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"Aqui ninguém reza por ele!": trânsitos fúnebres entre o Bangladesh e Portugal

Resumos

Nas últimas décadas, as dimensões transnacionais dos fenómenos migratórios assumiram uma crescente importância teórica e etnográfica. Por transnacional refiro-me aos múltiplos e permanentes laços sustentados entre o país de "origem" e o país de "acolhimento". Uma das consequências desta mudança interpretativa foi a constatação de que tais laços e mobilidades - reais e imaginadas - são frequentemente acompanhados pela construção social e simbólica de espaços de pertença, de familiaridade, que se revelam através do envio de remessas ou na reprodução de discursos identitários, para citar apenas alguns exemplos. Com base num estudo de caso sobre bangladeshianos em Lisboa, realizado em Portugal e no Bangladesh, entre 2003 e 2007, procurarei mostrar como a gestão da morte e do morrer revela as dimensões rituais da produção de lugares em contextos transnacionais.

bangladeshianos em Lisboa; islão; morte; transnacionalismo


In the last decades, the transnational dimensions of global migrations gained an increasing theoretical and ethnographic importance. By transnational I am thinking about the social ties that permanently link the "sending" and the "receiving" country. One of the consequences of such interpretative shift has been the acknowledgment that such ties and mobilities - real or imagined - are accompanied by the social and symbolic construction of places of belonging. These processes of place making are revealed in the use of remittances and in specific discourses on identity, to mention just a few examples. Based on a case study about Bangladeshis in Lisbon, carried out both in Portugal and in Bangladesh, between 2003 and 2007, I will show that the management of death and dying reveals the ritual dimensions of such processes of place making in transnational contexts.

Bangladeshis in Lisbon; death; Islam; transnationalism


ARTIGOS

"Aqui ninguém reza por ele!" Trânsitos fúnebres entre o Bangladesh e Portugal* * A pesquisa que resultou neste artigo faz parte do convénio luso-brasileiro Circulação Internacional, Fronteiras e Identidades (Capes-Grices). Gostaria de agradecer o apoio da Fundação para a Ciência e Tecnologia sem o qual este artigo e a pesquisa que está na sua origem não teriam sido realizados. Agradeço igualmente os comentários e sugestões feitos pelos dois referees bem como as leituras atentas de Françoise Lestage, Ramon Sarró e Vítor Pereira.

José Mapril

Instituto Superior de Ciências do Trabalho e da Empresa – Portugal

RESUMO

Nas últimas décadas, as dimensões transnacionais dos fenómenos migratórios assumiram uma crescente importância teórica e etnográfica. Por transnacional refiro-me aos múltiplos e permanentes laços sustentados entre o país de "origem" e o país de "acolhimento". Uma das consequências desta mudança interpretativa foi a constatação de que tais laços e mobilidades – reais e imaginadas – são frequentemente acompanhados pela construção social e simbólica de espaços de pertença, de familiaridade, que se revelam através do envio de remessas ou na reprodução de discursos identitários, para citar apenas alguns exemplos. Com base num estudo de caso sobre bangladeshianos em Lisboa, realizado em Portugal e no Bangladesh, entre 2003 e 2007, procurarei mostrar como a gestão da morte e do morrer revela as dimensões rituais da produção de lugares em contextos transnacionais.

Palavras-chave: bangladeshianos em Lisboa, islão, morte, transnacionalismo.

ABSTRACT

In the last decades, the transnational dimensions of global migrations gained an increasing theoretical and ethnographic importance. By transnational I am thinking about the social ties that permanently link the "sending" and the "receiving" country. One of the consequences of such interpretative shift has been the acknowledgment that such ties and mobilities – real or imagined – are accompanied by the social and symbolic construction of places of belonging. These processes of place making are revealed in the use of remittances and in specific discourses on identity, to mention just a few examples. Based on a case study about Bangladeshis in Lisbon, carried out both in Portugal and in Bangladesh, between 2003 and 2007, I will show that the management of death and dying reveals the ritual dimensions of such processes of place making in transnational contexts.

Keywords: Bangladeshis in Lisbon, death, Islam, transnationalism.

Nas últimas décadas, as dimensões transnacionais dos fenómenos migratórios assumiram uma crescente importância teórica e etnográfica. Por transnacional refiro-me ao conceito elaborado e proposto por Bach, Schiller e Blanc (1992, 1997), que remete para os múltiplos e permanentes laços sustentados entre o país de "origem" e o país de "acolhimento", nas suas facetas económicas, políticas e culturais. Uma das consequências dessa mudança interpretativa foi a constatação de que tais laços e mobilidades – reais e imaginadas – são frequentemente acompanhados pela construção social e simbólica de espaços e lugares de pertença, de familiaridade. Como Karen Fog Olwig (2007) chamou a atenção, a mobilidade e os fluxos globais são acompanhados por processos quotidianos de produção de lugares. Essa mesma ideia é salientada por Clifford Geertz (1996, p. 262, tradução minha) quando afirma que:

[ ] ninguém vive no mundo em geral. Toda a gente, mesmo o exilado, o nómada, o diaspórico ou o perpetuamente móvel, vive numa qualquer e limitada parte da terra – "o mundo aqui à volta". Tal facto é muitas vezes obscurecido pelas ideias veiculadas pelos mass media, pelas velozes deslocações e pelas comunicações de longa distância.

Em contextos de migração transnacional, estes "mundos aqui à volta" manifestam-se e produzem-se através do envio e uso de remessas (em capital e bens), na realização de determinados rituais e cerimónias ou na reprodução de discursos nacionalistas, para citar apenas alguns exemplos. Em todos eles, o que está em causa é a construção de familiaridade num mundo de fluxos e deslocamentos múltiplos.

