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Identidades coletivas, consumo e política: a aproximação entre mercado GLS e movimento GLBT em São Paulo

Resumos

Neste trabalho, procuro me centrar na análise de alguns aspectos da aproximação entre movimento GLBT (Gays, Lésbicas, Bissexuais, Travestis e Transexuais) e mercado GLS (Gays, Lésbicas e Simpatizantes) verificada a partir da década de 1990, especialmente em como uma nova postura dos atores associados ao mercado possibilitou tal aproximação. No período que compreende de meados da década de 1990 até os dias de hoje, o movimento homossexual, hoje conhecido como movimento GLBT, volta a florescer no Brasil, especialmente em São Paulo, ao mesmo tempo em que o antigo circuito de estabelecimentos direcionados a homossexuais diversifica e expande suas atividades em direção à constituição de um mercado mais amplo, aglutinado sob a sigla GLS. Tal processo se faz acompanhar de mudanças nos discursos do movimento e do mercado, com a construção de uma linguagem comum baseada em idéias como visibilidade e orgulho, trazendo uma maior interlocução e também novas tensões entre os dois campos.

consumo; identidades; movimentos sociais; sexualidade


This paper focuses in some aspects about the connections between GLBT movement (Gays, Lesbians, Bisexuals, Transvestites and Transsexuals) and gay market as well as analyze the ways by which it was possible. In the period that goes from the middle of 1990's until these days, the homosexual movement, nowadays known as GLBT movement has grown in Brazil especially in Sao Paulo. Meanwhile, the circuit of bars, night-clubs and other places related to homosexuals has diversified and expanded its activities towards the constitution of a more amplified market organized under the term GLS (Gays, Lesbians and Sympathizers). This process has been accompanied of a change in the way this market and the movement is presented, constructing a common language based in ideas like visibility and pride, which also brought a greater dialogue and new tensions between movement and market.

consumption; identities; sexuality; social movements


ARTIGOS

Identidades coletivas, consumo e política: a aproximação entre mercado GLS e movimento GLBT em São Paulo

Isadora Lins França * * Doutoranda em Ciências Sociais.

Universidade Estadual de Campinas – Brasil

RESUMO

Neste trabalho, procuro me centrar na análise de alguns aspectos da aproximação entre movimento GLBT (Gays, Lésbicas, Bissexuais, Travestis e Transexuais) e mercado GLS (Gays, Lésbicas e Simpatizantes) verificada a partir da década de 1990, especialmente em como uma nova postura dos atores associados ao mercado possibilitou tal aproximação. No período que compreende de meados da década de 1990 até os dias de hoje, o movimento homossexual, hoje conhecido como movimento GLBT, volta a florescer no Brasil, especialmente em São Paulo, ao mesmo tempo em que o antigo circuito de estabelecimentos direcionados a homossexuais diversifica e expande suas atividades em direção à constituição de um mercado mais amplo, aglutinado sob a sigla GLS. Tal processo se faz acompanhar de mudanças nos discursos do movimento e do mercado, com a construção de uma linguagem comum baseada em idéias como visibilidade e orgulho, trazendo uma maior interlocução e também novas tensões entre os dois campos.

Palavras-chave: consumo, identidades, movimentos sociais, sexualidade.

ABSTRACT

This paper focuses in some aspects about the connections between GLBT movement (Gays, Lesbians, Bisexuals, Transvestites and Transsexuals) and gay market as well as analyze the ways by which it was possible. In the period that goes from the middle of 1990's until these days, the homosexual movement, nowadays known as GLBT movement has grown in Brazil especially in Sao Paulo. Meanwhile, the circuit of bars, night-clubs and other places related to homosexuals has diversified and expanded its activities towards the constitution of a more amplified market organized under the term GLS (Gays, Lesbians and Sympathizers). This process has been accompanied of a change in the way this market and the movement is presented, constructing a common language based in ideas like visibility and pride, which also brought a greater dialogue and new tensions between movement and market.

Keywords: consumption, identities, sexuality, social movements.

Durante muito tempo, o ato de consumir foi visto a partir de dois extremos: a ação de um indivíduo em interesse próprio, guiada por parâmetros racionais de custo/benefício, ou a ação de um indivíduo que desconhece suas necessidades reais, ludibriado que está pela publicidade (Douglas; Isherwood, 2004). Sobre esse conjunto de indivíduos, estaria assentada uma economia altamente sofisticada e abstrata. A prática do consumo permanecia, então, não problematizada, já que sob ela jazia uma inquestionável decisão racional e evidente, ligando causas e fins, ou artimanhas de profissionais da propaganda. Entretanto, nas últimas décadas,1 1 Refiro-me a autores como Douglas e Isherwood (2004), Sahlins (2000) e Miller (2000). tem-se observado a construção de uma perspectiva antropológica em relação ao consumo, abrindo um campo frutífero para abordagens que procuram conectar aspectos relativos ao consumo a outros processos, evitando abstrair os assuntos relacionados ao ato de consumir da "totalidade do esquema social" (Douglas; Isherwood, 2004, p. 26). É nesse esforço que se insere este artigo,2 2 O artigo deriva da minha dissertação de mestrado (França, 2006a). focando nas relações entre movimento GLBT (Gays, Lésbicas, Bissexuais, Travestis e Transexuais) e mercado GLS (Gays, Lésbicas e Simpatizantes). Informada por uma perspectiva do consumo que considera seus aspectos culturais, pretendo me centrar na análise de alguns aspectos da aproximação entre movimento e mercado verificada a partir da década de 1990, e especialmente em como uma nova postura dos atores associados ao mercado possibilitou tal aproximação.

Quando pensei a pesquisa de mestrado que deu origem a este artigo, procurava articular alguns pontos que me pareciam fundamentais para compreender não apenas a dinâmica e as relações desenvolvidas pelo movimento GLBT no Brasil, depois de 25 anos de atuação, mas também questões relativas a uma atuação política pautada muito fortemente pela constituição de identidades coletivas. O movimento GLBT parecia-me um caso exemplar, pelo complexo processo de construção de seu sujeito político, que compreendia a articulação de diversos segmentos a partir da afirmação de preferências e práticas sexuais "não-hegemônicas" (Butler, 2003) e da convergência de sujeitos políticos que se definiam a partir de identidades sexuais e identidades de gênero. Assim, encontrava-me às voltas com um movimento que havia caminhado de "movimento homossexual" de finais da década de 1970, para o mais recente "movimento GLBT (Gays, Lésbicas, Bissexuais, Travestis e Transexuais)", sendo que a delimitação de seu sujeito político ainda permanecia um campo aberto.

Nesse campo móvel que me servia de base, chamava a atenção um processo paralelo ao reflorescimento do movimento homossexual na década de 1990: a constituição de um mercado segmentado dirigido a homossexuais na cidade de São Paulo. Na década de 1990, o que se conhecia como o "gueto" transformou-se num mercado mais sólido, expandindo-se de uma base territorial mais ou menos definida para uma pluralidade de iniciativas, incluindo um circuito de casas noturnas, a exemplo do mais circunscrito "gueto" de outrora, mas envolvendo também o estabelecimento de uma mídia segmentada, festivais de cinema, agências de turismo, livrarias, canal a cabo, inúmeros sites, lojas de roupas, e até mesmo pet shops, entre outros. Também surge nessa época a categoria GLS, para definir esse mercado. Se a idéia norte-americana de friendly refere-se a espaços freqüentados predominantemente por heterossexuais nos quais homossexuais são bem-vindos, a idéia brasileira de GLS segue o caminho inverso: o S da sigla indica "simpatizante", tendo como ponto de partida espaços freqüentados majoritariamente por homossexuais e revelando uma intenção de expandir as fronteiras do "gueto", quando propõe abarcar também consumidores que não se identificam como homossexuais, mas que de alguma forma participam desse universo.

