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Cabo-verdianos em Lisboa: manifestações expressivas e reconstrução identitária

Resumos

Trata-se aqui de abordar, entre imigrantes cabo-verdianos da região da Grande Lisboa, Portugal, alguns dos recursos estéticos e identitários empregados como parte da estratégia de adaptação ao novo contexto. O conceito de manifestações expressivas, manifestações estéticas que possuem algum caráter identitário, serve de suporte para a construção e análise do objeto empírico, associado aos pressupostos de que tradições são inventadas (Hobsbawn), comunidades são imaginadas (Anderson) e que manifestações estéticas só fazem sentido no quadro social do qual emergem (Duvignaud). Os dados analisados foram coletados entre imigrantes cabo-verdianos ou seus descendentes residentes no bairro Alto da Cova da Moura, a partir de uma abordagem qualitativa e sem pretensão de exaustão. A pesquisa conclui que os imigrantes cabo-verdianos observados, ao reinventarem suas tradições, criam manifestações expressivas originais e encontram, no mundo do espetáculo, um espaço com algum nível de democracia em que os estereótipos de ordem étnica são, de certo modo, sublimados.

cabo-verdianos; imigrantes; manifestações expressivas; recursos identitários


This article aims at analyzing some of the identity and aesthetic resources employed by Cape Verdean immigrants in the region of Lisbon, Portugal, as part of the strategy of adaptation to the new context. The concept of expressive manifestations, aesthetic manifestations which possess some identity nature, serves as support to the empirical object construction and analysis, associated with the presupposition that traditions are invented (Hobsbawn), communities are imagined (Anderson) and aesthetic manifestations only have meaning in the social frame from which they emerge (Duvignaud). The analysed data were collected among Cape Verdean immigrants or their descendents who live in the Alto da Cova da Moura district and the approach was qualitative, not intending to be exhaustive. The research concludes that the observed immigrants, when they re-invent their traditions, create original expressive manifestations and find in the performance world a context with some level of democracy in which the ethnic stereotypes are somewhat made sublime.

Cape verdeans; expressive manifestations; identity resources; immigrants


ARTIGOS

Cabo-verdianos em Lisboa: manifestações expressivas e reconstrução identitária* * O presente texto aborda aspectos da pesquisa realizada como parte do programa de estágio pós-doutoral realizado em Portugal, tendo como instituição acolhedora a Universidade Nova de Lisboa, no período de 1º de setembro de 2005 a 30 de agosto de 2006.

Pedro Martins

Universidade do Estado de Santa Catarina – Brasil

RESUMO

Trata-se aqui de abordar, entre imigrantes cabo-verdianos da região da Grande Lisboa, Portugal, alguns dos recursos estéticos e identitários empregados como parte da estratégia de adaptação ao novo contexto. O conceito de manifestações expressivas, manifestações estéticas que possuem algum caráter identitário, serve de suporte para a construção e análise do objeto empírico, associado aos pressupostos de que tradições são inventadas (Hobsbawn), comunidades são imaginadas (Anderson) e que manifestações estéticas só fazem sentido no quadro social do qual emergem (Duvignaud). Os dados analisados foram coletados entre imigrantes cabo-verdianos ou seus descendentes residentes no bairro Alto da Cova da Moura, a partir de uma abordagem qualitativa e sem pretensão de exaustão. A pesquisa conclui que os imigrantes cabo-verdianos observados, ao reinventarem suas tradições, criam manifestações expressivas originais e encontram, no mundo do espetáculo, um espaço com algum nível de democracia em que os estereótipos de ordem étnica são, de certo modo, sublimados.

Palavras-chave: cabo-verdianos, imigrantes, manifestações expressivas, recursos identitários.

ABSTRACT

This article aims at analyzing some of the identity and aesthetic resources employed by Cape Verdean immigrants in the region of Lisbon, Portugal, as part of the strategy of adaptation to the new context. The concept of expressive manifestations, aesthetic manifestations which possess some identity nature, serves as support to the empirical object construction and analysis, associated with the presupposition that traditions are invented (Hobsbawn), communities are imagined (Anderson) and aesthetic manifestations only have meaning in the social frame from which they emerge (Duvignaud). The analysed data were collected among Cape Verdean immigrants or their descendents who live in the Alto da Cova da Moura district and the approach was qualitative, not intending to be exhaustive. The research concludes that the observed immigrants, when they re-invent their traditions, create original expressive manifestations and find in the performance world a context with some level of democracy in which the ethnic stereotypes are somewhat made sublime.

Keywords: Cape verdeans, expressive manifestations, identity resources, immigrants.

Este texto resulta de pesquisa realizada entre imigrantes de origem africana radicados na periferia da Grande Lisboa, em Portugal. A pesquisa em questão, da qual este texto resgata dados parciais, tratou de observar as transformações estéticas que ocorrem em população migrante, buscando compreender as mudanças operadas, do ponto de vista estético, nas manifestações expressivas como parte das estratégias de inserção social e recomposição da identidade cultural. Tratando-se de população imigrante, buscou-se observar, a princípio, todas as manifestações expressivas, especialmente as ligadas à música, dança, artes plásticas, indumentária, gastronomia e estética corporal, com o propósito de compreender qual é o papel desses elementos culturais como instrumentos de incorporação, ou seja, qual a sua importância: 1) na adaptação do imigrante ao novo contexto; 2) como estratégia de inserção social, especialmente no mercado de trabalho; 3) como instrumento de sociabilidade no contexto do grupo étnico, no contexto do bairro e no contexto geracional; e 4) como estratégia de reconstrução da identidade, tanto pessoal quanto social.

Em pesquisa anterior (Martins et al., 2003), por meio da qual se analisou parte da população migrante no Sul do Brasil, levou-se em conta o segmento identificado como população cabocla, observada em seu percurso desde a área rural até a periferia de grandes cidades e no seu processo de retorno ao campo através de movimentos organizados. Naquela pesquisa, chegou-se à conclusão de que as transformações estéticas atingem diversos aspectos da cultura do grupo migrante e não apenas aqueles relacionados diretamente às práticas artísticas. Concluiu-se, também, que as transformações observadas contribuem para o esforço de adaptação dos indivíduos e grupos ao novo contexto, bem como para a reconstrução da sua identidade cultural. Essa constatação serviu de parâmetro para a elaboração da ideia de manifestações expressivas, categoria de análise que deve englobar todas as manifestações capazes de exprimir uma forma ou conteúdo estético aliado a qualquer conteúdo identitário.

Para compreender as manifestações expressivas observadas e o seu contexto, tomaram-se como ponto de partida três ideias já presentes na literatura. A primeira refere-se ao conceito de tradição.1 1 Toma-se aqui o conceito de tradição para alcançar aquelas práticas que possuem continuidade histórica e são tomadas como elementos de adscrição e criação de identidade, ao mesmo tempo em que se leva em consideração as controvérsias em torno desse conceito. Hobsbawn, ao tratar de diversas realidades observadas no contexto do império britânico, discute a possibilidade de muitas tradições serem inventadas. Por "tradição inventada", escreve ele,

[ ] entende-se um conjunto de práticas, normalmente reguladas por regras tácita ou abertamente aceitas; tais práticas, de natureza ritual ou simbólica, visam inculcar certos valores e normas de comportamento através da repetição, o que implica, automaticamente, uma continuidade em relação ao passado. (Hobsbawn, 2008, p. 9).

