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Margaret Mead, Bali e o Atlas do comportamento infantil: apontamentos sobre um estudo fotográfico

Resumos

Este artigo analisa a maneira como Margaret Mead concebeu e utilizou as imagens tomadas por Gregory Bateson em Bali (1936-1939) para desenvolver um estudo, quase dez anos depois, sobre o comportamento infantil balinês. Notam-se as limitações tanto da metodologia adotada por Mead quanto do bias político-ideológico que perpassou esse trabalho realizado durante a Guerra Fria. Tento discutir estas limitações tanto quanto sintetizar possibilidades de abordagem das imagens. Pranchas fotográficas foram selecionadas e reproduzidas para mostrar as diferentes perspectivas de abordagem das fotografias, nos trabalhos balineses e no Atlas do comportamento infantil, produzido pelo doutor Arnold Gesell.

Bali; infância; Margaret Mead; observação fotográfica


This article analyses the manner how Margaret Mead conceived and utilized the pictures taken by Gregory Bateson in Bali (1936-1939) to develop her study, almost ten years later, about the balinese children behavior. There are some limitations in this balinese photographic study caused by methodology adopted, and by the political ideological bias that crossed her research realized during the "cold war" period as well. I try to discuss these limitations and to synthesize the approach's possibilities of the images. Photographic plates are selected and reproduced here to show different perspectives of their use, in Mead's balinese works and in the Atlas of infant behavior produced by the doctor Arnold Gesell.

Bali; infancy; Margaret Mead; photographic observation


ARTIGOS

Margaret Mead, Bali e o Atlas do comportamento infantil: apontamentos sobre um estudo fotográfico* * Este artigo apresenta uma reformulação parcial do capítulo 2 de minha tese de doutoramento Pensando a visualidade no campo da antropologia: reflexões e usos da imagem na obra de Margaret Mead (Mendonça, 2005), defendida no Instituto de Artes da Unicamp, sob orientação do Prof. Etienne Samain.

João Martinho de Mendonça

Universidade Federal da Paraíba -Brasil

RESUMO

Este artigo analisa a maneira como Margaret Mead concebeu e utilizou as imagens tomadas por Gregory Bateson em Bali (1936-1939) para desenvolver um estudo, quase dez anos depois, sobre o comportamento infantil balinês. Notam-se as limitações tanto da metodologia adotada por Mead quanto do bias político-ideológico que perpassou esse trabalho realizado durante a Guerra Fria. Tento discutir estas limitações tanto quanto sintetizar possibilidades de abordagem das imagens. Pranchas fotográficas foram selecionadas e reproduzidas para mostrar as diferentes perspectivas de abordagem das fotografias, nos trabalhos balineses e no Atlas do comportamento infantil, produzido pelo doutor Arnold Gesell.

Palavras-chave: Bali, infância, Margaret Mead, observação fotográfica.

ABSTRACT

This article analyses the manner how Margaret Mead conceived and utilized the pictures taken by Gregory Bateson in Bali (1936-1939) to develop her study, almost ten years later, about the balinese children behavior. There are some limitations in this balinese photographic study caused by methodology adopted, and by the political ideological bias that crossed her research realized during the "cold war" period as well. I try to discuss these limitations and to synthesize the approach's possibilities of the images. Photographic plates are selected and reproduced here to show different perspectives of their use, in Mead's balinese works and in the Atlas of infant behavior produced by the doctor Arnold Gesell.

Keywords: Bali, infancy, Margaret Mead, photographic observation.

Introdução

A questão do desenvolvimento da personalidade na infância, sua relação com as formas culturais estabelecidas e o "caráter" adulto daí resultado, foi desenvolvida em diferentes trabalhos da antropóloga estadunidense Margaret Mead (1901-1978). Seus estudos sobre a infância na Nova Guiné (Mead, 1930) e mesmo seu trabalho mais conhecido sobre as relações entre sexo e temperamento (Mead, 1935) abordam a condição infantil em termos de sua progressiva moldagem rumo à personalidade adulta. Essa temática foi trabalhada conjuntamente com Gregory Bateson numa pesquisa realizada em Bali, entre 1936 e 1939, quando foram produzidas 25 mil fotografias e cerca de 15 horas de imagens filmadas, acompanhadas de registros escritos,1 1 Uma introdução à utilização de imagens nos trabalhos de Margaret Mead foi desenvolvida no artigo "O uso da câmera nas pesquisas de campo de Margaret Mead" (Mendonça, 2006), com detalhes sobre a pesquisa realizada em Bali por Mead e o antropólogo Gregory Bateson, na época recém-casados. experimento que teve como resultado principal o livro Balinese character, publicado em 1942 (Mead; Bateson, 1962).

Esse trabalho tem sido revisitado nas últimas décadas a partir do desenvolvimento da antropologia visual e diferentes abordagens do mesmo estão hoje disponíveis (Canevacci, 2001; Chiozzi, 1993; Freire, 2006; Jacknis, 1988; Samain, 2004).2 2 Uma pequena resenha desse livro de Mead e Bateson encontra-se disponível na Revista Brasileira de Sociologia da Emoção (Mendonça, 2004). O acervo de imagens da pesquisa balinesa veio posteriormente tomar parte em outro empreendimento de Margaret Mead, dessa vez especificamente dedicado à infância balinesa. Trata-se do livro publicado conjuntamente com Frances MacGregor e intitulado Growth and culture: a photographic study of Balinese childhood (Mead; MacGregor, 1951). Esse estudo fotográfico das relações entre cultura e crescimento infantil foi concebido por Mead como uma "reanálise" do material imagético balinês, com base em teorias médicas sobre o desenvolvimento infantil.

Algumas questões principais serão examinadas ao longo deste artigo, em meio a outras considerações complementares. Fundamentalmente, saber como Mead concebeu e utilizou as imagens fotográficas em seu estudo sobre a infância balinesa com Frances MacGregor. Procurar esclarecer quais foram motivações, descobertas e limitações de Mead nesse estudo sobre diferenças culturais e em que medida estão associadas ao trabalho anterior realizado com Gregory Bateson. Apontar, por fim, as diferentes abordagens das imagens propiciadas pelos "modelos de apresentação" (Samain, 2004, p. 55) em pranchas fotográficas. Perspectiva que Bateson chamou de "análise fotográfica"3 3 Gregory Bateson assinou sozinho a "análise fotográfica", parte central do primeiro livro publicado com Mead a partir da pesquisa de Bali, 1936-1939. Note-se que Bateson não participou do segundo livro com Mead, Growth and culture (Mead; MacGregor, 1951), embora suas fotografias tenham sido por ela utilizadas. Bateson e Mead separaram-se em 1950. em Balinese character e que foi experimentada por Mead em seu "estudo fotográfico" realizado para Growth and culture.

A teoria do "desenvolvimento em espiral" de Arnold Gesell constituiu o ponto de partida para o estudo fotográfico desenvolvido por Mead. A noção de "espiral" diz respeito às transformações nas atitudes relativas a cada fase-padrão comportamental desenvolvida pela criança em determinada época. Há, dessa maneira, uma alternância sucessiva ao longo do desenvolvimento expressa por um comportamento social calmo e cooperativo, seguido por estados de ansiedade e irritação, durante os quais a criança adquire novas capacidades motoras, que a levam novamente a uma integração social intensa, e assim por diante. (Mead; MacGregor, 1951, p. 27).

Foi a partir dessa base teórica, portanto, que as crianças balinesas foram examinadas, deve-se dizer, à distância, através de milhares de fotografias, com base nas categorias observacionais oriundas do trabalho clínico do doutor Arnold Gesell nos Estados Unidos, autor do Atlas do comportamento infantil (Gesell, 1934). Vejamos, pois, como se deu este trabalho.

O Atlas do comportamento infantil

Os doutores Arnold Gesell e Frances Ilg estabeleceram, nos anos 1920, a Clínica de Desenvolvimento Infantil de Yale (em New Haven), posteriormente transformada no Instituto Gesell de Desenvolvimento Infantil. Ao longo dos anos 1920 e no início dos anos 1930 foram realizados diversos estudos comportamentais (com filmagens) que fundamentaram o atlas, cujos resultados têm sido publicados (sem imagens) até recentemente, com algumas atualizações (Gesell, 1999).

