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Memória da antropologia no Sul do Brasil

RESENHAS

Flávia Rieth

Universidade Federal de Pelotas – Brasil

SANTOS, Silvio Coelho dos (Org.); HELM, Cecília Maria Vieira; TEIXEIRA, Sérgio Alves. Memória da antropologia no Sul do Brasil. Florianópolis: Editora da UFSC: ABA, 2006. 208 p.

Memória da Antropologia no Sul do Brasil é um livro escrito pelos antropólogos Sílvio Coelho dos Santos, Cecília Maria Vieira Helm e Sérgio Alves Teixeira, registrando a constituição do campo antropológico na região Sul do Brasil. Este testemunho "está voltado para o ensino formal da ciência", conforme a apresentação do trabalho, observando o incremento da área a partir da criação de cursos de pós-graduação nas Universidades Federais de Santa Catarina, Paraná e Rio Grande do Sul.

Essas memórias localizadas adquirem significação e relevância justamente pelos pontos de contato que apresentam na reconstituição da trajetória do ensino acadêmico da antropologia. Constroem-se em referência ao grupo ao qual se vinculam, destacando as dinâmicas sociais vividas na coletividade, assim reconhecidas por resultarem de uma multiplicidade de relações. Apresentam-se como pontos de vista de uma "memória coletiva" (Halbwachs, 2004).

A vitalidade da antropologia nos casos de Santa Catarina, Paraná e Rio Grande do Sul, no que pesem os problemas enfrentados pelas universidades brasileiras, revela-se nas particularidades dessas trajetórias. Uma história que se inicia com a criação das Faculdades de Filosofia, no final dos anos 1940 e início dos anos 1950, sendo os médicos Oswaldo Rodrigues Cabral e José Loureiro Fernandes e o padre Balduíno Rambo os primeiros catedráticos da disciplina no Sul do país.

A antropologia em Santa Catarina

A Faculdade Catarinense de Filosofia é implantada em 1955. Integravam os programas dos cursos de História e Geografia as disciplinas de Antropologia Cultural, ministrada pelo professor Oswaldo Rodrigues Cabral, reconhecido pelo interesse em cultura popular e folclore; de Etnografia Geral e do Brasil, no curso de História, lecionada pelo professor militar Jaldyr Bhering Faustino da Silva, que desenvolveu, especialmente, conteúdo sobre as relações entre os povos indígenas e os portugueses no período do descobrimento; e a disciplina de Antropologia Física, no curso de Geografia, ministrada pelo padre Alvino Bertoldo Braun, tratando da história natural do homem através dos temas da diversidade racial, antropometria e evolução humana.

Em 1960 é criada a Universidade Federal de Santa Catarina, incorporando a antiga Faculdade Catarinense, então, denominada de Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras. Tais alterações institucionais são acompanhadas de mudanças curriculares, cria-se a disciplina de Antropologia e Etnografia, sob a responsabilidade do professor Oswaldo Rodrigues Cabral. Em 1961, Cabral assume a direção dessa faculdade, sendo substituído pelo professor Silvio Coelho dos Santos, ainda como assistente. É revisto o conteúdo de Antropologia Cultural que passa a abranger a unidade sobre a origem e a evolução do homem, antes matérias de Antropologia Física. O conteúdo desta é ampliado para dois anos, em que se desenvolvem as unidades família e parentesco, a economia, a política das sociedades tradicionais e dos povos indígenas do país.

O passo seguinte para a constituição deste campo do saber foi criar, em 1968, o Instituto de Antropologia "para a preservação do patrimônio arqueológico e para garantir a defesa dos indígenas, além de prover a preparação adequada de novos recursos humanos" (p. 33). O Instituto é transformado em museu na reforma universitária de 1970, período dos governos militares. O professor Oswaldo Rodrigues Cabral foi diretor efetivo do museu até a sua aposentadoria, em 1973, e o professor Silvio Coelho dos Santos respondia como diretor em exercício.