A conclusão da leitura do seu texto é, no entanto, de que todas as tradições, em algum momento, foram inventadas, o que confere originalidade a qualquer tradição, podendo-se atribuir um valor diferenciado ao levar-se em conta o respectivo tempo de existência. A segunda ideia refere-se ao conceito de comunidade. Anderson (2008), preocupado em compreender o problema das comunidades nacionais no contexto do Sudoeste asiático, levanta a discussão sobre o quanto essas comunidades são, de fato, imaginadas. Propõe, por isso, a definição de nação como

uma comunidade política imaginada – e que é imaginada ao mesmo tempo como intrinsecamente limitada e soberana. É imaginada porque até os membros da mais pequena nação nunca conhecerão, nunca encontrarão e nunca ouvirão falar da maioria dos outros membros dessa mesma nação, mas, ainda assim, na mente de cada um existe a imagem da sua comunhão. (Anderson, 2008, p. 25).

Extrapolando o contexto observado por Anderson, pode-se afirmar que todas as comunidades, em algum nível da sua constituição, são imaginadas. As manifestações expressivas, aqui tratadas, foram observadas no contexto de uma comunidade, a cabo-verdiana, ou em parte dela, em Lisboa. A terceira ideia, e que se aplica mais diretamente à compreensão do presente objeto de análise, diz respeito ao sentido ou significado da produção estética. A esse respeito, Duvignaud (1971, p. 23) afirma que as atitudes estéticas variam de acordo com os quadros sociais e, assim, só trazem um sentido original no contexto do qual emergem. A atitude estética ou o produto dela passa a ser ressignificado quando observado fora do quadro social que lhe deu origem. Desse modo, pode-se pensar que, ao ser tratado em um novo contexto, seu sentido muda, sendo ele reapropriado e recriado. Adquire, portanto, um novo sentido e, evidentemente, originalidade.

Dentre o segmento dos imigrantes em Portugal, procedeu-se, inicialmente, a um recorte no qual foram observados, genericamente, imigrantes oriundos das ex-colônias portuguesas na África e, para efeitos de aproximação, centrou-se o olhar sobre os imigrantes de origem cabo-verdiana. A escolha dos cabo-verdianos como grupo privilegiado para observação decorreu de dois fatores principais. O primeiro está relacionado ao fato de formarem o grupo numericamente mais expressivo dentre os grupos oriundos das ex-colônias portuguesas na África.2 2 No relatório estatístico do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras do ano de 2005 os cabo-verdianos considerados estrangeiros, em Portugal, somavam 56.433 pessoas (SEF, 2005, p. 12). Esse número os caracterizava como a maior colônia estrangeira no país. No relatório de atividades do mesmo serviço relativo ao ano de 2007, o número de cabo-verdianos estrangeiros havia subido para 63.925. Esse contingente havia, no entanto, sido superado pelo grupo de brasileiros (66.354 pessoas), que passou a caracterizar-se como a maior colônia de estrangeiros em Portugal. O grupo cabo-verdiano seguia, de qualquer forma, sendo a maior colônia de estrangeiros de origem africana naquele país (SEF, 2007, p. 18). Deve-se considerar, todavia, que esses números não refletem o real volume de imigração na medida em que todos os anos muitos desses imigrados conseguem a naturalização e deixam de ser contados como estrangeiros. O segundo, por representarem o movimento migratório mais antigo e mais regular entre África e Portugal – como se pode facilmente depreender da literatura disponível. Trata-se, evidentemente, do movimento migratório mais antigo do período recente, desencadeado na segunda metade do século XX (Gusmão, 2005, p. 19). O ingresso de africanos em território português remonta ao século XV, chegando a representar, em algum momento, 10% da população de Lisboa, por exemplo (Tinhorão, 1997). Na segunda metade do século XIX, no entanto, esse contingente definha (Loude, 2005); chega-se, inclusive, a considerar a existência de negros em Portugal como uma curiosidade.3 3 Tinhorão (1997) descreve como silenciosa a presença do negro em Portugal, especialmente no período mais avançado do regime colonial, ideia que vai ser retomada na forma de romance por Loude (2005) ao analisar a presença de negros em Lisboa na contemporaneidade. O processo migratório de africanos para Portugal vai tornar-se novamente significativo na segunda metade do século XX, em face da necessidade de mão-de-obra no país. Nesse período, metade de todos os imigrantes em Portugal tinha origem nos PALOP – Países Africanos de Língua Oficial Portuguesa, sendo um grande contingente de cabo-verdianos empregados na construção civil já nos anos 1960 (Gusmão, 2005, p. 93, 95).4 4 Para uma discussão das teorias sobre migrações internacionais, não priorizada no presente texto, remete-se à leitura de Portes (1999).

Tendo sido eleito o grupo cabo-verdiano como alvo privilegiado da observação, procedeu-se a novo recorte por meio do qual se escolheu uma situação específica para abordagem direta e encontro dos sujeitos-alvo da observação, recaindo a escolha sobre os imigrantes cabo-verdianos e seus descendentes moradores ou articulados em torno dos moradores do bairro Alto da Cova da Moura, Freguesia da Buraca, Conselho de Amadora, Região Metropolitana de Lisboa.

A escolha dos moradores desse bairro, como objeto de estudo, deve-se ao fato de ter sido o primeiro lugar apontado pelos colaboradores portugueses5 5 Dentre os colaboradores, destaca-se e se agradece a contribuição de Rui Canário e Irene Santos, da Universidade de Lisboa, e Pascal Paulus, professor de matemática na Escola Básica Amélia Vieira Luiz, na Outurela. como provável alvo de interesse da pesquisa. Esse julgamento decorre de muitos fatores: 1) o bairro concentra, em um pequeno espaço, cerca de nove mil moradores, dentre os quais cerca de 80% têm origem cabo-verdiana; 2) trata-se de um bairro midiático, no sentido de que é alvo constante de notícias na imprensa – geralmente associando o bairro à criminalidade; 3) possui uma população com um bom nível de organização – decorrente da luta por condições mínimas de habitação, da constante mobilização necessária à sua manutenção como bairro, uma vez que diversos interesses convergem para a sua remoção e reurbanização da área ocupada e da luta contra a discriminação racial; 4) existência da Associação Cultural Moinho da Juventude, entidade local que congrega moradores e outras organizações em defesa dos interesses coletivos e da promoção da qualidade de vida.

Somados esses fatores, a opção pelo bairro Alto da Cova da Moura como local privilegiado de observação e interação com os imigrantes cabo-verdianos tornou-se uma consequência lógica. A receptividade por parte dos moradores do bairro, somada ao suporte oferecido pela Associação Cultural Moinho da Juventude,6 6 Ver o site da associação ( http://redeciencia.educ.fc.ul.pt/moinho). garantiu a possibilidade de uma rápida interação com o local pesquisado e com as manifestações expressivas, objeto de interesse para a pesquisa.

Foram tomados como pressupostos, para a observação das manifestações expressivas dos imigrantes cabo-verdianos, o caráter dinâmico da cultura e o princípio de que a estética, como elemento cultural, é sempre produto do contexto social no qual é gerada.7 7 Esse pressuposto responde à provocação feita por Ribeiro, J. S. (2001), em trabalho que descreve importante manifestação dos moradores da Cova da Moura, no qual o autor conclui que a manifestação, ao adaptar-se ao contexto da periferia de Lisboa, perdeu sua originalidade, caracterizando-se como alguma espécie de fraude. Dessa forma, espera-se que ocorram transformações materiais e simbólicas ao conjunto das tradições transplantadas do contexto de origem para o de acolhimento do imigrante, assim como se espera que ocorra, também, uma reinvenção da estética ao longo do processo migratório, fixação e reprodução do grupo, com uma consequente ressignificação das manifestações expressivas que acabaram por ser mantidas.