Ao longo deste artigo procurarei mostrar que também a morte é uma boa metáfora para pensar essa produção de lugares e espaços de pertença em contextos transnacionais. Tal argumento será explorado através de um estudo de caso sobre bangladeshianos em Lisboa, realizado em Portugal e no Bangladesh, entre 2003 e 2007.1 1 O trabalho de campo, tanto em Portugal como no Bangladesh, incluiu observação participante, realização de entrevistas em profundidade, histórias de vida e pesquisa de arquivo e bibliográfica.

Recorde-se que em antropologia social, as concepções da morte e do morrer têm merecido a atenção de um vasto conjunto de autores que vão dos mais clássicos Frazer, Hertz e Evans-Pritchard a autores contemporâneos como Gable e De Boeck. Como João de Pina Cabral (1984) salientou, as abordagens incluem o simbolismo dos vários elementos cerimoniais até à liminaridade dos rituais funerários, enquanto rituais de passagem. Para o presente artigo, o aspecto que mais importa é a relação entre as cerimónias fúnebres e a (re)produção e a simbolização dos lugares de pertença, lugares esses que incluem, entre muitos outros, uma "comunidade" local, um espaço de diáspora ou mesmo a pertença a um Estado-Nação. Dito de outra forma, ao longo deste artigo procurarei enfatizar aquilo que poderia ser designado como a dimensão telúrica dos funerais. Vejamos alguns exemplos onde essa problemática foi abordada.

Uma das mais emblemáticas obras sobre a morte é certamente o livro organizado por Maurice Bloch e Jonathan Parry (1982), intitulado Death and the regeneration of life, no qual os vários autores procuram refletir sobre a presença de símbolos de fertilidade e renascimento nos rituais funerários. Também aqui a relação entre lugares e cerimónias fúnebres está presente, nomeadamente no último artigo de Maurice Bloch (1982), onde o autor retoma parcialmente uma problemática anterior, desenvolvida na sua principal obra etnográfica, intitulada Placing the dead (Bloch, 1971), onde chama a atenção para a relação entre os rituais funerários e a identificação com a terra. Baseando-se na sua pesquisa entre os merinas de Madagáscar, Bloch argumenta que a morte e os rituais funerários implicam dois enterros. Um primeiro, nas imediações do lugar onde a pessoa faleceu, com vista a limpar o cadáver das substâncias impuras que o compõem. Dois anos mais tarde, o corpo é transladado para ser novamente enterrado mas desta vez na campa onde se encontram os seus antepassados. A sepultura e o grupo de parentes equivalem-se e portanto ser enterrado naquela terra significa uma reunião com os parentes passados, presentes e futuros. Esse enterro na terra ancestral é a celebração da união com as redes familiares e uma vitória em face da divisão e da separação que a vida quotidiana implica. Esse segundo enterro, também conhecido por famadihana, reposiciona os merinas que morreram longe da sua terra ancestral naquela que acreditam ser a sociedade dos antepassados. Uma sociedade associada a uma ordem imutável, assente no parentesco e no território, que se contrapõe à precariedade da vida quotidiana e que assim dá continuidade à existência.

Um outro autor que trabalhou essa relação entre morte e lugares, nesse caso lugares sociais, é Philipe de Boeck (2008). Baseando-se no seu trabalho etnográfico sobre danças com os mortos entre jovens adultos em Kinshasa, De Boeck argumenta que a morte é vista como uma gestão de tensões sociais. Através dela critica-se o papel dos mais velhos – os adultos – por ser uma geração que desistiu de lutar pelos direitos e condições dos mais jovens, pelo seu lugar social. Nesse contexto, os rituais funerários procuram reposicionar as paisagens morais da vida pública urbana: aquilo que designam como a ordem da desordem ("desordre"). Os jovens aspiram a um novo papel na ordem pós-colonial, onde o seu lugar é instável, sujeito a insegurança e condições sociais extremas, onde a morte é uma constante ameaça. Dançar com os mortos é uma forma de contestar essa ordem. É a mesma morte que passa a ser manuseada como uma forma de contestar a própria ordem que a criou, de contestar a crise que criou um vazio moral na sociedade, na qual os jovens são irremediavelmente mergulhados.

Mas essa relação entre a morte, as cerimónias fúnebres e os lugares de pertença é visível em muitos outros contextos etnográficos, onde a questão das migrações e das diásporas está presente. Nesse sentido temos um recente artigo de Eric Gable (2006), intitulado The funeral and modernity in Manjaco. A partir de uma pesquisa sobre os migrantes manjacos, nas cidades da Guiné-Bissau, Gable argumenta que as cerimónias fúnebres são ocasiões de demonstração de êxito pessoal nas comunidades rurais de origem. Essas cerimónias são usadas como formas de legitimar afirmações de pertença às comunidades locais de onde saíram. Os funerais são eventos onde esses manjacos apelam ao seu cosmopolitismo, enquanto migrantes e urbanitas, para legitimar a sua pertença ao local. Dito de forma simplista, usam o cosmopolitismo visível no seu sucesso e êxito como um idioma local de afirmação de pertença e prestígio; localizam o seu cosmopolitismo.

Outro exemplo é o trabalho de Françoise Lestage (2008) sobre a migração mexicana no EUA. e os processos de repatriamento de corpos. A autora analisa a forma como se tem vindo a criar uma indústria de repatriamento onde várias agências funerárias e órgãos do Estado mexicano são os principais atores. Tais processos revelam, mais uma vez, a relação entre migrações e lugares, mas dessa vez ao nível da construção do nacionalismo. Para o Estado mexicano, os migrantes deixaram de ser um peso ou um excedente para passarem a principais agentes do desenvolvimento e como tal possuem direitos e privilégios nunca gozados anteriormente: a dupla nacionalidade e o direito de repousar juntos dos seus antepassados.

