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Inimigos fiéis: história, guerra e xamanismo na Amazônia

RESENHAS

FAUSTO, Carlos. Inimigos fiéis: história, guerra e xamanismo na Amazônia. São Paulo: Edusp, 2001. 592 p.

José Luiz Costa Neto* * Graduando em Ciências Sociais.

Universidade Federal do Rio Grande do Sul – Brasil

Toda etnografia transposta ao papel tem um caráter polifônico: de um lado as diversas "vozes" dos nativos, de outro a "voz" do antropólogo. Até aí nenhuma novidade. Contudo, Inimigos Fiéis possui uma polifonia especial. De um lado, há uma sociedade indígena – os Parakan㠖 com uma história fascinante. De outro, um antropólogo – Carlos Fausto – disposto a refletir durante uma década sobre o material etnográfico coletado e modelos teóricos precedentes. O resultado é uma descrição minuciosa do grupo não só nos seus aspectos sincrônicos, mas das transformações – que não são poucas! – pelas quais passaram no último século. Fausto ainda obtém fôlego para realizar uma pesada síntese comparativa da produção acadêmica sobre os grupos amazônicos, com ensejo de apresentar novas propostas e complementar outras.

Na primeira parte do livro o autor empreende uma análise diacrônica dos Parakanã. Ocorre que, no último decênio do século XIX, houve uma disputa interna por uma mulher raptada. É quando o grupo original se divide em dois blocos. Tornam-se, então, inimigos que voltariam a se encontrar pelo menos uma dezena de vezes até fins da década de 1960 – em algumas ocasiões esboçando um reencontro amigável, mas que invariavelmente acabaram em homicídios e raptos. Não obstante, basilar não é a dissensão em si, mas suas conseqüências: os dois blocos – oriental e ocidental – vão seguir caminhos diametralmente opostos em seus padrões de assentamento e mobilidade, modos de subsistência, sistemas políticos e morfologia social.

De forma sintética, o bloco ocidental teria se caracterizado pelo progressivo abandono das aldeias e da horticultura em prol dos assentamentos, da ampliação sistema de trekking e da caça especializada – até adotarem o nomadismo completo. Ao longo desse processo "optam" pela ausência de segmentação interna e pela acefalia política. Na política externa buscaram manter uma relação mais intensa com o exterior. Notadamente sob o signo da guerra.

O bloco oriental, por sua vez, ter-se-ia caracterizado por um sedentarismo mais presente, com a configuração da aldeia no espaço privilegiado, e numa horticultura relativamente variada somada à caça especializada. Possuíam segmentação interna e chefia. Todas essas características, por sua vez, ligavam-se à adoção de uma postura sociocêntrica, evitando ao máximo o contato com o exterior.

Todas as distinções supracitadas, erigidas no último século, são descritas de forma minuciosa pelo autor. Este empreende uma sofisticada reconstrução histórica baseada em documentos – como relatórios de órgãos do governo em contato com ameríndios da região há, pelo menos, 70 anos – e nos relatos de indígenas dos dois blocos. Concomitantemente Fausto analisa de forma crítica modelos que pretendem compreender as sociedades indígenas – suas práticas e transformações – única e exclusivamente a partir de fatores exógenos.

Sem excluir tais fatores, Fausto os associa a fatores internos e às ações indígenas, através de elaborada argumentação. Fundamentado em análises estruturais de mitos e interpretações mais complexas de fenômenos externos – como o avanço das frentes de colonização –, em meio a outros recursos, apresenta o processo de diferenciação dos dois blocos a partir da confluência de estruturas, eventos e ações.

Dentre as novas formas assumidas pelos Parakanã, o processo de construção de distintas morfologias sociais entre os dois blocos merece destaque por encaminhar as propostas que serão alvitradas na segunda parte do livro.

Conforme Carlos Fausto, após a cisão os orientais possuíam um único grupo de germanos. Tal fato tornava crônica a falta de mulheres idealmente desposáveis. Mas uma ação atípica modificou esta situação: a adoção de Jarawa, uma criança inimiga. Não há qualquer evidência de tal prática em outra situação, já que o mesmo poderia vir a vingar seus ascendentes. Todas as crianças raptadas junto ao grupo de Jarawa foram mortas em seguida. Porém, Jarawa foi lentamente integrado ao grupo. Assim, à identidade assimétrica entre consangüíneos, baseada em distinções etárias, foi sobreposta uma alteridade simétrica, baseada em metades exogâmicas. Puderam, a partir dos descendentes do inimigo adotado, produzir uma heterogeneidade interna mínima. O grupo se segmentava com a produção de uma alteridade interna, através das metades exogâmicas mantidas por um regime matrimonial avúnculo-patrilateral, e, simultaneamente, com a manutenção das identidades através das relações patrilineares. Produziram, ainda, um espaço de representação interna que, abalizado por valores antagônicos aos da guerra, fortalecia a introversão do bloco.