A reforma implantou o Centro de Estudos Básicos, passando as disciplinas de Antropologia e Sociologia – consideradas fundamentais – a integrar o curso básico. Os docentes do Museu de Antropologia, então, compõem o Departamento de Sociologia.

Em 1972, o Departamento de Sociologia criou o curso de Estudos Sociais, transformado no curso de Licenciatura em Ciências Sociais, em 1975, reconhecido em 1978. Em conseqüência o departamento passa a se denominar Departamento de Ciências Sociais. É extinto o Centro de Estudos Básicos.

No ano de 1974, por iniciativa dos antropólogos que atuavam no Museu, realizou-se a IX Reunião da Associação Brasileira de Antropologia – ABA, em Florianópolis, concretizando a reabertura da entidade. A comissão organizadora do evento era composta pelos antropólogos: Silvio Coelho dos Santos, Anamaria Beck, Alroíno Baltazar Eble, Luiz Carlos Halfpap, Gerusa Duarte, Maria José Reis e Neusa Maria Bloemer. Participaram da reunião 28 sócios e 179 não sócios, verificada adesão de estudantes de pós-graduação e jovens pesquisadores.

O curso de Especialização em Ciências Sociais é criado em 1976 e em 1978 se transforma no Mestrado de Ciências Sociais, concentrado nas áreas de Sociologia e Antropologia. No ano de 1985, se realiza, pela primeira vez, o processo de seleção dos Mestrados de Sociologia e de Antropologia Social em separado. É constituído o Departamento de Antropologia em 1996 e em 1998 é implantado o Doutorado. De 1985, quando da criação do PPGAS/UFSC, até 2005 foram defendidas 165 dissertações de mestrado e 14 teses de doutorado. A partir de 1999, o Programa publica a Revista Ilha e mantém Antropologia Em Primeira Mão, bem como participa de publicações interdisciplinares como a Revista Estudos Feministas. Tem estruturado o Laboratório de Antropologia Social e dez núcleos de pesquisa.

A antropologia no Paraná

O professor José Loureiro Fernandes era o responsável pela cátedra de Antropologia na Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da Universidade do Paraná, criada em 1938. Especialista em Antropologia, com formação na França, ministrava as disciplinas de Antropologia Física, Etnografia Geral e Etnografia do Brasil para os cursos de Geografia e História, em 1950; e Antropologia Física, Antropologia Cultural e Etnografia do Brasil para as Ciências Sociais, em 1956.

Atuou junto ao Museu Paranaense, coordenando a área de Antropologia e Etnografia estando no cargo de diretor por duas oportunidades, nos períodos de 1936 a 1943 e 1945 a 1946. Dirigiu o Centro de Estudos e Pesquisas Arqueológicas – Cepa, criado em 1956. Investiu na atualização e especialização em Arqueologia Pré-Histórica e criou e dirigiu o Museu de Arqueologia e Etnologia da UFPR – MAE, localizado na cidade de Paranaguá. Criou e dirigiu o Departamento de Antropologia de 1958 a 1968, quando se aposentou da cátedra de Antropologia. O Departamento de Antropologia que integrava a Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras foi integrado ao Setor de Ciências Humanas, Letras e Artes, SCHLA, da Universidade Federal do Paraná.

O Departamento de Antropologia era composto pelos professores Máximo Pinheiro Lima e Eny de Camargo Maranhão, assistentes de Loureiro Fernandes, atuando junto à disciplina de Antropologia Física; Valderez de Souza Mueler colaborava na disciplina de Etnografia do Brasil. Criou-se a disciplina de Arqueologia Pré-Histórica de responsabilidade de Igor Chmyz; a professora Maria de Lurdes Muniz atuou na cadeira de Antropologia Cultural; o professor José Wilson Rauth ministrou aulas de Aspectos Antropológicos da Realidade Brasileira no curso de Geografia e a professora Cecília Maria Vieira Helm foi responsável pelas disciplinas de Antropologia Social e Etnologia Indígena.

