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Apresentação

Em termos de sua representação, o tema do ciclo da vida tem encontrado na figura da árvore um recurso recorrente que aponta para a lógica cíclica e rítmica do tempo. Essa representação aparece tanto nas tradições milenares, de caráter mítico e cosmológico, quanto no pensamento racional e evolucionista do século XIX. Na obra de Charles Darwin, por exemplo, a imagem da árvore será utilizada para exprimir a teoria naturalista sobre a complexidade da evolução das espécies.

Na antropologia, o conceito de ciclo de vida ganha atenção especial no escritos de Marcel Mauss, nos quais as categorias cronológicas são concebidas fundamentalmente como construção social. Nesse mesmo período, a escola britânica estrutural-funcionalista vai formular o conceito de tempo social. Assim, ao descrever a sociedade nuer, Evans-Pritchard utiliza a imagem da árvore para representar o sistema de linhagens e clãs, atravessado pelos grupos geracionais. Na continuidade do pensamento britânico, Victor Turner atualiza os estudos dos rituais, compreendendo o tema dos ciclos de vida como processos dinâmicos de transformação e/ou duração, nos quais as suas fases são apresentadas como dramas sociais.

A literatura antropológica sobre ciclos de vida constitui-se num acervo fragmentado de estudos sobre a infância, a velhice, a juventude e a vida adulta. Poucos trabalhos têm abordado essas etapas como uma totalidade que se expressa em processos sócio-históricos. A publicação deste número de Horizontes Antropológicos pretende contribuir para a produção de um olhar capaz de abarcar essas fases da vida dentro de um contínuo. Para isso, reunimos aqui estudos de pesquisadores estrangeiros e brasileiros de destaque que visam resgatar o legado antropológico clássico sobre o tema, ao mesmo tempo em que apontam para novos olhares interpretativos.

O artigo de Christina Toren, intitulado "A matéria da imaginação: o que podemos aprender com as ideias das crianças fijianas sobre suas vidas como adultos" abre este número. Desde a perspectiva da autopoiesis, a autora compreende o próprio ato da pesquisa sobre processos humanos como constitutivo do saber e do conhecer de indivíduos e coletividades em diferentes fases do ciclo de vida. No desvendamento desse processo, a experiência de observação ganha um lugar privilegiado, fazendo emergir como centrais os conceitos de socialidade, pessoalidade e self, cruciais para entender quem somos e o que queremos dizer com o que expressamos. Em sua pesquisa de campo, estimula crianças fijianas a redigirem suas compreensões sobre o futuro e as analisa enquanto produtoras de alteridade e indutoras de responsabilidades.

Na sequencia, o artigo de Guita Grin Debert, "A dissolução da vida adulta e a juventude como valor", trata da construção social das imagens e representações sobre as fases etárias, questionando a própria ideia de ciclo de vida que pode se esvaziar de significação em face de novas práticas sociais na sociedade de consumo. Ao revisitar autores que atualizam a reflexão sobre estetização dos estilos e cursos de vida, a autora contrapõe a emergência dos valores de emancipação, autonomia e liberdade, próprios de um ideário moderno, com o quadro pós-moderno de interiorização de uma ideologia do consumo. O foco do artigo está posto nas representações sobre a velhice em face de novas lógicas de periodização da vida e nas formas atuais de gestão do envelhecimento pelas políticas públicas.

Myriam Moraes Lins de Barros, no artigo "Trajetórias de jovens adultos: ciclo de vida e mobilidade social", traz à luz o tema das gerações em movimento, com foco nos "jovens" de camadas médias do Rio de Janeiro. O dilema do projeto de mobilidade ascendente dá o tom de biografias marcadas por tensões na busca de autonomia e de independência financeira. Os ciclos de vida são, assim, definidos pela demarcação do tempo das trajetórias individuais, vividas no contexto de uma sociedade complexa e multifacetada onde coexistem valores individualistas e tradicionais.

No artigo "A criança, a morte e os mortos: o caso mebengokré-xikrin", Clarice Cohn apresenta os resultados da pesquisa desenvolvida em aldeia do grupo indígena no Bacajá, Norte do Brasil. As diferenças que marcam a morte e o luto de crianças e adultos na cosmologia e nos rituais mebengokré-xikrin são associadas à fabricação dos corpos e à concepção de infância, maturidade e velhice. Na esteira dos estudos antropológicos que valorizam o tema do corpo e da pessoa, a autora investe no reconhecimento da escatologia e modos mebengokré-xikrin de construir essas noções. Os cuidados e a ornamentação do corpo têm relevância especial no estudo que aponta para uma lógica que é estética, comunicativa e terapêutica.