Os ocidentais, por seu lado, puseram fim a qualquer chance de segmentação interna. Esse bloco, no momento da dissensão, possuía parentelas suficientes para produzir uma morfologia baseada em metades exogâmicas. Contudo, optaram pela valorização dos laços de afinidade até que nenhuma parentela fosse reconhecida. Já as chances de instituição de lideranças foram sufocadas por atitudes como a socialização dos prestígios conferidos ao matador – que, de qualquer forma, eram simbólicos e nunca sociológicos. Arquitetaram, desse modo, uma homogeneidade interna ao longo do século XX.

Assim, passa-se a segunda parte do livro, que dá continuidade à análise diacrônica, mas aos poucos toma formas sincrônicas. Conforme Fausto, os diferentes regimes internos estão associados a diferentes comportamentos bélicos. Os ocidentais, que dissolveram diferenças internas, se caracterizaram por inúmeros conflitos bélicos quase que exclusivamente ofensivos – resultado da busca incessante de uma alteridade no exterior. Já os orientais, que se puseram a produzir alteridades internas, evitavam qualquer tipo de envolvimento com o exterior. Sua postura sociocêntrica foi construída concomitantemente com o fim da socialização dos prestígios conferidos ao matador e da potencialização dos estigmas que recaíam sobre este. Evitava-se, ao máximo, o outro. Assim, o autor compõe um quadro das disposições internas de cada grupo e como elas são acompanhadas de políticas externas distintas.

Mas o estudo da guerra parakan㠖 juntamente com um vasto material etnográfico sobre a prática aludida entre diversos grupos ameríndios – leva Fausto a vôos maiores. Nesse momento, dá início a uma abordagem sincrônica, propondo que haveria semelhanças estruturais nas representações sobre a guerra e o xamanismo, a despeito dos dessemelhantes comportamentos bélicos dos dois blocos.

Mas antes de tratar das confluências simbólicas dos Parakanã, o autor sugere um deslocamento interessante – talvez a maior contribuição da obra aos estudos da guerra ameríndia. Alvitra que os estudos dedicados ao tema devem mudar de foco, abdicando da noção de dom e deslocando a atenção do campo da circulação, como pressupõe o uso do conceito maussiano, para o campo da produção. Ao transferir aquilo que é essencial nesse tipo de guerra para a esfera da produção realiza um deslocamento teórico significativo. Afinal, o modelo, elaborado por Eduardo Viveiros de Castro e adotado por Carlos Fausto, da economia simbólica da predação, sempre priorizou a esfera da circulação, mais especificamente da troca, nos estudos sobre a concepção de pessoa entre os ameríndios.

Substitui, assim, o conceito de Marcel Mauss pelo de consumo produtivo, elaborado originalmente por Karl Marx e que remete à idéia de gasto material e energético destinado à produção de objetos. Adaptando o conceito à situação ameríndia, tem-se a destruição – consumo – da pessoa em suas partes corpóreas e incorpóreas. Só então haveria produção de predicados resultantes das subjetividades substantivadas do inimigo consumido. É, portanto, na esfera da produção que ocorreria a captura de identidades e qualidades no exterior. Além disso, o conceito de Marx restituiria as perdas e destruições – materiais e imateriais – envolvidas na guerra e que o conceito de dom suprimia.

Retornando à hipótese supracitada, de que os dessemelhantes comportamentos bélicos e o xamanismo dos dois blocos convergiam no plano simbólico, o mote do livro é a idéia de que essas duas formas de comunicação com o exterior – com os outros se preferirem – operariam relações de domesticação. Para o autor, a economia da predação, baseada nos valores da guerra, teria englobado o xamanismo.

São diversas as evidências apontadas por Fausto que demonstrariam essa subsunção do xamanismo à guerra. Entre elas a relação horizontal, homens-inimigos, assumida pelo xamanismo. Há as ambigüidades que envolvem o matador de inimigos e o grande sonhador. Enquanto o primeiro é potencialmente um matador de parentes, o segundo é potencialmente um feiticeiro. Em ambos os casos são tênues as linhas que separam a notoriedade positiva de seu correlato negativo.