Mead conheceu Frances Ilg no Instituto Vassar (Vassar Summer Institute) em 1945, quando tomou contato com o "conceito de desenvolvimento em espiral" no trato da infância. Ao se familiarizar, nos anos seguintes, com os conceitos e métodos da Clínica de Yale, sentiu "[...] que encontrou algo pelo qual procurara nos últimos dez anos" (Mead; MacGregor, 1951, p. 199, tradução minha). Tempo que remonta ao trabalho de campo balinês. Os métodos visuais da clínica provavelmente lembraram-lhe o montante de registros visuais e verbais combinados obtidos por ela e Bateson cerca de dez anos antes. O trecho seguinte, de uma carta de Mead escrita do campo (Bali), fala da importância dessas imagens:

Eu nunca imaginei o quão vividamente meu pensamento era dependente do fato de haver bons materiais comparativos sempre presentes em minha mente. E não posso comparar 40 observações sobre um bebê manus, todas registradas meramente em palavras, com 400 observações de um bebê balinês, em sua maioria, fotografadas e combinadas com registros verbais. [...] O registro é tão mais refinado que sinto como se estivesse trabalhando em níveis diferentes de quaisquer outros trabalhos que realizei anteriormente. (Mead, 1977, p. 213, tradução minha).

O uso das imagens por Gesell e sua equipe, portanto, foi capaz de chegar a um nível semelhante de detalhamento, tal como o que foi obtido por ela e Bateson na observação de crianças, esta foi provavelmente a maior motivação da autora. Em janeiro de 1946 Mead encontrou-se com o doutor Gesell numa reunião da Sociedade de Neurologia de Nova York, oportunidade em que discutiu com ele o conceito da "espiral" bem como procurou apontar-lhe peculiaridades observadas por ela nas crianças balinesas. (Mead; MacGregor, 1951, p. 199). A partir desse contato, Mead fez publicar um artigo no qual procurou expor seu interesse, como antropóloga, no trabalho de Gesell (Mead, 1947). Estava, assim, lançada a base do projeto que levaria à publicação de Growth and culture.

Para entender melhor o trabalho imagético realizado na Clínica de Yale para o desenvolvimento infantil, será preciso abordar com mais detalhes os dois volumes do Atlas do comportamento infantil publicado pelo doutor Arnold Gesell. O subtítulo do trabalho já é significativo nesse sentido: "delineamento sistemático das formas e do surgimento dos padrões comportamentais humanos, ilustrado por 3200 fotografias". Um esforço monumental de selecionar imagens representativas (trechos dos filmes visualizados em fotogramas) das diferentes fases do desenvolvimento infantil, em situações cuidadosamente estudadas através de câmeras cinematográficas e registros escritos. Os dois volumes apresentam as imagens em forma de pranchas organizadas em séries e com comentários descritivos abaixo ou ao lado.

O primeiro volume, chamado "série normativa", é composto por 1400 imagens (fotogramas extraídos de filmes produzidos em 16 mm) de sete crianças, identificadas por código (e não pelo nome), em situações criadas num ambiente especialmente preparado para documentar a evolução de suas capacidades e reações a diferentes estímulos: o "domo fotográfico". O processo de produção destas imagens iniciou-se em 1924 e consistiu, pois, em exames e testes (de locomoção, coordenação e etc., com auxílio de cubos, barbantes, argolas, espelhos, colheres, etc.) realizados regularmente.

Essas crianças foram assim testadas e examinadas em intervalos de quatro em quatro semanas ao longo de seus primeiros anos de vida. O "domo" ou cabine fotográfica era uma espécie de bolha equipada por dentro com mobílias e acessórios para a criança (berço, cadeira, etc.), cercada por duas câmeras silenciosas do lado de fora, imperceptíveis no lado interno (ver Figura 1).4 4 As cinco "imagens" aqui reproduzidas foram reduzidas em seu tamanho para se ajustarem aos padrões da revista, de maneira que mantivessem sua disposição no formato original de "pranchas fotográficas" (as fotografias das pranchas, portanto, diminuídas em relação aos originais), as legendas das imagens 3, 4 e 5 ( Figuras 3, 4 e 5) foram reproduzidas na íntegra. Todo o trabalho foi realizado na Clínica Yale de desenvolvimento infantil e catalogado progressivamente segundo princípios bibliográficos (Gesell, 1934, p. 23).


A "série naturalística" do atlas

O segundo volume, chamado "série naturalística", contém 1800 fotogramas (extraídos de filmes produzidos em 35 mm) de um conjunto de seis crianças, identificadas por códigos (garotas A e B, garotos A, B, C e D), em situações vivenciadas num ambiente destinado a reproduzir tanto quanto possível as próprias condições familiares cotidianas. Para tanto foi necessário conseguir outro local, uma casa, que foi adaptada de maneira a imitar a atmosfera doméstica das habitações de classe média nos Estados Unidos dos anos 1930. Cada família envolvida no projeto foi convidada a passar um dia inteiro e, às vezes, uma noite nessa clínica com aparência de casa a cada quatro semanas.

A ideia da equipe do doutor Gesell consistiu em acompanhar as rotinas do dia a dia das crianças (dormir, comer, brincar, banhar, etc.) como se estas estivessem em sua própria casa. As imagens foram gravadas em câmeras de cinema (35 mm) instaladas estrategicamente e equipadas com silenciadores de maneira a interferir o menos possível nas situações observadas. Uma "unidade de estúdio" foi planejada para servir de local para diversas situações e atividades, enfocadas a partir das câmeras fixas direcionadas lateralmente, de fora da "unidade de estúdio", e perpendicularmente, do alto da mesma. Essa "unidade de estúdio" desmontável servia, então, ora como cozinha, ora como banheiro ou, ainda, como quarto de dormir (ver Figura 2).


Ao longo do trabalho, reuniram-se várias séries de filmes. A duração de cada comportamento enfocado foi de pelo menos um minuto, de modo a manter "integridade natural" e um "fluxo coerente" com os propósitos da pesquisa (Gesell, 1934, p. 535). Os inúmeros filmes representam as várias fases de aquisição de padrões comportamentais sucessivos ao longo dos cinco primeiros anos de vida, com especial ênfase no primeiro. Mil e oitocentos fotogramas selecionados do material produzido compõem, assim, o segundo volume do atlas, organizado em séries de pranchas sequenciais que enfocam situações específicas, nas quais o comportamento infantil é descrito e analisado através de descrições verbais.

Na concepção do atlas, tanto as condições de iluminação e de preparação das tomadas (enfoque, enquadramento, ângulo de tomada, etc.) quanto o processamento, análise e catalogação dos filmes (feitos na própria clínica) procuraram seguir os mesmos padrões técnicos de modo a propiciar estudos comparativos controlados (entre as diferentes fases comportamentais, como também entre as diversas crianças) e produzir publicações impressas de qualidade. Nas palavras de Gesell (1934, p. 13, tradução minha), "[...] este corpus de materiais pode ser visto em toda sua fluência apenas na tela, mas o propósito do atlas é elucidar e dissecar essa fluência para estudo analítico. Para tanto, o meio mais sólido da página impressa é necessário."

Em cerca de dez anos, portanto, Gesell e sua equipe haviam reunido e preparado o material para o atlas. Assim, o primeiro volume do atlas constitui um inventário selecionado das capacidades infantis progressivamente adquiridas e expressas através de movimentos, posturas e gestos significativos. O segundo volume foi concebido complementarmente e organizado biograficamente (cada criança é mostrada em sucessivas "fases-padrão") para permitir, inclusive, entrever diferenças individuais na maneira como os mesmos comportamentos são vivenciados social e cotidianamente.

A análise dos filmes produzidos e a seleção de 3200 imagens para publicação no atlas, dentre milhões de fotogramas, seguiram, portanto, o propósito de delinear a formação progressiva de padrões comportamentais básicos. Esta seleção ou "seriação" foi concebida para mostrar os estudos realizados dentro de três perspectivas complementares:

Num único fotograma aparece identificado o comportamento estudado (andar, pegar com as mãos, responder a um estímulo social com um olhar, etc.). Através de sua sequência relativa pode-se ver o episódio inteiro no qual o comportamento ocorreu. Finalmente, por meio da organização sistemática, percebe-se o desenvolvimento da criança, ao longo do tempo de crescimento, em diferentes situações comportamentais. (Gesell, 1934, p. 17, tradução minha).