Finalmente, Engseng Ho (2006), na sua recente etnografia sobre a diáspora iemenita no Oceano Índico, mostra como as campas são os nós de circuitos populacionais que ligam a península Arábica ao Sul da China. As campas hadramis, espalhadas nessa extensão do globo, representam gerações de iemenitas que exploraram as rotas comerciais do Índico e como tal representam e materializam a memória secular da deslocação vivida pelos hadramis, desde os períodos coloniais até à contemporaneidade. São as sepulturas que marcam os lugares de pertença de uma tão vasta diáspora e como tal não remetem para apenas um lugar de origem mas sim para os vários lugares que a compõem.

O que sobressai dos exemplos brevemente explorados anteriormente é precisamente a dimensão telúrica da morte e o papel dessa em contextos migratórios e diaspóricos muito diferentes. Mas como é então entre os bangladeshianos em Lisboa?

Para responder a essa questão começarei, em primeiro lugar, por contextualizar o leitor para esse recente fluxo migratório que liga Portugal ao Bangladesh. Em segundo, abordarei a morte e os discursos que sobre ela têm sido produzidos na literatura sobre o Bangladesh. Este exercício permitirá lançar a discussão, na terceira secção, sobre o impacto dos contextos transnacionais nas práticas sobre a morte. Em quarto, discutirei as concepções e interpretações sobre a morte e o enterro que justificam a existência de trânsitos fúnebres entre Portugal e o Bangladesh. Finalmente, apresentarei as minhas reflexões finais.

Os bangladeshianos em Portugal

Como noutros contextos, a história das migrações para Portugal esteve essencialmente ligada ao passado colonial português, daí a presença de guineenses, cabo-verdianos, moçambicanos e angolanos. No entanto, com a adesão aos acordos de Schengen e as substanciais alterações socioeconómicas ocorridas nos últimos 30 anos, a imigração em Portugal tem vindo a assumir novas características. Uma das mais evidentes é a chegada de populações oriundas de países que pouco ou nenhuma ligação tinham com Portugal, como aliás o caso dos bangladeshianos atesta.

Estes começaram a chegar a Portugal em 1986 e ainda hoje este fluxo migratório se mantém ativo. Entre 1995 e 2003, passou de 47 indivíduos para 2243 o número de pessoas legalmente registadas nos serviços de imigração2 2 Esses dados foram calculados através da soma entre a população bangladeshiana com estatuto de residência em Portugal e o somatório da população bangladeshiana com estatuto de permanência desde 2001 até aos últimos dados estatísticos referentes ao ano de 2003. – apesar dos mais de quatro mil registos no consulado geral do Bangladesh, localizado no Porto. No início de 2009 (fevereiro), o número de cidadãos do Bangladesh registados no consulado ultrapassava já as 4,5 mil pessoas.

Como acontece em Espanha e em Itália, a maioria é oriunda de estratos sociais intermédios, aquilo que no Bangladesh tem vindo a ser classificado como a nova e afluente "classe média", urbanizada e com elevados níveis de instrução. Para esses estratos sociais, vir para a Europa não é uma forma de escapar à pobreza, mas sim uma estratégia de acesso àquilo que no Bangladesh dá pelo nome de adhunik – o "moderno" – e, ao mesmo tempo, de aceder ao estatuto de adulto (Mapril, 2007).

As cadeias migratórias que serviram de esteio à formação desse surpreendente fluxo estão diretamente relacionadas com os processos de regularização levados a cabo em vários contextos da Europa Meridional, desde finais dos anos 1980 até à atualidade. Muitos encontravam-se já na Europa e apenas chegaram a Portugal na procura de oportunidades de legalização, impossíveis de aceder noutros contextos. A maioria aproveitou o espaço Schengen e seguiu os canais criados pelas redes sociais que aqui (Alemanha, França, Itália e Espanha) se estabeleceram nas últimas décadas. Desde o início dos anos 1980, no contexto da ditadura do general Ershad, instaurada no Bangladesh em 1982, que os pedidos de asilo a países como a Alemanha e a França se tornaram um lugar comum (Knights, 1996, 1997). Além disso, a substancial alteração da situação social e económica dos países da Europa meridional em virtude da sua pertença ao espaço comunitário traduziu-se numa melhoria dos níveis de vida das populações e modificou a posição desses países em face da divisão internacional do trabalho (ver Baganha; Malheiros; Ferrão, 1999; King; Lazaridis; Tsardanidis, 2000; Malheiros, 1996). Essas mudanças abrandaram as migrações intraeuropeias e, a curto prazo, acarretaram a chegada de novos imigrantes não oriundos dos antigos espaços coloniais. Perante esses "novos" fluxos migratórios, muitos desses países desenvolveram legislações e programas especiais para a regularização de imigrantes, que passaram a ser vistos por muitos como oportunidades de legalização. À imagem do caso italiano,3 3 Graças à legislação Martelli (que permitia a aquisição de uma residência permanente ou renovável), implementada no início dos anos 1990, o número de imigrantes do Bangladesh a residir em Itália aumentou de forma espetacular, rondando atualmente os 20 mil indivíduos (Knights, 1996). muitos bangladeshianos deslocaram-se para Portugal no âmbito dos processos de regularização desenvolvidos pelas autoridades portuguesas em 1992, 1996 e 2001-2002, e/ou para se juntarem aos seus amigos e familiares. Após a obtenção de documentos alguns regressaram ao Bangladesh onde, através de investimentos em várias áreas, angariaram o capital suficiente para fazer novos investimentos em Portugal. Outros decidiram permanecer em Portugal, aproveitando o comércio realizado por bangladeshianos, para se inserirem no mercado de trabalho ou optaram ainda pela inserção em sectores como a construção civil. Finalmente, outros decidiram deslocar-se novamente para outros países europeus de forma a dar continuidade aos trabalhos que ali vinham a realizar ou para se juntarem aos membros da família que ali residem. Apesar de muitos terem chegado isolados, quando iniciei o trabalho de campo era possível observar um crescente número de crianças e mulheres, o que revelava que muitos começavam a acionar os processos de reunificação familiar.

