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À flor da pedra: formas tumulares e processos sociais nos cemitérios brasileiros

RESENHAS

Jane Felipe Beltrão

Universidade Federal do Pará - Brasil

MOTTA, Antonio. À flor da pedra: formas tumulares e processos sociais nos cemitérios brasileiros. Recife: Fundação Joaquim Nabuco; Massagana, 2009. 202 p.

Lembro-me de ter assistido a José de Souza Martins nos anos 1980, em conferência, durante a realização da Reunião Anual da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência, em Belém, falar sobre a importância de "ler os cemitérios" como forma de compreender a sociedade que os institui e pensar nos processos sociais vigentes. Dizia ele, ao viajar não se esqueçam de "visitar" os cemitérios. Ouvi os conselhos e jamais deixei de observá-los. Durante a minha formação fui aos cemitérios e trabalhei os documentos de inúmeros cemitérios, pois estudei epidemias.

Os anos se passaram e, agora, fui agraciada por Antonio Motta com o seu mais recente trabalho, À flor da pedra: formas tumulares e processos sociais nos cemitérios brasileiros, o qual me foi entregue, conforme me disse o autor, pelos meus interesses e por um dia tê-lo informado sobre os cemitérios em Belém. Curiosa, comecei a devorar o conteúdo do livro e fui descobrindo caminhos que antes não percorri.

Motta informa, modestamente, que

[...] o que pretende é apenas ler e entender, sob uma perspectiva sócio-antropológica, algumas atitudes, significados sociais e, sobretudo, as formas de cuidado dispensadas ao corpo do morto ou cadáver, a partir de um sistema de objetos diversos, composto por morfologias tumulares, mobiliários funerários, placas, representações estatuárias, inscrições e epitáfios existentes em túmulos nos primeiros cemitérios brasileiros, construídos na segunda metade do século XIX. (p. 18).

Na continuação, vejo Motta agradecer a leitura de alguns capítulos a José de Souza Martins. Logo fiz a conexão com a escuta dos idos dos anos 1980, corri à bibliografia e encontrei referências importantes sobre o tema. Voltei ao texto e continuei na trilha dos mortos.

O trabalho que, agora, resenho é um primor pelo tratamento estético do livro, exemplar que lembra um antigo álbum de fotografias, no qual entre as inúmeras fotos havia uma página em papel vegetal, onde às vezes podíamos ler anotações de lembranças dos organizadores da memória. Mas a cuidadosa estética com o objeto livro não cessa no exemplar, ela se alastra, suavemente, pelo texto, cujo foco de análise é mais que objetos em/e monumentos, pois se trata de um vigoroso ensaio sobre os corpos dos mortos, que se revelam em doses centesimais (homeopáticas) ao leitor, envoltas em "dizeres" e argumentos da literatura mundial e de expressivos poetas, tornando o tema suportável aos leitores. Embora remeta às tristezas e às lembranças de entes queridos, fica-se "comovido" com a etnografia dos lugares que abrigam os mortos nos últimos dois séculos no mundo ocidental, não pela comoção em si, mas pela trama que a descrição tece, nos envolvendo.

Caro leitor, o trabalho ensaístico, que usa da etnografia enquanto mote, não fica encarcerado pelo Ocidente. Motta desfia, como se rasgasse uma mortalha em seda, comparação erudita sobre as formas de morrer, passeia por aldeias e cidades informando o quanto somos diversos e semelhantes enquanto humanos. Aprende-se muito, o ensaio que promete pouco, à partida, se agiganta diante do leitor identificando e localizando na cultura material funerária as inúmeras expressões da atividade coletiva sobre o corpo do morto, deixando entrever inclusões, exclusões, parentesco, formas de aliança e disputas por títulos sociais condizentes com o status de alguns dos mortos ilustres, além de informar sobre o lugar que é reservado a cada um dos agentes sociais. A morte recria a vida e nos aproxima ou separa conforme se viveu.

Fico a imaginar que o texto de Motta produzirá em cada leitor - antropólogo ou não - outra forma de reflexão sobre os cemitérios, mesmo que não se conheça os cemitérios sobre os quais trabalha o autor. Entrar na "casa dos mortos" depois de ler À flor da pedra talvez nos faça perder um pouco o receio que temos dos mortos e/ou das visagens que eles produzem, entre muitos tabus sobre a morte, e permita aos leitores compreender que morrer é a passagem para o lado que não conhecemos, mas que queremos ver registrado, especialmente para não esquecer o quão importante foram os mortos enquanto vivos. Talvez o trabalho sirva como "guia" na leitura que, às vezes em viagem, fazemos ao Arlington, ao Recoleta ou ao cemitério onde depositamos as cinzas dos que já se foram, anunciando novas formas de homenagear os mortos de hoje.

Mesmo que a importância seja restrita à desconsolada mãe que perdeu seu único filho, ainda, ao nascer. Ele, a criança, não teve tempo de viver, mas foi intensamente esperado, amado e "cultivado" a cada dia da espera. Da expectativa do anúncio da espera do filho que, em geral, causa algazarra, lágrimas e esperança à espera diária, o anjinho - como chamamos a criança morta - que veio rapidamente ao mundo tem rosto, formas e lembranças cultivadas pelos que o amaram na espera, na chegada e na partida, pois assim nos foi ensinado, e mesmo que nos dias de hoje se opte pela cremação dos corpos, o lugar onde deitamos as cinzas dos que não mais se encontram entre nós é sempre o campo santo das memórias, mesmo que o espaço seja o leito do rio, a praia, ou um sem número de lugares como anuncia Motta em seus prognósticos de mudança dos rituais funerários.

Os relatos etnográficos, à luz da literatura de Robert Hertz e Marcel Mauss, apenas informada por Motta rapidamente, podem ser avaliados e sentidos nas profundas descrições que o autor - como informa Kátia Mattoso no prefácio - usa da arqueologia para escavar com cuidado as memórias sociais do mundo ocidental, ressuscitando os dramas que envolvem o morto, a morte e os vivos encarregados dos "encomendamentos" de almas.

Sendo leitor de Antonio, não abra mão de olhar, cuidadosamente, página a página, o ensaio fotográfico de Mônica Vasconcelos, arquiteta e fotógrafa, nomeada por Motta como "consorte parceira" do trabalho. As fotografias são de excelente qualidade, e a seleção indica e remete o leitor às descrições do autor, ao mesmo tempo em que nos inicia nos meandros dos estilos estéticos da época.

É importante pensar que, apesar da emoção, a razão nos informa sobre os caminhos metodológicos do autor, cuja teoria é vista em cada dobradura das vestes das diversas estátuas que "adornam" os túmulos, tomadas a sério na construção das descrições do Motta que é docente da Universidade Federal de Pernambuco e que nas suas observações anuncia o trabalho como uma pequena síntese do tempo que pesquisa o tema: esperemos que seja a primeira e que outros ensaios nos apresentem outras faces e tramas do mundo dos mortos, para melhor compreendermos a sociedade.

O texto indica a possibilidade de, com razão e argumentos pertinentes, escrever os eventos, sem esquecer a emoção que nos causam. Razão e emoção são partes da escrita antropológica! Usadas ponderadamente produzem textos interessantes, e Motta tomou a dose certa de ambas, nos apresentando os cuidados na hora da morte com pertinência.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    12 Nov 2010
  • Data do Fascículo
    Dez 2010
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