Rita de Cácia Oenning da Silva, no artigo intitulado "'A criança no ser': infância, intertextualidade e performance entre crianças artistas e seus familiares em Recife", reflete sobre crianças pobres no contexto urbano. Partindo da sua convivência com grupos de crianças de Recife e da categoria êmica "dos pirraios", a autora problematiza a identificação de ser criança e embaralha os diversos sentidos e entendimentos levantados na pesquisa (nos anos 2006 e 2007), como elementos de uma complexa rede semântica. Para tanto, detém-se nas falas e performances artísticas que tangenciam a lógica de que "responder por seus atos" dá a pista para definir o que é ser ou não ser criança, conforme argumentos de garotos e garotas e/ou familiares.

O artigo de Flávia Pires, "O que as crianças podem fazer pela antropologia?", apresenta elementos para se adentrar no debate conceitual sobre a infância e a adolescência e os processos de passagem para a idade adulta. A autora filia-se aos estudos da antropologia da infância que tratam as crianças como agentes, resenhando vários autores clássicos e contemporâneos, dando ênfase aos estudos relacionais que destacam o envolvimento mútuo entre as pessoas e seus ambientes.

Com base em pesquisa etnográfica, Leila Sollberger Jeolás e Hagen Kordes refletem sobre as passagens dos ciclos de vida da infância à idade adulta a partir de um estudo sobre jovens que arriscam a vida em "rachas de rua". Intitulado "Percursos acelerados de jovens condutores ilegais: o risco entre vida e morte, entre jogo e rito", o artigo traz as vozes irreverentes desses jovens, predominantemente masculinos, onde a velocidade, experimentada em motos, é legenda de disputas por afirmações de identidade. Os autores apostam em uma análise da conduta de risco como formas rituais individuais, percebendo a reverberação, nessas manifestações, de valores e de práticas próprios de uma masculinidade hegemônica tradicional e que figura como horizonte organizador dos "rachadores".

A aposentadoria como uma fase de mudanças tensionadas entre a atividade e o descanso, a autonomia e a necessidade do cuidado, é o tema do artigo de Josimara Delgado, intitulado "Velhice, corpo e narrativa". Tomando a aposentadoria como questão, a autora acessa um conjunto de representações acerca do significado da velhice na sociedade moderno-contemporânea. Seu universo empírico da pesquisa são trabalhadores, moradores de periferias, em Juiz de Fora (MG), que viveram mais de perto as influências práticas e simbólicas do trabalhismo brasileiro. Os temas do valor do trabalho, do corpo, da saúde, da alimentação são inter-relacionados como disposições de um habitus social. Em suas memórias, os entrevistados operam um leque simbólico de representações contraditórias sobre a força e a longevidade, de um lado, e a rejeição e exclusão, de outro. A contradição entre as limitações do corpo e a autonomia do idoso é contrastada com as disjunções das instituições públicas de atendimento à saúde.

Em "Envelhecimento, trajetórias e homossexualidade feminina", Andrea Moraes Alves aborda a questão do envelhecimento sob a ótica da sexualidade e do gênero. O foco da pesquisa são mulheres idosas, residentes na cidade do Rio de Janeiro. Partindo das narrativas sobre sua sexualidade, a vida conjugal e as redes de sociabilidade que essas mulheres estabelecem em diversas temporalidades de suas histórias pessoais, a autora procura compreender a representação que elas fazem de si. Falando de afetos, prazeres, conflitos, separações e projetos relacionados com suas experiências homossexuais, a autora traça a trajetória da homossexualidade no Brasil e sua relação com o movimento feminista do final dos anos 1970 e início dos anos 1980 até o momento presente, em que as vivências sexuais dessas mulheres estão mais acomodadas.

