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O uso ritual das plantas de poder

RESENHAS

LABATE, Beatriz Caiuby; GOULART, Sandra Lucia. O uso ritual das plantas de poder. Campinas: Mercado das Letras: Fapesp, 2005. 518 p.

Maria Clara Rebel Araújo; Ricardo Vieiralves-Castro

Universidade Estadual do Rio de Janeiro – Brasil

O Uso Ritual das Plantas de Poder, que reúne 14 artigos escritos por antropólogos, sociólogos e historiadores de cinco países, tem todos os elementos para ser uma obra de referência em pesquisas e discussões que tratam de usos tradicionais e modernos de psicoativos.

Seu conteúdo traz pesquisas sobre variadas culturas, etnias e religiões que utilizam ritualmente as tradicionalmente chamadas "plantas de poder", ou "plantas mestras/professoras": plantas e substâncias derivadas que em algumas culturas são consideradas mestres em forma vegetal, capazes de ensinar ao homem o caminho de contato com os deuses, sabedoria e conhecimentos que moram além (ou dentro) da realidade palpável ou que podem trazer a cura de diversos males físicos, mentais e espirituais.

Longe de terem desaparecido com a crescente ocidentalização e globalização, essas práticas rituais e religiosas permanecem ativas em diversos pontos do planeta: existem diversas religiões e grupos étnicos que utilizam o chá da ayahuasca ou Daime na Amazônia e Peru; outras que utilizam, no Peru e Bolívia, a folha de coca, no Amazonas, o pariká, rapé derivado de uma raiz,nos Camarões, na África, a iboga, e, no Nordeste brasileiro, a jurema, que é utilizada em diversos rituais rurais e urbanos. Isso sem falar da Cannabis, que também era utilizada ritualmente em alguns grupos religiosos brasileiros.

Tais usos não se limitam unicamente a um momento sagrado e/ou ritual, mas possuem profundas implicações na vida social, nas instituições e também nas subjetividades desses grupos e indivíduos. Tal como afirmam as organizadoras Beatriz Labate e Sandra Goulart (p. 38):

Cabe ainda esclarecer que, apesar da grande maioria dos artigos desta coletânea discorrer sobre o uso de psicoativos em cultos e cerimônias religiosas, isto não significa que todos os autores definam ritual como um espaço, um momento, O uso ritual das plantas de poder enfim, um universo exclusivamente místico ou mágico. Ao contrário [...] são enfatizadas a complexidade e a grande variedade de implicações destas práticas nas diferentes esferas da vida humana e social.

Os usos tradicionais e modernos dos psicoativos como formas de entrar em contato com o mundo espiritual e seus diversos habitantes (ancestrais, animais e seres vegetais, entidades e deuses) são descritos na maioria dos artigos do presente livro. Tais substâncias são consideradas "enteógenas", ou seja, carregam um deus (ou um "mestre ensinador", para usar um dos muitos termos nativos) em si mesmas e tornam as pessoas que as utilizam capazes de ter contato com o mundo espiritual.

Todas as religiões e seitas aqui abordadas encontram-se ativas, algumas reunindo mitologias e práticas sociais circunscritas a uma determinada etnia, e outras mais inseridas no contexto globalizado ocidental.

Sobre estas últimas se desenvolvem pesquisas que procuram mostrar a luta pela preservação das características consideradas essenciais pelos adeptos e ao mesmo tempo uma série de movimentos em direção a uma maior divulgação e aceitação desses grupos religiosos no exterior. Como esses grupos necessariamente utilizam plantas e substâncias com poder psicoativo, há que se empreender uma verdadeira luta política e jurídica. Quem tem o direito de utilizar essas substâncias? Devem elas ser permitidas apenas aos "povos nativos" ou "tradicionais"? Mas e a liberdade de escolha religiosa? O ser humano tem o direito de legislar individualmente sobre seus estados de consciência? Pode alterá-los por considerar que há nessas práticas um desenvolvimento espiritual?