Antes de efetuar um recorte do objeto estético a ser observado, foi possível constatar que as manifestações expressivas, no contexto do bairro, podiam ser registradas em seis grandes eixos, a saber: 1) música, 2) dança, 3) artes visuais, 4) estética corporal, 5) indumentária, e 6) gastronomia.

Ainda que os eixos relacionados à estética corporal, indumentária e à gastronomia estejam muito bem representados e possuam uma grande importância como instrumentos de inserção,8 8 Existem no bairro, entre outros, cerca de 35 centros de estética corporal e um número equivalente de restaurantes, além da presença ostensiva da indumentária. foram tomados apenas como pano de fundo de um contexto em que foi priorizada a observação de práticas ligadas à música, dança e artes visuais a partir de manifestações que envolvem, em maior ou menor grau, esses três âmbitos da dimensão estética.

Levou-se em conta, na observação das manifestações expressivas, as transformações que ocorrem a uma mesma geração de imigrantes ao longo do tempo e aquelas que ocorrem, ou não, a partir do corte geracional. No primeiro caso, entendem-se as mudanças observadas nas práticas de uma mesma geração como o ciclo curto; no segundo caso, as alterações observadas de uma geração para outra, ou no processo intergeracional, são entendidas como o ciclo longo da transformação estética.9 9 Essa categoria é inspirada na ideia de ciclos relacionados à reprodução camponesa, na qual o ciclo curto enfoca o período anual e o ciclo longo o período de uma geração – conforme se depreende da literatura especializada (ver, por exemplo, Bloemer, 2000).

No ciclo curto das transformações estéticas das manifestações expressivas, levando-se em conta as dimensões estéticas ligadas à música, dança e artes visuais, pode-se registrar, como exemplo, práticas tradicionais das diversas ilhas de Cabo Verde, como o batuque, o funaná e o colá San Jon. Note-se que o batuque envolve música e dança; o funaná, apenas música, e o colá San Jon, música, dança e artes visuais. Na observação que leva em conta o ciclo longo, destacam-se as práticas relacionadas à cultura hip hop, especialmente o rap,10 10 A palavra rap tem sido usada, no contexto do hip hop, simultaneamente como sigla de Rhythm And Poetry ou como uma gíria inglesa para "papo" ou "recado", querendo, nesse caso, significar "mensagem". No presente texto, optou-se pela segunda forma. Da mesma maneira, grafou-se a palavra "grafite" em português e não sua equivalente graffiti, em italiano, uma vez que, nos discursos escritos, as duas formas são corriqueiras. uma de suas manifestações musicais, mas sem deixar de registrar os demais aspectos relacionados à dança, break dance, e às artes visuais, o grafite. Enquanto nas práticas relacionadas ao ciclo curto verifica-se a participação de segmentos representativos de todas as faixas etárias, nas relacionadas ao ciclo longo é predominante, senão exclusiva, a participação do segmento juvenil.11 11 Para um olhar sobre esse segmento, ver o trabalho de Raposo (2005).

Tendo convivido com os diversos sujeitos envolvidos no processo, ou seja, com imigrantes cabo-verdianos, seus descendentes, outros imigrantes africanos ou estrangeiros com situação diferenciada – como estudantes e agentes institucionais diversos, foi possível chegar a uma compreensão mínima dessas manifestações expressivas que, se não dá conta de explicitá-las na totalidade, permite, pelo menos, alguma especulação sobre o seu papel em relação ao objetivo proposto.

A imigração cabo-verdiana

O fenômeno da imigração cabo-verdiana em Portugal, relacionado ao processo mais recente da diáspora africana, tem bases muito antigas que remontam ao processo de povoamento do arquipélago de Cabo Verde. Esse arquipélago, localizado a mediana distância da costa africana numa longitude próxima à do Senegal, foi encontrado desabitado pelos navegadores por volta de 1460. A partir dessa época, suas dez ilhas foram sendo, sistematicamente, povoadas com motivação relacionada ao projeto de expansão marítima portuguesa,12 12 Sobre a ocupação inicial de Cabo Verde e sobre a gênese da expansão marítima portuguesa, é fundamental consultar o trabalho de Tinhorão (1997). restando atualmente apenas uma desabitada.

A população cabo-verdiana formou-se, ao longo dos séculos, a partir de dois grupos humanos principais. O primeiro, representado pelos brancos oriundos principalmente de Portugal, chegou às ilhas na condição de senhor das terras, a serviço do império português. O segundo, mais numeroso que o primeiro, é formado por indivíduos africanos, provenientes, na sua maioria, da região da Guiné, que chegaram a Cabo Verde na condição de escravos.13 13 Na constituição da população atual de Cabo Verde encontram-se dois importantes grupos étnicos formados a partir desses dois segmentos originais: o grupo sampadjudo, predominante no Norte do arquipélago, e o grupo badio, predominante no Sul. Ver a esse respeito Carreira (1984), Peixeira (2003) e Saint-Maurice (1997), entre outros.

As ilhas serviram, durante muito tempo, como entreposto de escravos africanos, mas nelas se desenvolveu, também, um sistema produtivo com a finalidade de dar suporte ao colonialismo português na Ásia, África e América. Foi assim que um modo de vida estruturou-se e os dois grupos em questão transformaram-se em uma sociedade organizada e autônoma. Da miscigenação entre os dois grupos e da influência cultural da África e da Europa, surgiu uma sociedade mestiça com uma cultura peculiar. De uma maneira geral, os estudiosos costumam dividir Cabo Verde em duas partes. Ao norte, no conjunto de ilhas denominado de barlavento (Boa Vista, Sal, São Nicolau, Santa Luzia, São Vicente e Santo Antão), predominaria a cultura de influência europeia, em uma população majoritariamente miscigenada com grupos europeus, ao passo que ao sul, no conjunto de ilhas denominado por sotavento (Maio, Santiago, Fogo e Brava), teria primazia a cultura de influência africana e uma população miscigenada apenas ou majoritariamente a partir de grupos de origem africana.

Ainda na segunda metade do século XIX, as más condições de vida nas ilhas estimulam a população livre a emigrar, sendo o primeiro destino a região sul dos Estados Unidos da América. Esse destino, apesar de muitas mudanças ocorridas ao longo do tempo, continuaria sendo o preferido dos cabo-verdianos até o final da década de 1950.

Embora a emigração para os Estados Unidos da América tenha continuado como projeto de vida para muitos cabo-verdianos, na década de 1960 intensifica-se outro importante fluxo migratório, agora em direção à sede do antigo império português.14 14 Sobre o período que se inicia na década de 1960, ver o trabalho de Pinto (2005). Esse primeiro movimento migratório em direção a Portugal foi estimulado pelo próprio governo português como forma de substituir a mão-de-obra perdida com a emigração de portugueses para o Norte da Europa numa época em que se iniciava a industrialização do país e um processo de urbanização no qual a indústria em geral, as fábricas e a construção civil demandavam grande quantidade de mão-de-obra. Além disso, parte da força de trabalho nacional era desviada para os esforços da Guerra Colonial na África. A esse movimento inicial, seguiram-se diversos outros, com características distintas.