Essas diferenças entre bangladeshianos, ao nível dos processos de reunião familiar e da propriedade de negócios, revelam a segmentação existente entre essa população. Por um lado, temos os pioneiros – chegados no final dos anos 1980 e início dos anos 1990 – que começaram por trabalhar nos sectores mais desprestigiados e que hoje são proprietários de vários negócios. Constituíram as suas unidades domésticas e são exemplos de sucesso e êxito; um modelo para muitos dos recém-chegados. Já os recém-chegados, os chamados freshies – aqueles que chegaram para os processos de regularização de 2001 – continuam ainda hoje a chegar. Trabalham nos sectores mais precários ou no mercado de trabalho criado pelos pioneiros, e na maior parte dos casos são solteiros. Muitos chegaram a Lisboa isoladamente, e portanto é comum não terem família em Portugal, e o seu projeto migratório é pois ainda incerto.

Nesse contexto migratório, como é então gerida a morte e o morrer?

Mortes e funerais transnacionais

Entre os bangladeshianos em Lisboa, uma doença grave ou a morte de um parente no Bangladesh pode implicar uma súbita viagem de regresso. No entanto, e por motivos financeiros ou de estatuto legal, a deslocação nem sempre é possível num curto espaço de tempo e sem planeamento. Além disto, e como ocorre noutros contextos islâmicos, é crença generalizada que o corpo deve ser enterrado o mais depressa possível e como tal nem sempre há tempo para preparar e fazer uma viagem que permita ainda participar nas cerimónias fúnebres.

Perante tal cenário, uma das soluções é realizar algumas cerimónias em Lisboa ao mesmo tempo que ocorrem no Bangladesh. Por exemplo, passados quarenta dias da morte é suposto organizar uma assembleia devocional, designada milad, para recitar orações e invocações em nome do falecido, seguindo-se a distribuição de comida, shinni. Essa é, por vezes, realizada também em Lisboa e para a qual se convidam vários membros da "comunidade". Perante tais condicionalismos, muitos preferem ou são forçados a fazer a viagem de regresso apenas quando as condições são mais propícias, nomeadamente, quando houver acumulação suficiente de capital, quando conseguem libertar-se dos constrangimentos profissionais, ou quando obtêm um documento que lhes permita regressar ao Bangladesh sem pôr em causa o regresso à Europa.

Outra forma de gerir a morte à distancia é pedir a amigos e a familiares em Lisboa que realizem du'as (súplicas) em nome dos falecidos. Ao fazerem as suas orações podem também realizar algumas súplicas em nome dos falecidos. Um dos meus interlocutores, por exemplo, aguardava noticias do nascimento do seu primeiro filho quando recebeu um telefonema a informá-lo que o recém nascido se encontrava gravemente doente e debilitado e portanto não sabiam se sobreviveria. Dias depois faleceu e o pai pediu a vários amigos e conhecidos, em Lisboa, para fazerem orações e súplicas em nome do filho.

Mas como é gerida a morte entre os próprios migrantes? O que acontece quando um bangladeshiano morre em Lisboa ou no Porto?

Desde 1986, altura em que terá chegado o primeiro bangladeshiano a Portugal, até ao final de 2006, morreram 13 bengalis em circunstâncias diversas (doenças prolongadas, acidentes de trabalho e alegados crimes) e todos foram a enterrar no Bangladesh, exceto um, ao qual voltarei um pouco mais adiante.

As despesas e a organização da transladação do corpo ficaram a cargo dos pioneiros. Enquanto símbolos de sucesso e êxito, assumem frequentemente o papel de líderes da "comunidade", e é precisamente enquanto badralok, designação bengali para homem importante, big man, que são chamados para resolver situações de conflito ou gerir a morte de um conterrâneo.

São eles que, juntamente com vários outros ajudantes, se encarregam da preparação das cerimónias fúnebres, com a explícita colaboração das principais instituições islâmicas em Portugal. Recorde-se que, em 2006, os muçulmanos bengalis criaram uma das mais importantes mesquitas no país, bem no centro da cidade de Lisboa – a mesquita Baitul Mukarram (nome da mesquita central de Dhaka, a capital do Bangladesh). Pode albergar 600 a 700 pessoas e é autónoma em relação a outras instituições islâmicas portuguesas ao nível cerimonial já que, entre outras ocasiões, realiza as principais orações do calendário anual e diário, e as quebras de jejum (iftar) durante o mês do Ramadão (Mapril, 2005). No entanto, não dispõe de instalações para a realização das cerimónias e rituais fúnebres e como tal os corpos são sempre encaminhados para a mesquita central de Lisboa ou a mesquita Hazrat Bilal, no Porto, consoante a conveniência e proximidade.

A mesquita central de Lisboa é uma instituição que já existia aquando da chegada dos bangladeshianos e para a qual muitos se dirigiam para celebrar os ritmos anuais do islão. Nos anos 1950, vários membros de famílias sunitas de origem indiana a residir em Moçambique deslocaram-se para Portugal para continuar os seus estudos (Tiesler, 2000; Vakil, 2003). Anos mais tarde, tornaram-se as elites muçulmanas em Portugal, tendo formado a instituição Comunidade Islâmica de Lisboa (CIL) em 1968. Uma das principais preocupações da CIL foi a construção de um espaço de orações para os cerca de quatro a seis mil muçulmanos em Portugal, o que só veio a suceder em 1979, quando a mesquita central de Lisboa começou a ser construída com o apoio financeiro de vários países islâmicos e a doação de terrenos por parte da Câmara Municipal de Lisboa. Esse lugar de culto foi inaugurado em 1985, quando as mesquitas do Laranjeiro e de Odivelas já desenvolviam as suas atividades desde 1982 e 1983 (Tiesler, 2000).

A mesquita Hazrat Bilal, ou mesquita central do Porto, foi inaugurada apenas em 2001, ao fim de 13 anos de negociações com as autoridades e é um dos espaços de culto frequentados por muitos dos bangladeshianos que residem nessa cidade. É talvez a principal face do islão no Norte do país.