Também há uma referência simbólica à antropofagia. O xamanismo parakanã não possui xamãs, mas grandes sonhadores que mantêm contato com inimigos oníricos. Os primeiros são entendidos como senhores dos segundos, que, por sua vez, assumem o papel de xerimbabos. O inimigo onírico oferece cantos e nomes ao sonhador, que os domestica para, após um delicado processo de (re)inimização, serem executados. Todos os sujeitos envolvidos nesse universo onírico – o senhor, o inimigo e os cantos – são associados ao jaguar e, conseqüentemente, entendidos como seres hematófagos. Na guerra, a referência simbólica à antropofagia/hematofagia associa-se à idéia de que barriga do homicida ficaria repleta de sangue do inimigo morto. Em ambos os casos predar é devorar subjetividades, portanto sujeitos. Dito de outra forma, é ser um canibal.

Essa relação entre subjetividades e, portanto, entre sujeitos tem, no caso da guerra, seu ápice no resguardo pós-homicídio. Trata-se do momento em que o canibal busca assimilar os princípios incorporais da vítima. Já no xamanismo ela se verifica no momento em que o senhor busca domesticar o inimigo onírico e seus cantos. Essas relações entre os sujeitos envolvidos no homicídio e nos sonhos são compreendidas enquanto filiação adotiva. A predação se converte em domínio e arrimo. Contudo, tal filiação é ambígua. O vínculo de controle do matador e do sonhador sobre as subjetividades exteriores é mais aparente do que real, posto que em ambos os casos não haja pólo-objeto, mas somente pólos-sujeitos.

Disso decorrem os perigos que envolvem essa busca por subjetividades-outras. A hiper-subjetivação – do inimigo morto na guerra e do inimigo e seus cantos no universo onírico – é necessária aos ensejos, do grupo, de obtenção de qualidades exteriores. Mas, em contrapartida, transforma a figura do homicida e do sonhador em canibais potencialmente perigosos aos seus semelhantes.

Esses processos de assimilação de subjetividades Fausto denominará de familiarização. Propõe-se, desse modo, a complementar o modelo de economia simbólica da predação por meio da predação familiarizante. Uma economia cujo escopo é a fabricação de pessoas, articulando a predação no exterior à produção no interior. Fausto, fundamentado em rico material etnográfico, sustenta a hipótese de que esse processo, da afinidade à consangüinidade, se daria entre diversos grupos ameríndios de distintos troncos lingüísticos, como os Wayãpi, Jívaro-Achuar e Yágua.

Nos últimos dois capítulos o autor ainda apresenta a materialização dessa forma de economia através da análise dos rituais parakanã, e aborda o papel conferido aos brancos dentro da economia simbólica parakanã, procurando no epílogo desenvolver melhor algumas propostas teóricas apresentadas ao longo do texto e aplicando-as a outros contextos.

Aliando perspicácia e talento, Carlos Fausto produz uma obra obrigatória aos interessados em etnologia e história indígenas. São quase 600 páginas formadas pela apresentação transparente dos processos teórico-metodológicos, valiosas sínteses comparativas e elegante análise simbólica e estrutural.

No entanto, ao concluir o livro, questiona-se sobre o porvir de uma sociedade, baseada na apropriação de subjetividades estrangeiras, em contato cada vez mais intenso com outra, composta por universo sedutor de objetos – conforme o autor – objetivados. Qual seria a possibilidade de manutenção da economia simbólica apresentada pelo autor? Afirma, apropriadamente, não estar em condições de responder. Mas causa certo desconforto o tom melancólico de Fausto ao propor tal questão. Esse tom contrasta com a análise diacrônica, rara aos estudos sobre sociedades indígenas, empreendida no livro. Como o autor evidencia, se é verdade que no século passado os Parakanã tiveram suas ações moldadas por diferentes processos, não é menos verdade que, enquanto atores sociais culturalmente informados, suas ações também moldaram tais processos. Refuta, em sua sofisticada argumentação, modelos oriundos da ecologia cultural, do historicismo, do economicismo pragmático, entre outros, em benefício de uma visão mais complexa e rica dos fenômenos históricos. Em suma, parte da riqueza de sua obra deriva justamente do fluxo das formas do grupo. Que venham os próximos cem anos de história parakanã!

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    Graduando em Ciências Sociais.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      09 Nov 2007
    • Data do Fascículo
      Dez 2006
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