O pós-25 de abril, período que se seguiu à derrubada da ditadura militar em 1974, foi marcado pela independência das colônias portuguesas na África, dentre elas Cabo Verde. Segue-se, então, novo fluxo migratório em direção a Portugal, dessa vez caracterizado pela presença de "retornados" – cidadãos portugueses que, diante da independência das colônias, optaram por viver em Portugal e pela nacionalidade portuguesa.15 15 Baganha (2005, p. 31) afirma que, dos 500 mil retornados, 59% tinham nascido na metrópole, sendo os demais 41% seus descendentes ou pessoas de naturalidade e ancestralidade africana e de nacionalidade portuguesa.

Com a chegada dos anos de 1980, após a acomodação dos retornados, o desenvolvimento da construção civil leva o governo português a estimular uma vez mais a entrada de cabo-verdianos em seu território. Embora nos anos recentes a indústria da construção civil tenha perdido força, o fluxo que começou no início dos anos de 1980 manteve-se constante e com as mesmas características até o presente.

Os imigrantes cabo-verdianos em Portugal diferenciam-se internamente a partir de diversos aspectos. O étnico é um deles: os de barlavento, ao norte, que apresentam miscigenação entre africanos e europeus, são genericamente denominados sampadjudos, ao passo que os de sotavento, ao sul, onde predomina a miscigenação entre grupos africanos, são denominados, de modo genérico, badios. Essa diferenciação tem implicações na língua, pois cada grupo fala um crioulo com características próprias. Alguns autores afirmam, inclusive, que a variação linguística do crioulo acontece de ilha para ilha. Outra distinção importante está relacionada à classe social: nem todos os imigrantes são pobres e nem todos os que chegam pobres ao destino permanecem assim. No estudo de Oliveira (2004), por exemplo, ao mostrar imigrantes de sucesso, a autora procura contrariar uma abordagem que sempre associa imigrantes à marginalidade, seja no trabalho, na questão residencial, seja na legalidade de sua situação migratória.16 16 A esse respeito, ver também o trabalho de Batalha (2004). Além desses aspectos, os séculos de isolamento entre as ilhas levaram a uma profunda diferenciação cultural, que começou a ser quebrada após a independência, em 1976, pela iniciativa de construção de um projeto de identidade nacional cabo-verdiana.17 17 Essa identidade nacional passa, em grande medida, pela instrumentalização da condição crioula e diaspórica da sociedade cabo-verdiana, como é muito apropriadamente demonstrado na reflexão de Fernandes (2006). Mas, como ela ainda permanece, os costumes que marcam a reprodução da vida nas diferentes ilhas possuem sempre características muito específicas, a despeito da cultura nacional cada vez mais homogeneizadora.

É a partir desse conjunto de diferenças e semelhanças que se deve pensar uma comunidade de cabo-verdianos na diáspora, uma vez que ela realiza um esforço de reconstrução da sua identidade, trata de sobreviver ao inserir-se na sociedade de acolhimento e rearticula suas redes sociais deixadas na terra de origem.

A dinâmica da estética cabo-verdiana

As manifestações expressivas ligadas à tradição cabo-verdiana são constantemente aproveitadas nesse processo de reconstrução da identidade e sofrem transformações decorrentes da sua reprodução no novo contexto e da necessidade de atenderem, muitas vezes, a uma finalidade instrumental. Outras práticas não-tradicionais são incorporadas ou desenvolvidas pelos imigrantes ou seus descendentes, com o mesmo propósito, quando pensamos do ponto de vista do ciclo longo da transformação estética.

Passa-se aqui a uma breve caracterização de algumas dessas práticas, buscando agregar as mudanças mais evidentes que podem ser observadas.

Dentre as tradições cabo-verdianas observadas, especialmente as relacionadas ao ciclo curto da transformação estética, destacam-se três delas que, de uma maneira ou de outra, agregam aspectos ligados à música, às artes visuais e à dança. São elas o funaná, o batuque e o colá San Jon. Do ponto de vista do ciclo longo, evidenciam-se as práticas relacionadas ao hip hop – também marcadas por aspectos da música, da dança e das artes visuais.

O funaná é um estilo musical surgido na ilha de Santiago,18 18 As informações para este relato sobre o funaná foram recolhidas a partir da observação direta do trabalho de músicos e conversas informais com eles, material publicado na imprensa portuguesa e cabo-verdiana, além de uma entrevista gravada com o estudante cabo-verdiano Carlos Santos, que, no período da pesquisa, cursava o mestrado em Antropologia no Instituto Superior de Ciências do Trabalho e da Empresa – ISCTE /Lisboa. executado com a concorrência de uma gaita (acordeom, sanfona, concertina) e de um pedaço de ferro, friccionado por outro pedaço de ferro ou objeto equivalente. O ferro-gaita produz uma melodia de compasso binário acompanhada ou não por vocal.

Até a independência de Cabo Verde, o funaná era uma manifestação musical exclusivamente rural, tendo sido proibido em diversos momentos do período colonial pelas autoridades portuguesas. Após a independência, no período de 1976 a 1980, Carlos Alberto Tavares, o Catchass, importou instrumentos acústicos de Portugal e, com essas adaptações, transformou-o em um estilo também urbano na cidade de Praia. Mais tarde, o conjunto musical Finasson incorporou instrumentos eletrônicos, como guitarra elétrica e batida, passando a abranger um público mais amplo. O conjunto Ferro-Gaita, buscando inserir-se no mercado musical com esse estilo, acabou por popularizar o funaná na diáspora. Apesar de toda essa transformação, músicos cabo-verdianos mantêm o estilo tradicional, tanto em Cabo Verde quanto na diáspora. É o caso, por exemplo, do músico Kodé di Dóna (Gregório Vaz), que elevou o funaná à categoria de gênero musical nacional com o conjunto Bulimundo. Esse músico/cantor/compositor, apesar de ter atendido o convite para tocar e cantar em Portugal e na França, executou o funaná sempre com gaita, acompanhado de ferro – mesmo quando foi acompanhado por uma orquestra sinfônica em Paris.19 19 Segundo Silva (1993, p. 12), "o funaná que, até os anos 70 deste século [século XX], era um gênero musical cabo-verdiano de caráter regional (pois, só existia na Ilha de Santiago) e bastante desprezado (pelos citadinos, por razões que não interessa avançar aqui), conquistou (com o conjunto Bulimundo) o país inteiro e toda a diáspora cabo-verdiana. Dessa forma, passou do escalão regional ao nacional, com um prestígio enfeitiçante que ofuscou já o de vários outros gêneros musicais cabo-verdianos que dantes eram bastante bem cotados". Embora tenha sido muito admirado na Europa, esse estilo, com essas características, não conquistou adesão numerosa a ponto de ser comercialmente rentável. O funaná que conquistou grandes públicos é totalmente eletrônico, e em quase nada lembra o estilo original. Mesmo músicos tradicionais, que continuam tocando-o com ferro e gaita, reconhecem a necessidade de incorporar, pelo menos, uma guitarra-baixo e uma batida eletrônica para alcançar um produto "mais comercial", mais ao gosto, principalmente, dos jovens, e obter algum retorno econômico – como é o caso do funaná praticado pelo grupo musical Nu Kontra Li, formado por músicos cabo-verdianos residentes no bairro Alto da Cova da Moura.

