em nomear e qualificar o sofrimento e essa indeterminação dos conceitos e noções permite que os poderes públicos e profissionais legais possam negociar a relação com os usuários sob bases mínimas de transação terapêutica. Mesmo que a escuta tenha um referencial clássico nos métiers do psiquismo (psicanálise lacaniana em um caso e psicologia de apoio em outro), não são buscados especialistas da área, muito pelo contrário, enfatiza-se que qualquer profissional capaz de exercer uma empatia com o público-alvo definida em termos de afeto e de um trabalho de acolhimento é competente para essa proposta. Nos casos em que os agentes são psicólogos ou psiquiatras, é na condição que eles esqueçam e façam o público esquecer dessa condição. Escutar é um ato e até mesmo uma atitude que se encontra no nível do quotidiano e que pode ser colocada em prática por qualquer profissional. É o que estimam as circulares, insistindo na necessidade de "banalização" desses locais. Há uma "desprofissionalização" dos métiers onde paradoxalmente o fim da atividade psicológica coincide com a psicologização da instituição. Essa perda de identidade profissional não afeta somente os interventores, como também o público, pois vai tratar as desordens sociais por uma mediação difusa, sem um verdadeiro fundamento teórico, destinada a produzir uma relação de proximidade onde a verdadeira demanda é por justiça.

Na segunda parte do livro há a descrição pelos pesquisadores das instituições e das práticas de locais de escuta implantadas. Algumas destas estruturas se serviram da indefinição dos textos das circulares ministeriais para adaptar e reorientar suas atividades ao público fragmentado que recebem: uns tomam o partido dos mesmos (e fazem a estrutura evoluir de acordo), outros se recusam a reconhecê-la (a fim de manter a estrutura imutável), outros ainda reconhecem esse descompasso, mas o justificam sob o risco de modificar o sentido de sua missão no final.

A escuta improvisada sugere um trabalho autodidata (o educador e o jurista que não tiveram esse tipo de formação, mas fazem o possível). Para aqueles que a praticam significa humanizar a relação profissional levando em conta os problemas das pessoas, sendo receptivo às expectativas dos problemas que não terão uma solução imediata. Conseqüentemente, esta prática se aproxima muito de um trabalho de "animação", que consiste em ocupar de maneira lúdica e às vezes educativa os adolescentes e jovens, mas ela é reivindicada como função diagnóstica e terapêutica.

Os problemas dizem respeito a qualquer classe social, no entanto o programa é destinado aos subúrbios parisienses, portanto aos grupos de baixa renda. A representação tanto pelos idealizadores como pelos interventores dos destinatários da proposta é em termos de défice: sem recursos, sem alojamentos, dificuldades escolares, como também perda de cultura, sem referências e relações sociais. Freqüentemente os mesmos colocam em prática métodos de avaliação que permitem distinguir as boas e más vítimas.

A descrição nos faz descobrir que entre o texto das circulares e o quotidiano das intervenções, entre o que imaginam os conselheiros do ministro e o que fazem os atores sociais, entre as palavras e as coisas, há uma distância considerável. Ninguém duvida da impotência dos agentes e ineficácia desses locais: nem os interventores que atuam sobre as realidades das quais eles não têm possibilidade de intervir, nem os usuários que apreendem essas insuficiências, nem mesmo os idealizadores das circulares que não se iludem sobre o dispêndio de dinheiro público gasto em algumas dezenas dessas estruturas no país. Assim, podem-se entender a tentativa dos primeiros em diversificar suas ações, o relativo desinteresse dos segundos e a relutância dos terceiros em renovar os financiamentos.

A grande questão suscitada nesta obra é que efeitos produzem essa política? O que significa traduzir as desigualdades sociais sob o léxico do sofrimento e de responder com estruturas de locais de escuta? É necessário se perguntar como essa linguagem do sofrimento e as representações e práticas do governo pela escuta modificam desigualdades tanto individuais como coletivas. Para os indivíduos esse processo de "psicologização" do social lhes impõe uma maneira de se apresentar diante dos outros diante de um duplo registro: de um lado os aspectos relacionados ao infortúnio são colocados em ênfase, e de outro os discursos são constituídos de modo biográfico. Não há muito espaço para a denúncia de violências institucionais (escola, trabalho, polícia, etc.) das quais os indivíduos são vítimas ou de injustiças relativas ao fato de serem jovens habitantes de subúrbio. Não há muito espaço para uma interpretação de ordem mais geral (colocando em causa a origem dos eventos), mas somente explicações particulares remetendo a histórias singulares e a uma capacidade pessoal de enfrentamento dos problemas.

A conclusão que nos oferece Didier Fassin é que estes locais de escuta, enquanto políticas sociais, têm função exclusivamente reparadora. A resposta que a sociedade oferece escutando o sofrimento das vítimas de desigualdade social revela uma dupla preocupação: pacificação (questões de ordem pública com intervenções locais restritas) e compaixão (os gestos dos usuários são lidos em termos afetivos). Onde práticas preventivas e repressivas são pouco eficazes, o Estado oferece uma resposta humanizada e imediatamente visível através da escuta. Nada ilegítimo do ponto de vista de ação pública, mas sem preocupação com a justiça social.

O livro tem uma importância atual tendo em vista a recente violência urbana que aflige os subúrbios parisienses, cuja explicação reside nas perturbações emocionais dos jovens habitantes destes locais. Por outro lado, embora trate do contexto francês, o livro é útil para pesquisadores brasileiros que se dedicam ao estudo de políticas públicas que buscam intervir nas desordens quotidianas causadas pelas desigualdades através das relações entre agentes e usuários (o Programa de Humanização da Saúde proposto pelo Ministério da Saúde ou os balcões de acolhimento dentro das diretrizes do SUS são um bom exemplo). Embora Brasil e França possuam contextos históricos e socioeconômicos muito diferentes, semelhantes formas de tratamento dos problemas são continuamente propostas como um modo de qualificação e de resolução desses problemas sociais e normalização de condutas dos grupos de baixa renda.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    08 Nov 2007
  • Data do Fascículo
    Jun 2006
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