Acessibilidade / Reportar erro

O prestígio religioso na umbanda: dramatização e poder

RESENHAS

VICTORIANO, Benedicto Anselmo Domingos. O prestígio religioso na umbanda: dramatização e poder. São Paulo: Annablume, 2005. 188 p.

Marcelo Tadvaldsup* * Doutorando em Antropologia Social.

Universidade de Brasília – Brasil

As religiões afro-brasileiras vêm sendo objeto de diversos estudos nos últimos anos dentro das ciências sociais. A importância decorrente desse interesse reflete não somente o crescimento do número de adeptos dessas formas de religiosidade, como também uma ampliação do espaço público de discussão sobre religiões que historicamente se viram marginalizadas do ponto de vista social e de prestígio. Ao procurar compreender certos trâmites intrínsecos a uma dessas formas de religiosidade – a umbanda do contexto paulistano – o trabalho de Benedicto Victoriano se insere nesse corpus investigativo, contribuindo de forma mais ampla para tais discussões ao fornecer elementos etnográficos e considerações teóricas seguramente generalizáveis para outras realidades que abarcam essa temática.

Fruto de uma tese de doutoramento, em linhas gerais o estudo analisou as relações entre o baixo status social dos adeptos da umbanda e o prestígio que essas pessoas podem adquirir quando são investidos de suas funções dentro dos terreiros. Assim, a mobilidade social e de prestígio pode ser percebida através do papel empregado pela religião a certos adeptos colocados de forma estratégica dentro do ordenamento dos terreiros, e a partir dessas ordenações se torna possível a constituição de sofisticados jogos de poder e de preservação de um sistema hierárquico que mantém e reproduz o prestígio decorrente em tais realidades. Tudo aquilo relativo a tais contextos acaba por servir de subsídio para "movimentar" esses jogos: os símbolos religiosos, as lideranças dos terreiros, as entidades espirituais que se manifestam de tal ou qual forma nas liturgias, assim por diante.

Apesar do tema e do problema de pesquisa serem deveras interessantes, o trabalho possui claras limitações teóricas e metodológicas. O referencial teórico utilizado pelo autor, por exemplo, acabou "engessando" a análise de seu material etnográfico, pois de certa maneira conduziu seu olhar perante a realidade observada. Antropologicamente, isso tende a se configurar em um movimento invertido, já que a teoria deve primeiramente servir para aclarar os dados empíricos, e não o contrário. O autor utilizou a noção weberiana de ação social significativa e a noção bourdieuniana de estrutura e poder simbólico a fim de perceber uma estrutura maior de relações de classes que seria intrínseca a essa realidade. O problema de tal condução teórica consiste em essencializar demasiadamente um campo social que diversos estudos (não referenciados pelo autor) já mostraram ser muito mais complexo, em que diferentes atores sociais, com trajetórias e pertencimentos a grupos e comunidades de sentido múltiplos se encontram envolvidos, o que dinamiza e coloca em outro patamar a mobilidade social e de prestígio desses atores, ainda que tutelados sob as bases de uma certa ordenação religiosa. Em contrapartida, a fim de perceber tais movimentos, a utilização da apreciação fenomenológica goffmaniana, para procurar entender as formas que os sujeitos envolvidos apreciam esses fenômenos, e de Balandier, sobre o poder em cena analisando a dimensão mais ritualística do caso, pareceram mais acertadas e contribuíram melhor para o desenvolvimento da análise. O problema maior, e mais formal, é que tal condução analítica pouco ofereceu em matéria de novidade para os estudos sobre o assunto. Um aspecto conclusivo de tais observações a respeito da obra consiste na própria bibliografia utilizada pelo autor, uma vez que mais da metade da literatura utilizada é anterior aos anos 1990 (69, de 120 referências, para ser mais preciso). Como sabemos, muitos estudos foram realizados sobre o assunto nos últimos anos e uma discussão da envergadura daquela proposta por esse estudo tem o dever de dialogar de forma mais ampla com esse referencial.