Outra manifestação tradicional do Sul de Cabo Verde, classificada aqui como parte do ciclo curto da reprodução estética, é o batuque. No contexto original, na ilha de Santiago, era uma atividade lúdica feminina, formada por três elementos: o batuque, propriamente dito, resultante da batida compassada das palmas das mãos nas coxas, utilizando-se também um pedaço de pano para aumentar o som; uma cantiga, geralmente constante de uma única frase musical, entoada por uma das mulheres e repetida pelas demais; e a dança do torno, uma dança individual ou em dupla, que começa quando a dançarina é desafiada por outra mulher. A dança do torno é executada pela mulher no centro de uma roda em um ritmo crescente e de grande apelo erótico.20 20 Observei a prática do batuque através do grupo Finka Pé, sediado na Associação Cultural Moinho da Juventude e formado por mulheres do bairro Alto da Cova da Moura e de outros bairros de imigrantes da periferia de Lisboa. Entrevistas realizadas com as mulheres do grupo e conversas informais contribuíram para a compreensão dessa manifestação. Sobre a origem e estrutura do batuque, ver o esclarecedor trabalho de Ribeiro, J. C. (2004). O batuque era realizado em situações de trabalho ou de ócio, ocasiões em que as mulheres muito jovens eram iniciadas na dança, mas também em ocasiões de reuniões familiares decorrentes de festas de batizado, casamento ou outras. Após a independência de Cabo Verde, e dentro do contexto de um projeto de recuperação ou constituição da identidade nacional cabo-verdiana, o batuque passou a ser incentivado como manifestação organizada e de caráter público, realizando-se, inclusive, concursos e festivais de grupos de batuque.

No bairro Alto da Cova da Moura, a partir do estímulo da Associação Cultural Moinho da Juventude, foi criado o grupo de batuque Finkapé numa ocasião em que se realizava, em Lisboa, o primeiro concurso de grupos de batuque. Um dos critérios de julgamento, no referido concurso, era o grau de originalidade da manifestação, medido, entre outros quesitos, pela indumentária tipicamente cabo-verdiana das mulheres. O pano usado para potencializar a percussão das mãos nas coxas, modificado anteriormente por um saco plástico cheio de trapos, foi finalmente substituído por uma almofada triangular confeccionada com esponja recoberta por couro sintético e passou a ser designado por tchabeta – nome pelo qual era até então designado apenas o ritmo forte que levava a dança do torno ao seu auge. Embora na diáspora o batuque espontâneo, realizado por mulheres em situações de trabalho ou de ócio, tenha praticamente desaparecido, a sua institucionalização e transformação em espetáculo abriu para as mulheres cabo-verdianas e suas descendentes, em Portugal, uma possibilidade de manifestação pública e a criação de visibilidade. O batuque, assim como o funaná, é uma tradição registrada em Santiago, ilha de sotavento onde se nota a presença majoritária do grupo badio – de forte ascendência africana.

O colá San Jon, por sua vez, é uma atividade originária da ilha de Santo Antão, mas com forte presença na ilha de São Vicente, a barlavento, onde predomina o grupo sampadjudo e a cultura de forte influência europeia – marcada pela devoção aos santos. O Colá San Jon é a festa de São João, realizada no dia 24 de junho. Além disso, ele consiste em uma manifestação de dança e batuque de tambores na qual um grupo desfila pelas ruas seguindo uma miniatura de barco a vela, "vestido" pelo seu capitão ou alguém sob o comando deste. O barco lembra a condição insular do país, a colonização pelos navegadores portugueses e também os ataques piratas, especialmente o ataque do pirata Drake, que invadiu e destruiu a cidade de Ribeira Grande, antiga capital do arquipélago. A partir dessas alusões, o "barco" é constituído pelo capitão, pelos tocadores de tambor, por tocadores de apitos, por auxiliares que fazem coletas de donativos para a festa e por dançarinos que se movem ao som do compasso binário dos tambores, colando, ou seja, tocando-se, a cada compasso duplo, com a parte inferior da cintura em uma dança marcada por um forte apelo erótico. O barco é especialmente construído, decorado e batizado, os tamboreiros e os coladores usam rosários de São João ao pescoço ou cruzados à tiracolo, os quais são confeccionados com pipocas estouradas, amendoins torrados e com casca, balas (rebuçados), biscoitos e tiras de papel colorido. Os coladores levam consigo também produtos agrícolas, como canas-de-açúcar, espigas de milho verde ainda no pé, outros produtos agrícolas e produtos transformados, fruto do trabalho de camponeses. Trata-se, portanto, de uma manifestação lúdico-profana incorporada à festa de São João e, aparentemente, sem a possibilidade de fazer sentido fora desse contexto.

No contexto do bairro Alto da Cova da Moura, os imigrantes cabo-verdianos sentiram, no entanto, saudades da sua festa de São João e decidiram construir um barco cuja estreia ocorreu ainda nos anos 1980.21 21 Parte das informações sobre o colá San Jon, em geral e no contexto da pesquisa, estão presentes no trabalho de Ribeiro, J. S. (2001). A maior parte foi, no entanto, resgatada através da observação direta do grupo de colá San Jon do Moinho da Juventude, da conversa informal com seus integrantes e, especialmente, de inúmeras conversas com Godelieve Meersschaert (Liéve) e Eduardo Pontes. O processo de construção do barco, isto é, de criação do grupo que reviveria a tradição na diáspora, é especialmente elucidativo das condições de transformação da estética e da recriação da identidade. Dentre outros elementos, pode-se destacar o fato de pessoas de origem em diversas ilhas participarem do experimento, o que levou à incorporação de elementos dessas diferentes origens e, consequentemente, à construção de uma manifestação efetivamente nova para todos os participantes. Ao entrar em contato com a população local, o sentido da atividade também é outro, especialmente para os cabo-verdianos de sotavento ou das ilhas do barlavento oriental que não possuíam familiaridade com essa prática.

A transformação mais importante consiste, no entanto, no fato de que o grupo em questão assumiu uma grande autonomia em relação à conjuntura da festa de São João e passou a ter as mesmas características de grupo de espetáculo que os demais grupos tradicionais, embora suas apresentações estejam condicionadas ao período das festas (junho/julho), no contexto das próprias festas ou de eventos relacionados à cultura africana.

O grupo de manifestações descritas anteriormente distingue-se das manifestações do ciclo longo por um corte geracional. Quando se observam os imigrantes mais jovens22 22 Além da observação direta das práticas relacionadas ao ciclo longo, importantes informações e reflexões foram obtidas através dos trabalhos de Contador e Ferreira (1997), Contador (2001), Fradique (2003) e Cordeiro et al. (2003), entre outros. e os descendentes de imigrantes a partir do recorte estabelecido como ciclo longo da transformação estética, nota-se a existência de manifestações expressivas de caráter não tradicional, ou não ligadas às raízes históricas desses sujeitos. É o caso do hip hop, conjunto de manifestações representadas pelo rap, break dance ou dança de rua e pelo grafite.