Enquanto os grupos políticos adotavam um formato mais institucional, em comparação com o início do movimento, e estreitavam relações com o Estado e organizações internacionais, o mercado GLS também começava a se afirmar como um referencial importante para esses atores (Facchini, 2005). Esse mercado segmentado, então, passava a ser um importante interlocutor do movimento, mesmo que as relações entre ambos fossem permeadas por inúmeras tensões.

Sexualidade, identidade e consumo: uma breve discussão teórica

O fio condutor que possibilita atravessar os processos pelos quais o movimento GLBT e o mercado GLS se encontram parece ser justamente a idéia de construção de identidades. É particularmente relevante para a antropologia contemporânea uma abordagem sobre os processos que criam as fronteiras identitárias, afastando-se de um enfoque que pressupõe identidades como "essência" e estabilidade. Desde Barth (1997), passando por Lévi-Strauss (1977) e outros, moldou-se uma abordagem que afirma o caráter inacabado dos processos identitários, localizando as identidades coletivas mais como um "abrigo virtual" do que como um dado (Agier, 2001, p. 10). Essa perspectiva, operando noções como "identidade étnica" e/ou "identidade cultural", também foi apropriada por autores preocupados com a constituição de uma identidade homossexual no contexto norte-americano, interpretada muitas vezes como uma construção "quase-étnica" (Epstein, 1999; Gamson, 1998). Tais trabalhos, apoiados nos estudos da antropologia relativos à etnicidade e à identidade cultural, distanciavam-se da busca de conteúdos culturais permanentes para centrar-se numa abordagem que privilegia processos de fabricação de identidades, e que também orienta, de certa forma, os usos que faço do conceito de identidade. A esses trabalhos, vêm se somar reflexões originadas na área de estudos de gênero e sexualidade, na qual se tem desenvolvido, ao longo das últimas décadas, uma discussão consistente sobre identidades coletivas e os processos pelos quais diferentes categorias identitárias emergem nas sociedades ocidentais contemporâneas.

Os debates na área de estudos de gênero e sexualidade continuam bastante em aberto, ao mesmo tempo em que discutem possibilidades e limites em relação às estratégias adotadas pelos movimentos feminista e homossexual. De toda forma, as abordagens que procuram desnaturalizar os domínios relativos à sexualidade abrem um novo campo para as ciências sociais, descortinando a possibilidade de análise de processos anteriormente tidos como dados. Para além disso, abre-se a possibilidade de se pensar questões relativas à sexualidade de modo mais amplo, já que não se trata mais de algo pertencente apenas à esfera da intimidade e do privado, nem de questões restritas à psicanálise e à psicologia, posto que tampouco estamos tratando somente de aspectos individuais e processos psíquicos. Nesse sentido, as conexões entre sexualidade e ação política via movimentos sociais podem ser traçadas a exemplo de outras relações, como as que denotam a ligação entre sexualidade, estilos de vida e consumo.

Podemos localizar a obra de Michel Foucault (1978) como um marco para o debate, não só porque se afasta do modelo que pressupõe uma "força sexual" natural reprimida pela sociedade, mas também porque confere legitimidade ao campo dos estudos da sexualidade, até então pouco explorado pelas ciências sociais. No que tange especificamente à homossexualidade, Foucault localiza a construção de um ser "homossexual" no bojo de um processo de especificação de sexualidades periféricas, situado em torno do século XIX.3 3 Segundo o autor, "o homossexual do século XIX torna-se uma personagem: um passado, uma história, uma infância, um caráter, uma forma de vida. [...] Nada daquilo que ele é, no fim das contas, escapa à sua sexualidade. [...] O sodomita era um reincidente, agora o homossexual é uma espécie" (Foucault, 1978, p. 43).

Essa construção do "ser homossexual", para Foucault, é uma das formas pelas quais o poder, pensado como uma correlação de forças, estende suas redes através da prática do discurso e não da interdição da fala. Dessa maneira, a própria categoria "homossexual", compreendida muitas vezes como uma essência individual, é antes resultado do estabelecimento de um "dispositivo de sexualidade": um conjunto de produções discursivas e saberes que definem o que pensamos sobre "sexo" e do qual o "sexo" em si é um produto. Não haveria, pois, um "sexo" pré-discursivo, anterior aos saberes produzidos sobre "sexo".4 4 Vale notar que tal formulação a respeito do "sexo" tal como aparece em Foucault (1978) é devedora de uma posterior elaboração realizada por autoras relacionadas aos estudos de gênero e de sexualidade (Butler, 2003; Moore, 1997). A obra de Foucault, nesse sentido, presta-se a diferentes interpretações e é possível perceber nuanças no seu interior a respeito da crítica à existência de um sexo pré-discursivo, como no prefácio ao diário da hermafrodita Herculine Barbin, em que o autor deixa transparecer a possibilidade de uma "multiplicidade de prazeres em si que não é efeito de qualquer interação específica de discurso/poder" (Butler, 2003, p. 144).

A crítica à afirmação de identidades baseadas num sujeito pré-discursivo estende-se também para a análise da construção do "homossexual" como sujeito político, considerando as possíveis conseqüências normatizadoras e excludentes de tal estratégia. A crítica genealógica, proposta por Foucault, desempenhou papel fundamental para autores que seguiram discutindo a questão da identidade nos estudos de gênero e sexualidade, elaborando uma perspectiva teórica que "investiga as apostas políticas, designando como origem e causa categorias de identidade que, na verdade, são efeitos de instituições, práticas e discursos cujos pontos de origem são múltiplos e difusos" (Butler, 2003, p. 9).

A construção de identidades coletivas associadas à ação política traz à tona o problema central dos processos pelos quais determinados atores sociais emergem na condição de sujeitos políticos. A emergência de novos atores reivindicando-se como constituintes do sujeito político do movimento homossexual brasileiro – como atesta a recente organização de travestis, transexuais e bissexuais – evidencia a fragilidade de abordagens teóricas que lidam com as identidades coletivas como elementos estáveis e internamente homogêneos.

Tais questões resultam ainda mais complexas ao reconhecermos que o movimento GLBT não é um ator isolado no contexto em que se insere e diante do público ao qual se dirige. Apesar do lugar central de estratégias de construção de identidades coletivas na atuação do movimento homossexual, que procurava reverter o estigma e depreciação social que se abatia sobre as pessoas que se relacionavam com outras do mesmo sexo, deve-se levar em conta que essas estratégias nunca se desenvolveram isoladamente, mas sempre em comunicação com outros atores sociais. Se considerarmos que o mercado segmentado produz diferentes categorias em torno do que é "ser homossexual" e faz circular referências e imagens identitárias acerca dos possíveis estilos ligados à homossexualidade, podemos dizer que colabora para construir e reforçar identidades coletivas que servem de referência para a atuação do movimento, e vice-versa. Temos, então, um campo comum entre movimento e mercado.