No artigo "Hierarchy, symmetry, and the Xavante spiritual life cycle", James R. Welch problematiza o sistema de classes de idade (grupos de idade), junto a grupos jê. Partindo da literatura sobre coortes de idade em sociedades dualistas, sua análise recai sobre a importância dos rituais marcadores da passagem dos ciclos de vida espiritual, relacionados à complexas lógicas de nominação em que hierarquias e simetrias não são necessariamente contraditórias. Amplia, ainda, a discussão para aspectos característicos dos Xavante, como a relação de sistemas de grupo de idade espirituais e seculares.

Uma envolvente etnografia sobre os Sanumá do Auaris, do noroeste do estado de Roraima, é apresentada por Sílvia Guimarães no artigo "Corpos e ciclos da vida sanumá-yanomami". Tendo como horizonte os estudos fenomenológicos da corporeidade, a autora aborda a concepção de ciclos de vida dos Sanumá, tomando como chave interpretativa o conceito nativo de grupo de corporalidade. Na concepção sanumá, não é só a forma corporal que se modifica, mas a reunião de todas as partes que formam a pessoa se transfigura ao longo da vida do grupo. A essa concepção se vincula o sistema xamânico e as ideias de morte, que encerram o ciclo pela transfiguração definitiva do corpo.

Filiando-se aos estudos de antropologia do corpo, em "O caminho do retorno: envelhecer à maneira taoista", José Bizerril apresenta uma etnografia desenvolvida no contexto urbano brasileiro. O autor demonstra que na cosmologia taoista a velhice não necessita ser vivenciada como um período de decrepitude e adoecimento, pois uma premissa básica dessa tradição é a possibilidade reversão do movimento que conduz à morte. O artigo nos permite, assim, um significativo contraste entre os modos característicos de cuidado com a saúde e a longevidade, centrados no conhecimento prático do corpo e geridos pelo praticante taoista, e os cuidados de saúde convencionais da medicina ocidental, caracterizados por uma intensa medicalização do corpo do idoso.

Revisitando clássicos da literatura antropológica, como Margareth Mead e Gregory Bateson, que, de forma pioneira, investigaram o comportamento infantil e sua modelagem psicocultural, João Martinho de Mendonça apresenta o artigo "Margareth Mead, Bali e o Atlas do comportamento infantil: apontamentos sobre um estudo fotográfico". Partindo da obra imagética de Gregory Bateson (1936-1939), o autor atualiza a discussão da obra de Mead sobre as fotografias, organizadas em pranchas metodológicas com imagens justapostas e sequenciais. Esse material fotográfico é o ponto de partida para o autor discorrer sobre as nuanças analíticas entre Balinese character e Growth and culture e a teoria do desenvolvimento espiral de Gesell.

"Tiempo de estudiar, tiempo de trabajar: la conceptualización de la infancia y la participación de los niños en la vida productiva como experiencia formativa" é o título do artigo de Ana Padawer, que discute a existência de uma pluralidade de repertórios temporais nas atividades humanas cotidianas. A autora chama a atenção para um deslize recorrente na literatura antropológica, que, ao tratar da infância, tende a explicá-la simplesmente como um estágio anterior à vida adulta, e apresenta abordagens mais recentes, que incluem o contexto histórico e sociopolítico de formação da infância ocidental como fundamental para a sua compreensão.

José Rogério Lopes apresenta o artigo intitulado "Colecionismo e ciclos de vida: uma análise sobre percepção, duração e transitoriedade dos ciclos vitais", no qual analisa diversos autores e posicionamentos epistemológicos sobre a imagem, o objeto e a comunicação a partir do ato de colecionar e dos propósitos dos colecionadores. Nesse sentido, o autor enfatiza que a prática do colecionismo deve ser pensada associada à biografia das pessoas, uma vez que as motivações para o início e a manutenção das coleções têm relação com a trajetória de vida das pessoas, e marcam propriedades atribuídas a seus ciclos de vida. Sua etnografia está embasada nas teorias do desenvolvimento da inteligência, de Jean Piaget, de George Herbert Mead e em suas imbricações com a teoria dos ciclos de vida de Erik Erikson. Para exemplificar, descreve casos que mostram várias correspondências entre a interação do colecionador com os objetos colecionados e o processo de interiorização e constituição do indivíduo.