No bairro Alto da Cova da Moura, o hip hop manifesta-se especialmente através do rap e do grafite. No caso do rap, foi fácil encontrar um bom número de praticantes com uma produção relativamente farta e de qualidade. O estímulo dado pela Associação Cultural Moinho da Juventude e outras organizações não-governamentais é, em boa parte, responsável pela consolidação de grupos com trabalhos relevantes. Pode ser citado, como exemplo, o grupo Putos Qui A Ta Cria – verdadeiro movimento juvenil responsável pelo lançamento de um álbum duplo (Putos qui a ta cria, 2006) de alta qualidade. Quanto ao grafite, a manifestação está exposta por toda parte, a começar pelas altas paredes do edifício que abriga o Moinho da Juventude, passando pelos muros e casas do bairro e consolidando-se como alternativa de renda nos letreiros pintados em fachadas de estabelecimentos comercias.

A cultura hip hop, nascida nos guetos nova-iorquinos, nos anos 1980, chegou rapidamente a muitos outros países, inclusive às periferias de cidades como Lisboa e Porto. Inicialmente cantado em inglês, o rap, manifestação musical da cultura hip hop, logo recebeu dos seus adeptos portugueses ou imigrantes letras em português com sotaque local e produziu entre os jovens imigrantes ou descendentes de imigrantes uma grande identificação. Os temas desenvolvidos por esses jovens, em sua maioria moradores de bairros periféricos, retratam sua condição de negros, pobres, desempregados, envolvidos com toda sorte de violência, tanto física quanto simbólica.

Do ponto de vista da estética, a mudança observada no plano intergeracional é enorme, uma vez que se passa de manifestações tradicionais africanas, ou africanas com forte influência da cultura cristã portuguesa, para um modelo de manifestação inspirada em uma cultura industrial, no qual elementos de consumo – malgrado a crítica geralmente embutida – são itens fundamentais na construção da identidade dos sujeitos.

A prática do rap, e de maneira mais ampla do hip hop, aparentemente não entra em conflito com as manifestações expressivas tradicionais e, geralmente, elas convivem no mesmo espaço, sendo partilhadas apenas por diferentes gerações. Ela é usada pelos jovens, num primeiro nível, como estratégia de sociabilidade, de inserção social através do protesto público, de criação ou recriação de identidade. É usada, também, em um outro plano, como estratégia de inserção no mercado de trabalho. Apesar de muitos esconderem o desejo de construir uma carreira a partir da música rap, fica sempre evidente a admiração pelos sujeitos que trilharam esse caminho, embora se constate também uma ferrenha crítica, em alguns casos, às mudanças necessárias no plano estético para articular uma eventual inserção no mercado. Além disso, a passagem do rap da condição de manifestação pública de afirmação da identidade, e de manifestação de crítica social à exclusão, à instrumento de inserção no mercado de trabalho implica outras mudanças. Essas alterações são representadas pela grande quantidade de tempo de dedicação necessária à construção da carreira, compromissos de ordens diversas assumidos com a indústria fonográfica, outras modificações para tornar aquilo que se canta e se grava em um produto admirado por um segmento de público mais amplo possível, entre outras. Tudo isso somado, nota-se por que não é difícil encontrar jovens especialmente talentosos que optaram por manter-se no primeiro plano da cultura hip hop, ou seja, que não querem fazer dessas manifestações expressivas um meio de vida, mas apenas instrumentos de conscientização, de luta contra a discriminação, de promoção da autoestima e de produção de sentido lúdico. Assim, demonstram na prática aquilo que os Putos Qui A Ta Cria afirmam, na capa do álbum citado, que "hip hop é festa, mas também intervenção".

Contraponto

Ao examinar o processo de surgimento do colá San Jon em Portugal, através de um estudo de caso no bairro Alto da Cova da Moura, Ribeiro, J. S. (2001) aponta em outra direção. Para esse autor, a reconstituição do colá San Jon fora do seu contexto original – pensamento que se aplica por extensão a todas as demais manifestações expressivas baseadas no resgate de alguma tradição – levou essa manifestação a adquirir outras dimensões; dentre elas, "a de simulacro tornando-se objecto repetível, espetáculo em que ressaltam sobretudo a força estética ou forma dramática, um real sem origem na realidade ou produto de outra realidade, a da práxis ou conveniência política distante dos seus actores" (Ribeiro, J. S., 2001, p. 9).

Cabe aqui, no entanto, resgatar as três ideias firmadas no início, nas quais temos a informação de que, em última instância, as tradições são inventadas (Hobsbawn, 2008), as comunidades são imaginadas (Anderson, 2008) e as manifestações estéticas só fazem sentido no quadro social do qual emergem (Duvignaud, 1971). Deixando essas ideias de lado será fácil pensar nessas manifestações como simulacros de uma outra realidade e perder a oportunidade de compreender, de fato, a importância que representam para os grupos migrantes em busca de afirmação – ou para qualquer outro grupo já estabelecido.

Isso se aplica, igualmente, a todas as manifestações aqui descritas e também a outras similares.23 23 Recentemente, observei a produção do maracatu rural (maracatu de baque solto) na cidade de Nazaré da Mata, Pernambuco. A tradição, nascida nos engenhos de açúcar coloniais, representa hoje uma importante fonte de renda para a cidade. Especialmente em uma época marcada pela mecanização do trabalho na lavoura de cana-de-açúcar, a instrumentalização do maracatu como estratégia de inserção no mercado de trabalho impede a emigração de muitos trabalhadores rurais rumo à cidade grande, oportuniza uma re-elaboração identitária e a reconstrução de redes de sociabilidade. O maracatu dos caboclos fez sentido no contexto dos engenhos coloniais, onde se relata o surgimento dessa tradição. Com o desaparecimento dos engenhos, desapareceu também o seu sentido. A transformação da sociedade local levou à transformação do maracatu, hoje presente na cidade e servindo de ocupação rentável para trabalhadores expulsos do campo, e à sua ressignificação. Fora dessa concepção, pode-se atribuir-lhe a pecha de fraude. Se a cultura é dinâmica e responde ao contexto da vida real, as transformações sofridas por qualquer dessas manifestações só podem ser compreendidas dentro do respectivo contexto. De outra forma, negar as modificações implica o congelamento das tradições e a destruição do seu sentido.

Manifestações expressivas em uma sociedade desigual

Embora Portugal, como nação, tenha sido o inventor da escravidão negra e construído seu império colonial a partir da exploração do trabalho escravo, não se pode afirmar que a sociedade portuguesa esteja especialmente acostumada à presença de negros em seu espaço territorial.24 24 Essa contradição foi o ponto de partida para a pesquisa de Tinhorão (1997). O esforço desse pesquisador brasileiro em desvendar as origens da música negra do Brasil o conduziu à elaboração de um texto – já considerado um clássico – sobre a presença do negro em Portugal. Esse trabalho parece ainda mais importante quando se leva em conta a impressão de que a maior parte dos pesquisadores portugueses que tratam do tema naturalizou a ideia de que a presença do negro em Portugal é um fenômeno decorrente do processo de descolonização da África. O fluxo migratório produzido pelo ingresso de cabo-verdianos a partir dos anos 1960 retomou, de certa forma, o movimento iniciado, na segunda metade do século XV, com a entrada massiva de escravos negros no país e interrompido apenas em meados do século XIX. No final dos anos 1990, os imigrantes negros já somavam a expressiva quantidade de um por cento do total da população residente e isso se constituía em um fenômeno assustador para os portugueses.25 25 Isso é, naturalmente, uma situação irônica, uma vez que os portugueses representavam, na mesma época, quase 2% da população residente na França, para ficar apenas com esse exemplo.