Os que se dedicaram a compreender o fenômeno do consumo na área da antropologia têm insistido na sua caracterização como um ato social e coletivo, com uma preocupação em se diferenciar dos estudos do "comportamento do consumidor" produzidos na área de marketing, pensando a prática do consumo a partir do indivíduo racional (Rocha; Barros, 2003). A primeira tarefa a que uma antropologia do consumo dedicou-se, portanto, foi a de fazer uma crítica da visão utilitarista. É possível traçarmos um esboço dessa crítica levando-se em consideração os estudos de Marshall Sahlins (2000). Para o autor, a chave para a compreensão da relação entre produção e consumo está numa abordagem processual e dialética, que seja capaz de entender a produção capitalista como um processo cultural, e que desestabilize a busca em direção a um pólo dominante na relação entre consumidor e produtor. Sua proposta é a de que a produção desenvolve-se de acordo com uma "lógica significativa do concreto", que lhe permite explorar "possíveis diferenciações sociais através de uma motivada diferenciação de bens"; assim, "o produto que chega ao seu mercado de destino constitui uma objetificação de uma categoria social, e assim ajuda a constituir esta última na sociedade; em contrapartida, a diferenciação da categoria aprofunda os recortes sociais do sistema de bens" (Sahlins, 2000, p. 185).

Apesar de Sahlins (2000) fornecer um interessante esquema teórico de inclinação estruturalista para se pensar a atuação do mercado e da produção capitalista, Daniel Miller (1995) localiza historicamente essa atuação no que tange à elaboração de identidades coletivas e chama a atenção para a importância que as correntes de demanda dos consumidores têm assumido no processo de produção de mercadorias no pós-fordismo. São os operadores do sistema, os profissionais de marketing e publicidade, que localizam as diferenciações sociais percebidas entre os consumidores – as mesmas de que tratava Sahlins –, fazendo a ponte entre estes e os produtores, instados a criar uma nova versão de um produto já existente, dessa vez atendendo a necessidades específicas. Esse processo, por sua vez, responde a uma mudança global rumo ao pluralismo de "políticas de identidade", "regionalismos", "estilos de vida", entre outros, surgidos a partir de maio de 1968, e no rastro dos quais tanto o movimento homossexual quanto o mercado direcionado a esse público ganharam visibilidade e se fortaleceram.5 5 Embora as relações entre construção de identidades coletivas e consumo possam ser traçadas com facilidade nesse contexto, Miller (1995) adverte para o fato de que nem sempre quando tratamos de consumo estamos nos referindo ao consumo de bens posicionais, como tendem as análises que privilegiam a perspectiva de que compramos signos construídos pela sociedade de consumo e pela propaganda. Seria inadequado dizer que a relação entre elaboração de identidades e consumo seja constitutiva do ato de consumir, como afirma Friedman (1994). Essa relação é, antes, um dos contextos possíveis em que as práticas de consumo se desenrolam, e que se prestam à análise antropológica assim como as situações que envolvem o ato de consumir em outros contextos.

Maria Celeste Mira abordou os recortes sobre os quais se dá o estabelecimento de nichos de mercado, pautados por gênero, geração e etnicidade, agindo sobre as ansiedades geradas em mulheres, idosos ou negros e "prometendo-lhes realização pessoal através do consumo" (Mira, 1997, f. 339). Nesse sentido, o mercado procuraria agir sobre grupos historicamente discriminados a partir da manipulação de seu sentimento de auto-estima. Já Miller (1995) destaca menos o aspecto de manipulação de identidades pelo mercado e mais a agência dos próprios sujeitos envolvidos na elaboração de identidades coletivas. Assim, a afirmação de identidades positivas de grupos discriminados, processo no qual estão envolvidos os movimentos sociais, seria acompanhada por um desejo de experimentar formas mais convencionais de poder, entre as quais podem ser situadas as relativas ao consumo. Isso levaria ao alinhamento de identificações com um determinado coletivo social por meio do consumo num processo mais intenso do que o observado na maioria da população e seria responsável pelo desenvolvimento de um estilo criativo de consumo e de habilidades específicas em relação a essa prática, encarados muitas vezes pelo senso comum como sinais de futilidade, de modo a atualizar estratégias de discriminação e desvalorização desses grupos.

Deslocando um pouco as oposições entre as duas perspectivas a respeito do poder de agência do público a que se dirige determinado mercado segmentado, cabe mais uma vez observar que tanto movimento quanto mercado trabalham no sentido de fortalecer uma identidade coletiva de "homossexual", atuante na auto-estima desse público. Essa abordagem pode apontar algumas direções no sentido de iluminar a ligação e alimentação com a qual o movimento GLBT tem de se haver neste início de século, assim como o movimento negro e outros que ganharam grande visibilidade no rastro do espírito da década de 1960.

O movimento homossexual e as relações com o "gueto" até a década de 1990

No contexto brasileiro de finais da década de 1970, em que os efeitos da abertura política começavam a ser sentidos juntamente com o clima de "desbunde", registra-se também uma ampliação do "gueto" gay paulistano, com a abertura de novas boates e bares, tendo como epicentro a região central da cidade, especificamente o Largo do Arouche (Perlongher, 1987, p. 86). Como salienta MacRae (1990), cada novo estabelecimento que surgia era visto como "vitória para a causa" por boa parcela dos homossexuais freqüentadores do "gueto". Tal efervescência geral tinha paralelos no incipiente movimento homossexual que passava a se organizar com a criação do grupo Somos.6 6 A respeito do surgimento do movimento homossexual no Brasil, ver MacRae (1990), Green (1999) e Facchini (2005). Utilizo neste artigo a periodização de Facchini (2005), que vê três momentos distintos no movimento: o que vai do seu início, em finais de 1970, ao fim do grupo Somos-SP, em 1983; o período que vai do fim do grupo Somos ao início da década de 1990 e o período a partir da década de 1990.

Entretanto, havia uma considerável contraposição entre as duas esferas, com constantes críticas dos militantes do Somos a respeito da "integração dos homossexuais à sociedade de consumo" (MacRae, 1990, p. 300). A própria constituição do grupo definia-se em oposição ao "gueto", com o questionamento dos militantes ao que entendiam como "papéis sexuais hierárquicos" que imperavam no "gueto", entre outros modelos vistos como opressores. Procurava-se também criar um espaço de sociabilidade diferente do que era proporcionado pelo "gueto", o que se expressava em parte pela instituição de reuniões de "identificação", por meio das quais se poderia refletir a respeito da homossexualidade e construir laços decorrentes de uma experiência compartilhada coletivamente.