Pressupõe-se, nessa concepção, que o desenvolvimento mental expressa (e é condição para) a aquisição progressiva desses comportamentos padronizados, na medida em que os acompanha. As reações emocionais e o comportamento social (relações com os demais familiares) entram também nesta equação. O delineamento do atlas foi concebido, portanto, para estabelecer os padrões de "normalidade" considerados saudáveis na maturação das crianças. Esses parâmetros são úteis tanto para pais e mães como, de modo geral, ao estudo, tratamento e acompanhamento do crescimento infantil.

O uso das fotografias em Growth and culture

Evidentemente as condições de produção das imagens em Bali (entre 1936-1939) foram muito diferentes, mas permitiram efetivamente numerosos registros visuais e verbais de um pequeno grupo de crianças da vila montanhesa de Bajoeng Gede, onde Mead e Bateson se instalaram, intermitentemente, ao longo de três anos. Não caberá aqui entrar nos detalhes da pesquisa de campo ou mesmo do primeiro livro resultado dessa pesquisa, de Mead e Bateson, publicado em 1942. Eles podem ser encontrados nas publicações já mencionadas na introdução deste artigo. Será preciso, contudo, considerar alguns aspectos da pesquisa (de 1936-1939) e do livro de 1942, Balinese character, na medida em que são necessários à compreensão desse estudo fotográfico sobre a infância balinesa.

Deve ficar claro, inicialmente, que Mead não admitia que as comparações (entre crianças balinesas e estadunidenses) a partir dos materiais visuais e verbais, produzidos em circunstâncias tão diversas e com objetivos muito diferentes, pudessem levar a alguma conclusão definitiva. Sua ideia era realizar, ainda assim, "[...] um estudo exploratório das hipóteses de Gesell-Ilg através do uso da coleção de fotografias balinesas" (Mead; MacGregor, 1951, p. 199, tradução minha).

Nesse sentido, ela aponta as limitações do material produzido em Bali nos termos seguintes: "[...] é claro que para a análise espiral é necessário obter materiais sequenciais muito mais detalhados, tomados dentro de intervalos regulares e sob condições mais padronizadas" (Mead; MacGregor, 1951, p. 207, tradução minha). Aquilo que foi, em suma, realizado para o atlas do doutor Gesell, mas não exatamente em Bali, por mais organizados e sistemáticos que tenham sido os registros de campo de Bateson e Mead. Vejamos, por ora, o percurso de Mead na realização de seu "estudo fotográfico", antes de passarmos a examinar os demais fatores aí implicados.

Ainda em 1946, a autora conheceu Frances Cooke MacGregor numa reunião científica5 5 Frances Cooke MacGregor na época realizava seu doutoramento em sociologia. Pesquisava atitudes relativas ao desfiguramento corporal em pacientes submetidos a cirurgias plásticas (Mead; MacGregor, 1951, p. 199). Outro relato de seu encontro com Mead encontra-se em Howard (1984, p. 254-256). e pensou ter encontrado a pessoa adequada para colaborar no trabalho sobre o desenvolvimento infantil balinês. Retomou, então, o catálogo através do qual Dorothy Davis havia organizado o material imagético com relação às crianças enfocadas em Bali para efetuar, com o patrocínio do Comitê para Estudo da Demência Precoce (leia-se "esquizofrenia"), a ampliação de 4000 fotografias (de oito crianças balinesas). O trabalho de ampliação das fotos foi feito por Eva Lulinsky, que também colaborou com Mead e MacGregor nas demais etapas do projeto então iniciado em meados de 1947 (Mead; MacGregor, 1951, p. 201).

As tarefas de análise, seleção e descrição foram efetuadas inicialmente por MacGregor e sucessivamente revisadas, discutidas e complementadas verbalmente por Mead. Essas seleções foram também apresentadas e discutidas com o grupo do doutor Gesell em duas conferências: em novembro de 1947 em New Haven e em março de 1948 em Nova York. Segundo Mead, o uso dos filmes balineses foi descartado logo na primeira reunião, após a projeção de uma seleção relativa às mesmas crianças que apareciam nas fotografias. Pareceu-lhe que aquelas imagens fílmicas "[...] não proviam novos insights" (Mead; MacGregor, 1951, p. 203, tradução minha). O trabalho do grupo, então com séries de fotografias, pode ser entrevisto no comentário seguinte, escrito por Mead:

O que ela [MacGregor] encontrava ela apresentava, inicialmente para mim, e então reapresentávamos, em seleções classificadas de modo complexo, ao grupo de Gesell. Isso não era feito em palavras, mas em mosaicos de fotografias, os quais, através de justaposições e sequências, exprimiam os primeiros estágios, não verbais, das formulações. (Mead; MacGregor, 1951, p. 55, tradução minha).

Frances MacGregor foi a principal responsável pelo arranjo das fotografias nas pranchas, modificados sucessivamente no trabalho em grupo. Ao fim do processo de seleções e análises sucessivas, partilhadas com a equipe de Gesell uma última vez em abril de 1951, surgiram as 380 fotografias de Growth and culture, apresentadas na forma de 58 pranchas divididas em sete seções (Mead; MacGregor, 1951, p. 205), semelhantemente à organização geral adotada em Balinese character, ou seja: um livro em formato grande, com fotografias numeradas numa única página de um lado e, do outro, paralelamente, uma página com comentários escritos introdutórios à prancha como um todo e relativos a cada imagem mostrada. Mead e MacGregor elaboraram conjuntamente os comentários descritivos a partir das notas de campo de Mead e das observações efetuadas nas fotografias por MacGregor.

O conjunto das 58 pranchas de Growth and culture

As 16 primeiras pranchas apresentam as oito crianças balinesas da vila montanhesa de Bajoeng Gede, com as quais Mead e Bateson tiveram contato entre 1936 e 1939. Essa apresentação individual procura, através de duas pranchas para cada criança (com um número de fotos que varia de seis a oito em cada prancha), mostrar a síntese das diferentes fases do processo de maturação de acordo com os mesmos tipos de padrões comportamentais delineados na Clínica de Yale. Ou seja, recortes longitudinais representativos dos diferentes períodos do desenvolvimento.

Após essa seção introdutória, segue-se outra seção intitulada "modos tradicionais de dormir, amamentar, comer e banhar", na qual quatro pranchas (uma para cada tema) são apresentadas. Em média são apresentadas e descritas seis fotografias, uma para cada criança, com o intuito de mostrar as maneiras tipicamente balinesas pelas quais as crianças desempenham os comportamentos mencionados. Essas descrições procuram enfatizar os contrastes notados com relação ao que foi observado nas crianças de New Haven.

Na sequência, são apresentadas as demais seções, com descrições verbais que tomam o mesmo sentido, sob os títulos: "peculiaridades nos modos de maturação tomadas pelas crianças balinesas" (oito pranchas), "posturas corporais gerais" (dez pranchas), "manejo das crianças" (três pranchas), "posturas de mãos e pés" (12 pranchas) e "aspectos especiais do comportamento" (cinco pranchas).

Essa composição temática das pranchas de Growth and culture partiu, de modo geral, das categorias observacionais gesellianas. Mas o trabalho de Mead e MacGregor não se limitou a simplesmente comparar situações dentro das delimitações dadas pelas categorias gesellianas (1ª e 2ª seção). Outras categorias (3ª à 7ª seção) foram propostas para enfocar comportamentos tipicamente balineses que não eram vistos com frequência nas crianças de New Haven, por exemplo, a postura de "sapo" (frogging) associada, segundo Mead, às diferenças culturais na maneira de carregar a criança6 6 A postura de "sapo" seria reforçada pela maneira cotidiana de carregar a criança na eslinga (uma espécie de faixa passada pelos ombros que sustenta a criança junto à mãe, inclusive em situações de amamentação), quando muitas vezes suas duas pernas ficam abertas e encaixadas no corpo da mãe. tanto quanto de conceber a capacidade para andar: "As crianças balinesas são veementemente desencorajadas de arrastar ou de engatinhar, uma vez que tal comportamento animal é considerado rebaixador [demeaning] para um ser humano." (Mead; MacGregor, 1951, p. 108, tradução minha).