O esforço desenvolvido pelos segmentos negros da população de Portugal, imigrantes ou nacionais, no sentido de inserirem-se, conquistar espaço de sobrevivência condigna e ganhar visibilidade social, é acompanhado, neste início de milênio, por um esforço semelhante do próprio Estado português através da elaboração de políticas públicas e outras ações localizadas, como a criação e fortalecimento do Alto Comissariado para a Imigração e Diálogo Intercultural (ACIDI). Vinte anos antes (1986), com a entrada de Portugal na Comunidade Europeia e sua transformação em um destino muito atrativo para as migrações africanas, a resposta do Estado português havia sido, no entanto, muito distinta. Já em 1981 a legislação portuguesa havia substituído, no processo de atribuição de nacionalidade, o direito de solo pelo direito de sangue. Como consequência, os filhos de imigrantes nascidos em solo português perderam o direito à nacionalidade. Criou-se, a partir daí, toda uma geração de pessoas sem pátria, uma vez que não eram africanos, pois lá não haviam nascido nem para lá retornado, nem possuíam o direito à nacionalidade portuguesa por não serem filhos de portugueses assim nascidos.26 26 A esse respeito ver, entre outros, o trabalho de Baganha (2005). Em pleno ano de 2006, discutia-se, finalmente, no parlamento de Portugal, a mudança dessa legislação.

Se a incorporação de negros e brancos falantes de língua portuguesa em território português já é, no plano legal, um processo difícil e moroso, ela é, no plano cultural, muito mais.

É nessa perspectiva que o estudo das transformações estéticas adquire relevância, uma vez que esse é um caminho por onde passam muitas das estratégias de incorporação e amenização das barreiras que impedem essa população de encontrar o seu lugar ao sol em terras portuguesas. Embora os relatos de casos de inserção bem-sucedidos sejam já comuns na literatura, a verdade é que, para a maioria da população de origem africana, os caminhos ainda são muito difíceis e as soluções construídas a cada dia. É assim que as diversas manifestações expressivas, trazidas da África ou desenvolvidas em território português, são constantemente apropriadas e oferecidas ao mercado como produto a ser consumido e como gesto de boa vontade, tanto de negros quanto de brancos, no sentido de ampliar as possibilidades de convivência e de interação entre os diversos segmentos. É no mundo do espetáculo que se encontra, portanto, parte significativa das possibilidades nesse sentido e é para lá que, no mais das vezes, dirigem-se os olhares tanto de africanos quanto de brancos interessados na perspectiva humanitária ou na perspectiva comercial.

O mundo do espetáculo, seja ele fruto de uma perspectiva mercadológica, no qual se busca criar entretenimento e abrir oportunidade de trabalho, seja ele fruto de iniciativas humanitárias, políticas ou simplesmente lúdicas, em que se procura a incorporação pela participação e a diminuição do preconceito, tem representado, em Portugal, o espaço da democracia racial por excelência. Se com isso se marca uma posição política, especialmente nos anos recentes em que a discussão sobre a necessidade de combater o racismo e promover a incorporação tem sido uma constante, delimita-se também um território onde negros e brancos podem conviver, negros são sempre bem-vindos, não ferem suscetibilidades, nem ameaçam o espaço tradicionalmente branco.

É nesse contexto que as manifestações expressivas, registradas entre a população de origem cabo-verdiana do bairro Alto da Cova da Moura, periferia da Grande Lisboa, inserem-se. Não se trata, portanto, de questionar o processo pelo qual as citadas manifestações chegaram a Portugal ou a sua "originalidade" em relação à tradição cabo-verdiana, mas de buscar compreender o sentido que adquirem para a população que as produz, no exato contexto em que emergem ressignificadas. A diáspora africana, como já anotou Gusmão (2005, p. 10), é uma realidade marcada pela exclusão. Daí a importância da ênfase no processo de adaptação e inclusão, ainda que isso ocorra em uma perspectiva de desigualdade. Quando se observam os jovens imigrantes de segunda geração, fica evidente o sentimento de desorientação e desvalorização na medida em que são nascidos em Portugal mas considerados africanos sem sequer terem conhecido a África. A reconstrução identitária, de qualquer forma, representa um processo de negociação em variados níveis da vivência no contexto de inserção, ficando evidente, dessa forma, a importância das variadas manifestações expressivas como moeda de troca – tanto no estabelecimento de relações fora do grupo quanto na construção da autoestima.

Ao observar as manifestações expressivas dos imigrantes cabo-verdianos em Portugal, tendo como parâmetro de comparação situações equivalentes observadas entre a população cabocla do Sul do Brasil, destaca-se naturalmente a diferença entre um processo de migração internacional, verificado em relação aos cabo-verdianos, e um processo de migração regional – o caso dos caboclos brasileiros. Ainda assim, pesa muito também o fato de que a população cabocla do Sul do Brasil compartilha muito mais afinidades étnicas com a população brasileira não-cabocla do que o constatado nas interações em Portugal, fato esse que torna a situação de confronto e a necessidade de recursos de adscrição por parte dos caboclos muito mais amena.

Do ponto de vista das transformações nas manifestações expressivas, embora os elementos etnográficos mostrem-se muito distintos, deve-se concluir que o comportamento da estética, seja por qual razão for, responde sempre ao contexto em que esta é gerada, como parte integrante do processo cultural dinâmico que acompanha qualquer população, migrante ou não.