Vinculada ao Centro de Pesquisa e de Documentação sobre a Oceania, na Université de Provence (França), a antropóloga Pascale Bonnemère nos apresenta um interessante artigo intitulado "El estatus del tío materno entre los Ankave-Anga: iniciaciones masculinas, ciclos de vida, género y parentesco en Papúa Nueva-Guinea". A autora revisita estudos clássicos sobre sistema de parentesco desse grupo e, a partir de uma etnografia junto aos ankave-anga, destaca a importância da linhagem materna e do laço dos meninos com o tio materno. Assim, se de um lado o tio materno tem direitos sobre os filhos da irmã, de outro, para alcançar esse status, precisa se submeter a uma série de rituais de iniciação masculina, nos quais também importa reconhecer as formas de participação feminina.

Tatjana Thelen e Carolin Leutloff-Grandits são coautoras do estudo intitulado "Self-sacrifice or natural donation? A life course perspective on grandmothering in New Zagreb (Croatia) and East Berlin (Germany)". Como aponta o título, as autoras desenvolvem um estudo comparativo sobre o papel das avós nos citados países de histórico socialista. A relação entre as avós e seus netos é situada aqui no quadro mais abrangente das mudanças demográficas, da longevidade crescente dos tempos atuais e das novas políticas públicas de Estado, implementadas pela passagem desses países ao regime capitalista. Como estudo etnográfico, as autoras acompanham as trajetórias de duas mulheres, a partir das quais observam que as mudanças demográficas e as políticas públicas de cuidado infantil, ao mesmo tempo em que criam oportunidades similares nos dois contextos nacionais, também possibilitam uma variabilidade de opções para os atores que atribuem diferentes significados aos cuidados com os netos.

Encerramos a apresentação dos artigos com o estudo de Estevão Rafael Fernandes, intitulado "Do tsihuri ao waradzu: o que as ideologias xavante de concepção, substância e formação da pessoa nos dizem sobre o estatuto ontológico do outro?" Neste texto temos uma resenha de estudos etnológicos que tratam da corporalidade xavante, enquanto uma questão central para esse grupo indígena. Seu objetivo é discutir a relação entre corporalidade e o conceito de substância que se expressa no ritual xavante de concepção da criança, anteriormente descrito por Maybury-Lewis, Julio Melatti, Roberto DaMatta e Anthony Seeger. Enfim, os estudos destes e de outros autores clássicos da etnologia ameríndia são evocados em suas hipóteses e análises para alagar a compreensão da pessoa entre os Xavante, a qual está intimamente associada à ideia de ciclo de vida.

A seção Espaço Aberto apresenta uma entrevista com Otávio Velho, realizada em 2009, por ocasião das comemorações dos 35 anos do Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social (PPGAS-UFRGS). O roteiro foi elaborado por Bernardo Lewgoy, Carlos Alberto Steil e Sérgio Teixeira, de modo a que o entrevistado pudesse relatar sua trajetória de vida e intelectual, destacando sua contribuição à antropologia brasileira. O evento da entrevista foi filmado e fotografado pelos pesquisadores do Banco de Imagens e Efeitos Visuais do PPGAS-UFRGS.

Para finalizar, a ilustração da capa deste número reproduz uma imagem da "árvore da vida", de origem mexicana. Esse objeto, fotografado por Cornelia Eckert, pertence a uma tradição popular milenar, enraizada na lógica mítica e cosmológica mesoamericana. A escolha dessa imagem se deve tanto à sua beleza plástica e força simbólica quanto à sua estreita relação com o tema deste número de Horizontes Antropológicos, que nos remete aos processos dos ciclos de vida que perpassam os tempos e as culturas.

Cornelia Eckert

Carlos Alberto Steil

  • Apresentação

    Este número de Horizontes Antropológicos reúne uma série de artigos sobre ciclos de vida, com ênfase nos temas da infância, da juventude e do envelhecimento. Ao tratar estes temas como parte do processo humano mais abrangente do ciclo de vida, pretendemos romper com uma certa fragmentação que esses estudos apresentam na literatura antropológica, ao mesmo tempo em que procuramos conectá-los com uma tradição em que as questões relativas aos processos vitais atravessam os estudos clássicos na área. Associado aos estudos de parentesco e de transmissão de saberes e práticas, o conceito de ciclo de vida comporta valores e códigos simbólicos sobre a pessoa e o indivíduo que os antropólogos buscam acessar nas diversas culturas e grupos sociais estudados.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      12 Nov 2010
    • Data do Fascículo
      Dez 2010
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