Ora é no seio dessas instituições, previamente existentes, que a gestão dos rituais fúnebres e da morte entre bangladeshianos é parcialmente feita. São os funcionários dessas mesquitas que habitualmente realizam as lavagens (ghosul), as abluções (wuzu) e embrulham o cadáver no kafan, a mortalha branca que é também usada pelos peregrinos durante a Hajj. Essa é uma tarefa realizada por homens ou mulheres consoante o defunto é um homem ou uma mulher. Em seguida, o corpo é embalsamado, como aliás a lei obriga em casos de transladação, e selado num caixão para fazer a viagem de regresso ao Bangladesh. Antes de selar o caixão, o corpo é transportado para a sala de orações, ou, no caso da mesquita central de Lisboa, para o pátio interior, onde se realiza a salat-ul-janazah, a oração fúnebre. De acordo com os meus interlocutores, o número de crentes nessa oração deve ser significativo já que quanto maior for a congregação maior é o mérito, sowab, que o falecido "receberá". Como tal, não é incaracterístico muitos bangladeshianos se deslocarem de todo o país para participar nessas orações, sendo por vezes literalmente recrutados para participar. Num dos casos que acompanhei, cinco interlocutores foram ao Porto e regressaram no mesmo dia com o intuito de participar na oração fúnebre de um conhecido comum. Por vezes, entre esses encontram-se não só familiares, conhecidos e amigos do falecido, mas também outros, que apesar de não o conhecerem consideram importante a sua presença. Segundo alguns dos meus interlocutores, tal deve-se ao reconhecimento que numa ocasião como essa todos devem participar na oração pois, no futuro, serão eles a precisar da participação e empenho de todos.

Essa é um congregação exclusivamente masculina e como tal as mulheres estão absolutamente excluídas de participar nas cerimónias. A esposa do falecido, quer se encontre em Portugal ou no Bangladesh, deve permanecer em casa, e com um contacto mínimo com o exterior durante um período alargado de tempo, que se pode estender até 40 dias. Durante ests período, recebe visitas de outras mulheres, mas é comummente referenciado o facto de ter de se manter afastada de homens não pertencentes à patrilinhagem, gushti.

Nos dias seguintes, por ocasião das orações diárias na mesquita Baitul Mukarram, o falecido é relembrado e pede-se à congregação que reze por ele. Assim que possível inicia-se o repatriamento do corpo, processo no qual está envolvida uma agência funerária, que é frequentemente contratada pela CIL. O preço da passagem equivale a meio bilhete de turística, mas tem que se pagar à agência funerária e pedir a documentação apropriada ao Consulado Geral do Bangladesh. Todas essas despesas são suportadas através de coletas informalmente organizadas entre os pioneiros e no seio de associações regionais informais. Os primeiros encaram essas doações de forma ambígua. Por um lado, e enquanto membros bem sucedidos, elas representam a obrigatoriedade de contribuir e redistribuir a sua riqueza pela "comunidade". Essas doações são também vistas como boas acções (waqf) e como tal algo que lhes permitirá acumular mérito, capital sagrado. Simultaneamente, elas funcionam como formas de legitimar a sua autoridade enquanto figuras centrais no seio dos bangladeshianos, já que demonstram de forma cabal a dependência que a "comunidade" deles tem.

Mas as coletas são também organizadas junto das 18 associações regionais, de cariz informal, que se têm constituído nos últimos anos. Uma das características desse fluxo migratório é a sua grande diversidade ao nível das regiões de origem no Bangladesh. Como tal têm surgido várias associações que reproduzem essas identidades regionais e que se dedicam ao bem-estar dos seus membros através do manuseamento e acumulação de capital social. Esse capital é não só usado para investimentos comerciais, mas também em casos de necessidade, tais como a morte de um dos seus membros. Nessas circunstâncias, cabe aos restantes, independentemente da sua posição no processo migratório, ajudar a financiar o repatriamento do seu conterrâneo através de uma coleta. Não existe uma obrigatoriedade nas quantias doadas, mas normalmente os contributos das principais figuras da "comunidade" correspondem à fatia principal. Essas quotizações destinam-se também a recolher uma verba que é posteriormente entregue à família ou à viúva, no Bangladesh, e que num dos casos chegou aos cinco mil euros.

Cabe então à família ir buscar o corpo ao aeroporto. Nalguns casos aluga-se uma ambulância que transporta o corpo até ao cemitério e depois organiza-se o cortejo fúnebre e o enterro. Num dos casos, o caixão foi levado para a aldeia de origem, nos arredores da capital, e, no terreiro onde se fazem as orações das duas principais festas do calendário anual, foi aberto com o intuito de desvelar o corpo – requisito essencial para realizar a salat-ul-janazah. Vários dias depois de falecer, e com a cara direcionada para Meca, foi finalmente enterrado na desh.

Outras possibilidades são: enterrar o corpo nas terras da família, junto de outros parentes; ou nas imediações de mazaar de famosos pirs, isto é, os lugares onde foram enterrados famosos homens santos (Gardner, 1998, 2002). No Nordeste do Bangladesh, onde a importância histórica do pirismo é estruturante para perceber as dinâmicas de islamização do Golfo de Bengala (Eaton, 1993), tal prática é encarada como muito auspiciosa para o defunto, já que fica protegido pelo carisma do homem santo, que por ele pode interceder junto de Deus.