Se, para muitos dos homossexuais identificados com o "gueto", a constituição de espaços de consumo era vista como um avanço no combate ao preconceito, para os militantes do Somos isso soava como uma alternativa bastante limitada em comparação às aspirações de transformações sociais mais abrangentes a partir da "margem". Os freqüentadores do "gueto" eram vistos muitas vezes como "alienados", conformados com o limitado espaço de expressão social garantido pelas casas noturnas e pouco dispostos a "assumir" sua orientação sexual em outros espaços. Em 1983, MacRae escreve um artigo a respeito dessa postura, intitulado Em Defesa do Gueto. Tal artigo destaca a importância do "gueto" como um lugar

[...] onde o homossexual tem mais condições de se assumir e de testar uma nova identidade social. Uma vez construída a nova identidade, ele adquire coragem para assumi-la em âmbitos menos restritos e, em muitos casos, pode vir a ser conhecido como homossexual em todos os meios que freqüenta. Por isso, é da maior importância a existência do gueto. Mais cedo ou mais tarde, acaba afetando outras áreas da sociedade. (MacRae, 2005, p. 299).

Não obstante as críticas dos militantes de "primeira onda" a respeito do "gueto", as relações com o circuito noturno de freqüência homossexual não deixavam de existir, pois era lá que se poderia encontrar a "base" do movimento. Embora os primeiros militantes do Somos não tivessem o "gueto" como referência para sua atividade política, muitos que posteriormente acessaram o grupo costumavam freqüentar as casas noturnas e traziam novos integrantes por meio das redes sociais desenvolvidas nesses espaços. Dessa forma, mais do que uma oposição distanciada do "gueto", procurava-se desempenhar um papel na tarefa de "conscientizar" os homossexuais e mesmo de explorar concretamente uma idéia de militante homossexual: "de uma forma muito real, aprendia-se a ser homossexual, ou melhor, militante homossexual. Embora muitas das idéias correntes no gueto fossem aproveitadas, grande número delas passava por uma reciclagem sofrendo consideráveis transformações." (MacRae, 1990, p. 132).

Essas são as referências a respeito da relação entre movimento e "gueto" num primeiro momento do movimento. Salvo engano, não há referências de como se constituiu essa relação na década de 1980, quando o "gueto" – e também o movimento – sofre o impacto da Aids. De toda forma, como vimos, registra-se uma grande redução dos grupos militantes em São Paulo, e há uma guinada do movimento como um todo em direção a um discurso mais específico de reivindicação de direitos civis, com menos ênfase no antiautoritarismo e no comunitarismo verificados num primeiro momento (Facchini, 2005). Imagino que esses fatores possam ter contribuído, de certa forma, para o enfraquecimento da visão que contrapunha o "gueto" a alternativas "revolucionárias" e para a diminuição, mesmo que em pequeno grau, da resistência do movimento ao mercado. Porém, dada a escassez de referências a esse respeito, tais considerações não passam de especulações.

Empresários e militantes: o surgimento de novos discursos no mercado GLS da década de 1990

Apesar da lacuna a respeito de como o movimento relacionava-se com o "gueto" na década de 1980, parece-me correto afirmar que o grande ponto de inflexão nessas relações, ao menos em São Paulo, se dá na década de 1990, quando a idéia de visibilizar os então "GLT"7 7 Gays, Lésbicas e Travestis. e de propor estratégias maciças de manifestação fazia-se presente no movimento, e diferenciava-se claramente de propostas anteriores. Ao passo que essa postura crescia no âmbito do movimento, também se verificava, especialmente no movimento paulista, a tendência a combinar reuniões dos grupos com atividades de sociabilidade e lazer. Essas duas tendências influenciariam sobremaneira na adesão à proposta de realização das paradas, que se tornaram, no Brasil, ocasião de maior visibilidade do movimento GLBT e também, em muitas cidades, de maior interação com o mercado segmentado.

Diferente das outras manifestações, as paradas, inspiradas em eventos semelhantes de outros países, pressupunham uma periodicidade anual e se destinavam especialmente à celebração do "orgulho" e à visibilização de demandas do movimento, inaugurando um estilo diferenciado de atuação política, pautado também por atividades de caráter lúdico, que incluíam. O sucesso das paradas também remete a uma mudança do discurso característico do movimento: a ênfase na vitimização de GLBT, bastante característica do movimento na década de 1980, passou a dividir espaço com um discurso e ações que procuravam afirmar uma identidade qualificada como "positiva", na maior parte das vezes personificada na idéia de "orgulho homossexual".

Nesse período, ao mesmo tempo em que o movimento volta a florescer em São Paulo, o antigo "gueto" sofre transformações consideráveis, como já relatadas, diversificando e expandindo suas atividades em direção à constituição de um mercado mais amplo, conhecido como GLS, que se instalava não só na região central, mas também em uma das áreas mais ricas da cidade. Além das mudanças estruturais em relação ao mercado GLS, há também uma transformação considerável na forma como ele se constitui e se apresenta: os espaços de consumo e sociabilidade passam a incorporar, em certa medida, elementos do discurso ativista do orgulho e da visibilidade, explicitando o seu direcionamento a um público de orientação sexual determinada e compartilhando alguns símbolos com o movimento GLBT, como é o caso da bandeira do arco-íris, que passa a ser comum em lugares GLS e em muitas atividades do movimento.

Na década de 1990, há a formação de um discurso, fomentado por uma parcela dos empresários do mercado GLS, que aproxima as atividades de atores do mercado das atividades da militância. Tais atores começam a se ver, e a ser vistos, como articuladores de uma ação política, no sentido em que estimulam a "auto-estima dos homossexuais" e a formação de uma "identidade positiva" – através de iniciativas como festivais de cinema, editoras e mesmo espaços de lazer e sociabilidade – e fazem circular informações por esse público – por meio de sites e revistas especializadas.8 8 É bastante comum, inclusive, que esses veículos destinem determinados espaços para a veiculação de informações relativas ao movimento GLBT, e mesmo para a publicação de colunas ou artigos de militantes. Boas relações com a mídia segmentada são um aspecto valorizado pelos militantes, pois a partir daí podem visibilizar seu trabalho e usufruir um canal direto de comunicação com a "comunidade". Nesse sentido, o compartilhamento de identidades sexuais e o trabalho com um público que é alvo de preconceitos aproximam militância e mercado de forma estrutural, fazendo com que muitos atores do mercado vislumbrem um teor político de combate ao preconceito em suas atividades, como expõe um empresário do setor de turismo GLS:

Eu decidi trabalhar com esse segmento por causa da minha identidade. Pra você dar certo em qualquer segmento, tem que gostar dele, respeitar o segmento... Claro que não precisa ser gay pra trabalhar, mas eu acho que pelo fato de você ser, você cria um vínculo maior. [...] Tem que desmistificar um pouco essa coisa entre mercado e militante, porque eu acho que não existe essa coisa. A partir do momento em que você assume trabalhar com o segmento, ainda mais em uma sociedade que tem preconceito, você já está fazendo militância, é isso que eu acredito. Porque não são grandes empresas, se você for ver... Quem está no segmento ali cavando o buraco que pastou, não deixa de ser militante, porque não são grandes empresas. As grandes empresas vão entrar agora, agora elas vêm. É sempre assim. Mas eu não vejo nenhuma diferença entre a militância e as pessoas que... Dar a cara pra bater, há 10 anos, como eu fiz, é como eu falo: as pessoas do setor não chegavam perto de mim, como se eu tivesse uma doença contagiosa. E isso, outras pessoas passaram. Todo mundo passou por isso. Você não deixa de estar fazendo movimento, você trabalha com uma coisa segmentada, pra uma minoria. Durante muitos anos a gente passou muita dificuldade pra sustentar a empresa, de estar fazendo algo diferente e novo, e a comunidade muito receosa. (entrevista com Antônio, dezembro de 2005, grifo meu).