Antes de adentrarmos no texto em si, é importante mencionar que o trabalho possui erros gramaticais e de formatação que atrapalham um pouco a leitura, e que mereceriam uma melhor revisão para uma edição futura, seja o caso. Não obstante, a obra foi organizada em quatro capítulos. No primeiro capítulo o autor realiza uma apresentação geral da umbanda, mostrando a ecleticidade que é peculiar ao campo, o palco social de investigação, como se pode pensar a dramatização do poder hierárquico da umbanda e o alcance social que tais relações podem atingir. Adiantando um pouco o assunto, o terceiro capítulo, em realidade, poderia ter sido incorporado ao primeiro, pois, ao discorrer sobre o panteão das entidades religiosas, acaba realizando muito mais uma espécie de glossário dessas entidades e pouco reflete sobre uma pergunta que não foi mencionada ao longo de toda a obra, a saber: dada a própria hierarquia existente dentre os orixás que compõe o panteão afro-religioso, em que medida a incorporação de tal ou qual entidade pode agregar valor à aquisição/manutenção do prestígio social dos adeptos envolvidos? O segundo capítulo, que de fato nos oferece uma etnografia do universo social observado, poderia ter contribuído melhor para a reflexão de questões como essa colocada há pouco. Contudo, a configuração dos três terreiros observados pelo autor mostrou muito mais uma forma de organização pautada pelas relações familiares que extrapolam quaisquer laços de consangüinidade, o que também não é nenhuma novidade. Não por acaso, a não observação e conseqüente reflexão desses e de outros aspectos contidos na etnografia desvelam as principais impropriedades metodológicas da obra: em momento algum existiu uma reflexão do autor a respeito de si e do universo pesquisado. Esse exercício de autoreflexão e de apreciação etnográfica muitas vezes consiste naquilo que nos possibilita desvendar as representações mais subliminares e reveladoras relacionadas às nossas perguntas científicas na área das humanidades. Ainda assim, a apresentação etnográfica daqueles terreiros no segundo capítulo consiste em uma das principais contribuições da obra, ao menos para reforçar a idéia geral relativamente mais compartilhada pelos estudiosos do tema de que sob o nome de umbanda se organizam múltiplas formas litúrgicas, teogônicas e representações sociais e simbólicas vinculadas a certos construtos religiosos.

As relações sociais e simbólicas nos terreiros são discutidas no quarto e último capítulo. Apesar de pouco se remeterem aos casos etnográficos apresentados anteriormente, o estudo procurou mostrar em que medida a hierarquia religiosa pode ser entendida na base do quantum de conhecimento, ou seja, quanto maior for o tempo de trânsito, de pertencimento e de envolvimento nos terreiros, maior se torna o conhecimento a respeito daquele universo e conseqüentemente maior se tornam as possibilidades de acréscimo de valor às identidades desses adeptos e de seu subseqüente prestígio. Outro aspecto interessante trazido pelo autor reside no fato de que quanto maior for o tempo necessário para a aquisição desses elementos em determinado terreiro, pior pode ser a anuência das pessoas nos mesmos, que não por acaso podem procurar outros terreiros onde consigam uma mobilidade social e de prestígio mais rápida. Outros elementos, tais como a vaidade, certas satisfações econômicas e mesmo sexuais podem contribuir para entender o comportamento de muitos adeptos, assim como a própria organização dos terreiros. Além disso, a formação e o fortalecimento de estruturas de clientelismo por parte dos pais/mães de santo para com seus "filhos", através de questões relacionadas à saúde, emprego, reconciliação amorosa e familiar, "proteção espiritual" e outras tantas, contribuem para ampliar o entendimento do problema científico maior na obra analisada, haja vista ser justamente a clientela que consiste na fonte maior de prestígio dos terreiros afro-religiosos, conforme sugeriu o autor, de sorte que: "a religião possibilita o desempenho de novos papéis sociais garantindo aos sujeitos uma nova visão sobre seu lugar na sociedade, aumentando sua auto-estima" (p. 174).

Diversas questões foram abordadas durante a obra, mas ao procurar refletir sobre a "sociedade de classes e sua estratificação e o papel aí desempenhado pela religião como fator gerador de posições sociais de prestígio" (p. 173), o autor deveria ter explorado melhor dimensões analíticas tais como as relações de gênero e étnicas nesse contexto, afinal, trata-se aqui de um campo sabidamente complexo e heterogêneo. Além disso, qualquer discussão a respeito de mobilidade social e hierarquia dentro do contexto maior da sociedade brasileira deve levar em conta essas dimensões.

Mais do que teóricas ou hermenêuticas, a obra em questão nos oferece importantes lições epistemológicas de pesquisa, algumas sugeridas ao longo desta breve análise. Somem-se a elas questões que apontam para a importância do tempo de inserção no universo de pesquisa por parte do pesquisador e a vigilância constante que esse deve possuir a respeito do seu papel na mesma. Aliás, tarefas sempre instigantes para um cientista social.

  • *
    Doutorando em Antropologia Social.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      25 Set 2007
    • Data do Fascículo
      Jun 2007
    Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social - IFCH-UFRGS UFRGS - Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Av. Bento Gonçalves, 9500 - Prédio 43321, sala 205-B, 91509-900 - Porto Alegre - RS - Brasil, Telefone (51) 3308-7165, Fax: +55 51 3308-6638 - Porto Alegre - RS - Brazil
    E-mail: horizontes@ufrgs.br