Mas por que não enterrar o corpo em Portugal? Afinal, e como alguns membros da comunidade Islâmica de Lisboa se questionam, existem vários talhões islâmicos. Atualmente, existem três talhões islâmicos que estão localizados no Lumiar, em Odivelas e no Feijó. A criação de tais espaços esteve relacionada com o crescente número de muçulmanos em Portugal que, em virtude dos processos de descolonização e da nova posição de Portugal em face dos fluxos globais de migrantes, passaram de 15 mil indivíduos, nos anos 1980, a 30 mil indivíduos, dez anos mais tarde (Kettani, 1996). Aqui, e contrariamente ao que ocorre nas zonas não islâmicas dos cemitérios, as campas são indistintas umas das outras e o único elemento diferenciador é a numeração de cada placa. Outra forma de distinção por vezes utilizada é a colocação de uma corda colorida para distinguir o local de enterro de um familiar. A ideia para esta indistinção reside no facto de, de acordo com a retórica de alguns membros da CIL, depois da morte todos os muçulmanos são iguais. Como tal, para alguns membros da Comunidade Islâmica de Lisboa, a principal representante do islão em Portugal, enviar os corpos dos falecidos para os países de origem, prática realizada tanto por bangladeshianos como por guineenses (ver Saraiva, 2008), é algo ativamente questionado. É considerada uma prática não islâmica, dado que o corpo deve ser enterrado o mais depressa possível e como tal não deveria haver lugar a embalsamamentos e transladações. Essa perspectiva crítica, aliás, é também reiterada por alguns dos meus interlocutores, especialmente aqueles com uma experiência migratória de várias gerações (num caso, o pai estava enterrado em Inglaterra, onde viveu a maior parte da sua vida), para quem o enterro deve ser realizado onde a pessoa se encontra. Também esses argumentam que o enterro deve ser célere e que envio para o Bangladesh é não só uma despesa desnecessária como algo que não tem em conta as "adequadas" orientações doutrinárias.

O lugar do enterro e o mérito

A preocupação com o enterro no Bangladesh está relacionada com a crença generalizada na obrigatoriedade de "regressar" à desh, para junto dos seus parentes (atyio). Numa conversa sobre esse facto Ali, um dos meus interlocutores, aprofundou essa ideia dizendo: "aqui ninguém reza por ti porque ninguém te conhece. No Bangladesh, as pessoas quando passam no cemitério lembram-se de ti e portanto fazem uma du'a em teu nome."

O que Ali queria dizer era que cada oração feita em nome do falecido reverte a seu favor no futuro, quando os seus comportamentos forem avaliados por Deus, e nessa medida é necessário enterrar as pessoas nas imediações das sociabilidade mais próximas. Essas redes de relações sociais são indispensáveis para a derradeira viagem que a morte representa, e quando o julgamento final chegar, todos – a começar pelos mortos – terão que prestar contas pelas suas ações na terra. Nessa medida, ter parentes que fazem orações ou assembleias devocionais em nome ou homenagem do defunto é uma forma de adquirir mérito.

Essa ideia está relacionada com as próprias concepções da morte partilhadas por muitos dos meus interlocutores e que têm semelhanças com aquilo que tem sido descrito em vários contextos no Bangladesh (Gardner, 1995; Kotalová, 1993). Para muitos, aquilo que se faz na terra tem consequências evidentes no após a morte. Este mundo e o próximo são na realidade parte de um mesmo contínuo onde aquilo que se faz em vida determina tanto a vida futura como a morte. As ações quotidianas são muitas vezes medidas, em termos de significados e cargas morais, com base nas consequências que podem ter para a vida depois da morte. Associada a isso está a noção de que as pessoas podem realizar determinados atos como forma de aquisição de mérito (sowab) e de capital sagrado que será depois da morte indispensável para entrar no paraíso (janna) e escapar às tormentas do inferno (jahannam). A caridade (lilla), na forma de doações e oferendas aos mais carenciados, bem como as boas ações (waqf), como o sacrifício de recursos económicos pessoais em prol da "comunidade" mais vasta, são dois exemplos de práticas de acumulação de mérito. Mais, durante o calendário religioso anual, existem ocasiões tais como a noite da revelação, também conhecida como Shab-e-Qadr, que correspondem a ocasiões de invulgar acumulação de mérito. Esta celebração não tem uma data precisa uma vez que se discute se a revelação do Qur'an ao profeta ocorreu no 19º, no 21º ou no 23º dia do Ramadão. Na Baitul Mukarram têm-se seguido as versões maioritárias que apontam para o 23º dia como a data provável, embora em 2005 se tenha introduzido uma outra alternativa. Na 19ª noite do Ramadão um grupo organiza-se e oferece-se para passar as seguintes cinco noites, até à vigésima terceira, a recitar o Qur'an e a fazer várias orações. Todas as noites seguintes, depois do trabalho, juntam-se na Baitul Mukarram para rezar durante a noite. Quando questionados pela frequência, explicaram-me que passavam todas as noites a rezar porque assim de certeza que acertavam na correta. Além disso, fazê-lo era benéfico para toda a congregação porque faziam as orações por aqueles que, devido às circunstâncias das suas vidas, não podiam passar essas cinco noites na mesquita. Essa cerimónia é realizada ao longo de toda a noite e as pessoas vão-se revezando para descansar. O motivo para tal empenho concentrado numa só ocasião prende-se com a ideia de que as orações realizadas na noite do Shab-e-Qadr são "melhores" do que as orações realizadas em qualquer outra altura. Isto é, comportam mais sowab, mérito, do que mil orações realizadas noutras ocasiões e portanto é uma oportunidade para acumular capital sagrado.

Ora, depois de falecido, a aquisição e acumulação de sowab torna-se impossível a não ser com a ajuda dos familiares e dos amigos que, ao fazerem orações, súplicas e assembleias devocionais em nome do defunto contribuem, significativamente, para o aumento do seu capital sagrado. Daí a necessidade de ser enterrado nas imediações dos familiares, amigos e conhecidos, isto é, aqueles que mais facilmente se poderão lembrar dele.