Embora o discurso presente acima, que indiferencia atores do mercado de militantes pela via da identidade e do enfrentamento com o preconceito, seja uma visão não hegemônica no mercado, é por essa via que se estruturou grande parte da aproximação das relações mercado e movimento, justamente nos pontos de intersecção entre os discursos comuns a ambos os atores.9 9 Na entrevista de um militante de São Paulo, também aparece uma visão que tende a indiferenciar atores do mercado e do movimento, já rebatendo de antemão a idéia de que diferentes éticas e interesses justificariam tal diferenciação: "Não existe uma verdade sobre o que são os militantes, e não existe uma verdade sobre o que são os empresários. Não existe uma cristalização dessas duas coisas. Então, tem gente no mercado que é supersafada, assim como tem gente que é superbem intencionada. Na militância tem gente que é superbem intencionada e tem gente que não está nem aí com as coisas. Então, não existe uma verdade pra mim: 'os militantes são bons e o mercado é ruim'. Eu não gosto desse antagonismo." (entrevista com Pedro, janeiro de 2006). É também por essa via que se justifica o trânsito de pessoas entre atividades relacionadas ao mercado e ao movimento GLBT, sendo comum que profissionais que atuam em setores do mercado, seja na mídia, noite, turismo ou no setor editorial, tenham em algum momento de sua trajetória participado de atividades do movimento, e vice-versa. A questão da identificação com o público homossexual fica bastante clara quando os entrevistados enfatizam que as dificuldades financeiras encontradas para gerir seus negócios, advindas do preconceito e estigmatização de que são alvo, são ultrapassadas pela identificação que têm com aquele público, como se houvesse a necessidade de lucrar, comum a qualquer empreendimento do mercado, mas um diferencial em relação a outras atividades comerciais, que aparece quando surgem dificuldades financeiras e há a opção por continuar investindo, movido por um sentimento que transcende a racionalidade do mercado.

Nesse sentido, os empresários que não se identificam como gays e que têm procurado cada vez mais adentrar o setor GLS, são vistos como fadados ao fracasso, pela dificuldade de entender as dinâmicas desse público consumidor e pela falta de "afeto", como sublinhou algumas vezes o empresário da entrevista transcrita acima, pela proposta de se trabalhar com esse público. Aqui, o compartilhamento de uma mesma identidade surge como um pressuposto da atuação no mercado GLS.10 10 Observo que experiências de sucesso nesse mercado, encaminhadas por "não- gays" tendem a ser contornadas sob os mesmos parâmetros que organizam esse discurso identitário. Na entrevista de Marcelo, a menção à existência duradoura e comercialmente viável da revista G Magazine, cuja editora identifica-se como uma "mulher hétero", se faz acompanhar imediatamente da afirmação de que se trata de uma "mulher hétero de alma gay". O trecho a seguir, de entrevista realizada com um dos importantes agitadores do mercado GLS, congrega algumas das características levantadas:

Tem uma coisa que é o seguinte: é um mercado que eu acho que se você não é gay, você não vai adiante. Por uma questão muito simples: não é um mercado tão interessante assim como se faz parecer... [...] O que acontece é que quem é gay, você tem isso quase como uma missão. O cara que é agente de turismo, ninguém fica nem perto de ficar rico. Mas pra ele é importante, é diferente, uma coisa é ele trabalhar dentro de uma agência normal, tradicional, de turismo, e ganhar um salário de 8 mil reais por mês, 10 mil reais por mês, pra ele é melhor ganhar 5, mas trabalhando com uma coisa que ele acredita, que faz sentido. Tudo tem um peso social na hora de você fazer, que um hétero, quando está entrando dentro do mercado, isso não tem. Não tem. Não tem. Eu acho que essa é a diferença. Acho que negócio gay tocado por hétero é fadado ao fracasso, porque ele lida com outro tipo de realidade, você não tem muito anunciante. [...] Então, jamais daria pra um heterossexual ser diretor de um festival de cinema gay, porque ele ia largar num segundo. Mas tem outro significado, então acho que é um mercado que tem essas particularidades, não adianta. No exterior é impensável um negócio gay que não seja gerido... Como é o termo? "Gay own, gay runned", uma coisa assim. Gerido e de propriedade de gays. Esse é o princípio lá fora. Aqui não tem muito isso, mas mesmo assim, você pega o Sergio Kalil, ele vai gastar um dinheiro fazendo show de drag que um empresário hétero jamais gastaria, mas é porque ele é gay, porque é da cultura dele, porque ele acha o máximo. E ele vai fazer com fogos de artifício, vai gastar 3 mil reais, 4 mil reais, pra fazer um show de uma noite, que pra ele é importante. Um cara hétero jamais vai entrar numa coisa dessas. E isso faz uma diferença. Acho que se você não está imbuído na coisa... É a mesma coisa: você vai fazer a revista Raça sendo branco? O que eu tenho com aquilo? Eu sou branco, não sou negro. Não tenho o que escrever ali. Não é verdadeiro. (entrevista com Marcelo, dezembro de 2005, grifo meu).

Ao mesmo tempo em que tais concepções surgem com força no empresariado, alguns dos empresários do circuito GLS começam a aparecer em jornais e revistas de grande circulação, como exemplos positivos de "homossexuais bem-sucedidos" e de uma postura de "orgulho".11 11 Isto É (1997). Em entrevista ao site MixBrasil (2003), o mesmo empresário afirma que "Eu posso dizer que ganhei dinheiro, gastei e investi muito na noite. As pessoas procuram qualidade. Gay não é bobo, foi o tempo que se escondiam em buracos. As pessoas estão de cabeça levantada. Acho isso bem legal". A título de exemplo, destaco a já citada reportagem da revista Isto É trazendo o conhecido empresário da noite GLS, Sérgio Kalil, na capa, com os letreiros: "Sou gay, e daí?". Tal exposição na mídia causava grande impacto para uma parcela dos militantes e de certa forma condizia com a estratégia de visibilidade positiva da homossexualidade representada pela parada e por parte do movimento na década de 1990, motivos pelos quais Sérgio Kalil foi convidado a fazer uma fala no encerramento da 2ª Parada.