Um diferente jeito de andar

Mead notou também que, para a criança em Bali, "andar" é uma alternativa que aparece em oposição a "ser carregada" junto à mãe, ao passo que, nos EUA, "andar" é alternativa em oposição ao engatinhar bem como a "andar no carrinho, no velocípede ou no andador", já que a criança não é constantemente carregada pela mãe (Mead; MacGregor, 1951, p. 118, tradução minha).

Assim, toda a "progressão" da criança balinesa até poder andar se realizaria de maneira diversa, devido às concepções e práticas culturais estabelecidas, seja pelo desencorajamento dos movimentos associados ao engatinhar, como pelo hábito de carregar a criança por longo tempo na eslinga. Esses fatores, por outro lado, tornariam a criança balinesa mais equilibrada quando parada em pé, dotada então de um comportamento típico, um "jeito" de ficar em pé ausente nas crianças estadunidenses da mesma idade.

A prancha de número 29 de Growth and culture é a primeira da série de dez pranchas contidas na seção "posturas corporais gerais". Ela surge imediatamente após a série de oito pranchas que descrevem as etapas percorridas até o "caminhar" (postura do sapo, sentar, engatinhar, andar de quatro, acocorar, ficar em pé com suporte, ficar em pé sozinho e, finalmente, andar). Essa seção anterior (com oito pranchas) é intitulada "Peculiaridades dos caminhos de desenvolvimento tomados pelas crianças balinesas". Vejamos, pois, a reprodução integral da prancha subsequente intitulada "Equilíbrio" (ver Figura 3).


Esse equilíbrio tipicamente balinês é, desse modo, associado a um conjunto de "posturas corporais gerais" (título da seção), tematizadas em mais nove pranchas além da que vimos. Todas são distintivas e contrastantes com relação às posturas observadas nas crianças estadunidenses (documentadas pelo Atlas do comportamento infantil). Ao longo dessa seção do livro de Mead e MacGregor o "equilíbrio" e a "simetria",7 7 Títulos de duas pranchas dessa seção. apresentados entre as primeiras pranchas, são seguidos de "extensões", "rotações", "flexões de partes do corpo" e "variações posturais".8 8 Títulos de outras pranchas da mesma seção. A última prancha dessa seção é intitulada "organização tonal baixa"9 9 Pela definição de Mead, a organização tonal balinesa, também chamada em Growth and culture de "tônus serpenteado" ( meandering tonus), é "caracterizada por um tipo de inconstância amorfa no tempo e na localização das respostas tonais" (Mead; MacGregor, 1951, p. 223, tradução minha). e é associada por Mead tanto à dissociação de partes do corpo como à dissociação da realidade (relacionadas, então, à esquizofrenia).10 10 A relação entre cultura e esquizofrenia será retomada mais adiante.

Esses fatores estão associados à outra hipótese explorada por Mead sobre a passividade da criança balinesa. Na parte final de Growth and culture, Mead retomou hipóteses de Balinese character bem como sua própria percepção da criança balinesa para explicitar o método adotado no "estudo fotográfico" das crianças balinesas. Um de seus aspectos consistiu na integração de seus próprios achados aos estudos de MacGregor e do grupo de Gesell sobre a manutenção de um "baixo tônus muscular" no decorrer do desenvolvimento infantil, "por sua vez, plasticamente semelhante à esquizofrenia catatônica [...]"; no mesmo sentido, a fraqueza associada ao uso diferente dado ao polegar pelos balineses (que utilizam muito também os outros dedos) surge relacionada com outra hipótese apresentada em Balinese character: "a falta de orientação objetiva" (Mead; MacGregor, 1951, p. 202-203, tradução minha).

Growth and culture e Balinese character: diferentes concepções?

Pode-se dizer que Mead concebeu Growth and culture como uma espécie de extensão de Balinese character em termos dos conhecimentos acerca da cultura balinesa. Para ela, "o estado da teoria e do entendimento de Bali então alcançado está registrado em Balinese character, publicado em 1942" (Mead; MacGregor, 1951, p. 198, tradução minha). Com efeito, ao longo do livro várias referências foram feitas à Balinese character, basta dizer que das 58 pranchas de Growth and culture, 30 contém comentários que fazem remissões explícitas para figuras ou pranchas de Balinese character. Nesse sentido, o trabalho realizado com MacGregor foi para ela um avanço, tanto em termos de refinamento do método (análise ainda mais minuciosa do desenvolvimento infantil através das mesmas imagens) como de confirmação das hipóteses apresentadas em Balinese character.

É preciso notar, contudo, que diferenças significativas, senão fundamentais, podem ser identificadas na maneira como imagens, temas e hipóteses são explorados em um e outro contexto. O que seria um estudo "exploratório" e "sugestivo" em termos da teoria do desenvolvimento espiral geselliano acaba por sugerir confirmações de hipóteses levantadas anteriormente em Balinese character, em termos do papel da cultura na formação da "personalidade" adulta. É aí que a utilização das fotografias na "análise fotográfica" de Bateson e no "estudo fotográfico" de Mead e MacGregor pode ser revista, para deixar entrever dois modos muito diversos de tratamento visual e verbal a partir de uma mesma experiência de pesquisa de campo. Uma rápida apreciação da prancha também intitulada "equilíbrio" em Balinese character será elucidativa nesse sentido (ver Figura 4).


Em Balinese character, a prancha faz parte da série "aprendizagem" (com outras duas pranchas intituladas "aprendizagem visual e cinestésica I e II") e o "equilíbrio" é associado com uma "imagem perfeitamente integrada do corpo", hipoteticamente contrastada com a imagem dada pela "fantasia balinesa de que o corpo é feito de partes separadas". Nas descrições de Growth and culture (cf. legendas da Figura 3), embora haja uma remissão direta a esta prancha 17 de Balinese character (remissão que diz respeito às dificuldades e discrepâncias de posturas associadas à bruxaria na vida adulta), a ideia de "imagem perfeitamente integrada do corpo" desaparece por completo.

Não caberá aqui examinar as duas pranchas em detalhe, o leitor ou leitora poderá também efetuar sua própria avaliação. Sem entrar nos meandros dos conteúdos temáticos abordados nas duas pranchas,11 11 Que precisariam, para uma justa apreciação, da consideração das demais pranchas e seções de cada um dos livros. gostaria de apontar o seguinte. Primeiro, o teor dos comentários e descrições verbais em um e outro caso, um mais afirmativo (Growth and culture) e outro mais indicativo (Balinese character). Em um caso há uma remissão a uma prancha homônima do outro livro (prancha 17), onde o mesmo tema (equilíbrio) é abordado diferentemente, para além da preocupação quase exclusiva com o desenvolvimento motor da criança. No outro (Balinese character), há remissões para sete outras pranchas do mesmo livro, cujas temáticas variadas são correlacionadas pelos comentários verbais e pelas imagens fotográficas.

As imagens das pranchas mostram, num caso (Growth and culture), cinco situações diferentes, com quatro fotografias de uma mesma situação, noutro (Balinese character), cinco situações diferentes, com duas fotografias de uma mesma situação, além de três reproduções fotográficas de obras artísticas (escultura e pinturas). Diferentes configurações visuais são resultadas da disposição de imagens nos dois casos: em Balinese character, um arranjo em três linhas horizontais não totalmente simétricas (com imagens de tamanhos diversos) e em Growth and culture uma simetria paralela em vertical ligeiramente ovalada (com imagens do mesmo tamanho).

A ideia de "aprendizagem" em Balinese character pode guardar uma associação direta, ainda que superficial, com a ideia da "progressão" até os primeiros passos dados pela criança e o equilíbrio na posição ereta. Mas é preciso notar que a noção de "aprendizagem" (e as fotografias aí incluídas) no primeiro caso aparece em correlação com vários outros aspectos da cultura balinesa (e com outras fotografias). Essa correlação, no primeiro caso, não é linear e liga-se a um conceito complexo de aprendizagem cultural, ao passo que no segundo caso, a noção de "progressão" no ato de caminhar parece se restringir ao enfoque do desenvolvimento motor num ser humano genérico e dentro de uma série linear (sentar, engatinhar, andar de quatro...).