As relações entre as plantas de poder e as práticas sociais e políticas que a elas ligadas já estão presentes na introdução de Sandra Goulart, Beatriz Labate e Henrique Carneiro. Os autores deixam claro que a presente coletânea não esgota todos os usos rituais das plantas sagradas (isso sem falar dos usos laicos e/ou recreacionais dos psicoativos, um tema igualmente vasto e pouco explorado dentro das ciências sociais).

Podemos destacar o artigo de Carneiro, que abre a coletânea e tem o mérito de situar historicamente o campo de estudos sobre psicoativos nos últimos 150 anos. Embora Carneiro aborde, como os demais autores, os usos rituais e sagrados dessas plantas, há também uma análise do movimento psicodélico nos anos de 1960, que teve como expoentes os romances de Castañeda, de Ken Kesey e dos psiquiatras de Harvard Timothy Leary e Alpert. Carneiro traz também dados sobre a utilização de psicodélicos pela CIA e por órgãos militares durante as décadas de 1960 e 1980, com fins políticos e "estratégicos". O texto traz uma crítica à política proibicionista das drogas, adotada no início do século XX e intensificada a partir dos anos 1960.

Outros artigos, como o de Robin Wright, abordam estudos sobre o xamanismo e a relação entre as práticas sagradas ligadas ao consumo de substâncias como o rapé pariká e o cipó caapi entre os Baniwa, povo do tronco lingüístico aruak, situado no Noroeste amazônico.

Merece destaque também o artigo de Luis Eduardo Luna, referência fundamental no tema xamanismo/ayahuasca, que elabora o motivo da transformação em animal. Esse artigo traz, ainda, informações relevantes sobre as características farmacológicas bem como seus efeitos sobre o organismo humano desse chá.

O livro tem como um de seus objetivos centrais ressaltar a relevância dos estudos sobre o tema de psicoativos e estados alterados de consciência no âmbito das ciências sociais. Tal discussão, embora não seja recente e tenha guiado pesquisas nos primórdios da psicologia e da antropologia, vem sendo negligenciada pelas ciências sociais, deixando as pesquisas nos últimos 50 anos exclusivamente a cargo dos discursos psiquiátricos, policiais e jurídicos. Tal como afirmam as autoras na introdução (p. 39):

[...] observamos, nos diversos trabalhos aqui apresentados, que os fenômenos religiosos abordados são enfocados a partir de uma perspectiva que enfatiza uma relação estreita e bastante complexa entre visão de mundo, símbolos, práticas, ritos, vivências subjetivas e instituições. Estes diferentes aspectos são considerados nas abordagens aqui reunidas deixando transparecer uma concepção de religião na qual sistemas morais e simbólicos são analisados sem que se perca de vista, também, seu relacionamento com as estruturas sociais.

A idéia de que as substâncias psicoativas são necessariamente prejudiciais e danosas está, segundo alguns autores, ligada ao cristianismo, que relacionava esses usos às religiões ameríndias e pagãs, o que representava um obstáculo para a expansão e aceitação cristã. Mais além, durante o século XX surgiu a chamada "War on Drugs" (bastante ligada aos ideais puritanos norte-americanos), que se propõe a banir e exterminar toda uma classe de vegetais e usos religiosos e laicos dos mesmos.

Resumindo, O Uso Ritual das Plantas de Poder propõe, através de estudos bem fundamentados em ciências humanas, uma rediscussão sobre anti-gas dicotomias trabalhadas sobretudo pela antropologia e sociologia.

Mas é também um livro que traz uma indiscutível provocação política: a proposta de desnaturalizar a idéia de que os usos rituais de enteógenos/psicoativos seriam necessariamente nocivos ou ligados a seitas primitivas, isoladas, que abandonariam esses hábitos na medida em que tivessem maior contato com religiões mais "lógicas" ou "racionais". Pelo contrário, observamos nos relatos etnográficos e nas discussões teóricas um crescente interesse sobre as religiões que trabalham com as plantas de poder, acompanhadas de posições políticas a favor de uma rediscussão das políticas mundiais e locais sobre essas substâncias e as culturas a elas ligadas.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    25 Set 2007
  • Data do Fascículo
    Jun 2007
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