Essa relação entre o enterro no Bangladesh e o mérito (sowab) deve, no entanto, ser interpretada com base numa outra ideia, que Katy Gardner explorou num artigo de 1993. Nesse texto, Gardner (1993) mostrou como para muitos bangladeshianos, bidesh, o termo bengali para "terra estrangeira", remete para uma ideia de terra de abundância, de inimagináveis riquezas e êxitos. Por sua vez, o termo desh, que remete para o Bangladesh, a aldeia e a região de origem, está intimamente associada à pobreza e à falta de oportunidades. No entanto, o outro lado da moeda é que bidesh é encarada como uma terra pouco religiosa e moralmente ameaçadora em face de um Bangladesh de devoção e de valores. Assim, e uma vez que a morte não é o fim, mas antes um outro percurso conducente a Deus, percurso esse que depende de atos religiosos praticados por outros, mais vale ser enterrado numa terra de pessoas devotas do que numa terra onde existe um vazio de valores e de religião, onde há poucos muçulmanos a velar pelo defunto.

Nesse contexto, ser enterrado em Portugal é frequentemente relacionado a uma ideia de abandono. É como se a pessoa fosse deixada à sua sorte, desprotegida e vulnerável. Essa mesma ideia foi-me expressa por um dos meus interlocutores ao dizer que se morresse não nos deveríamos dar ao trabalho de o repatriar. Só iria dar trabalho à família, e, como não conseguia enviar dinheiro para casa, mais valia ser deixado em Portugal.

Enviar o corpo para o Bangladesh é, portanto, uma forma de corresponder ao ideal, às noções de "boa morte", como Maurice Bloch e Jonathan Parry lhe chamaram. Como tem sido extensamente documentado em várias etnografias sobre o Bangladesh (Garbin 2004; Gardner, 2002; Kotalová, 1993), a "boa morte" é aquela que ocorre junto dos "seus", dos parentes, dos membros da unidade doméstica e da patrilinhagem e não só ou junto de desconhecidos. O ideal, aliás, seria morrer em casa, rodeado pelos parentes. Ora, como muitos continuam a considerar que a sua casa se encontra no Bangladesh, ao nível de instituição e relações sociais, é evidente que o ideal é ser repatriado.

Essa mesma ideia aparece também entre muçulmanos bengalis em Londres, o destino mais importante dessa emigração, no qual, como Gardner (1998) demonstra, muitos sentem a necessidade de enviar os defuntos para o Bangladesh, nesse caso Sylhet, porque reconhecem a necessidade dos parentes verem o cadáver uma última vez. Não é por acaso que entre os bangladeshianos no Reino Unido 60% a 70% dos corpos são repatriados (Gardner, 1998). Ora, se é no Bangladesh que se encontram os parentes e amigos, então, dirão alguns dos meus interlocutores, é aí o lugar da morte e do enterro.

Essa preocupação é tal que o próprio Estado bangladeshiano desenvolveu medidas específicas para o repatriamento dos corpos dos seus trabalhadores expatriados. No contexto da governação da emigração desenvolvida desde meados dos anos 1980 do século XX, implementou-se, em 1990, o Wage Earners Welfare Fund (WEWF). Esse fundo foi constituído, em larga maioria, com as subscrições dos trabalhadores migrantes, com os juros dos depósitos das agências de recrutamento, com 10% das taxas cobradas nas representações diplomáticas no exterior e, finalmente, com contributos institucionais e pessoais. Entre outros objetivos, esse recurso visava desenvolver programas de apoio social aos trabalhadores migrantes e suas famílias que incluíam a transferência dos corpos dos migrantes falecidos no exterior, bem como apoiar financeiramente as suas famílias. Os valores disponibilizados rondam as 20 mil takas. Ao todo, desde a sua criação, esse fundo já repatriou os corpos de cinco mil trabalhadores migrantes falecidos no estrangeiro (ver Siddiqui, 2001).

Segundo vários agentes envolvidos em todo este processo, o repatriamento dos falecidos probashis (termo bengali para emigrante) é uma forma de retribuir os sacrifícios que muitos realizam em prol do desenvolvimento do país. O capital económico acumulado no exterior e posteriormente canalizado para o Bangladesh, na forma de remessas e investimentos, por parte dos cerca de 5 milhões de probashis, em países como Reino Unido, Arábia Saudita, EUA, Emirados Árabes Unidos, Malásia, Itália e muitos outros, é visto como indispensável para o desenvolvimento económico e "modernização" do país. Como tal, financiar o repatriamento dos falecidos e o pagamento de uma compensação às suas famílias é frequentemente percepcionado como um justo tratamento e retorno para alguém que se "sacrifica" em nome do Bangladesh.

Mas o que é que acontece quando essas sociabilidades desaparecem? Quando os parentes morrem ou vivem todos no destino de imigração?

Vejamos um caso.

Alam estava em Portugal desde 1996, onde fazia o circuito nacional de feiras. Em 2001, sofreu um acidente de automóvel e ficou gravemente ferido. A ideia inicial era levá-lo para Dhaka, mas a viagem foi fortemente desaconselhada. A esposa e os quatro filhos vieram então para Lisboa, com a ajuda do tio materno, e compraram um apartamento para poder tomar conta dele, que se encontrava em estado semivegetativo e portanto totalmente dependente.

Em janeiro de 2006, Alam faleceu em casa e a família decidiu enterrá-lo em Lisboa – no talhão islâmico do cemitério do Lumiar. Estranhei tal decisão, e quando questionados explicaram-me que ele deveria ser enterrado o mais depressa possível e como tal não queriam enviá-lo de volta para o Bangladesh. Além disso, Alam já não tinha parentes (atyio) no Bangladesh. O pai e a mãe tinham falecido e o único parente vivo, a irmã que vivia em Dhaka, não queria saber do irmão. Anos antes, depois do acidente, as relações com a família de Alam tinham-se deteriorado até ao corte de relações. Assim, era desnecessário enviar o corpo para o Bangladesh pois não havia ninguém que pudesse tomar conta dele. A família estava em Portugal e não no Bangladesh.

