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O terror e a dádiva

RESENHAS

PEREIRA, Pedro Paulo Gomes. O terror e a dádiva. Goiânia: Vieira: Cânone Editorial, 2004. 200 p.

Tânia Mara Campos Almeida

Universidade Católica de Brasília – Brasil

A dádiva de se compartilhar o sofrimento

Comentar a obra de Pedro Paulo Gomes Pereira é uma oportunidade de retribuir as valiosas reflexões e os sofisticados ensinamentos que nela podemos apreender sobre sociabilidade a partir da epidemia da Aids em nossa sociedade e uma série de temas correlatos. Aliás, de ordens diversas têm sido as retribuições que o autor vem recebendo por esse trabalho, em sua totalidade ou suas derivações, como o prêmio "Antropologia e Direitos Humanos", em 2002,1 1 Prêmio promovido pela Associação Brasileira de Antropologia e pela Fundação Ford. O autor o recebeu pelo texto O Silêncio e a Voz, que se encontra publicado em Pereira (2003). e a ampliação, cada vez maior, de uma audiência interdisciplinar nele interessada.

O dom encontra-se abundante nessa obra, que se trata da adaptação da tese de doutoramento em Antropologia do autor (Pereira, 2001). Quer seja pela desenvoltura com que é realizada a leitura erudita da teoria contemporânea destacada nos campos das ciências humanas e sociais, quer seja pelo talento literário com que a minuciosa etnografia nos descreve a vivência de um grupo de portadores de HIV e pelo particular domínio de conceitos antropológicos com que analisa sua inserção nas esferas avançadas do biopoder, a generosidade de Pereira está presente num esforço explícito de compreensão sensível e refinada por uma perspectiva pouco explorada nos estudos sobre a Aids no país: o terror que ela suscita.

Além disso, seu respeito pelos leitores permeia cada uma das seções da obra, nos cuidados com a clareza das argumentações, no rigor com os detalhes e na provocação lançada ao final delas, ao inserir uma discussão profunda, quando se pensa que já não há mais o que receber, sobre a importância da antropologia falar com (p. 189). Enfim, no livro, a interlocução dadivosa é efetiva e atinge à almejada proposição de constituir-se em uma voz autônoma, que se serve de fragmentos e discursos alheios para devolver aos sujeitos observados e aos autores mencionados, que ali comparecem, um diálogo em diferentes níveis e circuitos de trocas em relação aos habituais trabalhos etnográficos.

De certo modo, a originalidade de seu pensamento é favorecida pela situação sui generis e absurda em que se encontra o grupo de soropositivos moradores da Fraternidade e estudado de 1998 a 1999, conjugada com a opção de se abordar o terror, que ainda é uma categoria tímida na literatura antropológica e resistente ao enquadramento conceitual (Das, 1995; Taussig, 1983). Ou seja, nos limites territoriais de Brasília, distante poucos quilômetros da coordenação nacional do renomado Programa DST/Aids, encontra-se uma centena de miseráveis confinados sob o clima de tensão e medo numa antiga fazenda que em muitos aspectos se assemelha às instituições totais dos moldes de Goffman (1974) e aos campos de concentração. Ao mesmo tempo, mantém-se baseada na filantropia e relações regressivas que se associam a configurações pré-modernas, onde a hierarquia, a economia de castigos (p. 117) e o excessivo controle da autoridade de sua dirigente agrega em si as dimensões paterna, materna e religiosa desse ambiente, dando-lhe o tônus da experiência de sociabilidade. Trata-se de um lugar concebido como um meio de separação dos internos (prostitutas, ex-presidiários, travestis e drogados/as) da sociedade amedrontada e como meio de purificação de seus passados. A doença, então, seria a evidência dessa trajetória individual, má e abjeta, assim apontada pelos voluntários da Fraternidade e autopercebida pelos infectados.

A tais contradições e paradoxos vivenciados por essas pessoas seguem-se outros tantos que podem ser aqui resumidos no tratamento médico, assistencial e psicológico a que se submetem no Hospital Universitário de Brasília (HUB) e no Projeto Convivência, um grupo de pesquisa e apoio aos portadores do vírus, instituído no HUB. Nesse tratamento, que lhes é oferecido dentro dos padrões da assepsia e do isolamento, não são levadas em conta as características da vida na Fraternidade, as quais impedem a adesão prática ao tratamento (horário das refeições e medicamentos, alimentos adequados, procedimentos higiênicos, por exemplo) e se assentam em princípios organizadores e morais que vão contra a idéia do indivíduo descontextualizado e dono de si, basilar para a aplicabilidade do conhecimento biomédico e sua eficácia.