José Loureiro Fernandes participou da I Reunião Brasileira de Antropologia, em 1953, no Museu Nacional, juntamente com os antropólogos Herbert Baldus, Thales de Azevedo, René Ribeiro, Egon Schaden, Luiz de Castro Faria, Eduardo Galvão, Darcy Ribeiro e Oracy Nogueira, que deliberaram sobre a criação da ABA – efetivada em1955, com a constituição de diretoria e conselho científico, do qual o professor fez parte, sendo o antropólogo Luiz Castro de Faria o presidente. Em 1958, na III Reunião da ABA, em Salvador, Loureiro Fernandes elege-se presidente da entidade. A próxima reunião é realizada na cidade histórica de Paranaguá.

Com a reforma universitária, na década de 1970, a cátedra é abolida, o ensino de Antropologia é incorporado em vários cursos, ocasionando a expansão da área. Foram criadas as disciplinas de Sociedades Complexas, Antropologia Urbana, Sociedades Camponesas, Minorias Étnicas e Identidade, Cultura Brasileira, Antropologia Econômica, Metodologia de Pesquisa Antropológica, História da Antropologia Brasileira, Teoria Antropológica I e II, Etnologia Indígena, Antropologia Social sobre organizações sociais e parentesco, e Arqueologia Pré-Histórica.

Em 1972 é criado o Curso de Especialização em Antropologia Social (Ceas), coordenado pela professora Cecília Maria Vieira Helm. Em 1978, diante das dificuldades financeiras para o intercâmbio de professores, o corpo docente do Departamento de Antropologia assume o curso.

Em 1986, o Departamento de Antropologia se envolve na organização da XV Reunião da ABA, realizada em Curitiba. Helm, em atenção ao pedido do professor Roberto Cardoso de Oliveira, presidente da Associação, coordena a realização do evento.

Em 1999, o Curso de Especialização em Antropologia Social torna-se Programa de Pós-Graduação em nível de Mestrado. O PPGAS/UFPR possui seis linhas de pesquisa articuladas em núcleos; mantém cooperação com o Museu de Arqueologia e Etnologia, MAE/UFPR, localizado na cidade histórica de Paranaguá e com o Centro de Pesquisas Arqueológicas, Cepa, em Curitiba.

A antropologia no Rio Grande do Sul

Em 1943 ocorre a implantação da área humanística na Faculdade de Filosofia da Universidade de Porto Alegre. A cátedra de Antropologia, no que passaria a ser, em 1950, a Universidade do Rio Grande do Sul, era ocupada pelo padre Balduíno Rambo. Com formação acadêmica em botânica, obtida na Alemanha, teve produção científica destacada nesta área – em antropologia e história constam 15 escritos, conforme o livro Jesuítas Cientistas no Sul do Brasil. Foi responsável pelas disciplinas de Etnografia Geral e Etnografia do Brasil, sendo a disciplina de Antropologia Física ministrada pelo médico Salvador Petrucci. Ambos, Rambo e Petrucci, eram autodidatas em suas disciplinas.

Em 1958, Pedro Ignácio Schmitz assume como professor colaborador na área. Bacharel em História e Geografia pela UFRGS, Schmitz lecionou Antropologia Física e Língua Tupi. Na mesma época, ingressa Arthur Blásio Rambo, formado em História Natural, também colaborando com a disciplina de Antropologia Física.

Balduíno Rambo faleceu em 1961, sendo substituído na regência da cátedra de Antropologia por Pedro Ignácio Schmitz. Ocorrem reorientações teóricas e metodológicas no sentido de atualizar as atuações da área, o que "substitui os círculos culturais da Escola de Viena pelo culturalismo/funcionalismo norte americano" (p. 142). Além de ser referência internacional em arqueologia indígena, o professor padre Schmitz teve a iniciativa de reunir os professores de antropologia e arqueologia que atuavam no ensino e na pesquisa dessas áreas. Esses encontros ocorreram nos anos de 1960/70 em Caxias do Sul, Ijuí, Passo Fundo, Porto Alegre e São Leopoldo, ultrapassando as fronteiras institucionais da UFRGS e da Universidade do Vale dos Sinos – Unisinos, vinculada à Ordem dos Jesuítas.