A mídia segmentada também não ficava atrás, entrevistando com freqüência empresários do setor GLS e mesmo empresários e profissionais de outros setores que têm uma história "vitoriosa" no mundo empresarial. Um bom exemplo disso é o lançamento, em 2003, do livro Uma Vida de Sucesso, autobiografia de Soraya Bittencourt, pelo selo Edições GLS. A autobiografia é definida da seguinte forma no site da editora: "Engenheira, deixou o marido e foi para os Estados Unidos com sua namorada. Lá, mesmo sendo mulher, latina e lésbica, conseguiu atrair a atenção de Bill Gates e desenvolver um projeto de sucesso na empresa mais competitiva do mundo. Um relato biográfico autêntico e inspirador."12 12 Fonte: http://www.gruposummus.com.br/detalhes_livro.php?produto_id=821. Está claro como nesse RESUMO se valoriza a coragem de "assumir-se" homossexual e de como isso não está em oposição com o desenvolvimento de uma vida profissional. São acionados, nesse caso, outros eixos identitários, traduzidos pelos termos "mulher" e "latina", e que reforçam a perspectiva de elevação da auto-estima de "minorias". Assim, no site da Edições GLS percebemos claramente que essa iniciativa do mercado posiciona-se como pertencente ao movimento GLBT, mediante o incentivo à visibilidade e à promoção da auto-estima de "minorias sexuais":

As Edições GLS fazem parte de algo muito novo no Brasil: o movimento de igualdade para minorias sexuais. Pela primeira vez em nossa história, gays, lésbicas, bissexuais, travestis e transexuais estão indo – às centenas de milhares! – às ruas para se expor, para se afirmar como visível minoria, para exigir ser tratados como quaisquer outros cidadãos brasileiros [...] Temos orgulho de publicar livros dirigidos a minorias sexuais incentivando a auto-estima, a liberdade interna, a expressão da identidade legítima e natural de cada um.13 13 Fonte: http://www.gruposummus.com.br/edgls/edgls_nossa.php.

Nesse trecho, percebemos claramente a existência de referenciais compartilhados com o movimento, como a idéia de orgulho, e o reforço a identidades tidas como "legítimas" e "naturais".14 14 Embora hoje a "naturalização" da identidade de homossexual ou dos segmentos GLBT não seja o único discurso presente no movimento, é inegável que continue bastante presente entre militantes, sendo muitas vezes acionado no combate ao preconceito. Outro ponto de intersecção diz respeito às Paradas do Orgulho GLBT, como sugere a afirmação de que GLBT estão indo às ruas para afirmar sua existência e exigir cidadania. Cabe notar, porém, que esse discurso, no site do selo editorial, é combinado com ponderações a respeito do funcionamento do mercado, que podemos notar na seção de regras para envio de originais, marcando sua diferença em relação ao movimento GLBT:

As Edições GLS, apesar de alinharem-se com o movimento pela afirmação dos direitos das minorias sexuais, têm fins comerciais. Isto significa que todo e qualquer original submetido é avaliado, antes de tudo, em termos de sua possível aceitação por um público comprador. Se não conseguirmos vender, não teremos como continuar fazendo.15 15 Fonte: http://www.gruposummus.com.br/edgls/edgls_envio.php.

As regras para o envio de originais combinam, dessa forma, a viabilidade comercial com uma intenção, qualificada como "política", de afirmação de identidades, lembrando que, no caso da ficção, "as histórias ganham pontos a seu favor se tiverem finais felizes e cenas de sexo consumado com prazer e de maneira segura".16 16 Fonte: http://www.gruposummus.com.br/edgls/edgls_envio.php. Dessa perspectiva, mercado e movimento surgem ora como indiferenciados, ora como alinhados, sem se confundir, a depender da situação.

Peter Fry (2002) registra, em artigo abordando as relações entre raça, publicidade e produção da beleza no Brasil, a ênfase recente do mercado que se dirige a negros num discurso de "ação positiva da construção da auto-estima", acompanhado de um discurso e iniciativas que caracterizam uma intenção de exercer um impacto mais amplo no combate ao preconceito. A fala de Marcelo, na entrevista acima, menciona a revista Raça Brasil, também abordada por Fry (2002), quando tematiza a relação entre o pertencimento à determinada identidade e a sua atuação profissional, localizando suas ações numa tendência mais geral a associar grupos socialmente desvalorizados a estratégias de consumo, pela via do compartilhamento de identidades, o que marca o caráter mais abrangente dos processos aqui analisados.

Nesse sentido, Fry (2002) localiza, nas páginas da revista Raça Brasil, uma ênfase muito maior na exposição de exemplos de negros bem-sucedidos17 17 Curiosamente, em edição da revista Raça Brasil, o presidente da Parada do Orgulho GLBT é entrevistado como um desses exemplos de negro bem-sucedido, o que reforça concretamente as conexões traçadas no parágrafo anterior. do que nos artigos de denúncia do racismo, também presentes na revista, deslocando o discurso do "lamento" em relação ao preconceito. Acredito que sejam processos bastante semelhantes aos que ocorrem no mercado GLS, cabendo destacar aqui que esse direcionamento encontra um paralelo no movimento GLBT da década de 1990 até os dias de hoje, em que se observa a presença muito incisiva de um discurso em que se opõe "afirmação positiva" à "vitimização", bastante relacionado ao alastramento das paradas como estratégia política.

Apesar das semelhanças entre um caso e outro, porém, Fry (2002) contrapõe o potencial de transformação social decorrente das iniciativas do mercado às estratégias de menor impacto político de um movimento negro tradicional, que inclusive desvaloriza as iniciativas do mercado. No caso do movimento GLBT, é necessário deslocar essa oposição, já que as estratégias relacionadas à parte do movimento surgido na década de 1990, especialmente se considerarmos as Paradas do Orgulho, ao contrário de se opor frontalmente aos discursos e iniciativas do mercado segmentado, aproximam-se deles de forma estrutural e concreta, denotando uma relação marcada por processos de estabelecimento de fronteiras e continuidades. De toda forma, as semelhanças entre os processos aqui analisados e os descritos pelo autor nos levam a definir a arena das relações que envolvem o consumo como permeadas de implicações políticas, não só para empresários, como para o público consumidor.

O movimento de empresários do mercado GLS em direção à afirmação de uma identidade positiva e da visibilidade se faz acompanhar também do surgimento de uma nova postura entre o público consumidor, que atua na garantia de seus direitos ao consumo como um caminho para a aquisição de cidadania enquanto GLBT. Assim, é preciso ressaltar o posicionamento de consumidores quando entendem que seus direitos estão sendo desrespeitados em razão de sua orientação sexual, exigindo igualdade por meio de ações relacionadas ao consumo.18 18 Miller observa crescente tendência de transformação do consumo em uma arena permeável à ação política, considerando que as demandas dos consumidores nem sempre se igualam à atuação dos empresários, ou seja, não há nenhuma conexão direta entre anseios do consumidor e atuação dos empresários. Assim, têm surgido uma série de ações que cobram "responsabilidade social" do mercado, enfatizando um controle social dos consumidores em relação às esferas de produção e circulação de mercadorias. No entanto, Miller (1995, p. 45, tradução minha) faz a ressalva de que "não há nenhuma razão particular para otimismo", já que "existe uma distância considerável entre o encontro de interesses entre sociedades consumidoras e negócios, de um lado, e a formação de uma cidadania responsável e moral, preocupada com as conseqüências de suas demandas". Isso se expressa claramente nas reações às restrições quanto à demonstração pública de afeto entre pessoas do mesmo sexo: os "beijaços"19 19 O "beijaço" é um tipo de protesto que vem se tornando comum no movimento homossexual desde início de 2000. Nos mesmos moldes do kiss-in, tática política do movimento nos Estados Unidos e Europa, o "beijaço" consiste numa demonstração pública de afeto entre homossexuais em locais em que essa prática é coibida, buscando visibilidade para esse público. em bares e restaurantes não explicitamente direcionados aos homossexuais, mas freqüentados por esse público, têm se tornado cada vez mais comuns desde meados da década de 1990, sinalizando uma atitude em direção à visibilidade e à exigência de igualdade de tratamento em espaços públicos.