Mas como as concepções e circunstâncias diversas envolvidas na elaboração dos dois livros podem vir a justificar estas (e outras) diferenças entre as duas pranchas vistas (e mesmo entre a maioria das pranchas de um e outro livro)? Até que ponto a reutilização (a partir de outro aporte teórico) das mesmas fotografias de uma pesquisa anterior não é superestimada por Mead, em termos de continuidade e da confirmação de hipóteses (formuladas com outra base teórica) apresentadas em contexto anterior e diverso?

Enfim, se a proposta foi de explorar a teoria do desenvolvimento espiral a partir da observação do material fotográfico balinês, que razões poderiam justificar tantas referências ao trabalho anterior (Balinese character), cujas preocupações teóricas e metodológicas foram de outra ordem? Seria o financiamento do Comitê para Estudo da Demência Precoce (presente em ambos os trabalhos) um fator preponderante para o entendimento das relações de continuidade estabelecidas por Mead entre os dois livros? Em outras palavras, como compreender e justificar as relações entre cultura e esquizofrenia, igualmente presentes nos dois trabalhos?

A prancha fotográfica no Atlas do comportamento infantil: outra concepção possível

Vejamos agora uma prancha do atlas, que aborda o desenvolvimento do hábito de andar, antes de poder retomar os apontamentos sobre o uso da fotografia no trabalho de Mead e MacGregor (ver Figura 5).


Trata-se de uma das pranchas da "série naturalística" (segundo volume do Atlas do comportamento infantil), organizada biograficamente. Nessa "série" o garoto "D" é visto em momentos diferentes entre 8 a 80 semanas de idade, em diversas sequências obtidas de situações variadas (banho, sono, etc.). Das suas 23 pranchas apresentadas neste segundo volume, oito são dedicadas ao tema da "progressão", mostrando-o nas idades de 8, 12, 16, 20, 24, 28, 32, 36, 40, 48, 52 e 80 semanas. A sequência reproduzida (na Figura 5) é a penúltima dedicada ao tema, que procura descrever o desenvolvimento motor da criança (sua movimentação) até a fase em que aprende a andar.

A comparação que se esboça agora, entre as duas pranchas anteriores (com fotografias balinesas) e esta outra, produzida nos EUA a partir de fotogramas fílmicos, pode lançar mais luz sobre as considerações apresentadas até aqui. Os comentários descritivos (transcritos na íntegra nas legendas da imagem 5) enfatizam os movimentos do bebê (pernas e braços) tanto quanto seu equilíbrio. Esse tipo de observação curta e precisa de um assunto bem delimitado pelo filme contrasta, pois, com os comentários apresentados no projeto de Growth and culture, que procuram também incluir inúmeras referências à cultura balinesa a partir de remissões ao livro anteriormente publicado (Balinese character).

Ao olhar as imagens tomadas por Bateson em Bali e estas produzidas para o atlas não há como não notar os diferentes enfoques. As fotografias tomadas por Bateson em Bali (usadas posteriormente por Mead, MacGregor e pela equipe da clínica do doutor Gesell) foram concebidas, a partir de planos gerais, para estudar relações entre personalidades enfocadas, através de gestos e posturas, e outros aspectos da cultura balinesa (vestuário, adornos, relação com o espaço, escultura, pintura, etc.). Ou seja, não se tratou de utilizar a câmera exclusivamente para registrar comportamentos específicos sob planos mais fechados, como ocorreu com as imagens produzidas para o atlas.

Se o trabalho apresentado em Balinese character procurou seguir a mesma concepção teórica e metodológica que presidiu a pesquisa de campo balinesa, o que foi feito em Growth and culture partiu de outras categorias concebidas de modo inteiramente diverso, pelo doutor Gesell (embora, às vezes, aparentemente coincidentes). No tocante ao tema da "progressão" ou do "equilíbrio", o conjunto das imagens escolhidas, sua disposição ao longo da página, tanto quanto o teor dos comentários escritos, são elaborados diferentemente em cada uma das três obras consideradas (Figuras 3, 4 e 5).

Diferenças culturais na comparação Bali versus EUA

Como, por outro lado, esclarecer o tipo de diferença cultural levantada por Mead em Growth and culture? Ora, a criança estadunidense não foi carregada do mesmo modo nem por tanto tempo junto ao corpo da mãe, esteve sempre cercada (no "chiqueirinho" ou no "andador") e não costumava ver seus pais ou outros mais velhos acocorados. No episódio mostrado (Figura 5) ela se abandonou ainda insegura para frente e andou até os braços da mãe e foi através deste exercício (iniciado um mês antes) que, aos poucos, ela desenvolveu seu equilíbrio no andar. Com a mesma faixa de idade (13 meses), então, as crianças balinesas já teriam desenvolvido um equilíbrio relativamente maior e de outro tipo: "estático" (cf. legendas da Figura 3).

Fica mais claro, pois, como Mead concebeu a utilidade de Growth and culture para pensar o conceito "espiral" de Gesell.12 12 Para acompanhar melhor as hipóteses de Growth and culture sobre o conceito de "espiral" em seu estado inicial de formulação, ver Mead (1947). A generalização (em sentido universal) do conceito "espiral" deveria levar em conta diferenças culturais, que chegam a modificar a "amplitude das curvas do desenvolvimento infantil" (Mead; MacGregor, 1951, p. 207, tradução minha). Isso, na medida em que as fases-padrão podem variar, em termos de sua elaboração e duração, segundo diferentes condições, propiciadas pela convivência da criança no âmbito de uma cultura ou sociedade diversa. Para Mead deveria ser provável que, em culturas diferentes, a constituição das fases do crescimento infantil fosse também diferenciada.

Além de incluir categorias de observação mais apropriadas ao estudo do desenvolvimento infantil balinês (para permitir examinar, por exemplo, as variações da postura de cócoras), o próprio vocabulário descritivo teve que ser revisto:

O vocabulário usado nas legendas foi o mesmo do grupo de Gesell, algumas palavras foram adicionadas para dar conta das necessidades do material balinês: "flexibilidade" para cobrir as versões especialmente balinesas de "simetria" e "assimetria" [...] A necessidade de novas palavras surgiu onde o comportamento das crianças de Bajoeng Gede é tão marcadamente diferente daquele das crianças de New Haven, de forma que a análise de Gesell teve que ser expandida para poder incluí-lo. (Mead; MacGregor, 1951, p. 57-58, tradução minha).

Mas se a sistematicidade e a padronização do método adotado pelo Instituto Gesell asseguravam seus resultados sem maiores questionamentos para ela, seu "estudo fotográfico" não poderia fazê-lo do mesmo modo.13 13 Outra limitação diz respeito às crianças que aparecem nas fotografias de Growth and culture. Além das oito crianças principais (que são apresentadas nas 16 pranchas iniciais) há pelo menos outras três (I Djantoek, Diasih e I Sami) que aparecem enfocadas de modo intermitente ao longo das imagens das pranchas 17 em diante. A título de exemplo, aponto a prancha 41 (Mead; MacGregor, 1951, p. 145). Ela própria afirmou, como já foi mencionado, que novas pesquisas (com imagens mais padronizadas) seriam necessárias para um resultado mais seguro (Mead; MacGregor, 1951, p. 207). Desse modo, a autora ponderou, efetivamente, a sua utilização das fotografias balinesas "[...] designadas não para provar, mas para ilustrar aspectos do desenvolvimento motor infantil que emergiram durante o exame das 4000 fotografias ampliadas para este estudo" (Mead; MacGregor, 1951, p. 55, tradução minha).

Observação empírica e generalizações

Vejamos, agora, como problematizar o estudo apresentado no Atlas do comportamento infantil. No que toca, desta vez, à seleção das crianças para os dois estudos, os critérios e circunstâncias diferem bastante. Para o atlas, foram selecionadas crianças cujos pais e avós eram de "tipo racial nórdico e celta" (Gesell, 1934, p. 541, tradução minha). Na introdução ao segundo volume, são explicitadas as condições das famílias que colaboraram com o estudo: moradoras de apartamentos com tamanhos variáveis, com rádio, revistas, jornais, livros, etc., fatores indicativos de seu estrato socioeconômico:

Apesar da ampla variação de ocupações [dos pais], estes seis lares podem ser considerados como aproximadamente normativos e representativos de condições de vida elevadas. Em todos eles, os padrões de cuidados infantis são excelentes e tanto os pais como as mães manifestaram um interesse cooperativo em nossa pesquisa. (Gesell, 1934, p. 541, tradução minha).