Em 1962, o professor Sérgio Alves Teixeira, formado pela UFRGS no bacharelado e na licenciatura em História, ingressa como instrutor de ensino, integrando o corpo docente da área de Antropologia. Atuou nos cursos de Ciências Sociais, Geografia e História direcionando a matéria para o estudo das sociedades complexas. A discussão do Brasil contemporâneo e urbano aparece por intermédio dos temas como carnaval, namoro, moda, festas, cultura popular, preconceitos. Em 1970, indicado pelo professor Sérgio Teixeira, ingressa no Departamento de Ciências Sociais, como professor de Antropologia, Ruben George Oliven, primeiro docente com formação em Ciências Sociais/ UFRGS.

Em 1974, implantou-se o curso de Especialização em Antropologia Social, sob a coordenação do professor Oliven; era o primeiro passo na constituição do mestrado. Esse projeto se concretiza pela inclusão da Antropologia no Mestrado de Política e Sociologia, em funcionamento desde 1973, denominando-se de Curso de Pós-Graduação em Antropologia, Política e Sociologia, a partir de 1979. No quadro de professores de Antropologia constavam Pedro Ignácio Schmitz, Arthur Blásio Rambo, Ruben George Oliven, Claudia Williams Lee Fonseca, Sérgio Alves Teixeira e José Joaquim Proença Brochado.

A relação entre pesquisa e ensino se incrementa, bem como a participação em reuniões científicas. Destaca-se a atuação do professor Ruben Oliven em instâncias externas à universidade: presidiu a ABA no período de 2000/2002, sendo responsável pela organização da XXII Reunião, a única realizada no Rio Grande do Sul.

Nesse registro, observam-se as Reuniões de Antropologia do Mercosul (RAM), cuja primeira edição foi em 1995, promovida pelo PPGAS/UFRGS, sob a coordenação do professor Sérgio Alves Teixeira. O evento ocorreu em Tramandaí, cidade situada no litoral norte do Estado do Rio Grande do Sul.

As modificações ocorridas no Curso de Pós-Graduação em Antropologia, Política e Sociologia, em 1986, resultam na constituição de três cursos independentes por área. Surge o Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social, coordenado pelos professores Claudia Fonseca, Ruben Oliven e Sérgio Teixeira. Na graduação, em 1993, também o Departamento de Ciências Sociais se desdobra em três, e é criado o Departamento de Antropologia.

Em 1985 é firmado o Acordo Capes-Cofecub, de cooperação franco-brasileira, em que se efetivaram missões de ensino e pesquisa sob a coordenação dos professores Jacques Gutwirth (Laboratoire d'Anthropologie Urbaine/Centre National de la Recherche Scientifique – CNRS) e Sérgio Alves Teixeira. Esse intercâmbio perdurou por oito anos, fundamental para o incremento da área. O PPGAS/UFRGS é reconhecido pela Capes em 1987, processo que permite a implantação do Doutorado, em 1991; até fevereiro de 2006 o programa tinha titulado 154 mestres e 26 doutores. Compõem-se do Laboratório de Antropologia Social e seis núcleos de pesquisa; publicou em 1995 o primeiro número da revista Horizontes Antropológicos.

O quadro da Memória da Antropologia no Sul do Brasil é reconstituído no confronto desses três depoimentos. O ponto de vista é o da consolidação da antropologia em instituições federais de ensino no sul do país que, certamente, apresenta relação com outros pontos de vista construídos a partir da atuação dos antropólogos em diferentes instituições: em museus, em organizações não governamentais, em diferentes setores do Estado, na iniciativa privada, etc. A continuidade desse registro acompanha a ampliação do mercado de trabalho dos antropólogos.

Referência

HALBWACHS, Maurice. A memória coletiva. São Paulo: Centauro, 2004.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    05 Nov 2007
  • Data do Fascículo
    Dez 2007
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