Embora muitos dos "beijaços" sejam articulados pelo movimento GLBT, uma parcela considerável deriva da organização dos próprios freqüentadores, ou da ação conjunta entre freqüentadores e movimento, quando os primeiros procuram ONG GLBT denunciando estabelecimentos de consumo. Outras alternativas, como mensagens de denúncia na Internet ou mesmo na mídia segmentada relativas a estabelecimentos que coíbem o afeto entre pessoas do mesmo sexo também desempenham esse papel. Essa tendência que conecta cidadania a práticas de consumo se faz acompanhar de um movimento mais amplo, que envolve também ações relacionadas ao Estado.20 20 Recentemente, em janeiro de 2006, a fundação Procon, Serviço de Proteção do Consumidor, do Estado de São Paulo, organizou um seminário intitulado "As relações de consumo e a discriminação homofóbica", integrando as atividades que marcam os seus 30 anos de existência. Nos últimos anos, surgiram leis antidiscriminatórias em âmbito municipal e estadual, prevendo punição a estabelecimentos públicos que discriminem cidadãos em razão de sua orientação sexual. Apesar de muitas dessas leis, como ocorre no Estado de São Paulo, abrangerem estabelecimentos não-comerciais e outras formas de discriminação não relacionadas a espaços públicos, elas têm sido principalmente utilizadas em relação a estabelecimentos comerciais. Outras leis do mesmo tipo têm abrangência mais limitada, dispondo penalidades claras apenas para estabelecimentos comerciais.

Considerações finais

Julgo importante realçar o fato de que análises das iniciativas relacionadas ao mercado e mesmo ao comportamento de consumidores perdem em profundidade se interpretadas em separado de processos sociais mais amplos, e desconectadas de outros atores, como Estado e movimentos sociais. O foco nas relações entre mercado GLS e movimento GLBT permitiu observar que a afirmação de uma identidade positiva aproxima os atores sociais de ambas as esferas. Longe, portanto, da razão pragmática muitas vezes atribuída ao mercado e oposta a uma razão cultural, identificada a ações dos movimentos sociais, os empresários GLS indicam uma conexão entre esses dois pólos, mesmo que haja diferenciações entre eles. Desnecessário dizer que tais iniciativas não se prestam a uma compreensão utilitarista do mercado, mas demandam uma abordagem que traga em consideração também os seus aspectos simbólicos. Da mesma maneira, uma visão que opõe movimento e mercado partindo dessa lógica encontra limites quando se propõe a analisar o contexto atual do movimento, permeado pela atuação de ONG – o que inclui relações de competição comumente associadas ao mercado – e por ações pragmáticas. Coloca-se, então, para o movimento GLBT, a necessidade de uma reflexão a respeito do seu papel em um contexto marcado pelo imbricamento entre consumo, afirmação de identidades e reivindicação de direitos.

Muitos dos aspectos que envolvem os discursos presentes no movimento GLBT a respeito do recente mercado GLS giram em torno de uma preocupação em relação às possíveis conseqüências da atuação desse mercado e dos interesses de seus atores.21 21 Na fala dos militantes, por exemplo, há uma ênfase na responsabilidade social dos empresários com o público homossexual e na sinalização de que o mercado tenha um papel, problematizado ou não, na aquisição da cidadania de GLBT. Por outro lado, também há discursos que procuram desvincular cidadania e consumo, aparecendo em versões mais pontuais, mas também atados a uma perspectiva de transformação pautada pelo socialismo. Ver França (2006a). As discussões invariavelmente acabam por abordar também o circuito de estabelecimentos GLS: se é no circuito que a "comunidade" torna-se visível, é também aí que se revelam processos de estratificação sexual22 22 Refiro-me aqui ao tipo de arranjo desenvolvido por Rubin (1993), em que propõe uma escala de estratificação sexual no interior da sociedade. e hierarquização de diferenças.23 23 É importante notar que esse novo mercado GLS, nascido nos anos 1990, absorve os antigos espaços de sociabilidade homossexual de forma diferenciada. O seu desenvolvimento é atravessado por relações de poder que empurram "mais gordos", "mais velhos", pobres, negros, travestis, michês e "efeminados"/"masculinizadas" para os espaços marcados por um menor prestígio social e menor integração a circuitos globais. Os debates no movimento não raro chegam ao consenso de que é importante a diversidade de estabelecimentos e, em certa medida, também a diversidade de estilos de vida relacionados a espaços determinados, mas que se incorre no risco de que muitas vezes as diferenciações sejam entendidas sob uma lógica segregacionista e hierárquica.

Grande parte do mercado GLS e do seu circuito noturno de lazer não considera bissexuais, travestis e transexuais como integrantes da "comunidade" para a qual oferecem seus serviços, enquanto o movimento tem essas categorias como constituintes do seu sujeito político e parte da "comunidade" à qual se dirige. Situações de conflito ocorrem quando identidades que são abraçadas pelo movimento muitas vezes são repudiadas pelo mercado, gerando tensões entre os dois atores sociais. No ano de 2004, por exemplo, travestis organizadas politicamente através da associação que organiza a Parada do Orgulho GLBT realizaram as Blitz Trans, ocasião em que percorreram espaços de consumo do circuito GLS, apoiadas na lei antidiscriminação do estado de São Paulo,24 24 A Lei 10.948, aprovada em 2001, com validade no Estado de São Paulo, dispõe sobre as penalidades a serem aplicadas a práticas de discriminação contra gays, lésbicas, travestis, transexuais e bissexuais. protestando contra estabelecimentos que sobretaxavam ou proibiam a entrada de travestis sob a alegação da necessidade de "filtrar" o seu público (França, 2006a).

Em muitas ocasiões, tais divergências resultam no acionamento de mecanismos de diferenciação, por parte dos militantes, na definição da sua atuação frente a profissionais do mercado, o que tende a acontecer especialmente em momentos em que a categoria "militante" é tida como ameaçada pela indiferenciação em relação a atores do mercado. De toda forma, os processos aqui descritos nos levam a pensar num contexto mais amplo que marca a aproximação entre mercado GLS e movimento GLBT atualmente: se para Douglas e Isherwood (2004, p. 36), os bens são neutros, e seus usos são sociais, podendo ser usados como cercas ou pontes, também poderia dizer que entre mercado e movimento social vêm se construindo não só cercas, mas também pontes, em torno das quais se negociam fronteiras e trafegam significados.