Recebido em: 29/10/2008

Aprovado em: 17/12/2008

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  • TINHORÃO, J. R. Os negros em Portugal: uma presença silenciosa. 2. ed. Lisboa: Caminho, 1997.
  • *
    O presente texto aborda aspectos da pesquisa realizada como parte do programa de estágio pós-doutoral realizado em Portugal, tendo como instituição acolhedora a Universidade Nova de Lisboa, no período de 1º de setembro de 2005 a 30 de agosto de 2006.
  • 1
    Toma-se aqui o conceito de tradição para alcançar aquelas práticas que possuem continuidade histórica e são tomadas como elementos de adscrição e criação de identidade, ao mesmo tempo em que se leva em consideração as controvérsias em torno desse conceito.
  • 2
    No relatório estatístico do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras do ano de 2005 os cabo-verdianos considerados estrangeiros, em Portugal, somavam 56.433 pessoas (SEF, 2005, p. 12). Esse número os caracterizava como a maior colônia estrangeira no país. No relatório de atividades do mesmo serviço relativo ao ano de 2007, o número de cabo-verdianos estrangeiros havia subido para 63.925. Esse contingente havia, no entanto, sido superado pelo grupo de brasileiros (66.354 pessoas), que passou a caracterizar-se como a maior colônia de estrangeiros em Portugal. O grupo cabo-verdiano seguia, de qualquer forma, sendo a maior colônia de estrangeiros de origem africana naquele país (SEF, 2007, p. 18). Deve-se considerar, todavia, que esses números não refletem o real volume de imigração na medida em que todos os anos muitos desses imigrados conseguem a naturalização e deixam de ser contados como estrangeiros.
  • 3
    Tinhorão (1997) descreve como silenciosa a presença do negro em Portugal, especialmente no período mais avançado do regime colonial, ideia que vai ser retomada na forma de romance por Loude (2005) ao analisar a presença de negros em Lisboa na contemporaneidade.
  • 4
    Para uma discussão das teorias sobre migrações internacionais, não priorizada no presente texto, remete-se à leitura de Portes (1999).
  • 5
    Dentre os colaboradores, destaca-se e se agradece a contribuição de Rui Canário e Irene Santos, da Universidade de Lisboa, e Pascal Paulus, professor de matemática na Escola Básica Amélia Vieira Luiz, na Outurela.
  • 6
    Ver o
    site da associação (
  • 7
    Esse pressuposto responde à provocação feita por Ribeiro, J. S. (2001), em trabalho que descreve importante manifestação dos moradores da Cova da Moura, no qual o autor conclui que a manifestação, ao adaptar-se ao contexto da periferia de Lisboa, perdeu sua originalidade, caracterizando-se como alguma espécie de fraude.
  • 8
    Existem no bairro, entre outros, cerca de 35 centros de estética corporal e um número equivalente de restaurantes, além da presença ostensiva da indumentária.
  • 9
    Essa categoria é inspirada na ideia de ciclos relacionados à reprodução camponesa, na qual o ciclo curto enfoca o período anual e o ciclo longo o período de uma geração – conforme se depreende da literatura especializada (ver, por exemplo, Bloemer, 2000).
  • 10
    A palavra
    rap tem sido usada, no contexto do
    hip hop, simultaneamente como sigla de Rhythm And Poetry ou como uma gíria inglesa para "papo" ou "recado", querendo, nesse caso, significar "mensagem". No presente texto, optou-se pela segunda forma. Da mesma maneira, grafou-se a palavra "grafite" em português e não sua equivalente
    graffiti, em italiano, uma vez que, nos discursos escritos, as duas formas são corriqueiras.
  • 11
    Para um olhar sobre esse segmento, ver o trabalho de Raposo (2005).
  • 12
    Sobre a ocupação inicial de Cabo Verde e sobre a gênese da expansão marítima portuguesa, é fundamental consultar o trabalho de Tinhorão (1997).
  • 13
    Na constituição da população atual de Cabo Verde encontram-se dois importantes grupos étnicos formados a partir desses dois segmentos originais: o grupo sampadjudo, predominante no Norte do arquipélago, e o grupo badio, predominante no Sul. Ver a esse respeito Carreira (1984), Peixeira (2003) e Saint-Maurice (1997), entre outros.
  • 14
    Sobre o período que se inicia na década de 1960, ver o trabalho de Pinto (2005).
  • 15
    Baganha (2005, p. 31) afirma que, dos 500 mil retornados, 59% tinham nascido na metrópole, sendo os demais 41% seus descendentes ou pessoas de naturalidade e ancestralidade africana e de nacionalidade portuguesa.
  • 16
    A esse respeito, ver também o trabalho de Batalha (2004).
  • 17
    Essa identidade nacional passa, em grande medida, pela instrumentalização da condição crioula e diaspórica da sociedade cabo-verdiana, como é muito apropriadamente demonstrado na reflexão de Fernandes (2006).
  • 18
    As informações para este relato sobre o funaná foram recolhidas a partir da observação direta do trabalho de músicos e conversas informais com eles, material publicado na imprensa portuguesa e cabo-verdiana, além de uma entrevista gravada com o estudante cabo-verdiano Carlos Santos, que, no período da pesquisa, cursava o mestrado em Antropologia no Instituto Superior de Ciências do Trabalho e da Empresa – ISCTE /Lisboa.
  • 19
    Segundo Silva (1993, p. 12), "o funaná que, até os anos 70 deste século [século XX], era um gênero musical cabo-verdiano de caráter regional (pois, só existia na Ilha de Santiago) e bastante desprezado (pelos citadinos, por razões que não interessa avançar aqui), conquistou (com o conjunto Bulimundo) o país inteiro e toda a diáspora cabo-verdiana. Dessa forma, passou do escalão regional ao nacional, com um prestígio enfeitiçante que ofuscou já o de vários outros gêneros musicais cabo-verdianos que dantes eram bastante bem cotados".
  • 20
    Observei a prática do batuque através do grupo Finka Pé, sediado na Associação Cultural Moinho da Juventude e formado por mulheres do bairro Alto da Cova da Moura e de outros bairros de imigrantes da periferia de Lisboa. Entrevistas realizadas com as mulheres do grupo e conversas informais contribuíram para a compreensão dessa manifestação. Sobre a origem e estrutura do batuque, ver o esclarecedor trabalho de Ribeiro, J. C. (2004).
  • 21
    Parte das informações sobre o colá San Jon, em geral e no contexto da pesquisa, estão presentes no trabalho de Ribeiro, J. S. (2001). A maior parte foi, no entanto, resgatada através da observação direta do grupo de colá San Jon do Moinho da Juventude, da conversa informal com seus integrantes e, especialmente, de inúmeras conversas com Godelieve Meersschaert (Liéve) e Eduardo Pontes.
  • 22
    Além da observação direta das práticas relacionadas ao
    ciclo longo, importantes informações e reflexões foram obtidas através dos trabalhos de Contador e Ferreira (1997), Contador (2001), Fradique (2003) e Cordeiro et al. (2003), entre outros.
  • 23
    Recentemente, observei a produção do maracatu rural (maracatu de baque solto) na cidade de Nazaré da Mata, Pernambuco. A tradição, nascida nos engenhos de açúcar coloniais, representa hoje uma importante fonte de renda para a cidade. Especialmente em uma época marcada pela mecanização do trabalho na lavoura de cana-de-açúcar, a instrumentalização do maracatu como estratégia de inserção no mercado de trabalho impede a emigração de muitos trabalhadores rurais rumo à cidade grande, oportuniza uma re-elaboração identitária e a reconstrução de redes de sociabilidade. O maracatu dos caboclos fez sentido no contexto dos engenhos coloniais, onde se relata o surgimento dessa tradição. Com o desaparecimento dos engenhos, desapareceu também o seu sentido. A transformação da sociedade local levou à transformação do maracatu, hoje presente na cidade e servindo de ocupação rentável para trabalhadores expulsos do campo, e à sua ressignificação. Fora dessa concepção, pode-se atribuir-lhe a pecha de fraude.
  • 24
    Essa contradição foi o ponto de partida para a pesquisa de Tinhorão (1997). O esforço desse pesquisador brasileiro em desvendar as origens da música negra do Brasil o conduziu à elaboração de um texto – já considerado um clássico – sobre a presença do negro em Portugal. Esse trabalho parece ainda mais importante quando se leva em conta a impressão de que a maior parte dos pesquisadores portugueses que tratam do tema naturalizou a ideia de que a presença do negro em Portugal é um fenômeno decorrente do processo de descolonização da África.
  • 25
    Isso é, naturalmente, uma situação irônica, uma vez que os portugueses representavam, na mesma época, quase 2% da população residente na França, para ficar apenas com esse exemplo.
  • 26
    A esse respeito ver, entre outros, o trabalho de Baganha (2005).
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      25 Jun 2009
    • Data do Fascículo
      Jun 2009

    Histórico

    • Aceito
      17 Dez 2008
    • Recebido
      29 Out 2008
    Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social - IFCH-UFRGS UFRGS - Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Av. Bento Gonçalves, 9500 - Prédio 43321, sala 205-B, 91509-900 - Porto Alegre - RS - Brasil, Telefone (51) 3308-7165, Fax: +55 51 3308-6638 - Porto Alegre - RS - Brazil
    E-mail: horizontes@ufrgs.br