O tipo de comunicação estabelecido com os pais com os quais a equipe do doutor Gesell entra em contato, seja para o trabalho do atlas como na experiência clínica diária, pode ser entrevisto na seguinte passagem, sobre o método de visão unidirecional:14 14 Refere-se ao fato de quem está sendo visto não poder enxergar do outro lado (ver Figura 1); trata-se de procedimento semelhante ao que é usado ainda hoje para a identificação de criminosos pelas vítimas.

As vantagens da observação unidirecional pelos pais merece uma menção especial. A mãe de uma criança com problemas pode estar tão profunda e emocionalmente envolvida no caso, de forma que é incapaz de enxergar o problema objetivamente. Ela é então convidada a observar sua criança nas dependências do consultório. Aqui a visão unidirecional frequentemente opera um silencioso milagre. A simples intervenção de uma barreira de tela transparente cria uma nova perspectiva, uma mudança significativa em termos de neutralidade psicológica e objetividade. Ver é acreditar. Ela começa a enxergar sob nova luz. É uma forma eficaz de educação visual e reduz a necessidade de explanação verbal ou de exortação. Nós temos falado menos com os pais desde que os painéis unidirecionais foram instalados. (Gesell, 1940, p. 355, tradução minha).

Esse procedimento, utilizado desde a concepção do domo fotográfico, foi entusiasticamente estendido a outros interesses, sejam educacionais como também no que toca à relação entre médicos e pacientes, tal como visto acima.15 15 Aplicações em escolas e hospitais foram relatadas por Gesell (1940, p. 353-356). É o que permite, portanto, alcunhar o experimento realizado para o segundo volume do atlas de série "naturalística".

A abordagem proposta no segundo volume é a que mais se aproxima da abordagem vista em Growth and culture, também chamada por Mead "abordagem da história natural", mencionada no artigo de 1947 mencionado anteriormente (Mead, 1947). No prefácio, Gesell (1934, p. 533, tradução minha) assim se refere ao trabalho: "O inventário fotográfico é suficientemente compreensivo para permitir chegar a um mapeamento progressivo da história natural da vida e do crescimento da criança humana [...]."

Eis uma versão do método indutivo. A observação do comportamento de um grupo de seis crianças da classe média de New Haven que foi generalizado em termos da "criança humana" e de sua "história natural". Contudo, não será evidente que uma criança levada uma vez por mês a uma casa especial - onde tem ao seu serviço toda uma equipe para comer, brincar, tomar banho e dormir por um dia - reagirá de modo diferente ao que está habituada, por mais que a clínica se esforce por parecer uma casa "normal"?

Esse tipo de questão não parece ter tido qualquer relevância para o doutor Gesell. Para ele, a câmera era dotada da mais pura objetividade:

O cinema registra de maneira completa e imparcial; vê tudo com visão instantânea e de tudo relembra infalivelmente. [...] A análise cinematográfica, portanto, é um método objetivo de pesquisa do comportamento que só se tornou possível através da invenção do filme flexível e outras técnicas fotográficas modernas. A análise cinematográfica é uma forma de biópsia que não requer remoção do tecido corporal do sujeito vivo. É mesmo verdadeiramente um estudo da estruturação do comportamento infantil. Ele nos permite levar esse comportamento, sem qualquer deterioração, ao laboratório para ser dissecado. Essa dissecação é equivalente ao exame microscópico da histologia e à função do órgão in vitro. (Gesell, 1934, p. 17-19, tradução minha).

Esse tipo de "pensamento experimental" não parece, nem de longe, considerar que o método possa modificar o objeto, e no atlas tudo indica que é como se o "objetivo puro" equivalesse ao "visual puro" (Bachelard, 2000, p. 93), no caso, a visualização unidirecional e longitudinal (no tempo) dos movimentos da criança pequena, na medida em que são adquiridos e se tornam regulares.

Embora Mead, por sua vez, tenha ponderado que seu "estudo fotográfico" é meramente "sugestivo", ela parece, em outros momentos apontados neste artigo, acreditar realmente na capacidade comprobatória das imagens quando utilizada à maneira do estudo da equipe de Gesell. Se isso é suficiente para atribuir a ela, nesse caso, uma concepção "empiricista"16 16 Jacknis (1988, p. 172) enfatiza esse aspecto da concepção de Mead sobre o uso das imagens. quanto às imagens, como se as fotografias estivessem aptas a representar objetivamente e puramente o real observado, fica clara também a limitação do alcance pretendido pelo trabalho.

Ou seja, a observação do comportamento das oito crianças balinesas da vila montanhesa de Bajoeng Gede (note-se: observação participante é diferente de "visão unidirecional") dificilmente pode ser generalizada em termos do "crescimento na cultura" balinesa. Basta considerar, além dos problemas de método e de sua concepção, as diferenças relativas às crianças das cidades nas planícies balinesas, providas de maiores recursos quando comparadas às crianças montanhesas, diferença que aparece em Balinese character (Mead; Bateson, 1962).

Outro fato pode ser considerado aqui, trata-se de uma doença epidêmica que ocorreu em Bajoeng Gede antes da pesquisa de campo de Mead, e que teria deixado sequelas no comportamento das crianças estudadas. Essa ocorrência, levantada por dois pesquisadores (Jensen; Suryani, 1992), compromete inteiramente a hipótese de Mead sobre a condição peculiar do tônus muscular das crianças balinesas (um dos temas explorados em Growth and culture). Além disso, acentua a improbabilidade da generalização pretendida por Mead.

Enfim, se é muito problemático que as oito crianças conhecidas de Mead possam representar o "crescimento infantil na cultura balinesa" é igualmente questionável que as seis crianças de New Haven possam representar o "crescimento da criança humana" num atlas.17 17 Mas nada impediria, por outro lado, que se pudesse concluir das mesmas imagens que: havia na época crianças sem qualquer assistência médica em Bali e crianças com assistência médica ostensiva nos EUA.

Infância, cultura, esquizofrenia e antropologia nos EUA

Resta perguntar ainda por que o trabalho de Gesell despertou tanto fascínio na autora, bem como sobre o que mais pode resultar de nosso percurso por essas obras. Andrew Lakoff (1996) fornece a pista certa para a primeira questão, além de ajudar a esclarecer o problema das relações entre cultura e esquizofrenia (que perpassa as obras de Mead sobre Bali). As considerações seguintes apoiam-se amplamente eu seu artigo sobre o "diagnóstico fotográfico de Margaret Mead" (Lakoff, 1996).

"Manuais de treinamento infantil" baseados em grande parte na psicologia behaviorista de John B. Watson, foram muito difundidos nos EUA dos anos 1920. As crianças deveriam ser "treinadas", desde muito cedo, a se tornarem adultas "bem comportadas", através de um tratamento estritamente disciplinado ao qual seriam condicionadas progressivamente. São esses apontamentos de Lakoff que ajudam a esclarecer o interesse de Mead pelo trabalho de Gesell, contrário à perspectiva de Watson.

À concepção de Gesell, Lakoff atribui uma liberdade maior no tratamento das crianças (que pode significar, por exemplo, deixar uma criança de cerca de um ano inteiramente à vontade diante de um prato de comida e uma colher que ainda não consegue manejar bem). As situações de "autoalimentação" permitidas na clínica de Gesell constituem exemplo de prática que seria condenável dentro da perspectiva behaviorista de Watson. À ideia de "forçar" a criança a fazer alguma coisa, Gesell opõe a ideia de "autorregulação"18 18 A base psicanalítica de tal ideia consiste no fato de que as situações forçadas podem provocar traumas infantis que trariam, no futuro, dificuldades de ajustamento individuais. (Lakoff, 1996, p. 9-10). Orientação, aliás, entrevista nas palavras do próprio Gesell,19 19 Na introdução ao segundo volume do Atlas do comportamento infantil. por exemplo, quando escreveu que os "[...] procedimentos naturalísticos dão à criança liberdade e um escopo de reações abundantes. Todo esforço foi feito para reduzir ao mínimo os constrangimentos artificiais e as distorções." (Gesell, 1934, p. 535, tradução minha).