Recebido em 26/02/2007

Aprovado em 12/07/2007

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  • SAHLINS, Marshall. Cultura e razão prática rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2000.
  • *
    Doutoranda em Ciências Sociais.
  • 1
    Refiro-me a autores como Douglas e Isherwood (2004), Sahlins (2000) e Miller (2000).
  • 2
    O artigo deriva da minha dissertação de mestrado (França, 2006a).
  • 3
    Segundo o autor, "o homossexual do século XIX torna-se uma personagem: um passado, uma história, uma infância, um caráter, uma forma de vida. [...] Nada daquilo que ele é, no fim das contas, escapa à sua sexualidade. [...] O sodomita era um reincidente, agora o homossexual é uma espécie" (Foucault, 1978, p. 43).
  • 4
    Vale notar que tal formulação a respeito do "sexo" tal como aparece em Foucault (1978) é devedora de uma posterior elaboração realizada por autoras relacionadas aos estudos de gênero e de sexualidade (Butler, 2003; Moore, 1997). A obra de Foucault, nesse sentido, presta-se a diferentes interpretações e é possível perceber nuanças no seu interior a respeito da crítica à existência de um sexo pré-discursivo, como no prefácio ao diário da hermafrodita Herculine Barbin, em que o autor deixa transparecer a possibilidade de uma "multiplicidade de prazeres
    em si que não é efeito de qualquer interação específica de discurso/poder" (Butler, 2003, p. 144).
  • 5
    Embora as relações entre construção de identidades coletivas e consumo possam ser traçadas com facilidade nesse contexto, Miller (1995) adverte para o fato de que nem sempre quando tratamos de consumo estamos nos referindo ao consumo de bens posicionais, como tendem as análises que privilegiam a perspectiva de que compramos signos construídos pela sociedade de consumo e pela propaganda. Seria inadequado dizer que a relação entre elaboração de identidades e consumo seja constitutiva do ato de consumir, como afirma Friedman (1994). Essa relação é, antes, um dos contextos possíveis em que as práticas de consumo se desenrolam, e que se prestam à análise antropológica assim como as situações que envolvem o ato de consumir em outros contextos.
  • 6
    A respeito do surgimento do movimento homossexual no Brasil, ver MacRae (1990), Green (1999) e Facchini (2005). Utilizo neste artigo a periodização de Facchini (2005), que vê três momentos distintos no movimento: o que vai do seu início, em finais de 1970, ao fim do grupo Somos-SP, em 1983; o período que vai do fim do grupo Somos ao início da década de 1990 e o período a partir da década de 1990.
  • 7
    Gays, Lésbicas e Travestis.
  • 8
    É bastante comum, inclusive, que esses veículos destinem determinados espaços para a veiculação de informações relativas ao movimento GLBT, e mesmo para a publicação de colunas ou artigos de militantes. Boas relações com a mídia segmentada são um aspecto valorizado pelos militantes, pois a partir daí podem visibilizar seu trabalho e usufruir um canal direto de comunicação com a "comunidade".
  • 9
    Na entrevista de um militante de São Paulo, também aparece uma visão que tende a indiferenciar atores do mercado e do movimento, já rebatendo de antemão a idéia de que diferentes éticas e interesses justificariam tal diferenciação: "Não existe uma verdade sobre o que são os militantes, e não existe uma verdade sobre o que são os empresários. Não existe uma cristalização dessas duas coisas. Então, tem gente no mercado que é supersafada, assim como tem gente que é superbem intencionada. Na militância tem gente que é superbem intencionada e tem gente que não está nem aí com as coisas. Então, não existe uma verdade pra mim: 'os militantes são bons e o mercado é ruim'. Eu não gosto desse antagonismo." (entrevista com Pedro, janeiro de 2006).
  • 10
    Observo que experiências de sucesso nesse mercado, encaminhadas por "não-
    gays" tendem a ser contornadas sob os mesmos parâmetros que organizam esse discurso identitário. Na entrevista de Marcelo, a menção à existência duradoura e comercialmente viável da revista
    G Magazine, cuja editora identifica-se como uma "mulher hétero", se faz acompanhar imediatamente da afirmação de que se trata de uma "mulher hétero de alma
    gay".
  • 11
    Isto É (1997). Em entrevista ao
    site MixBrasil (2003), o mesmo empresário afirma que "Eu posso dizer que ganhei dinheiro, gastei e investi muito na noite. As pessoas procuram qualidade. Gay não é bobo, foi o tempo que se escondiam em buracos. As pessoas estão de cabeça levantada. Acho isso bem legal".
  • 12
    Fonte:
  • 13
    Fonte:
  • 14
    Embora hoje a "naturalização" da identidade de homossexual ou dos segmentos GLBT não seja o único discurso presente no movimento, é inegável que continue bastante presente entre militantes, sendo muitas vezes acionado no combate ao preconceito.
  • 15
    Fonte:
  • 16
    Fonte:
  • 17
    Curiosamente, em edição da revista
    Raça Brasil, o presidente da Parada do Orgulho GLBT é entrevistado como um desses exemplos de negro bem-sucedido, o que reforça concretamente as conexões traçadas no parágrafo anterior.
  • 18
    Miller observa crescente tendência de transformação do consumo em uma arena permeável à ação política, considerando que as demandas dos consumidores nem sempre se igualam à atuação dos empresários, ou seja, não há nenhuma conexão direta entre anseios do consumidor e atuação dos empresários. Assim, têm surgido uma série de ações que cobram "responsabilidade social" do mercado, enfatizando um controle social dos consumidores em relação às esferas de produção e circulação de mercadorias. No entanto, Miller (1995, p. 45, tradução minha) faz a ressalva de que "não há nenhuma razão particular para otimismo", já que "existe uma distância considerável entre o encontro de interesses entre sociedades consumidoras e negócios, de um lado, e a formação de uma cidadania responsável e moral, preocupada com as conseqüências de suas demandas".
  • 19
    O "beijaço" é um tipo de protesto que vem se tornando comum no movimento homossexual desde início de 2000. Nos mesmos moldes do
    kiss-in, tática política do movimento nos Estados Unidos e Europa, o "beijaço" consiste numa demonstração pública de afeto entre homossexuais em locais em que essa prática é coibida, buscando visibilidade para esse público.
  • 20
    Recentemente, em janeiro de 2006, a fundação Procon, Serviço de Proteção do Consumidor, do Estado de São Paulo, organizou um seminário intitulado "As relações de consumo e a discriminação homofóbica", integrando as atividades que marcam os seus 30 anos de existência.
  • 21
    Na fala dos militantes, por exemplo, há uma ênfase na responsabilidade social dos empresários com o público homossexual e na sinalização de que o mercado tenha um papel, problematizado ou não, na aquisição da cidadania de GLBT. Por outro lado, também há discursos que procuram desvincular cidadania e consumo, aparecendo em versões mais pontuais, mas também atados a uma perspectiva de transformação pautada pelo socialismo. Ver França (2006a).
  • 22
    Refiro-me aqui ao tipo de arranjo desenvolvido por Rubin (1993), em que propõe uma escala de estratificação sexual no interior da sociedade.
  • 23
    É importante notar que esse novo mercado GLS, nascido nos anos 1990, absorve os antigos espaços de sociabilidade homossexual de forma diferenciada. O seu desenvolvimento é atravessado por relações de poder que empurram "mais gordos", "mais velhos", pobres, negros, travestis, michês e "efeminados"/"masculinizadas" para os espaços marcados por um menor prestígio social e menor integração a circuitos globais.
  • 24
    A Lei 10.948, aprovada em 2001, com validade no Estado de São Paulo, dispõe sobre as penalidades a serem aplicadas a práticas de discriminação contra
    gays, lésbicas, travestis, transexuais e bissexuais.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      06 Nov 2007
    • Data do Fascículo
      Dez 2007

    Histórico

    • Aceito
      12 Jul 2007
    • Recebido
      26 Fev 2007
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