Pereira rapidamente identificou, no fenômeno que se desenha a partir do cotidiano desse grupo em ambas as instituições, um verdadeiro fato social total do terror. Segundo a tradição maussiana por ele tão evocada, a (re)construção desse fenômeno vai sendo feita em intrincadas teias que costuram traços particulares de perfil antropológico a traços gerais de cunho filosófico, sociológico e econômico da nossa época, oferecendo respostas que vão em diversas direções e fazendo do trajeto Fraternidade–HUB/Convivência uma metáfora de relações sociais em vários cenários de sofrimento na contemporaneidade.

É também do manuseio do conceito de dádiva que emerge a idéia de dádiva simulacral (p. 92) para nomear o falso ato de caridade que aprisiona aqueles que dele dependem e que mascara a exclusão cruel sob o manto da beneficência, simulando vínculos e direitos que jamais se concretizam. Em meio a essa dupla e ambígua mensagem aos portadores de HIV, bem como em meio aos outros paradoxos por eles experienciados, o autor lança mão do conceito de double bind (Bateson, 1986, 1991) para esclarecer a permanência deles em tais situações e instituições geradoras e mantenedoras do e pelo terror, sem condições subjetivas e objetivas para com elas romper. O terror seria, então, pilar da modernidade e da pós-modernidade, e se caracterizaria pela emissão de imagens conflitantes entre si, levando os sujeitos à incapacidade de estabelecimento da dádiva autêntica, à destruição das relações afetivas e ao emudecimento de suas vozes.

Em busca de fazer emergir seu posicionamento crítico em relação ao silenciamento daqueles que se vêem na impossibilidade de subjetivar plenamente sua dor, o subalterno, Pereira é audacioso ao colocar a antropologia no alvo de sua crítica. Sua discussão final põe em cheque a construção da autoridade etnográfica, revendo a posição do antropólogo enquanto aquele que descreve o mundo do ponto de vista da verdade. De modo algum o autor faz, a partir do sofrimento alheio, apenas um exercício de reflexividade no texto acadêmico ou traz à tona critérios éticos de envolvimento do pesquisador com as populações estudadas. Ele aponta para a necessidade de se abandonar o olhar hegemônico da antropologia, que lhe autoriza a representar o outro, substituindo-o por uma base comutativa e equânime de olhares.

Essa crítica implica assumir o outro com seus apelos e sofrimentos e, conseqüentemente, a disciplina como uma arena onde valores se confrontam, obrigando-nos a manusear uma gramática alternativa para a definição de princípios como solidariedade e justiça, além de levar-nos a definir a nossa posicionalidade (Hall, 1996) no jogo da dominação. O ponto central é realizar o deslocamento do locus de enunciação do falar por para o falar com (p. 188, 189), fazendo transparecer o olhar e a voz marginal. Na perspectiva de Spivak (1994), a qual é adotada por Pereira, tal tarefa traduz-se em conquistar um espaço diferenciado de enunciação, assegurar com estratégias discursivas um lugar privilegiado nessa luta por uma subjetivação igualitária e nesse compartilhar o sofrimento, recuperando a dádiva de se estar realmente em companhia e em interlocução no fazer antropológico.

Referências

BATESON, Gregory. Mente e natureza: a unidade necessária. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1986.

BATESON, Gregory. Sacred unity: further step to na ecological mind. New York: Harper Collins, 1991.

DAS, Veena. Critical events. Delhi: Oxford University Press, 1995.

GOFFMAN, Erving. Manicômios, prisões e conventos. São Paulo: Perspectiva, 1974.

HALL, Stuart. Cultural identity and diáspora. In: PADMINI, Mongia (Org.). Contemporary postcolonial theory: a reader. London: Arnold, 1996. p. 110-121.

PEREIRA, Pedro Paulo Gomes. Olhos de Medusa: Aids, poder e terror. Tese (Doutorado em Antropologia)–Universidade de Brasília, Brasília, 2001.

PEREIRA, Pedro Paulo Gomes. O silêncio e a voz. In: LIMA, Roberto Kant de (Org.). Antropologia e direitos humanos 2 – Prêmio ABA/FORD. Niterói: EdUFF, 2003. p. 97-155.

SPIVAK, Gayatri. Can the subaltern speak? In: WILLIAMS, Patricia; CHRISMAN, Laura (Ed.). Colonial discourse and pos-colonial theory. New York: Columbia University Press, 1994. p. 66-111.

TAUSSIG, Michael. The devil commodity fetichism in South America. Chapel Hill: University of North Carolina Press, 1983.

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    Prêmio promovido pela Associação Brasileira de Antropologia e pela Fundação Ford. O autor o recebeu pelo texto
    O Silêncio e a Voz, que se encontra publicado em Pereira (2003).
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      09 Nov 2007
    • Data do Fascículo
      Dez 2006
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