Lakoff esclarece, também, que Gesell foi aluno de G. Stanley Hall. Este último defendeu a hipótese evolucionista de que a "ontogenia recapitula a filogenia", dessa maneira o "desenvolvimento infantil recapitularia linearmente as fases do desenvolvimento da espécie" (Lakoff, 1996, p. 4, tradução minha). Gesell, segundo Lakoff, se afastou dessa teoria biogenética, mas manteve em seus trabalhos a noção de "estágios de desenvolvimento" e de "idade biológica". Para Lakoff (1996, p. 4, tradução minha), enfim, ele representa uma fase intermediária da "transposição da narrativa evolucionária do campo biológico para o cultural".

O artigo de Lakoff discute, além disso, o problema das relações entre o tratamento da infância e o "caráter" adulto daí resultado. Para ele, uma antropologia "neofreudiana" e os estudos do "caráter nacional"20 20 "Ruth Benedict, Edward Sapir e Mead foram os mais proeminentes do grupo que começou a utilizar modelos psicanalíticos de desenvolvimento da personalidade em análises interculturais. O surgimento desse tipo de 'antropologia aplicada' é devido, em parte, ao prestígio adquirido pelos psicanalistas durante o período de guerra." (Lakoff, 1996, p. 7-8, tradução minha). Ver também os estudos da "cultura à distância", entre 1946-1953 (Mead; Métraux, 1953). teriam levado Gesell a associar explicitamente sua "filosofia do desenvolvimento infantil" a um "tipo de cultura democrática"21 21 Para ele o trabalho de Benjamim Spock (pediatra da filha de Mead nos anos 1940) entra na tendência a associar o tratamento mais "livre" das crianças aos valores democráticos defendidos nos EUA. (Lakoff, 1996, p. 10). Assim, a valorização das reações infantis e o respeito pela individualidade da criança seriam maneiras de evitar o surgimento de um "caráter nacional fascista" (Lakoff, 1996, p. 12-13).

Mas como compreender melhor a relação entre o "caráter balinês" e os primeiros anos de vida da criança em Bali? Para Mead as manifestações artísticas do teatro e das danças, acompanhadas de transe e possessão, denotavam "dissociação da realidade". Desde a pesquisa de campo balinesa (1936-1939) com Bateson, foi explorada a hipótese que relaciona o comportamento esquizofrênico (distúrbio que implica, também, "dissociação da realidade") de jovens estadunidenses às dificuldades de comunicação nas relações interpessoais, o que poderia ocorrer desde a mais tenra infância (começava na relação difícil com a mãe).

Uma vez transposta a hipótese para a sociedade balinesa, a "dissociação da realidade", vivenciada no transe e em outras situações, foi considerada uma componente aceitável da personalidade adulta dos balineses, institucionalizada no teatro e nas danças. Consequentemente, era preciso demonstrar como se dava o desenvolvimento dessa personalidade desde a infância. A criança, repetidamente frustrada nas interações com a mãe, iria desenvolver a personalidade "dissociada" ou "ensimesmada", o que já se mostrava patente aos três anos de idade. O exemplo típico era o menino I Karba22 22 Para uma discussão ética, pode-se apontar ao fato de que as crianças balinesas tenham sido expostas, no livro, com seus próprios nomes, ao passo em que as crianças expostas no Atlas do comportamento infantil (garotas e garotos A, B, C, etc.) tiveram seus nomes ocultos. Para outras considerações éticas, ver (Mendonça, 2005, f. 64-65). (Mead; MacGregor, 1951, p. 66).

Assim, o que foi levantado como hipótese, nesses termos, em Balinese character, foi retomado e reforçado por Mead e MacGregor em Growth and culture, como se o trabalho de Gesell (sobre o desenvolvimento motor infantil) pudesse contribuir ao entendimento da cultura balinesa como um todo. Dever-se-ia dizer, então, que Growth and culture procura delinear, grosso modo, as diferentes fases do desenvolvimento de uma criança constantemente "frustrada", que vive numa sociedade de artistas semiesquizofrênicos?23 23 Poder-se-ia dizer, por outro lado, que esses trabalhos contribuíam provavelmente para elevar o moral nacional dos antropólogos no período da Guerra Fria nos EUA? Seria o financiamento das pesquisas pelo Comitê para Estudo da Demência Precoce o fator principal para justificar a insistência de Mead sobre essa interpretação da cultura balinesa?

Mas se parecia haver certa tendência determinista nessa abordagem da infância, Lakoff nota efetivamente que o trabalho de Mead e Bateson não foi capaz de formular a relação entre o caráter pacífico e não agressivo dos balineses e os seus respectivos tratamentos recebidos desde a infância:

Num tempo em que os americanos estavam sendo conclamados a instilar um forte sentimento do self em suas crianças para evitar o "caráter nacional fascista", é interessante que, numa idílica e "passiva" cultura balinesa, Mead e Bateson encontraram um padrão no qual o desenvolvimento do self era sistematicamente desencorajado. Os antropólogos interpretaram isso não como uma lição, a ser aprendida por pais americanos que esperavam educar crianças não agressivas, mas antes como uma fonte de insight para a etiologia da esquizofrenia. (Lakoff, 1996, p. 13, tradução minha).

Canevacci (2001, p. 81) abordou o mesmo problema e chegou a dizer que "Balinese character é também um testemunho, infeliz, de como os financiamentos podem distorcer as conclusões". Fica indicada, de qualquer modo, nos trabalhos considerados, a dimensão política e ideológica que os perpassou no período considerado.

Imagens a pensar...

Faz-se necessário, enfim, sintetizar os diferentes usos das imagens até aqui abordados.24 24 Estes comentários finais são diretamente motivados pela leitura de Marcus Banks (2009). Os conteúdos das fotografias ou filmes, quando concebidos em termos "objetivos", estão ainda assim sujeitos às mais variadas interpretações e podem servir aos mais diferentes propósitos. Quanto mais controlada for a tomada de imagens estabelecida para finalidades (e situações) específicas, maior a chance de que essas finalidades (e não outras) sejam cumpridas. Decorre também que a generalização a partir de situações particulares assim observadas pode sempre ser problematizada. Isso valeria principalmente para o Atlas do comportamento infantil e para Growth and culture, bem como parcialmente para Balinese character.

Quando se consideram, por outro lado, as possibilidades de interpretação dos materiais imagéticos (e não apenas do conteúdo das imagens), outra relação é estabelecida com as fotografias ou filmes. Entram, nesse caso, considerações sobre o contexto de concepção, produção e de recepção das imagens.25 25 Em Balinese character a abordagem de imagens artísticas (como esculturas e pinturas vistas na Figura 4) procura atentar para esses aspectos. As próprias imagens, por sua vez, podem também ser consideradas diferentemente, em seu conjunto (coleções, pranchas, etc.) e nas formas que assumem de acordo com as escolhas do operador ou diretor (tipos de planos, ângulos de tomada, enquadramento, etc.). Esse tratamento pode levar a uma compreensão alargada dos processos e significados implicados na utilização das imagens. Pode-se dizer que este artigo procurou caminhar nessa direção.

Enfim, desejo chamar a atenção para a utilização de "pranchas fotográficas" como "modelos de apresentação de fotografias" (Samain, 2004, p. 55-60). As "pranchas" são compostas de dados simbólicos e icônicos (verbais e visuais) que dependem, por um lado, da concepção mais ou menos objetiva ou subjetiva que se tem da imagem fotográfica e, por outro lado, das correlações entre os textos e as imagens utilizados bem como do processo de seleção e arranjo de seus elementos. Se a concepção objetiva e "empiricista" da imagem fotográfica for superada por outra concepção, mais subjetiva e expressiva, a "prancha fotográfica" deixa o campo da "história natural" e a tendência basicamente ilustrativa que as imagens frequentemente assumem nesses casos.

Isso implica, também, uma mudança nas possibilidades de correlação estabelecida entre imagens e textos. A "prancha" fotográfica concebida nessa direção poderia expressar processos de abstração do pensamento? Estaria aí também uma pista para pensar sobre "como e o que pensam as imagens" (Samain, no prelo)? As fotografias, como material imagético resultado da experiência de campo, seriam então elaboradas em termos abstratos nas pranchas. Significa, portanto, que o trabalho de abstração científica teria como suporte não mais apenas o texto, mas uma linguagem híbrida, composta de textos e imagens. Não iriam também, nessa direção, as reflexões sobre hipermídia (Eckert; Rocha, 2001, 2006) na antropologia (composições com textos, imagens e sons)?