Nesse caso, o genro e os filhos participaram nas abluções e na limpeza ritual do cadáver na mesquita central de Lisboa. A salat-ul-janazah foi realizada no pátio da mesquita central de Lisboa, onde estavam perto de 30 bangladeshianos, entre os quais algumas das figuras mais proeminentes da "comunidade" juntamente com amigos e conhecidos da família do falecido. Seguidamente, o caixão foi fechado e o corpo foi levado para o cemitério do Lumiar. O carro funerário foi até às imediações do talhão islâmico e uma vez aí o corpo, ainda dentro do caixão, foi retirado. No percurso entre o carro e a campa, que tinha sido previamente aberta, cada um dos que o transportava recitava uma oração e como tal verifica-se uma sobreposição e cruzamento de sons e encantamentos. Enquanto isso, os restantes aguardavam junto à campa.

O caixão foi pousado ao lado da mesma e o corpo, envolvido no kafan, foi retirado e o mais delicadamente pousado no exterior. Os presentes reuniram-se e fizeram, novamente, a salat-ul-janazah. Seguidamente, alguns desceram para o interior da campa e ajudaram a dispor o corpo no seu interior, com a cabeça virada para o lado, para poder "respirar", diriam alguns dos meus interlocutores mais tarde, e para Meca. Anteriormente, um grupo de bangladeshianos tinha colocado no interior da campa esteiras em sarapilheira, que já vinham da mesquita central de Lisboa, onde o corpo foi, posteriormente, disposto. O passo seguinte foi a colocação de tábuas, na diagonal, e a todo o comprimento da campa, por forma a criar uma caixa de ar. Finalmente, cobriu-se com terra que era simultaneamente deitada pelo funcionário do cemitério, com a ajuda de uma enxada, e pelos bangladeshianos presentes, que à mão deitavam pequenas porções ao mesmo tempo que recitavam várias orações e súplicas.

Foi o primeiro enterro de um bangladeshiano em Portugal.

Através desses exemplos, revela-se a dimensão telúrica da morte, dimensão essa que é está diretamente relacionada com a existência de sociabilidades e de relações sociais a quem o corpo é "confiado".

Conclusão

Depois desta breve descrição etnográfica, e para terminar, proponho que regressemos à antropologia, mais concretamente a Maurice Bloch e aos seus escritos sobre a morte e o morrer. Como vimos inicialmente, no último capítulo do livro Death and the regeneration of life, Bloch (1982) argumenta que a morte entre os merinas de Madagáscar remete para a intrínseca relação com lugares de pertença. Os dois enterros, o primeiro, nas imediações do lugar onde a pessoa faleceu e, dois anos mais tarde, o segundo, no qual o corpo é transladado para a campa onde se encontram os seus antepassados, revelam essa dimensão telúrica da morte. A campa e o grupo de parentes equivalem-se, e portanto ser enterrado naquela terra é o mesmo que se reunir com os parentes, passados, presentes e futuros.

O caso dos bangladeshianos em Lisboa, que explorámos ao longo deste artigo, remete, até certo ponto, para uma lógica comparável, apesar de algumas diferenças que convém salientar. Embora uma pessoa possa ser enterrada nas terras da família não é obrigatório que assim seja. É muito frequente serem enterradas em cemitérios públicos onde as campas são totalmente indistintas e não representam uma correspondência direta entre a terra e os antepassados. No entanto, não deixa de ser verdade que existe uma estreita relação entre uma terra e os atyio, os parentes.

O que daqui emerge tem evidentes semelhanças com o argumento de Karen Fog Olwig (2007) segundo o qual num mundo crescentemente globalizado os lugares não deixaram de existir; eles continuam a ser produzidos no âmbito da vida social. Existe uma homologia entre lugares de pertença e noções de relatedness, o que, no caso apresentado, assume o seu oximoron na morte e no morrer. Através da territorialização da morte celebra-se uma união com um lugar onde as pessoas têm os seus parentes, amigos e conhecidos, união essa que é uma vitória sobre a divisão e a separação que a contemporaneidade implicou ao forçar muitos dos meus interlocutores a migrar, a vir para a Europa (para um caso semelhante, ver Saraiva, 2008).

De facto, e como Engseng Ho (2006) argumentou, numa sociedade de migrantes o importante não é onde se nasce, mas sim onde se é enterrado. Assim, e para regressar ao título deste artigo, percebe-se como os trânsitos fúnebres entre Portugal e o Bangladesh são também projetos de produção de lugares, de fixidez, num mundo que é recorrentemente representado como de fluxos, de mobilidades e de deslocamentos.

Recebido em: 31/10/2008

Aprovado em: 30/01/2009

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  • *
    A pesquisa que resultou neste artigo faz parte do convénio luso-brasileiro Circulação Internacional, Fronteiras e Identidades (Capes-Grices). Gostaria de agradecer o apoio da Fundação para a Ciência e Tecnologia sem o qual este artigo e a pesquisa que está na sua origem não teriam sido realizados. Agradeço igualmente os comentários e sugestões feitos pelos dois
    referees bem como as leituras atentas de Françoise Lestage, Ramon Sarró e Vítor Pereira.
  • 1
    O trabalho de campo, tanto em Portugal como no Bangladesh, incluiu observação participante, realização de entrevistas em profundidade, histórias de vida e pesquisa de arquivo e bibliográfica.
  • 2
    Esses dados foram calculados através da soma entre a população bangladeshiana com estatuto de residência em Portugal e o somatório da população bangladeshiana com estatuto de permanência desde 2001 até aos últimos dados estatísticos referentes ao ano de 2003.
  • 3
    Graças à legislação Martelli (que permitia a aquisição de uma residência permanente ou renovável), implementada no início dos anos 1990, o número de imigrantes do Bangladesh a residir em Itália aumentou de forma espetacular, rondando atualmente os 20 mil indivíduos (Knights, 1996).
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      25 Jun 2009
    • Data do Fascículo
      Jun 2009

    Histórico

    • Recebido
      31 Out 2008
    • Aceito
      30 Jan 2009
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