Finalizo com um breve retorno. Volto aqui à diferenciação entre a "análise fotográfica" de Bateson em Balinese character e o "estudo fotográfico" de Mead em Growth and culture. Mead escreveu o seguinte sobre a confecção das legendas neste último trabalho:

Ocasionalmente foram incluídas nas legendas referências a outros aspectos da cultura balinesa, mas, em geral, nós elaboramos as legendas em estreita relação com o assunto da prancha, em contraste com as justaposições analíticas e complexas usadas por Gregory Bateson nas legendas de Balinese character. (Mead; MacGregor, 1951, p. 58).

Nesta outra passagem Mead abordou o efeito dos códigos identificatórios relacionados às imagens (datas, nomes, locais, etc.). O cruzamento destas identificações e, dessa maneira, a construção de percursos variados pelo próprio leitor é possível em ambas as obras, embora de modos diferentes. Em Growth and culture "cada leitor pode passar as páginas como quiser, buscando pela mesma criança, ou descobrindo milhares de detalhes nas posturas e gestos que não foram notados nas legendas" (Mead; MacGregor, 1951, p. 58, tradução minha). Sobre Balinese character, notaram Allison e Marek Jablonko (1993, p. 43, tradução minha): "Para usar uma noção comum hoje, pode-se chamar o trabalho de Mead e Bateson de 'interativo', muito embora ele apareça na forma material do livro e não de um programa de computador."

Richard Kohn (1993, p. 28, tradução minha) apontou, por sua vez, para o modo como "a montagem cria uma nova síntese" e não simplesmente reúne fragmentos de realidades. Estão, pois, esboçados alguns rumos ao quais conduzem o percurso seguido até aqui com Margaret Mead.

Recebido em: 28/02/2010

Aprovado em: 07/06/2010

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  • SAMAIN, E. O que [como] pensam as imagens? No prelo.
  • *
    Este artigo apresenta uma reformulação parcial do capítulo 2 de minha tese de doutoramento
    Pensando a visualidade no campo da antropologia: reflexões e usos da imagem na obra de Margaret Mead (Mendonça, 2005), defendida no Instituto de Artes da Unicamp, sob orientação do Prof. Etienne Samain.
  • 1
    Uma introdução à utilização de imagens nos trabalhos de Margaret Mead foi desenvolvida no artigo "O uso da câmera nas pesquisas de campo de Margaret Mead" (Mendonça, 2006), com detalhes sobre a pesquisa realizada em Bali por Mead e o antropólogo Gregory Bateson, na época recém-casados.
  • 2
    Uma pequena resenha desse livro de Mead e Bateson encontra-se disponível na
    Revista Brasileira de Sociologia da Emoção (Mendonça, 2004).
  • 3
    Gregory Bateson assinou sozinho a "análise fotográfica", parte central do primeiro livro publicado com Mead a partir da pesquisa de Bali, 1936-1939. Note-se que Bateson não participou do segundo livro com Mead,
    Growth and culture (Mead; MacGregor, 1951), embora suas fotografias tenham sido por ela utilizadas. Bateson e Mead separaram-se em 1950.
  • 4
    As cinco "imagens" aqui reproduzidas foram reduzidas em seu tamanho para se ajustarem aos padrões da revista, de maneira que mantivessem sua disposição no formato original de "pranchas fotográficas" (as fotografias das pranchas, portanto, diminuídas em relação aos originais), as legendas das imagens 3, 4 e 5 (
    4 e
    5) foram reproduzidas na íntegra.
  • 5
    Frances Cooke MacGregor na época realizava seu doutoramento em sociologia. Pesquisava atitudes relativas ao desfiguramento corporal em pacientes submetidos a cirurgias plásticas (Mead; MacGregor, 1951, p. 199). Outro relato de seu encontro com Mead encontra-se em Howard (1984, p. 254-256).
  • 6
    A postura de "sapo" seria reforçada pela maneira cotidiana de carregar a criança na eslinga (uma espécie de faixa passada pelos ombros que sustenta a criança junto à mãe, inclusive em situações de amamentação), quando muitas vezes suas duas pernas ficam abertas e encaixadas no corpo da mãe.
  • 7
    Títulos de duas pranchas dessa seção.
  • 8
    Títulos de outras pranchas da mesma seção.
  • 9
    Pela definição de Mead, a organização tonal balinesa, também chamada em
    Growth and culture de "tônus serpenteado" (
    meandering tonus), é "caracterizada por um tipo de inconstância amorfa no tempo e na localização das respostas tonais" (Mead; MacGregor, 1951, p. 223, tradução minha).
  • 10
    A relação entre cultura e esquizofrenia será retomada mais adiante.
  • 11
    Que precisariam, para uma justa apreciação, da consideração das demais pranchas e seções de cada um dos livros.
  • 12
    Para acompanhar melhor as hipóteses de
    Growth and culture sobre o conceito de "espiral" em seu estado inicial de formulação, ver Mead (1947).
  • 13
    Outra limitação diz respeito às crianças que aparecem nas fotografias de
    Growth and culture. Além das oito crianças principais (que são apresentadas nas 16 pranchas iniciais) há pelo menos outras três (I Djantoek, Diasih e I Sami) que aparecem enfocadas de modo intermitente ao longo das imagens das pranchas 17 em diante. A título de exemplo, aponto a prancha 41 (Mead; MacGregor, 1951, p. 145).
  • 14
    Refere-se ao fato de quem está sendo visto não poder enxergar do outro lado (ver
    Figura 1); trata-se de procedimento semelhante ao que é usado ainda hoje para a identificação de criminosos pelas vítimas.
  • 15
    Aplicações em escolas e hospitais foram relatadas por Gesell (1940, p. 353-356).
  • 16
    Jacknis (1988, p. 172) enfatiza esse aspecto da concepção de Mead sobre o uso das imagens.
  • 17
    Mas nada impediria, por outro lado, que se pudesse concluir das mesmas imagens que: havia na época crianças sem qualquer assistência médica em Bali e crianças com assistência médica ostensiva nos EUA.
  • 18
    A base psicanalítica de tal ideia consiste no fato de que as situações forçadas podem provocar traumas infantis que trariam, no futuro, dificuldades de ajustamento individuais.
  • 19
    Na introdução ao segundo volume do
    Atlas do comportamento infantil.
  • 20
    "Ruth Benedict, Edward Sapir e Mead foram os mais proeminentes do grupo que começou a utilizar modelos psicanalíticos de desenvolvimento da personalidade em análises interculturais. O surgimento desse tipo de 'antropologia aplicada' é devido, em parte, ao prestígio adquirido pelos psicanalistas durante o período de guerra." (Lakoff, 1996, p. 7-8, tradução minha). Ver também os estudos da "cultura à distância", entre 1946-1953 (Mead; Métraux, 1953).
  • 21
    Para ele o trabalho de Benjamim Spock (pediatra da filha de Mead nos anos 1940) entra na tendência a associar o tratamento mais "livre" das crianças aos valores democráticos defendidos nos EUA.
  • 22
    Para uma discussão ética, pode-se apontar ao fato de que as crianças balinesas tenham sido expostas, no livro, com seus próprios nomes, ao passo em que as crianças expostas no
    Atlas do comportamento infantil (garotas e garotos A, B, C, etc.) tiveram seus nomes ocultos. Para outras considerações éticas, ver (Mendonça, 2005, f. 64-65).
  • 23
    Poder-se-ia dizer, por outro lado, que esses trabalhos contribuíam provavelmente para elevar o moral nacional dos antropólogos no período da Guerra Fria nos EUA?
  • 24
    Estes comentários finais são diretamente motivados pela leitura de Marcus Banks (2009).
  • 25
    Em
    Balinese character a abordagem de imagens artísticas (como esculturas e pinturas vistas na
    Figura 4) procura atentar para esses aspectos.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      12 Nov 2010
    • Data do Fascículo
      Dez 2010

    Histórico

    • Aceito
      07 Jun 2010
    • Recebido
      28 Fev 2010
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